quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit)

De: Wong Kar-wai. Com Tony Leung Chiu-Wai e Leslie Cheung. Drama / Romance, Coréia do Sul / Honk Kong / Japão, 99 minutos, 1997.

Vamos combinar: muitas das obras do diretor chinês Wong Kar-Wai se consistem em experiências artísticas completas - e não é diferente com o vibrante Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit) que, não por acaso, é um dos preferidos do público. Sim, estamos diante de um filme. Mas a expressão cultural parece ir para além. Evocando outros sentimentos, nos fazendo mergulhar em outras emoções. Por exemplo, há uma cena ainda no primeiro terço da narrativa em que nos deparamos com um longo plano sequência em câmera lenta, que nos mostra as cataratas do Iguaçu. Toda a força da natureza, toda a fúria poética das águas é acompanhada por uma versão classuda da canção Cucurrucucu Paloma, interpretada por Caetano Veloso. Há uma metáfora naquele turbilhão aquático, que dialoga com os personagens centrais que acompanhamos - no caso o casal gay Ho Po-wing (Leslie Cheung) e Lay Hiu-fai (Tony Leung Chiu-Wai).

A relação é tóxica. Mas ao mesmo tempo de codependência. Como namorados, abandonam Honk Kong para passar férias em Buenos Aires, idealizando a ida às cataratas como um símbolo quase elegíaco da felicidade. Só que eles se perdem pelo caminho. O máximo que obtém é uma réplica em artesanato das cataratas - uma espécie de luminária meio inexpressiva. Estabelecidos no País da América do Sul meio que "por acaso" precisam tentar ganhar a vida. Aos trancos e barrancos, mirando no futuro mas acertando num presente desalentador. Aliás, está no aspecto absolutamente decadente da habitação de Lay - que arruma emprego como segurança de um bar de tango - uma ótima alegoria para a deterioração do namoro de ambos. São idas e vindas que beiram o patético. Com o transtorno mútuo sendo amplificado pelo comportamento abusadamente hedonista de Ho, que não se furta em aparecer no próprio bar do ex com outros homens, em relações excruciantemente misantropas.


Só que ao mesmo tempo em que a obra evoca uma sensação de melancolia quase permanente em meio ao vai e vem urgente da vida na capital Buenos Aires, parece haver ao mesmo um aspecto não apenas cosmopolita no desenrolar da trama, mas também uma certa beleza nesse universo dos desencontros. O clima deixa transparecer uma espécie de caminho oposto daquele visto no clássico cult moderno Encontros e Desencontros (2003) de Sofia Coppola. Há um apuro técnico com sequências que intercalam fotografia em preto e branco com uma paleta de cores tropical, vívida. A trilha sonora nos apresenta uma espécie de "tango permanente" - efeito da diegese da edição de som, especialmente nas cenas em que o bar é cenário. Há todo um universo de sonhos, de dança, de amor, de romance e de tesão. A luz contribui para essa ambientação quase mágica. Mas há também uma realidade brutal que não permite que as coisas aconteçam. E que estabelece o contraste.

Nesse sentido o carinho aleatório no banco de trás de um carro - um cigarro emprestado, a cabeça inesperada na ombro do parceiro -, é imediatamente substituída pela irracionalidade dos dias, pelas goteiras do cortiço apodrecido, pelas pulgas no colchão, pelo cigarro, pela bebida, pela sujeira. Buenos Aires pode ser bonita, elegante, mas não com quem é pobre. Há uma angústia que se eleva. E Kar-Wai amplifica esse sentimento com a sua câmera urgente, sua estética urbana, com closes fechados meio inesperados, travellings esquisitos, câmera lenta (quase) desnecessária. Como exercício de estilo, de técnica, o filme quase lembra uma versão delirante de um Godard miscigenado, com tons exagerados. Saturados. Eventualmente quentes. O diretor chinês faria em sua carreira grandes obras, refletindo sobre o amor, esse sentimento tão humanamente... humano. Muitas delas, Amor à Flor da Pele (2001), 2046 (2004) e Amores Expressos (1994) estão disponíveis no Mubi. Felizes Juntos pode ser uma bela porta de entrada.

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