quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Cinema - Vice (Vice)

De Adam McKay. Com Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Jesse Plemons e Sam Rockwell. Comédia / Drama, EUA, 2018, 132 minutos.

Um filme sobre a vida do vice-presidente do Partido Republicano Dick Cheney desde a sua juventude até os anos de parceria política com George W. Bush seria um convite para um sono "glorioso" se não fosse o diretor Adam McKay. Pra quem não está ligando o nome à pessoa, McKay é o cara que pegou o assunto mais xarope da história - no caso a crise do mercado imobiliário americano de 2008 - e o transformou em uma obra leve, dinâmica, repleta de referências à cultura pop, com ótima trilha sonora e outras trucagens. Assim, A Grande Aposta (2016) foi uma película absolutamente saborosa de se ver. Daquelas em que, sim, há muita informação - o tema é sério e a denúncia é grave - mas que também nos faz rir com seu indefectível deboche. Talvez rir (de nervoso, claro) do quão improvável é aquilo que assistimos. E do quão longe o ser humano é capaz de chegar para alcançar o poder - nem que para isso seja necessário despedaçar a maior quantidade possível de sonhos.

Bom, Vice (Vice), ao abordar a política dos Estados Unidos, amplia o espectro da ousadia. E mete o dedo na ferida ao fazer a crítica a um sujeito que, no fim das contas, pensa de forma semelhante ao atual presidente Donald Trump. Figura conservadora, adepta da família e dos bons costumes, Cheney (Christian Bale em modo camaleônico) era um Zé Ninguém no cenário político até o dia em que participa de uma reunião em que Donald Rumsfeld (Steve Carrell) derrama todo o seu amor a Deus e a família e todo o seu ódio a ameaça comunista. Cheney se identifica com isso. Aliás, a cena em que ele se "descobre" um republicano, ainda no começo do filme, nos fazer perceber que a escolha por uma ideologia, especialmente para os mais novos, muitas vezes não tem nada a ver com visões de mundo mais aprofundadas: naquele contexto tudo o que aquele jovem do Nebraska desejava era o poder. Era "ser alguém". Sonho de mudar o mundo? Consciência política? Esquece. Poder é a palavra de ordem.


Com idas e vindas no tempo o filme mostra a relação de Cheney com a sua esposa Lynne (Amy Adams), seus primeiros anos de bebedeiras (e de violência) e como fatos como o escândalo de Watergate - que fechou o cerco ao presidente Nixon - contribuiu para que figuras menos expressivas do Partido Republicano (e desligadas daquele celeuma) pudessem crescer. De inicialmente descrente na figura de um vice-presidente como alguém poderoso, o sujeito passa a compreender a sua relevância nos bastidores da política (o que envolverá aconselhamentos de conservadores notórios, como o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Antonin Scalia, famoso por suas posições reacionárias e antiquadas). E no jogo da política americana, ele moverá as peças do xadrez para possuir total poder, transformando o futuro presidente George W. Bush (Sam Rockwell) em uma patética marionete capaz de atender a todos os seus caprichos.

E não é por acaso que as maiores decisões envolvendo a Guerra ao Terror no Iraque passaram pelas suas mãos. Nesse sentido, a tenebrosa cena em que um garçom vivido por Alfred Molina (em participação especial) oferece um "cardápio de maldades" em uma restaurante chique é tão constrangedora quanto aquela em que Lynne faz um discurso antiquado para uma plateia do estado de Wyoming em que brada sobre mulheres usarem sutiãs ao invés de queimá-los (numa crítica estúpida ao feminismo que, como numa espécie de contrassenso, permite que ela esteja naquele posto, discursando). McKay não alivia o tom ao lembrar que o comportamento delirante dos republicanos fez com que (pasme) mais de 600 mil civis fossem mortos no Iraque - sob a desculpa de captura de Saddam Hussein. Mas o faz com uma inacreditável leveza em que subverte a lógica, quebra seguidamente a quarta parede, faz de conta que o filme acabou quando não acabou, congela a tela, coloca letreiros e por aí vai. As pitadas de humor estão em toda a parte e é absolutamente saboroso assistir a uma crítica tão ácida a um modelo político (e a uma figura) tão ultrapassados. E tão dispostos a qualquer coisa pelo poder.


E há ainda Bale, que engordou 20 quilos para o papel e que, por baixo de toneladas de maquiagem, adota o tom monocórdico e pouco expressivo do político - um tipo de apatia que torna ainda mais inexplicável a chegada de uma figura tão rotundamente estúpida ao poder. Ainda assim, nunca é demais lembrar: votar em "figuras rotundamente estúpidas" com a desculpa de defender a família, a Igreja e os bons costumes e afastar a ameaça comunista, não é especialidade apenas dos americanos. É nossa também. No começo de Vice, McKay lembra que uma massa que trabalha cada vez mais, que ganha cada vez menos e que só quer ir para a academia no final da tarde e comer o seu McDonalds em paz é muito mais manipulável. Era uma lição que deveríamos ter aprendido a tempo - quando ainda tentávamos lutar contra a legitimação do ódio, do preconceito e da brutalidade. Venceu o discurso vazio do combate a corrupção como modelo de política. Que, com apenas um mês, já percebemos que era apenas da boca pra fora. Como se não soubéssemos.

Nota: 9,0

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