quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Picanha.doc - As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead)

De: Kirsten Johnson. Documentário, EUA, 2020, 89 minutos.

Em cinema não há o que "não haja" e foi pensando nisso que a documentarista Kirsten Johnson criou essa fábula curiosa, excêntrica e singular que reflete sobre tempo, memória e morte de uma forma estranhamente divertida e invariavelmente melancólica. Imaginar a morte do próprio pai octogenário em situações aleatórias. Várias vezes. E repetidamente. Foi a ideia meio estapafúrdia que resultou em As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead), filme disponível na Netflix e fortíssimo candidato a uma das vagas em sua categoria no Oscar desse ano. Há um sentido por trás da ideia. Ou ao menos parece haver. Sofrendo do Mal de Alzheimer, o idoso vê a sua memória esvanecer. Fazer o filme foi a forma encontrada pela filha para expurgar os efeitos da doença, enquanto ele ainda está consciente. Afinal de contas a dolorosa doença degenerativa que deteriora as funções cerebrais fazendo com que haja perda de memória e de linguagem, também promove uma espécie de morte aos que padecem da enfermidade.

Assim, olhando de fora, a trama pode soar apenas esquisita. Mas a ousadia e a leveza com que tudo é conduzido faz com que nos apaixonemos a cada frame. E, por mais que as mortes em si sejam um atrativo a parte - há desde tombos em escadarias até um acidente fatal envolvendo a queda de um aparelho de ar condicionado -, o que faz a película valer a pena é o resgate da importância do cultivo dos laços familiares, especialmente a partir do reconhecimento de que, ao cabo, todos nós chegaremos um dia ao ocaso de nossa existência. Kirsten resolve fazer o filme quando seu pai é diagnosticado com Alzheimer, o que obrigará o idoso a ir morar com ela. Decisão que ela toma após ter também perdido a mãe para essa tão misteriosa doença - e as poucas imagens que a documentarista possui de sua genitora, rendem alguns dos mais emocionantes momentos.

E por mais que não sejam poucos os instantes em que lacrimejamos, o caráter nonsense do projeto faz com que as gargalhadas sejam tão presentes quanto o choro. A bizarra conversa com um dublê que interpretará Dick nas cenas mais perigosas, por exemplo, funciona como uma homenagem ao próprio cinema, ao passo em que transforma as manobras feitas pelo "idoso falso" em verdadeiros exercícios acrobáticos e de ampla elasticidade. Já a morte em que Dick tem seu pescoço acidentalmente perfurado por um operário, no meio da rua, beira o delírio tarantinesco com sangue (falso, claro!) jorrando para tudo quanto é lado pela jugular. Há uma preocupação constante com o bem-estar do ator principal. Um carinho, um afago, uma palavra de conforto. É como se Kirsten fizesse questão de lembra-lo o tempo todo, em meio as memórias esfaceladas, de que aquilo é apenas um filme. Aliás, alguém lembra ainda no começo que "coisas estranhas acontecem em filmes".

Mantendo a câmera sempre próxima do rosto de seus atores, a diretora acaba, assim, captando uma série de sentimentos e emoções que são transmitidos apenas com o olhar, com suspiros desencantados e pela consciência da finitude que se avizinha. Dick, que 30 anos atrás sobreviveu a um ataque cardíaco, jamais esconde que ama viver, por mais que autorize, de forma jocosa, sua filha a lhe aplicar uma eutanásia em caso de invalidez irreversível. São instantes que comovem mas ao mesmo tempo nos arrancam sorrisos pela naturalidade com que o tema da partida é tratado. Não há, assim, motivos apenas para tristezas, o que é comprovado pela deliciosa sequência em que Dick vai ao encontro de uma antiga namorada da infância. O que rende alguns dos melhores e mais divertidos diálogos. As Mortes de Dick Johnson é a prova viva de que qualquer ideia, se bem trabalhada, pode ser convertida em filme. E a leveza comovente do documentário é de lavar a alma. 

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