quinta-feira, 31 de julho de 2025

Tesouros Cinéfilos - Os 12 Macacos (12 Monkeys)

De: Terry Gilliam. Com Bruce Willis, Madeleine Stowe, Brad Pitt e Christopher Plummer. Ficção Científica / Suspense, EUA, 1995, 129 minutos.

Existe uma cena de Os 12 Macacos (12 Monkeys) em que a psiquiatra Kathryn Railly (papel de Madeleine Stowe) detalha brevemente o Complexo de Cassandra. Em uma palestra e prestes a lançar um livro, a profissional explica a síndrome que envolve pessoas capazes de preverem com certa precisão desastres ou tragédias, em situações em que ninguém acredita nelas. O que permitiria diagnósticos de distúrbios psicológicos como esquizofrenia ou outros problemas de cunho emocional. Em alguma medida, a lenda grega de Cassandra - uma figura amaldiçoada para que suas previsões nunca fossem aceitas -, reaparece em diversos momentos do filme de Terry Gilliam, do clássico Brazil, O Filme (1985). Especialmente após o protagonista James Cole (Bruce Willis) ser enviado ao passado, com o objetivo de impedir um grupo subversivo de liberar um microrganismo mortal, que praticamente dizimaria a humanidade.

O ano é 2035 e cinco bilhões de pessoas morreram entre o final de 1996 e o começo de 1997, após o surgimento de um vírus fatal, que pode ter sido desenvolvido pelos próprios seres humanos. Os poucos sobreviventes resistem em uma vida desgraçada no subsolo, estando entre eles James, que está preso sabe-se lá por qual motivo, mas que tem uma chance para reduzir a sua pena e até conseguir um indulto: participar de uma espécie de programa experimental que envolve uma viagem no tempo, para o começo dos anos 90, na intenção de interceptar o coletivo conhecido como 12 Macacos, que estaria por trás da criação do vírus. A intenção com essa volta ao passado é obter as informações necessárias para uma possível cura. E, claro, que nem tudo será assim tão simples, já que James surge como uma figura atormentada por sonhos traumáticos, tendo ainda de lidar com o excêntrico Jeffrey Goines (Brad Pitt), um sujeito mentalmente instável, que parece em uma cruzada ambientalista e contra o capitalismo.

 


Como não poderia deixar de ser, James é tratado como uma espécie de doidinho de bairro do chapéu de alumínio, assim que chega, meio que por engano, ao ano de 1990. É em um sanatório, onde é atendido pela psiquiatra Kathryn, que ele conhece Jeffrey. À ela e a uma junta de médicos, ele tenta, em vão, explicar os riscos que a humanidade corre. Acaba preso em uma solitária, onde, após idas e vindas no tempo é enviado não apenas ao ano correto (no caso, 1996), mas também para o contexto da Primeira Guerra Mundial, o que conectará alguns pontos entre a doutora e seu paciente. Que se reaproximarão após o segundo "sequestrar" a primeira para tentar colocar em prática uma tentativa meio que desesperada de Cole de ir até a Filadélfia, para tentar encontrar o grupo revolucionário, que estaria empenhado em roubar material de laboratório do pai de Goines, o doutor Leland (Christopher Plummer), um respeitado virologista que estaria consolidando o plano macabro de aniquilação da humanidade.

Sim, parece tudo meio confuso e, na real, é. A ideia parece fazer com que o espectador fique, de fato, meio perdido, tanto é que, lá pelas tantas, com o retorno recorrente dos sonhos e tantas idades e vindas, o protagonista passa a achar que, de fato, está apenas alucinando. Hábil nessa construção noventista de uma trama de medo e paranoia, bem ao estilo das obras que se popularizariam na metade final daquela década - casos de Matrix (1999), Clube da Luta (1999) e outras -, Gilliam explora a incerteza frente ao novo milênio que se avizinha, com suas novidades tecnológicas, medos biológicos, guerras e temores políticos em uma trama de conspiração, estranheza e clandestinidade. O que é reforçado pela trilha sonora excentricamente circense, pela fotografia de paleta permanentemente acinzentada que contrasta com cores mais berrantes e pelos conflitos que antecipariam as crises climáticas tão faladas nos dias de hoje. Bomba atômica, superpopulação, poluição, guerras, pandemias. O mundo parecia outro em 1995. Menos nos seus temas centrais, como comprova essa experiência cheia de vigor, curiosa e melancólica, inspirada no clássico curta La Jetéé, de Chris Marker.

