quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Novidades no Now/VOD - Uma Noite em Miami (One Night In Miami)

De: Regina King. Com Kingsley Ben-Adir, Eli Goore, Leslie Odom Jr. e Aldis Hodge. Drama, EUA, 2020, 113 minutos. 

 "Alguns brancos só querem ter a oportunidade de se parabenizar por não serem crueis conosco, como se devêssemos dar graças por eles terem tido a gentileza de nos tratarem quase como humanos. Eu odeio eles mais do que os racistas escancarados".

Vamos combinar que é a forma com que é a tratada a questão do racismo que torna Uma Noite em Miami (One Night In Miami) um filme ainda melhor do que poderia ter sido. Por que não se trata apenas de quatro homens negros confinados em um apartamento, discorrendo sobre como sofrem o preconceito na pele. Há também um debate sobre como cada um deles encara essa realidade: com mais militância? De forma mais resignada? De maneira silenciosa? Com submissão? Com compromisso com a "causa"? Isto porque os quatro sujeitos em questão são famosos - e talvez por isso pudessem usar a fama em seu favor. O primeiro deles é o boxeador campeão mundial Cassius Clay (Eli Goore). Há também o músico de soul Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) e o jogador de futebol americano candidato a astro de Hollywood Jim Brown (Aldis Hodge). Fechando o grupo, o ativista político Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) serve como uma espécie de amálgama de todos: o ano é 1964 e a luta pelos direitos civis dos negros na Terra do Tio Sam percorreria praticamente toda a década.

Em si o filme, baseado em uma peça de Kemp Powers, é bastante teatral. E é por isso que centra a sua força na potência dos diálogos e nas interpretações bastante expressivas de seu elenco. Não parece haver, nesse sentido, muito espaço para pontas soltas: ao imaginar como seria esse encontro fictício, a diretora Regina King (em sua promissora estreia) escancara o racismo estrutural que, em muitos casos, sequer é claro para os negros que conseguiram superar um sem fim de barreiras para vencer na vida. E "vencer na vida", lembra Jim Brown em certa altura: é TAMBÉM ter estabilidade financeira. Nesse sentido, o filme é um prodígio na discussão do papel dos próprios negros no combate ao racismo - que poderiam (e deveriam?) utilizar a sua voz nas artes, na música, nos esportes e em outros campos para levantar as suas bandeiras. Está em alta, por exemplo, a discussão sobre se atletas profissionais devem ou não encampar essa luta - se deveriam se manifestar ou mesmo deixar de entrar em quadra ou em campo como forma de protesto a cada episódio de racismo que ocorre no esporte. Por que se ele ocorre no esporte, na música e com os famosos, como não estará acontecendo nas frestas?

E é por isso que a "dança" entre esse quarteto de protagonistas é tão elegante quanto potente. Após a luta que dá a vitória a Clay em uma noite agradável de Miami Beach, os quatro se encontram para celebrar essa conquista. Ao invés de saírem para beberem, curtirem e viverem, Malcolm X sugere uma noite diferente para todos: confinados, debaterão os próximos passos de uma discussão de vida ou morte que está em alta e que visa a combater os preconceitos. O ativista, na realidade, reúne a todos para inquiri-los: como jogadores e artistas eles não estariam sendo apenas "brinquedos de corda que tocam músicas para o entretenimento dos brancos"? Não seriam eles, apenas "negros burgueses que se contentam com migalhas?". Quando se veem confrontados os demais recuam: Cooke, empenhado em propagar o romantismo classudo em suas canções é provocado: "como pode um branquelo como Bob Dylan ser mais ativo nesse tipo de batalha do que você?". Trata-se ao cabo de um filme sobre tomada de consciência e sobre o quão complicado deve ser trafegar em meio a equação que coloca no mesmo lado o sucesso e a necessidade de não baixar a cabeça para um confronto permanente de ideias.

E mesmo que a intenção geral da obra seja a de provocar a reflexão, a mensagem não deixa de ser passada com elegância, inclusive intercalando momentos mais leves e bem humorados - especialmente no que diz respeito as diferenças de personalidade entre os quatro -, com outros mais complexos e cheios de significados. Há, por exemplo uma sequência em que assistimos uma exibição ao vivo de Sam Cooke e que dá conta da verdadeira potência que pode haver por trás de um comportamento que sugere união diante da adversidade. É uma metáfora mais do que perfeita. Em outros, há espaço para reconhecer que a militância exagerada - ainda que discutir uma pauta como o racismo JAMAIS deveria sugerir exagero -, talvez possa incomodar certas alas (e, nesse sentido, é quase curioso perceber como Malcolm X se apresenta quase como um "vilão" tão involuntário quanto pessimista). É um filme completo, afinal de contas: é bem feito, bem orquestrado, entretém, diverte, é atualíssimo e ainda nos faz pensar. Em alguns aspectos guarda semelhança com o contemporâneo A Voz Suprema do Blues (2020). Mas, aqui, acho que há ainda mais intensidade. O que não deixa de ser também uma virtude, que faz com que a obra dialogue exatamente com aquilo a que ela propõe discutir.

Nota: 8,5

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