quarta-feira, 18 de junho de 2025

Tesouros Cinéfilos - Caché

De: Michael Haneke. Com Juliette Binoche, Daniel Auteuil e Maurice Bénichou. Suspense / Drama, Áustria / Alemanha / EUA / França / Itália, 2005, 117 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor austríaco Michael Haneke sabe: seu cinema não costuma fazer concessões na hora de examinar o ser humano naquilo que ele tem de pior. Violência, traumas, preconceitos, culpa, individualismo e tudo aquilo que parece ser intrínseco a esse mal-estar dos tempos modernos - urgentes e apressados, mas ao mesmo tempo pessimistas e niilistas -, dialoga com suas obras. Seja a xenofobia ou racismo que emergem das entranhas da sociedade de forma nem tão sutil, como em Código Desconhecido (2000); o extremismo de direita e o fanatismo religioso que avançam para além da bolha, no caso de A Fita Branca (2009); ou o voyeurismo repulsivo, a curiosidade quase bestial pelo grotesco, como em Violência Gratuita (2007), o caso é que seus temas nunca parecem surgir como o caminho para uma solução fácil. Em tese é como se a luz fosse jogada numa parte. Cabendo ao espectador o trabalho de iluminar o todo.

No ótimo Caché, que completa vinte anos de lançamento nesse segundo semestre e está disponível no catálogo da Reserva Imovision, essa retórica do medo constante de algo que não se sabe bem o quê, meio que bate literalmente na porta de uma daquelas famílias de bem de classe média. A coisa vai mais ou menos bem para o casal de intelectuais Georges Laurent (Daniel Auteuil) e Anne Laurent (Juliette Binoche), ao menos até o dia em que eles recebem um pacote inusitado em sua varanda. Dentro do envelope uma fita cassete com um longo filme de cerca de duas horas em que a única coisa que se vê é a fachada da casa dos dois. Não há informações adicionais que não sejam apenas o cotidiano acontecendo: em dado instante Georges sai de casa para o trabalho, pastinha na mão, atravessa a rua e passa meio perto do que seria o ponto da filmagem. Em outro, Anne retorna pra dentro de casa e é mais ou menos isso. 

 


 

Em um primeiro momento o casal até tenta fazer de conta que isso não é lá grande coisa. Uma brincadeira de mal gosto de um dos amigos do filho adolescente? Algum dos fãs de Georges, que é um escritor e jornalista, que apresenta um programa de TV meio presunçoso sobre literatura - local em que um grupo de sujeitos brancos e bem nascidos divaga sobre questões sociais, políticas, culturais e religiosas a partir de certas obras literárias? Outra pessoa tentando dar uma de engraçadinha? Não se sabe. Só que a coisa começa a escalar (e piorar) quando outros vídeos começam a chegar à residência do casal, com a imagem da fachada em outros momentos do dia. De madrugada ou à noite. Alguns deles acompanhados de desenhos meio macabros, que parecem feitos por alguma criança, ainda que soem extremamente violentos. O que está por trás disso?

Bom, aqueles que já têm o letramento do diretor podem supor que, ali adiante, seus temas emergirão aqui e ali, em sutilezas, reforçando contrastes sociais, preconceitos históricos, crises severas de consciência e certo progressismo de apartamento, que nunca sai para além dos limites habitacionais. Quando uma fita cassete chega com imagens da casa em que Georges cresceu - sua mãe ainda viva, padece de uma grave doença -, e a notícia sobre esse tipo de vigilância silenciosa que os Laurent sofrem chega á mesa de jantar com amigos, algumas verdades e traumas do passado não demorarão para vir à tona. Ainda mais com a entrada em cena de Majid (Maurice Bénichou), um filho de argelinos que teria um contato bastante estreito com a família do apresentador em sua infância, no final dos anos 40 - seus pais eram agricultores que trabalhavam para os pais de Georges, tendo sido levados pelo governo à época da Guerra da Argélia. "O que faríamos para não perder o que é nosso?", questiona alguém em certa altura. Esse sentimento de posse - de espaços geográficos, de cidades, de ruas, de objetos e até de pessoas é aquilo que parece fazer com que certa parcela da população bastante consciente de seus privilégios, apenas abomine a ideia de coexistir com outras raças, etnias e credos em um mesmo espaço. Bom, não é preciso dizer o quão atual segue essa obra.

 

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