terça-feira, 24 de outubro de 2017

Novidades em DVD - O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled)

De: Sofia Coppola. Com Colin Farrell, Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning. Drama, EUA, 2017, 93 minutos.

Sou um fã do trabalho da diretora Sofia Coppola, o que torna a decepção um pouco maior com o resultado alcançado pela refilmagem de O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled) - o original foi dirigido por Don Siegel, em 1971. Sob a desculpa de "aparar as arestas" e retirar boa parte do componente politicamente incorreto do original, tentando ainda - com justiça, diga-se - focar a trama muito mais nas moradoras do internato em que vai parar o soldado da União John McBurney ((Farrel), Sofia consegue apenas reduzir a carga dramática e a tensão sexual de um filme que, diga-se, já nem era lá grandes coisas no original. Pior ainda: suprimir da história sequências como a do beijo do soldado em uma menina de 12 anos (o que ocorre no original) e, pior, fazer desaparecer do mapa a escrava Holly, que tinha valioso papel na discussão do preconceito - basta lembrar das escabrosas reação da personagem de Clint Eastwood no terço final da obra de 1971 -, é fazer de conta que, em um cenário de guerra (ou mesmo no cotidiano), outros crimes horrorosos como pedofilia e racismo não existem.

Nesse sentido, ao ignorar essas subtramas, a diretora não melhora a obra do ponto de vista do debate em relação a estes temas. Muito pelo contrário, especialmente para quem não viu ao filme antigo. Aliás, enquanto assistia a moderna releitura da diretora - sempre estilosa do ponto de vista do desenho de produção, da fotografia e da edição de som - apenas conseguia pensar em como os integrantes do MBL ficarão felizes diante dessa releitura, que joga no lixo questões cruciais discutidas no roteiro da película inaugural. E me admira alguns críticos profissionais de cinema (longe do nosso caso, aqui no Picanha) estarem valorizando essa escolha, como se esconder temas espinhosos debaixo do tapete automaticamente nos livrasse deles. Racismo e pedofilia existiam aos montes na época da Guerra Civil Americana? Sim, provavelmente é só ir para a internet para que se constate isso. Mas no filme de Coppola isso não aparece. Ou aparece pouco. Como se o espírito transgressor da arte não pudesse nos servir justamente para a reflexão sobre assuntos considerados tabu.



E se algumas escolhas não são tão interessantes, apagando parte da força político-ideológica do filme, outras são muito mais adequadas aos tempos em que vivemos. A própria Amy (Oona Lawrence), a menina de 12 anos que encontra o soldado ferido em um matagal próximo ao internato de mulheres gerenciado pela diretora Martha Farnsworth (Kidman), é muito mais ingênua do que no original - afinal de contas, nunca é demais lembrar que se trata de uma criança. Já a aparente disputa entre todas as mulheres do internato - que envolve ainda a professora Edwina (Dunst) e a aluna Alicia (Fanning), além de Martha - pela atenção do inesperado visitante (um inimigo que deverá se recuperar para ser entregue aos oficiais confederados do Sul, onde se passa a história) é atenuada, provavelmente, pelo bem da sororidade. O que explica, por exemplo, a exclusão da sequência do original em que Alicia, numa explosão de ciúmes em relação a Edwina, praticamente entrega o soldado inimigo ao pendurar um pano azul no portão do educandário (que era o sinal que advertia as tropas sulinas para a presença do inimigo).

Só que, do ponto de vista da carga dramática, estas escolhas também reduzem parte da força da obra. E se no filme mais recente os jogos e provocações entre as meninas parecem mais discretos ou mesmo atropelados - na intenção de dar mais espaço em cena para todas, o resultado parece meio confuso -, o mesmo vale para a condição imposta ao soldado McBurney. Se no original ele ficava literalmente trancado no quarto, num clima permanente de tensão, de claustrofobia e de luxúria, no segundo filme ele não apenas transita livremente, como se torna até mais "amigo" das companheiras de internato. O que também diminui drasticamente o clima de sedução, que agora parece muito mais insosso. Nesse sentido, até mesmo o impacto visual das escolhas de Martha no terço final, a partir dos eventos ocorridos na casa, é reduzido (por mais que o trailer tente vender o contrário).


Sim, comparar esta com aquela obra nunca é bom e é evidente que Sofia Coppola tentou de todas as formas imprimir o seu estilo, transformando o seu O Estranho que Nós Amamos em uma película mais urgente, moderna e até mesmo palatável para todas as famílias de bem. Mas para a diretora que já nos brindou com obras-primas modernas como As Virgens Suicidas (1999) e Encontros e Desencontros (2003), me pareceu faltar mesmo foi uma boa dose de ousadia. Debater assuntos caros aos tempos em que vivemos, como, empoderamento feminino, racismo, pedofilia, machismo e outros, não é transformar um filme (ou qualquer produto artístico) em algo certinho ou fácil de assistir. É, sim, utilizá-lo para escancarar essas feridas que até hoje fazem a sociedade sangrar. Aliás, nem sangue se vê no filme. As bombas da guerra explodem lá longe, as pernas não aparecem rasgadas, os soldados parecem mansos demais (e não os inimigos que talvez fossem). Para quem quer uma experiência um pouco mais interessante sobre o filme dirigido a partir do livro de Thomas Cullinan, a versão do começo dos anos 70 ainda é melhor. Infelizmente.

Nota: 6,3

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