terça-feira, 1 de julho de 2025

Novidades em Streaming - O Segundo Ato (Le Deuxième Acte)

De: Quentin Dupieux. Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard. Comédia, França, 2024, 80 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor francês Quentin Dupieux sabe que seu cinema costuma ser anárquico, provocativo, iconoclasta. As experiências podem ser mínimas. Mas costumam entregar o máximo em termos de reflexões sobre tudo o que envolve esse certo mal-estar da contemporaneidade. No cerne de O Segundo Ato (Le Deuxième Acte), que está disponível na Mubi, parece residir uma questão meio prosaica: qual o sentido de estarmos aqui, assistindo a um filme, enquanto tudo ao redor parece ruir? Inteligência artificial, destruição da natureza, pandemia, guerras, extrema direita, fascismo - e nós, aqui, interpretando esses papeis? A troco de quê? As angústias se tornam mais claras quando o veterano Guillaume (o sempre ótimo Vincent Lindon) simplesmente abandona as filmagens de seu mais recente projeto em andamento. Sai andando a contragosto, insatisfeito meio que sem saber exatamente com o quê. Ou ele sabe.

Enfim, ele parece insatisfeito. Mas estará mesmo? Ao seu lado, a companheira de cena Florence (Léa Seydoux) se exaspera e segue seus passos, tentando argumentar sobre o absurdo daquele comportamento. É o trabalho deles, afinal. Se tudo está ruindo, o que os impediria de continuar? "Os violinistas do Titanic seguiram tocando até que o barco afundasse", desespera-se Florence. Ao que Guillaume retruca, alegando que aquilo nunca existiu. Que foi uma mera invenção de James Cameron para tornar os artistas supostamente corajosos em meio a tudo. Coragem. O que talvez os falte para certas decisões. Ou ao menos até certo ponto, quando o homem recebe uma inesperada ligação de um agente do diretor Paul Thomas Anderson - ele mesmo, de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e Licoricce Pizza (2021). Enfim, um dos grandes de nossa geração. Que quer trabalhar com Guillaume. O que o deixa em êxtase momentâneo. Esquecendo, por um minuto, o discurso "lacrador". 

 

 


Na sequência em que estão filmando - ou não, porque nunca fica tudo exatamente claro nesse exercício de metalinguagem (a realidade por vezes pode ser outra, mas, vá lá, o que é, exatamente a realidade quando tudo o que vemos é um longo plano-sequência feito com dolly track, em que a câmera flui com maciez desconcertante?) -, Guillaume e Florence estão indo ao encontro dos amigos Willy (Raphaël Quenard) e David (Louis Garrel). Florence quer apresentar David a seu pai, que no filme dentro do filme é o próprio Guillaume, mas o caso é que o candidato a namorado não está tão interessado assim na jovem. Aliás, mais do que isso, bola um plano para colocar Willy no caminho de Florence. Enquanto se encaminham para o local, debatem uma série de temas caros à era do cancelamento - e que vão no limite do preconceito e da intolerância.

Na trama, David é bissexual. Já Willy é o machão da masculinidade frágil que não parece ter muitos limites na hora de verbalizar seu incômodo a respeito de pessoas que se relacionam com o mesmo sexo. "Para com isso! Você está querendo ser cancelado?", pergunta David, enquanto quebra a quarta parede para se direcionar justamente a nós, espectadores, cruzando novamente o limite entre o concreto e o fantasioso. No terço final, a coisa melhora ainda mais quando entra em cena o excelente Stéphane (Manuel Guillot), um figurante que está tão nervoso por ter de interpretar um garçom do restaurante em que a cena ocorre, que mal consegue servir o vinho de forma satisfatória. O que talvez seja mais um truque, vai saber. "Eu tenho problema com os filmes, quando os códigos são muito óbvios", comentou o realizador, anos atrás, em entrevista ao The Guardian. É mais ou menos o que resume o cinema conceitual, sombrio, entortado, nada racional e essencialmente cômico do realizador. 

 Nota: 8,0

 

Tesouros Cinéfilos - O Ódio (La Haine)

De: Mathieu Kassovitz. Com Vincent Cassel, Hubert Koundé e Saïd Taghmaoui. Drama / Policial, França, 1995, 95 minutos.