 

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Oh, Canadá (Oh, Canada)

De: Paul Schrader. Com Richard Gere, Uma Thurman, Jacob Elordi, Michael Imperioli e Victoria Hill. Drama, EUA, 2024, 91 minutos.

"Quando não há futuro tudo o que resta é o passado. E se o passado é uma mentira, principalmente para as pessoas próximas, você não pode existir, exceto como um personagem fictício". É claramente um enorme peso na consciência aquele que Leonard Fife (Richard Gere), o protagonista de Oh, Canadá (Oh, Canada), carrega. Cheia de sutilezas, essa é uma obra do diretor Paul Schrader que, em alguma medida, repete o tema do arrependimento e de tentativa de reparação de danos - assim como no seu magistral trabalho anterior, o meio que inexplicavelmente esnobado Jardim dos Desejos (2022). Se no filme estrelado por Joel Edgerton temos um nazista empenhado em se redimir em uma vida pacata como floricultor, aqui temos um documentarista diagnosticado com um câncer terminal que resolve, em seus instantes derradeiros, revelar toda a verdade de uma vida dupla repleta de decisões moralmente questionáveis.

Frente aos seus pares, Leo, como era carinhosamente chamado, sempre pareceu aquele sujeito ético, que utilizava a sua arte como veículo de denúncia. Não por acaso, seus potentes filmes políticos ganhariam tração e seriam admirados, especialmente pelo público progressista do Canadá (onde ele se estabeleceu). E não apenas isso: na juventude, teria se rebelado contra o governo estadunidense e não apenas fugido de uma possível convocação para a Guerra do Vietnã, mas também permanecendo uma temporada em Cuba, o que teria contribuído para a sua formação ideológica. Um combo de acontecimentos digno de uma retrospectiva e é mais ou menos isso que dois de seus ex-alunos, Malcolm (Michael Imperioli) e Diana (Victoria Hill) propõem: um documentário sobre a sua irrepreensível existência. Algo que honre seu legado.

 


Só que tem um pequeno problema: muitos dos fatos pelos quais Leo é admirado, talvez não passem de mentiras. Conforme a narrativa se descortina, entenderemos como o protagonista simplesmente abandonou a sua primeira mulher, que estava grávida e com um filho pequeno (que funciona como um narrador improvisado), para, em segredo, tentar seguir o sonho de ser escritor, saindo do Sul conservador para o Norte do País. No caminho, além de roubar dinheiro que seria usado para a compra de uma casa e de jamais ter sequer chegado perto da terra de Fidel Castro, uma trilha enorme de casos extraconjugais, de adultérios e de mulheres seduzidas (inclusive alunas). O primeiro filho, ignorado por 30 anos, jamais seria reconhecido. Egoísta e narcisista, Leo teria vivido apenas para satisfazer seu ego hedonista. Encontrando em seus documentários de temas complexos como os horrores da guerra e do uso do Agente Laranja, ou sobre violência contra animais das regiões polares, o terreno fértil para uma carreira respeitosa e premiada.

Inteligente e levemente ousada, a obra burla os limites entre ficção e realidade, levando o espectador à um cenário de dúvidas sobre aquilo que se assiste. Com uma série de trucagens, Schrader mescla fotografias em preto e branco e flashbacks onde um Leo já veterano aparece, para, aparentemente, ampliar a sensação de desconfiança à respeito da veracidade dos acontecimentos. Emma (Uma Thurman), a atual esposa de Leo, uma mulher muito mais jovem, que também foi sua aluna, suplica para que a produção do filme sobre sua vida pare: "ele está misturando memórias, filmes, fantasias e histórias dos outros", argumenta, enquanto a enfermeira lhe aplica uma dose de fentanil. Essa incerteza entre o concreto e o abstrato, entre verdade e ficção é o que torna a experiência instigante ainda que, talvez, propositalmente confusa, em certos momentos. "Devo parecer um esquizofrênico" divaga em certa altura o protagonista, num autoexame de sua mente perturbada. Para o espectador nunca há certeza. E é nessa ambiguidade que reside a beleza, afinal, ninguém é tão virtuoso o tempo inteiro. Tão perfeito. E nem tão errático.

