terça-feira, 17 de outubro de 2017

Cinema - mãe! (mother!)

De: Darren Aronofsky. Com Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris e Michelle Pfeiffer. Drama / Suspense / Horror, EUA, 2017, 121 minutos.


Quando as estruturas sociais e padrões de comportamento tornam-se tão rígidos que a sociedade não pode mais adaptar-se a situações cambiantes, ela é incapaz de levar avante o processo criativo de evolução cultural. Entra em colapso e, finalmente, desintegra-se.
Fritjof Capra, "O Ponto de Mutação".


Quem costuma ler sobre cinema ou até mesmo dar uma checada nos assuntos do momento já deve ter ouvido falar de mãe! (mother!, com minúscula mesmo), mais recente filme do diretor americano Darren Aronofsky. Vendido como um dos mais controversos filmes da década, o próprio longa ousou colocar em seu cartaz de divulgação as críticas polarizadas que recebeu, em mais um daqueles casos de "ame ou odeie" que costumam ocorrer de tempos em tempos. Mas afinal, aonde foi que o diretor e roteirista pesou a mão desta vez a ponto de provocar tanta polêmica, mesmo tendo em seu currículo obras desafiadoras como Pi (1998), Réquiem para um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010)?

Um casal vive com aparente tranquilidade em uma enorme casa de campo cujo acesso ao mundo externo é praticamente inexistente, vide a ausência de estradas que levam até o recinto, enquanto a mulher interpretada por Jennifer Lawrence (identificada nos créditos apenas como "mãe") trabalha na pintura e reconstrução da casa que tempos atrás havia sido consumida por um incêndio. Enquanto isso seu marido (Bardem, creditado como "Ele"), autor consagrado, trabalha buscando inspiração para sua mais nova criação literária. A paz de ambos será interrompida com a chegada de um desconhecido cirurgião ortopédico (Harris) e, posteriormente, de sua luxuriosa esposa (Pfeiffer, em atuação espetacular) que, ao buscarem abrigo na casa, gerarão uma crescente tensão entre os habitantes que culminará em uma sequência de eventos desconfortáveis e com consequências desastrosas. 



Fosse só a breve sinopse acima o filme já teria boas credenciais para abocanhar boa parte do público sedento por uma história de suspense/terror. Seja pela cinematografia opressiva e angustiante (em alguns momentos pensei estar assistindo a um filme do movimento Dogma 95), as belas atuações, a (praticamente ausente) trilha sonora composta em sua maioria de sons diegéticos que pede sua apreciação na sala de cinema com um bom sistema de som, e a tensão crescente que desemboca em um ato final chocantemente arrebatador, confesso que não consigo entender o porquê de diversas pessoas terem "odiado" a obra ou, até mesmo, não tê-la "entendido". Em uma leitura rasa teríamos um filme no mínimo razoável - afinal não é objetivo de uma obra do gênero promover angústia e horror no espectador? E isto a película de Aronofsky faz com louvor. Mas a experiência cinematográfica que o diretor entrega aqui ganha status de - permitam-me a ousadia - obra-prima ao promover diversas camadas de leitura adicionais (algumas bem óbvias, outras nem tanto) em um verdadeiro deleite para os apreciadores desta grande arte - e não é maravilhoso quando saímos do cinema incomodados, com a mente fervilhando e carregamos uma obra conosco durante vários dias?

(recomenda-se não ler o restante do texto caso não queira maiores revelações, embora procurarei não exagerar nos spoilers)

Da mesma forma que Quentin Tarantino transformou seu mais recente filme, Os Oito Odiados (2015), em uma grande alegoria da História norte-americana, aqui Aronofsky nos brinda com uma representação visceral e impiedosa do Cristianismo - e, com certeza, a alegoria será óbvia para aqueles que, como a maioria de nós do lado de cá, foram doutrinados desde cedo a seguir seus preceitos. Enquanto naquele filme Tarantino tentava formar um painel histórico de forma a ecoar uma representação da sociedade atual, neste mãe! conceitos bíblicos formam um pano de fundo (embora sem tornarem-se pré-requisitos) para a reflexão de diversos temas caríssimos para a sociedade atual, que parece cada vez mais fadada à autodestruição: o fanatismo religioso, o culto à celebridade, o desrespeito ao meio ambiente pelo ser humano, o desafio em ser mulher em um mundo predominantemente machista, a dificuldade em criar, a relação arte/criador, a intolerância, dentre outros que podem ser desvendados pelo espectador em uma nova visita.

Em 1983 o filósofo Fritjof Capra já demonstrava como a nossa civilização desenvolvia ciclos de ascensão e decadência: se em um momento sucumbíamos à Idade das Trevas, noutro tínhamos o Século das Luzes. A julgar pelo mundo atual e seus retrocessos, tão bem exemplificado no filme aqui resenhado, estaríamos adentrando uma nova era das trevas após anos de conquistas? O retorno com força total do fanatismo religioso, a intolerância ao diferente "saindo do armário" estimulada pela classe política (vide Trump nos EUA e a ascensão de Bolsonaro no Brasil), os desastres ambientais, a desvalorização da ciência (negação do aquecimento global e de conceitos há muito já estabelecidos são só alguns exemplos) e o retorno da censura às formas de expressão artística por milícias organizadas são apenas alguns dos sintomas de que os dias que virão não serão nada fáceis.

Utilizando a casa como um microcosmo de nosso planeta e a mulher como representação da própria natureza, Aronofsky mostra ainda que temos muito que evoluir para evitar um desastre total de nossas tão suadas conquistas. E não deixa de ser irônico que um deus represente tão bem uma espécie tão egoísta como a nossa que, mesmo com todos os trágicos exemplos através da história, insiste em não aprender. Mas podemos começar não sentando na pia, por exemplo. Se até o cineasta em entrevista disse ser otimista com a humanidade, porque não podemos ter este pingo de alento? Deus te ouça, Darren!

Nota: 9,5.





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