sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A Volta ao Mundo em 80 filmes - Atlantique (Senegal)

De: Mati Diop. Com Mane Sane, Ibrahima Traore, Aminata Kane e Babacar Sylla. Drama / Suspense / Fantasia, Senegal / França / Bélgica, 2019, 104 minutos.

Enviado pelo Senegal para a próxima edição do Oscar, o sensorial Atlantique (Atlantics) começa como um drama convencional sobre relacionamentos e sobre casamentos arranjados - uma prática tradicional no País africano. Ada (Mama Sane) está prometida para o ricaço machista Omar (Babacar Sylla), mas gosta mesmo é de Souleiman (Ibrahima Traore), trabalhador da construção que está a quatro meses sem receber de seus patrões inescrupulosos. Após um episódio em que Souleiman e seus colegas confrontam os seus empregadores sobre os salários atrasados - os operários estão construindo um prédio meio futurista em meio a poeirenta Dacar -, os homens acabam se lançando em alto mar em uma pequena embarcação, para tentar uma melhor sorte. Situação que desespera não apenas Ada, mas também as suas amigas e companheiras que namoram outros daqueles jovens e se veem sozinhas, sem muita explicação, de uma hora para outra.

E será a partir desse episódio que o filme mudará de tom, passando a flertar com o suspense, a ficção científica e a fantasia, com elementos sobrenaturais, religiosos e até futuristas - algo que será reforçado pelos contemplativos planos-sequência, pelas imagens idílicas (especialmente do mar) e por uma persistente trilha sonora, que gerará uma permanente sensação de incômodo. Passada uma semana desde que Souleiman e seus colegas desaparecem mar adentro, chega o dia do casamento de Ada e Omar, com a jovem participando dos rituais - com direito a vestes e música folclórica - meio a contragosto. Um incêndio meio inexplicável e aparentemente criminoso justamente no alvíssimo quarto do casal gerará uma dúvida para os investigadores: teria Souleiman retornado? Alguém afirma ter o visto vagando em meio aos convidados da festa. Seria ele o incendiário? Ada insiste que não vê Souleiman a dias, mas quem estará por trás, então, desse episódio?


Discutindo o papel da mulher, especialmente em sociedades mais conservadoras, a obra de estréia da diretora Mati Diop evoca uma série de sensações para discutir escolhas, liberdade, paixão e permanência da memória afetiva - que é aquilo que carregamos conosco e que nunca se esvai quando pensamos nas pessoas que gostamos e que já nos deixaram. Repleta de contrastes, de simbolismos, a película também faz a crítica social ao demonstrar como famílias podem ser devastadas a partir de frágeis relações trabalhistas e de costumes antiquados - e aqui vou me esforçar para não dar spoiler, mas há duas sequências envolvendo o antigo patrão de Souleiman na segunda metade do filme, que são de lavar a alma. Enquanto o jovem não reaparece, Ada fica para dar explicações, sendo presa. Tudo piora quando outro incêndio acontece, com o envolvimento de mais pessoas. Há um tom irresistivelmente "febril" na narrativa, algo entre a urgência sensual das paixões juvenis em meio a um mundo cheio de incompreensão e de dor.

Como muitas vezes acontece, talvez não seja um filme para todos os paladares. Há bastante imagens do mar, indo e vindo com suas ondas, o que sugere metaforicamente uma espécie de "retorno" daqueles que foram oceano adentro e que reaparecem como emanações espirituais, incorporadas de outra forma. Há uma leveza nisso. Uma poesia, que torna a experiência não menos do que fascinante. Com excelente execução do ponto de vista técnico, o filme também aposta em seus curiosos enquadramentos, em uma boa edição de som (que faz com que a diegese se sobressaia, sem comprometer o produto final) e numa fotografia amarelada, que reforça o calor sufocante do lugar. Há personagens dispensáveis, como o do investigador, [SPOILERZINHO] que também tem um arco meio inexplicável do ponto de vista da possessão - por que ele é o único homem a ser possuído? Aliás, um homem que sequer era conhecido de Souleiman? Mas nada que comprometa a experiência de conferir essa obra que está disponível na Netflix.

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