Nota: 7,0

 

Pitaquinho Musical - Negra Li (O Silêncio Que Grita)

Basta uma passada de olhos não apenas na imagem de capa, mas também no título do novo disco da rapper Negra Li, para que saibamos: esse é mais um registro que busca dar voz a quem, muitas vezes, é silenciado. Aliás, esse costuma ser também parte do papel de artistas do gênero: o de ecoar vozes vulneráveis, marginalizadas, especialmente nesse caso o de mulheres pretas, pobres, de periferia. Em entrevistas, a própria paulistana afirmou que precisou se reinventar - o que explicaria certa demora para que O Silêncio Que Grita encontrasse a luz, chegando sete anos após o ótimo Raízes, o nosso 17º colocado na relação de melhores de 2018. "Nesse movimento de buscar a minha essência, quis me aproximar ainda mais da minha identidade preta", revelou em entrevista à Veja São Paulo, a respeito dessa reconexão com aquilo que, de fato, era importante.

 


O resultado é um conjunto de músicas de temas diversos e cheios de potência sobre racismo e violência policial (Olha o Menino 2.0); hipocrisia e vidas de faz de conta (Fake); estupro, aborto e outros tipos de agressões sexuais (Uma Menina) e trabalho e direito ao lazer (Sambando). Claro que, para além das complexidades que envolvem os inescapáveis assuntos políticos e sociais, o álbum também abre espaço para a celebração, como no caso de Abençoada, um afrobeat saboroso a respeito do poder da fé e da superação ou mesmo Amor Preto, essa com a participação da Liniker, e que também é embalada por ritmos africanos. Aliás, curioso notar como a segunda metade do registro é justamente aquela de tintas mais festivas, como no caso, por exemplo, de África, um reggae ondulante, de refrão pegajoso e cheio de referências culturais e de orgulho racial, que fecha com perfeição um dos grandes discos nacionais lançados nesse ano.

Nota: 9,0 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Tóxico (Akiplėša)

De: Saulė Bliuvaitė. Com Vesta Matulytė, Ieva Rupeikaitė e Giedrius Savickas. Drama, Lituânia, 2024, 99 minutos.

Está lá no dicionário: tóxico é tudo aquilo que produz efeitos nocivos no organismo. E, nesse sentido, é preciso saudar a escolha do título do longa de estreia da diretora Saulė Bliuvaitė, que acaba de estrear na Mubi. Existe uma cena perturbadora no filme, em que a jovem Kristina (Ieva Rupeikaitė) pesquisa na internet sobre ovos de tênia. Tênia, aquela da solitária. Eu, do alto da minha ingenuidade, cheguei a achar que a busca na web envolvia algum trabalho de aula, para alguma matéria de Biologia. É só mais tarde, quando um amigo da adolescente lhe entrega o que seriam pílulas com ovos do parasita - adquiridas, como não poderia deixar de ser, na darkweb -, que compreendo o propósito daquilo. Para tentar uma vida melhor, Kristina, do alto dos seus 13 anos, esté empenhada em uma futura carreira de modelo. Um ambiente de sonho e de muitas exigências. Inclusive tóxicas, de agressão ao próprio corpo.

Drama tenso e pungente, que quase vai ao limite do terror Tóxico (Akiplėša), o vencedor do Leopoardo de Ouro, em Locarno, é, curiosamente, mais um filme a abordar esse desejo íntimo de fama e de sucesso, que permita à meninas nascidas em ambientes pobres ou vulneráveis, um futuro mais promissor. Assim como no recente e perturbador Diamante Bruto (2024) - sobre uma jovem adulta determinada a emplacar a sua presença em um reality show de gosto duvidoso, apenas para aumentar o número de seguidores no Instagram, que lhe permitam uma maior conversão em vendas ou melhores publis -, aqui também as garotas parecem iludidas por adultos cheios de promessas, o que envolve um comportamento abnegado e totalmente distante do que seria a existência de meninas que mal entraram na puberdade. Nesse sentido, não deixa de ser curioso ver Kristina alternando sequências em que surge (supostamente) confiante, de maiô e salto alto, com outras em que, ainda como uma criança, penteia os cabelos de uma Barbie.

