Pra começar há a capa, que mostra o rosto de traços fortes de Elza, uma Nefertiti em tons dourados, trazendo em sua semiótica uma mensagem implícita sobre a valoração do indivíduo para além da sua etnia ou cor da pele. Após, há o provocativo título capaz de fazer as "famílias de bem" franzirem os seus conservadores cenhos. Mas não é só isso. O disco, continuação natural de A Mulher do Fim do Mundo (2015) - nosso segundo colocado na lista de melhores nacionais daquele ano - segue sendo um documento forte e controverso, iconoclasta e ousado, capaz de "discutir" política, religião, empoderamento feminino, racismo, desigualdades sociais e outros temas sem nunca soar cansativamente panfletário ou recheado de um proselitismo inócuo. Ah, e há a voz rouca, lânguida e imprevisível de Elza - cheia de curvas e de nuances surpreendentes. Além do trabalho instrumental incendiário, voluptuoso e intenso, que utiliza a batucada para preencher cada lacuna, na mesma medida em que equilibra elementos diversos de outras vertentes como soul, jazz, rock, trap e música eletrônica.
E há as letras. Aliás, eu poderia fazer essa resenha falando apenas das letras que certamente os tradicionais quatro parágrafos que utilizo em cada texto não seriam suficientes. Exú nas Escolas discute a importância do respeito à diversidade religiosa - As escolas se transformaram em centros ecumênicos / Exu te ama e ele também está com fome / Porque as merendas foram desviadas novamente - narra a artista, acompanhada do rapper paulistano Edgar, sem esconder a crítica ao sistema político falido do Estado. Já a poderosa Língua Solta fala sobre um sistema opressor e sobre a necessidade de encarar os tempos sombrios - É dia de encarar o tempo e os leões / Se tudo é perigoso, solta o ar. O empoderamento feminino e o debate sobre igualdade de gêneros também aparecem, explícita ou implicitamente, em praticamente todo o álbum, como no caso de Dentro de Cada Um - A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio / A mulher de dentro de mim cansou de pretexto.
E há o sexo. Assim como ocorria na ótima Pra Fuder, que integrava o disco anterior, ele é tema recorrente para Elza e seus parceiros. Eu Quero Comer Você utiliza o jogo de palavras para narrar a história de uma mulher e de seus desejos, instintos, vontades. Empoderamento em estado bruto! Já Banho - parceria com a Tulipa Ruiz (que fez a letra) - melhor canção do disco, utiliza metáfora para falar do gozo feminino (Minha lagoa engolindo a sua boca / Eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu?) em uma obra-prima que conta com batucada tribal, eletrônica moderna, coral e vozes e um refrão grudentíssimo. Com um timaço de colaboradores, que conta com Rômulo Fróes (direção artística), Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Mariá Portugal (percussão) e Rodrigo Campos (cavaco), o álbum é todo orquestrado pelo produtor Guilherme Kastrin (que também toca bateria), que faz com que o registro tenha frescor e que seja ao mesmo tempo simbólico, impactante, representativo. Definitivamente, o disco do ano!
Nota: 10
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