segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Cinema - O Irlandês (The Irishman)

De Martin Scorsese. Com Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Harvey Keitel e Jesse Plemons. Drama / Policial, EUA, 2019, 209 minutos.

Do ponto de vista da morte, O Irlandês (The Irishman) é um filme paradoxal: ao mesmo tempo em que reflete sobre a finitude - especialmente no momento em que os personagens surgem frágeis, quando próximos do ocaso de suas existências -, também nos faz pensar a respeito do absurdo e da inutilidade de matar, de morrer, de assassinar (algo muito normal em filmes de gângster). Afinal de contas de que serve tudo isso? Essa disputa sem fim entre chefões da máfia? Esse jogo de poder que sai do nada e nos leva para lugar nenhum? Sim, parece pouco para um filme de mais de 200 minutos, mas a essência daquilo que assistimos em tela é exatamente esta: um dia morreremos, fragilizados, doentes, sozinhos... e de que terá valido aquilo que fizemos enquanto tínhamos saúde? Força? Vigor? O que nos acompanhará no momento derradeiro de nossas vidas? Quais as culpas? Arrependimentos? Desejos? Que sonhos teremos ou não realizado? A nossa "missão" em terra estará, de fato, cumprida?

Bom, os desavisados que ainda não assistiram à película, podem ficar tranquilos: não se trata de um drama existencialista em que as divagações de um bando de homens de meia idade, serão mais relevantes do que os acontecimentos que marcam as suas vidas. Mas elas estarão lá. Em cada curva, em cada canto, em cada olhar melancólico, em cada silêncio que diz muito. Nas frases não ditas ou nos assassinatos executados apenas para se livrar de um destino semelhante. Ou mesmo nos letreiros que, em determinados momentos, nos revelam como morrerão figuras que orbitam o protagonista Frank (Robert De Niro) e seus asseclas - os parceiros de "negócios" Russel Bufalino (Joe Pesci) e Jimmy Hoffa (Al Pacino), entre outros. Todo muito vai morrer afinal e há algum tipo de melancolia permanente, reforçada pela fotografia acinzentada, pelos gestos econômicos, pelos corredores de prédio opressivos ou pela sofreguidão exemplificada pela dificuldade de colocar um simples remédio em uma caixinha. Pelo isolamento.



Isso não quer dizer que a narrativa se arraste apenas para escancarar, lá pelas tantas, as fragilidades desse coletivo de sujeitos que vai perdendo a vitalidade conforme os anos passam. Voltando no tempo, descobrimos como Russel recruta Frank para a realização de alguns "trabalhos", de como Frank faz amizade com Hoffa - um importante sindicalista que representa os caminhoneiros -, e de como seus atos influenciarão o comportamento de todos à sua volta, da família, passando por amigos, até chegar em políticos. Aliás, a forma como se estabelece um elo entre eventos de grande relevância, como a morte de John Kennedy, com as fraudes, extorsões, golpes e negócios escusos da gangue comandada por Russel é um dos aspectos que torna a narrativa, que é baseada em fatos reais, fascinante. Com muito menos histrionismo e glamourização da máfia do que nos seus filmes anteriores, especialmente Cassino (1995), Scorsese constrói uma obra de pequenos instantes que vão se colando como se fossem um quebra-cabeças - seja este uma reunião mal sucedida por causa de um atraso (e de um sujeito de bermuda), seja o longo ato em que um assassinato de uma figura importante é desnovelado.

E, é quase redundante dizer que tudo só funciona por causa da magnitude do elenco - que é completado por outros astros, como Ray Romano (que faz o advogado de Frank), Harvey Keitel (como um intempestivo chefão da máfia), Bobby Canavalle (um parceiro de negócios) e Jesse Plemons (o filho de Hoffa). Já havia algum tempo que De Niro encarnava seus personagens de forma caricata e no piloto automático, em comédias de segunda linha. Aqui, consegue transparecer o cansaço, o medo, o constrangimento e a frieza em diferentes momentos do filme. Já Pesci, sempre acostumado a encarnar figuras tão delirantemente expansivas e violentas (como esquecer de seu Tommy Devitto em Os Bons Companheiros?), aqui dá um verdadeiro show, ao encarnar uma figura claramente perigosa (e igualmente violenta), mas com bem menos ferocidade, mais economia. Não por acaso, em um dos melhores momentos de O Irlandês, Frank é inquirido por ter cometido um equívoco que quase custa a sua vida, sendo salvo por Russel que, pasme, apenas com o olhar e discretos gestos com a boca, comunica aquilo que está querendo dizer. O trio é completado por um Pacino à altura de seus melhores trabalhos (e não será nenhuma surpresa se surgirem indicações ao Oscar pela frente).


Equilibrando momentos de humor e leveza com outros que entregam a angústia de uma vida eternamente ligada ao crime, o roteiro é capaz de brincar com expressões (pintar a parede), chegar ao limite do nonsense (como no momento em que Hoffa debocha do fato de os italianos não terem criatividade na hora de dar nomes) e abordar dramas familiares - exemplificado pela filha que tem medo do próprio pai - para, em poucos instantes, nos levar de novo para o universo sombrio e de violência ao qual todos aqueles que acompanhamos estão envolvidos. Nesse sentido, não serão poucas as mortes, o sangue e o rastro de dor que será deixado naqueles que ousarem atrapalhar os negócios dos mafiosos. Assim como não serão poucas as cenas de tramoias, de conversas cheias de segundas intenções e de imagens recheadas de simbolismos - a das carnes penduradas em um açougue, no ato inicial, são quase didáticas demais! Só que, no fim das contas, tudo será apenas negócios. Dinheiro. Poder. E nada disso acompanhará ninguém para o caixão. Como comprovará o melancólico ato final desse filme grande, cheio de vigor e que nos faz pensar, quase que permanentemente, no poder transformador da arte. Um monumento.

Nota: 10

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