Sobre os Ossos dos Mortos foi o meu primeiro contato com a autora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2018 - e, desde já tenho a certeza de que esta será uma das grandes leituras desse ano. Com uma deliciosa mistura de estilos - a obra vai do suspense policialesco, passando pelo realismo fantástico até chegar à comédia de humor negro muitas vezes na mesma página -, o livro nos joga para um vilarejo em uma gelada região ao norte da Polônia, na divisa com a República Tcheca. É nesse local frio, inóspito - o sentimento de desolação por vezes é palpável -, que mora a protagonista Janina Dusheiko, uma professora de inglês aposentada, que ocupa suas horas como caseira em propriedades vizinhas à sua. Atividade que lhe garante uma renda extra, ao mesmo tempo que permite monitorar a movimentação no local.
Só que a obra já inicia com uma certa tensão no ar: acordada de madrugada pelo excêntrico vizinho que leva o apelido de Esquisito, Janina vai até a casa de Pé Grande, integrante do Clube de Caça local, que jaz morto. A cena é aterradora: em meio a uma refeição - o homem se alimentava da carne de uma corça caçada, enquanto outros animais espreitavam do lado de fora -, o sujeito parece ter se engasgado com um osso. Não demorará para que outros homens sucumbam neste local tão gelado e pouco amistoso. A cada morte o mistério aumenta: as pistas parecem indicar uma certa revolta dos animais selvagens do local, normalmente acoados pelo homem. Janina, uma vegetariana que possui um profundo respeito pela natureza, acredita na tese de que hienas, raposas, corças e outros bichos possam estar dispostos a se vingar contra a destruição proposta pelo homem. Só que o argumento meio estapafúrdio da protagonista a transforma, acidentalmente, em uma das principais suspeitas. Sensação ampliada pelo fato de seus próprios cachorros terem desaparecido em uma situação mal explicada.
Já os vestígios encontrados junto a cada cadáver acabam por dar forma à curiosa "teoria conspiratória" da rebelião animal. Em uma das mortes, um guarda florestal responsável por desmatar parte de uma floresta - que, ao cabo, também aniquilaria famílias inteiras de certa espécie de besouro que vivia no interior dos troncos das árvores -, amanhece apodrecendo com o corpo coberto pelo mesmo tipo de besouro que sai pela boca, se esparrama pelas demais partes, formando um mar escuro de insetos, num tipo de ecossistema único, incomum. Sem resposta para cada caso, Janina entope a polícia de cartas onde cobra uma solução da justiça, ao mesmo tempo em que expõe argumentos cada vez mais convincentes sobre o bizarro comportamento da fauna local. Ao mesmo tempo, cruza astrologia - a posição de Saturno ou de Júpiter poderia influenciar nas mortes? - com a poesia de William Blake, que ela traduz todas as sextas-feiras, em companhia de um aluno.
Com um estilo de escrita direto, sem firulas, Sobre os Ossos dos Mortos é subversivo, um tanto macabro e repleto de reflexões sobre a condição contemporânea - especialmente no que diz respeito à nossa relação com a natureza. Sem abrir mão de certo existencialismo, a obra nos faz refletir ao mesmo tempo que nos diverte, passando de raspão por temas como loucura, injustiça, direitos dos animais e hipocrisia das "famílias de bem". Vencedora do Man Booker Prize, Olga tem sido saudada como uma das grandes escritoras da atualidade, especialmente por esta "fábula filosófica sobre a vida e a morte", como destacou o New York Times. Já Janina é a anti-heroína por excelência: meio maluca, um tanto persistente em suas convicções, com um comportamento repleto de atitudes questionáveis, mas com um carisma irresistível.
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