segunda-feira, 23 de junho de 2025

Tesouros Cinéfilos - Saint Omer

De: Alice Diop. Com Guslagie Malanga, Kayije Kagame, Valérie Drévile e Xavier Maly. Drama, França, 2022, 122 minutos.

Uma história de forte carga simbólica e que até hoje segue inspirando produções culturais mundo afora. Assim é a tragédia grega Medeia, que teria sido escrita por Eurípedes em 431 a.C. - a partir de uma série de narrativas orais - e que em Saint Omer, da diretora Alice Diop, ressurge como pano de fundo alegórico para um drama de tribunal sofisticado, verborrágico e envolvente - e que é inspirado em uma história real. Não há facilidades aqui e para o espectador é preciso um pouco de calma na hora de examinar a atitude invariavelmente monstruosa da protagonista Laurence Coly (Guslagie Malanga, vista também no curioso A Besta, 2023). Levada ao tribunal, a jovem senegalesa de modos taciturnos e dotada de uma lucidez impressionante - um comportamento que poderia soar meio exótico para os mais apressados -, é acusada de ter assassinado a própria filha de apenas 15 meses, que foi encontrada sem vida em uma praia do norte da França.

À primeira vista, tudo parece meio inexplicável. Laurence era uma estudante de Filosofia notável, de grande capacidade intelectual e argumentativa - personalidade que ela teria puxado de seu pai, um sujeito que, por trás da atitude afável parecia depositar uma grande carga sobre a filha, especialmente por acreditar em seu potencial acadêmico. A mãe, de quem nunca foi muito próxima no País africano, romperia ligações mais tarde. Na França, os fiapos de afeto seriam encontrados no amante Luc Dumontet (Xavier Maly), um homem mais velho com quem acaba tendo um filho. De forma meio acidental. Só que Luc é casado, com filhos. E isola Laurence. "Em um encontro, precisei sair pela porta dos fundos", explica. Todo esse apagamento simbólico, de uma existência escondida em uma nação que não é a dela, não a impediu de ser uma mãe excelente, no tempo em que esteve com a pequena Elise. Ao menos até o dia em que a mata, como ela mesma admite.

 


 

No mito de Medeia, uma princesa e feiticeira de Cólquida, a paixão por Jasão - aquele que busca o Velocino de Ouro -, se converte em ódio e ressentimento, quando ela é traída. No caminho e em fuga, ela não apenas mata o irmão, Absirto, mas também o pai, o rei Eetes. Pior do que isso, quando Jasão a troca por Glauce, Medeia mata os próprios filhos, como forma de tentar ferir Jasão. Essas tintas carregadas e que bordejam um ideal metafórico de empoderamento feminino pautado pela vingança, se somam a uma análise um pouco mais aprofundada da crise imigratória, da xenofobia e de uma série de outros preconceitos que recaem sobre a ré. Nunca fica exatamente claro se Laurence repete Medeia por gosto. Talvez ela possua algum desequilíbrio psicológico. Ou tenha sofrido algum tipo de feitiçaria. Ela admite o crime, o que é mais curioso. Sempre com seu olhar oblíquo e uma formalidade tétrica.

Tudo é observado da plateia por aquela que, supostamente, é a protagonista da obra de Diop: Rama (Kayije Kagame), uma professora universitária e escritora que acompanha a escalada dos fatos no tribunal, como forma de reunir matéria-prima para, justamente, a recriação da história de Medeia. Encontrando pontos de ligação com a obra de Marguerite Duras, Rama, que também está grávida, funciona como uma espécie de observador participante: um espelho para suas próprias angústias, sendo ela uma jovem negra intelectual, hábil com as letras e pela qual se espera um certo comportamento padrão, que nunca pode ser muito desviante daquilo que prevê um certo código quando o assunto são os estrangeiros (especialmente os de nações mais pobres). Há outras tensões e ressentimentos que surgem espalhados em instantes pequenos mas cheios de significados, especialmente os que envolvem as memórias de Rama com a sua mãe e seus poucos encontros atuais com a genitora, povoados por silêncios e um distanciamento do tamanho de um abismo. 

 

 

Reforçando ideias de sororidade, discriminação, conceitos de maternidade, vigilância, ancestralidade e identidade, essa pode ser uma experiência não muito fácil para alguns paladares. Mas ele deixa uma pulguinha atrás da orelha. Conduzido com elegância, em longos planos sequência e com diálogos complexos, mas pungentes, o projeto é resultado de uma refinada pesquisa de Diop, que acompanhou de perto o julgamento de Fabienne Kabou, em 2013 - do crime em que a obra é baseada. Não há uma lógica central naquilo que se vê. Nem um senso de punitivismo meio óbvio, que talvez fossem aguardado com inevitável certeza no cinema hollywoodiano - e que talvez fizesse a alegria de certa parcela do público. Aqui o que se tem é uma narrativa sedutora, que diz muito mais naquilo que não diz. Que não verbaliza. Que a sociedade moderna se preocupe com as crianças e com as violências sofridas por elas é mais do que justo. Mas quem cuida dos adultos apagados ainda em vida? Fica a questão.

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