O adversário de si mesmo
Até onde somos capazes de ir por uma mentira? Ou, como começamos a construir uma mentira? Esta pergunta se multiplica indefinidamente em O adversário (L´adversaire), filme de Nicole Garcia, seleção oficial de Cannes em 2002.
Jean-Marc Faure, personagem interpretado com verve por Daniel Auteuil, é um médico bem-sucedido que vive em uma casa luxuosa, tem uma esposa linda, uma amante sexy, filhos perfeitos. Está sempre disponível para a família e é motivo de orgulho para pais, sogro e amigos. Então, o espectador o acompanha saindo de casa para um dia de trabalho. Estamos prontos para vê-lo adentrar um hospital, ser cumprimentado por colegas e funcionários, atender a pacientes agradecidos. No entanto, nada disso acontece: ele para em um ponto da estrada e ali fica, comendo sanduíches, ouvindo rádio, cochilando e esperando o tempo passar.
Acontece que o médico não existe. Faz 20 anos que Jean-Marc inventou uma vida para si.
Claro que este mundo começa a desmoronar. Ao longo de duas décadas, sugou as rendas de seus pais e do sogro rico, fez investimentos equivocados e nunca pensou em limites na hora de oferecer o melhor à família e à amante. Agora que começam a lhe cobrar retorno das aplicações financeiras que supostamente fizera, ele precisa resolver tudo da melhor maneira possível. Infelizmente, isso corresponde, na concepção dele, a assassinar a todos que atravessem seu caminho. E a tragédia dantesca, anunciada no momento em que descobrimos a farsa, começa a se concretizar.
É assustador dar-se conta que, em primeiro lugar, trata-se de um filme baseado em uma história real que abalou a França nos anos de 1990. Em segundo lugar, voltando ao filme – mas sem deixar de relacionar com o que realmente ocorreu – a farsa se sustentou por 20 anos sem que a família se apercebesse minimamente do fato, assim como os amigos médicos com quem Jean-Marc discutia casos de medicina.
Na medida em que as máscaras vão caindo, juntamente com os corpos, o enquadramento das cenas vai se fechando e cria uma angústia insuportável neste mundo inventado e doentio. Mas a doença de Jean-Marc Faure assusta mais porque está pautada pela possibilidade de que se pode construir uma mentira participativa. Sobretudo, ressalta que a mentira, por pequena que seja, exige ser alimentada. Com o tempo, torna-se tão grande que agrega cúmplices e cobra a própria identidade dos sujeitos, tornando o “eu” um adversário poderoso.
O filme bem poderia se chamar Dr. Jekyll and Mr. Hyde. A diferença é que, por trás do monstro, não existe um médico atormentado pelo que esconde. Faure, na sua rotina escondida, é uma imagem patética e assustada. Então, volta para casa, assume a mentira e se sente alguém. O monstro não o atormenta. É a si mesmo que o protagonista não consegue suportar.
Recomendo que se assista ao filme com cautela. Bastante cautela.
Texto: Rosane Cardoso
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