 


Esse limite entre a infantilidade e a maturidade obrigatoriamente antecipada também gera no espectador um sentimento meio que de repulsa. Saber que um ambiente tão misógino e de tanta cobrança como o das supermodelos siga sendo alvo para muitas meninas - algumas delas, inclusive, estimuladas por pais narcisistas - é algo que é parte do incômodo. O que torna a experiência bastante efetiva. Mas para além deste ser um projeto sobre os bastidores de agências de modelos ou de desfiles improvisados em cenários modestos, esta também é uma obra sobre amizade. E sobre crescer nesse mundo brutalizado. No começo do filme, vemos um vestiário feminino desses típicos de escolinha de natação, em que Marija (Vesta Matulytė) sofre bullying. Mais alta que as demais, meio desajeitada e antissocial - o que é reforçado por uma deficiência na perna, o que lhe impede de caminhar sem mancar -, ela é uma espécie de novidade no vilarejo em que a trama se passa. Sofre agressões gerais. Até roubada é.

Mas quando começa a frequentar a mesma escola para modelos de Kristina - uma das bullyers -, uma amizade meio que inesperada tem início. Ambas passam a fazer tudo que meio que juntas. E a conviver nesse contexto estranho que lhes leva a passarelas tortas, a amizades cheias de más intenções e a professoras que não hesitam em afirmar que elas só serão escolhidas se mantiverem as suas medidas abaixo de um certo padrão. Não são poucas as vezes que a fita métrica é estendida, para dar a volta nas magricelas cinturas das adolescentes. No desespero em não perder uma das vagas, Kristina apela para os ovos de tênia. A real é que tudo é tóxico naquele contexto. Os ovos, por óbvio; uma vida pobre e de pouca esperança - por mais que pais e avós pareçam empenhados em possibilitar os sonhos juvenis -, e os próprios bastidores dessas agências. O tóxico aqui é literal, mas também alegórico. É concreto e abstrato. E é meio difícil não sair de estômago embrulhado.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Moon (Mond)

De: Kurdwin Ayub. Com Florentina Holzinger, Celina Sarhan, Andria Tayeh e Nagham Abu Baker. Drama, Áustria, 2024, 93 minutos.

Existe uma pequena cena em Moon (Mond) que, fosse esse um outro filme qualquer, e talvez passasse meio batida. Nela, a protagonista Sarah (Florentina Holzinger), uma lutadora de artes marciais aposentada, que leva uma vida sem grandes emoções como professora em uma academia de Viena, na Áustria, ouve atentamente as instruções de seu novo contratante. "O nosso contrato é de confidencialidade. Sem fotos, sem redes sociais. É um procedimento normal, regular, de privacidade, que fazemos com todos os nossos empregados. Espero não ser um inconveniente". Para ela parece ok até porque, pelo visto, ela vai ganhar uma grana boa como personal trainer de três jovens de uma família abastada da Jordânia. Ao menos é o que atestam as ótimas condições em que ela está instalada, em um hotel luxuosíssimo de ampla piscina, que contrasta com o cenário arenoso do País do Oriente Médio.

Tanto na entrevista como na chegada à casa em si, Sarah é recebida pelo afável irmão mais velho das garotas - seu nome é Abdul (Omar Almajali). Nas conversas, a ideia de ensinar as artes marciais para as meninas, por ser algo que está na moda (é trendy), sendo o MMA muito popular na Jordânia. E por mais que os amigos de Sarah tirem uma com a sua cara, especialmente no que diz respeito às diferenças culturais entre os dois países - "você vai usar um hijab?", questiona um deles -, ela jamais imagina estar adentrando um ambiente de absoluta opressão e de patriarcalismo atordoante. As condições de vida são refinadíssimas em uma mansão suntuosa. Mas essa aparência de elegância vai só até ali. Impedidas de sair de casa sem um dos seguranças, as jovens também não podem usar as redes sociais, se relacionar, ir para uma boate dançar. Enfim, viver. 

 


E, no começo, Sarah acha estranho o comportamento reticente e quase infantilizado das jovens durante os treinos. Meia dúzia de movimentos e elas se mostram cansadas, enfastiadas, com pouca vontade. Talvez na cabeça da protagonista, isso seja apenas algo típico da idade. Adolescentes não estão muito a fim dessa ou de qualquer outra programação. Mas os dias parecem evoluir apenas para trás. Quando Sarah resolve investigar por conta própria o que pode estar acontecendo nos cômodos daquela casa - uma decisão complicada, dado o clima silenciosamente beligerante de tudo (sem esquecer da confidencialidade) -, ela faz descobertas surpreendentes. Antes disso, ela se empenha em interagir de outras formas com as meninas, como na excêntrica cena em que Fatima (Celina Sarhan) a utiliza como uma "boneca", penteando seus cabelos grosseiramente. O que gera um pequeno e quase inexplicável conflito, que funciona como uma metáfora estranha pra esse contexto de confinamento.

