De: Kornél Mundruczó. Com Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Ellen Burstyn e Molly Parker. Drama, EUA, 2020, 128 minutos.
A premissa de Pieces of a Woman é tão simples quanto dolorosa: um casal prestes a ter o seu primeiro filho opta pelo parto domiciliar, mas as coisas saem do controle durante o procedimento e o bebê morre instantes depois de nascer. Devastados, Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) lutam para tentar retomar a "normalidade" em suas vidas - a rotina, o trabalho, a vida a dois -, ao mesmo tempo em que enfrentam um doloroso processo judicial em que a parteira (Molly Parker) é acusada de negligência criminosa. Sim, é pesado. Bastante pesado. E pode ser contraindicado para aqueles cinéfilos que já estão considerando os tempos pandêmicos um fardo por si só. As dúvidas do casal, afinal, são muitas: se o parto tivesse sido realizado no hospital, o filho teria sobrevivido? E se a emergência tivesse sido acionada mais cedo? Há culpados, verdadeiramente? Colocar a parteira na cadeia amenizará, de alguma forma, a dor? Sem tomar partido, a obra do húngaro Kornél Mandruczó não fornece soluções fáceis, ao mesmo tempo em que mergulha o espectador na rotina excruciante da dupla de protagonistas.
Aliás, mergulha MESMO. Os primeiros 30 minutos de projeção, por sinal, são tão aflitivos, quanto tecnicamente bem executados. Em um longo plano sequência, partimos do casal em aparente tranquilidade enquanto aciona a parteira, após a bolsa se romper. Impedida de vir imediatamente, a parteira manda a sua ajudante. A câmera vai para lá e para cá acompanhando as movimentações angustiantes do trio, de um ambiente para o outro, do quarto para o banheiro e para o quarto novamente. Há um clima de tensão no ar, pesado, incômodo. O ambiente parece mal iluminado, macambúzio. As dores do parto soam ainda maiores do que o normal. O procedimento se torna pesaroso, mais longo do que talvez devesse ser. O apoio de Sean está longe do ideal. Os batimentos cardíacos do bebê parecem palpitar de forma incerta, trôpega. Quando a emergência é chamada já é tarde. Choro, dor, perda. Os créditos iniciais sobem. E nós estamos há uns bons minutos prontos para dizer "chega, já entendemos o que vai acontecer aí". E tudo acontece. Sem muito respiro.
E por mais desolador que seja o arco dramático do filme é preciso reconhecer o esforço dos atores em entregar a melhor interpretação possível - especialmente da Vanessa Kirby, que será figurinha certa entre as indicadas no próximo Oscar. É uma caracterização não apenas de gestos, olhares, silêncios e gritos que parecem prontos a vir à tona. É uma concepção de grande exigência física, mas que também mergulha em nuances para explicitar dores - e, nesse sentido vale observar a sequência em que Martha "tateia" uma maçã no setor de frutas do supermercado. Ou mesmo quando tamborila os dedos das mãos que surgem em close, com o esmalte das unhas agora desgastado, o que poderia sugerir uma espécie de esfacelamento da própria rotina pós-luto. Aliás, hábil na concepção de metáforas, o diretor não hesita em tornar simbólicos os próprios objetos cênicos, podendo ser desde uma bola de pilates que agora murcha no meio da sala, passando pelas flores que estão morrendo nos vasos até chegas nas xícaras sujas que se amontoam na pia. O dia a dia se tornou insustentável e ele é refletido nesses pequenos detalhes, que injetam uma boa carga de simbolismo à dualidade que nos faz lembrar o tempo toda da vida e da morte como espectros opostos.
Nesse sentido, o diretor também é hábil ao possibilitar uma série de debates, sem necessariamente tomar partido. O principal deles coloca em espectros opostos os defensores do parto domiciliar - que visa a tornar o procedimento mais acolhedor e confortável à mulher -, em contraponto aos defensores do parto hospitalar normal, em que a garantia de assistência médica compensaria o caráter mais invasivo da "proposta". E confesso que fiquei muito feliz de ver a forma criativa com que é tratada essa discussão, com as dúvidas sobre o destino "jurídico" a ser dado a parteira surgindo dentro do próprio seio familiar - o que também permitiu à veterana Ellen Burstyn a concepção de boas sequências vivendo a mãe da Martha. Outra bela discussão envolve o destino do corpo da bebê: Martha pretende doá-lo à universidade para estudo, ao passo que sua conservadora mãe deseja um enterro nos moldes tradicionais, religiosos. Em outra parte, a controvérsia envolve "apagar" a existência da filha morta da casa. Martha pretende se desfazer de todas as suas coisas. Roupas, brinquedos, móveis do quarto. Sean está insatisfeito em relação a esta decisão. São instantes que enriquecem a narrativa.
E por mais que o filme não evite alguns clichês batidos - após a morte inesperada de seu bebê, não demora a surgir a cena em que Martha se depara com outras mães extremamente felizes com seus filhos -, a inclusão dessas sequências não chega a comprometer o resultado final. Nem mesmo a tão discutida sequência de tribunal do terço final atrapalha. Há um aceno para o otimismo no desfecho, por mais desalentadora que a experiência como um todo seja - e por mais que isso posso destoar um pouco do conjunto, definitivamente é algo que não atrapalha. É uma obra dura, inescapavelmente melancólica - a neve que insiste em cair reforça isso -, repleta de simbolismos, tecnicamente soberba e ainda com excelentes interpretações. É, até o momento, o grande filme desse começo de temporada. Se terá gás para se sustentar e chegar com força a temporada de premiações, o tempo dirá. Se depender de nós aqui do Picanha, já estamos na torcida.
Nota: 9,0
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