De: Chloé Zhao. Com Frances McDormand, David Strathairn, Bob Wells e Linda May. Drama, EUA, 2020, 108 minutos.
Em uma das tantas belas sequências do maravilhoso Nomadland - um dos filmes favoritos a faturar a premiação máxima no Oscar, que ocorre em 25 de abril -, um grupo de pessoas tem uma conversa aleatória sobre assuntos amenos, durante um almoço. Em dado instante uma das participantes mostra à protagonista Fern (Frances McDormand) uma tatuagem em que se lê a frase "lar é só uma palavra ou é algo que você carrega com você?" Extraída da letra da canção Home Is a Question Mark, dos britânicos do The Smiths, a sentença diz muito sobre a opção narrativa da diretora Chloé Zhao. Afinal de contas, seria muito cômodo em um filme sobre nômades involuntários - muitas vezes idosos - a escolha pelo caminho da demonização do capitalismo ou do sistema que exaure o trabalhador até a sua velhice, colocando-o como um refém financeiro de bancos, de imobiliárias e de empresas de seguro. Sim, tudo isso está lá. Mas o que a diretora pretende, com seu belo líbelo sobre a liberdade de escolha - ainda que por linhas tornas -, é questionar esses padrões, essas convenções sociais que nos estabelecem como verdadeiros escravos até o ocaso de nossas existências.
Mesmo para nós brasileiros, não é novidade que a crise imobiliária de 2008 desmantelou o sistema financeiro norte-americano - e filmes como o ótimo A Grande Aposta (2015), de Adam McKay mostram esse evento com um didatismo quase irresistível. Aqui, o ponto de partida é a mesma crise, que fez com que uma indústria com quase 90 anos de tradição, fechasse suas instalações em uma pequena (e gelada) cidade do Estado de Nevada. Isso pra ficar num exemplo. Fern é remanescente dessa "quebra": desempregada, teve que sobreviver a base de bicos e de subempregos (como em um galpão da Amazon), que pudessem garantir o mínimo de renda enquanto os boletos chegavam. Depois de perder o marido, as dívidas com a hipoteca fizeram com que perdesse também a casa. Nada disso aparece no filme com clareza e acho que aí está parte da mágica da obra: vamos descobrindo os detalhes sobre a condição de vida dos nômades aos poucos, em pequenas doses, conforme a narrativa avança. E, curiosamente, sem "coitadismo".
Quando Fern está oficialmente deixando Nevada para trás - mesmo que temporariamente -, há uma melancolia em seu olhar (e admito que dificilmente poderia haver atriz melhor do que a Frances McDormand para encarnar essa mulher de gestos tão duros quanto sutis). Só que a descoberta de um mundo para além do esquema casa/trabalho/filhos/casa/trabalho coloca a película em outra perspectiva. Por que o caso é que muitas vezes a gente simplesmente esquece do valor das coisas simples. De uma boa amizade. De uma conversa aleatória e simpática com um desconhecido. Da nossa plena capacidade de resistir diante das adversidades. Da empatia e do apoio do ombro amigo - mesmo que seja de um estranho. Da natureza e de sua capacidade única de nos arrebatar. Seu verde, os pássaros, o chiado das águas. Quando a protagonista chega ao Arizona, num acampamento mantido por Bob Wells - uma espécie de campo de treinamento para nômades iniciantes -, a sua vida se transforma.
Aliás, há um discurso de Wells sobre sermos escravos do dólar, sobre sermos burros de carga que trabalham até o fim da vida, que demarca bem a posição adotada pelo filme. Naquele local reina o espírito comunitário. Todos se ajudam, se apoiam. E não demora para que nos emocionemos com o relato de uma senhora que afirma ter perdido o marido às vésperas de sua aposentadoria, após ele ter passado a vida juntando dinheiro para adquirir um veleiro que jamais viria a usar. É possível ser feliz com pouco? Ou sem dinheiro? Sem uma vida de luxos, de conforto ou de tecnologia? Sem uma casa? Num universo de incertezas? Por mais que a obra pareça questionar o tempo todo as convenções sociais, ela jamais deixa de reconhecer o valor das memórias afetivas que podem estar relacionadas, por exemplo, aos objetos que temos em nossos lares ou mesmo a importância de uma boa cama ou um chuveiro - ou mesmo uma van bem equipada. Mas o que talvez a gente perceba com o filme são as outras possibilidades. Há uma cena em que a idosa Swankie se maravilha com um por do sol alaranjado em meio ao cenário desértico. Ou que a própria Fern se maravilha em um cenário idílico. Quando paramos, em nossas rotinas, para prestar atenção nisso?
Construindo a obra - que é baseada no livro de Jessica Bruder - como uma experiência nostálgica, bucólica e engrandecedora, Zhao inunda o filme com instantes de grande beleza estética, o que é fortalecido pela fotografia granulada e empalidecida, completada por uma trilha sonora que jamais soa invasiva ou excessiva. Utilizando-se de um coletivo de pessoas que não são atores de verdade, a diretora amplia o caráter documental do projeto, transformando Fern em uma quase observadora participante de um filme que, por um milésimo, não é, de fato, um documentário. É daqueles filmes que, por mais que partam de uma situação desalentadora - no caso o descaso do sistema econômico e mesmo o abandono completo do Estado a sua população -, estamos o tempo todo com um sorriso no rosto, porque há aqui e ali um otimismo palpável, um espírito gregário, um idealismo comovente. Não é que não haja solidão. Não é que não haja frio ou tristeza. Ou saudade e memória. Mas há esperança em meio aos destroços. O que, em tempos tão sombrios como os que vivemos, certamente nos mantém otimistas.
Nota: 9,0
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