"É a história de um homem que cai de um prédio de 50 andares. O cara, durante a queda, repete sem parar para se reconfortar: até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem. Mas o importante não é a queda. É a aterrissagem". Vamos combinar que a narração em off que abre o cru O Ódio (La Haine), inicialmente parece apenas enigmática. Um microconto torto e metafórico. Que retornará diversas vezes durante a narrativa - contribuindo para que, mais adiante, seu sentido passe a ser melhor compreendido. Especialmente no universo em que habitam os protagonistas dessa experiência intensa, magnética e violenta do diretor Mathieu Kassovitz. Ao cabo, esse é o tipo de filme que podemos chamar de "pedrada". Tudo é veloz, com os acontecimentos se descortinando em um efeito cascata. Meio drama febril, meio policial estilístico, como se estivéssemos em uma mescla de Trainspotting (1996) com Guy Pearce. Ainda que muito mais político. E, talvez por isso mesmo, nem tão engraçado.

O cenário aqui é um bairro habitado por imigrantes pobres no subúrbio de Paris. A violência policial parece escalar, bem como a discriminação e a xenofobia. Um jovem de nome Abdel foi agredido durante uma série de protestos e agora está em coma. Corre risco de vida. Para o judeu Vinz (Vincent Cassel) só parece haver uma solução possível para o caso. Se o amigo morrer, ele terá de matar um policial como contrapartida. Uma coisa meio "olho por olho dente por dente" - como sinalizava o antigo Código de Hamurabi, em sua suposta proporcionalidade nem tão justa. Só que nesse contexto há um problema, que é lembrado pelo boxeador negro Hubert (Hubert Koundé), um sujeito que aparenta ser mais pacífico, a despeito de sua academia de pugilismo ter sido totalmente destruída durante os tumultos: "o ódio só gera mais ódio". Com um agravante: como minorias, eles estão na ponta mais fraca. Com tudo piorando com o avanço nem tão sutil de uma extrema direita violenta e preconceituosa que, na produção, é simbolizada por Jean-Marie Le Pen. Era os anos 90, afinal. Turbulentos como só.

 


Aliás, o racismo institucional e o discurso xenofóbico estão por toda a parte - e, nesse sentido, não deixa de impressionar o quão atual a obra segue, em tempos de crises imigratórias, de trumpismo e de células nazistas proliferando mundo afora. Em uma sequência, por exemplo, Vinz e Hubert, acompanhados do inseparável Saiïd (Saïd Taghmaoui) - um árabe meio da pá virada que completa o trio que vara uma madrugada intensa, frenética e imparável, desde a hospitalização de Abdel -, tenta entrar em uma espécie de festa de luxo. Mais do que isso, tentam conversar com algumas mulheres, mas sem muito sucesso. É só mais um motivo para que a intolerância e a raiva eclodam, com uma das jovens desprezando o trio de forma categoria, comentando algo tipo "por isso ninguém gosta de se aproximar de pessoas como vocês". Há outras partes da cidade em que esses jovens tão marginalizados quanto vulneráveis não são bem-vindos. No hospital, no mercadinho, mesmo num churrasco no terraço de um prédio abandonado.

É tudo dolorido, com a sensação de desalento sendo ampliada pela fotografia em preto e branco, que torna aquele ambiente essencialmente urbano, caótico e cinza em um espaço apenas de existência - e, vá lá, resistência. Sem muita perspectiva para quem não se sente parte de uma Pátria. Kassovitz - que seria premiado como melhor diretor no Festival de Cannes -, alguém que participou de protestos na juventude, utiliza a experiência pessoal partindo ainda de histórias reais, como a do jovem zairense Makomé M'Bowolé, que foi morto por um tiro à queima-roupa, supostamente acidental, disparado por um policial. Isto após já estar rendido. Claro que o espírito ágil e efervescente do filme reserva um sem fim de instantes mais divertidos, pautados pela cultura hip hop - com suas roupas, danças, grafites e músicas -, por discussões e debates cheios de significados - aliás, mais um mérito do ótimo roteiro -, e skinheads sendo espancados. Ousado, verdadeiro, fervilhante e cativante.