Sem muita pressa em fortalecer seu ponto, a diretora Kurdwin Ayub converte a experiência em um thriller vagaroso, em que pequenos acontecimentos dizem muito mais do que momentos maiores (por mais que haja um, em específico, bem impactante). Em certo ponto, Nour (Andria Tayeh) furta o celular da professora, sem que ela possa retomá-lo imediatamente. Quando ela obtém o aparelho de volta, ela entende o risco enfrentado pelas meninas. Bem como seu papel quase alegórico de mulher forte - em um esporte de alto grau de intensidade -, para confrontar aquele ambiente misógino, em um País que, por mais que tenha avanços sociais, culturais e políticos, ainda parece delegar às mulheres um papel restrito à vida doméstica. Naturalista e cheia de sutilezas, mas também inquietante e potente, esta é uma obra repleta de significados e de reflexões a respeito de temas como vigilância, liberdade, relações de poder e (des)igualdade entre gêneros. Tá na Mubi e vale espiar.

Nota: 8,0

 

Cinema - A História de Souleymane (L'histoire de Souleymane)

De: Boris Lojkine. Com Abou Sangare, Nina Meurisse e Mamadou Barry. Drama, França, 2024, 93 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS] 

"Qual é a sua história? A sua história de verdade?". É quase no momento final de A História de Souleymane (L'histoire de Souleymane), que o protagonista do premiado filme de Boris Lojkine é instigado por uma agente que dá assistência a refugiados para que ele pare de mentir. E seja honesto com aquilo que está passando, está vivendo. E desafio qualquer espectador que assiste a essa pequena joia do cinema alternativo a não se debulhar em lágrimas naquele instante. Segurando o choro - e com a cabeça baixa, claramente envergonhado de tudo (da violência que sofre em um País estrangeiro, das dificuldades em ser reconhecido como cidadão, do trabalho precarizado que lhe fornece o mínimo), Souleymane (Abou Sangare, em performance impressionante) desaba. "Minha mãe me deu a vida. E eu só queria poder devolver a ela alguma dignidade", explica o rapaz em frente a consternada funcionária.

Vamos combinar que em tempos de perseguição à imigrantes, de xenofobia, de ódio e de intolerância, uma produção como esta parece se tornar ainda mais impactante. Ainda mais potente. Por menor que seja o microcosmo apresentado. Souleymane é um imigrante da Guiné, uma das tantas colônias francesas. Ele está em Paris para tentar uma vida melhor para a sua família. Sua mãe acabou saindo de casa após problemas psicológicos. O rapaz queria fazer algo que lhe permitisse alguma dignidade. Algo que lhe fizesse bem, como descobrimos no momento decisivo do filme. Em Paris ele tenta a vida como entregador de comida para uma plataforma estilo IFood. Vai pra lá e pra cá de bicicleta, sujeito a todos os tipos de situações complicadas, entrecortando as ruas, evitando (ou não) possíveis acidentes com os carros e seus motoristas desatentos. Tendo de confrontar ainda clientes mal humorados ou mal educados mesmo. Insensíveis. E mesmo gerentes de restaurantes atrapalhados.

 


No transcorrer da obra a gente vai percebendo que Souleymane é um sujeito que, juridicamente, está ilegal na capital francesa. Pra conseguir os documentos ele tem de pagar uma grana forte em uma espécie de mercado paralelo com pessoas que ele não sabe bem se pode, de fato, confiar - imigrantes como ele, que estão há mais tempo por lá. Para trabalhar, precisa pedir emprestado o nome de uma outra pessoa - um empregado de uma loja local -, para poder operar por baixo dos panos. Há um instante em que ele leva um pacote de comida para um grupo de policiais, que ocupa uma rua escurecida. O medo parece ser iminente - e a gente torce para que ele consiga escapar dali sem nenhuma violência física ou psicológica. Ou qualquer trauma a mais em sua vida. Com o dinheiro em mãos. É tudo tenso e urgente em uma bicicleta que simplesmente não para, com a câmera colada a ela. Em alguns momentos até parece que estamos em um documentário sobre trabalhadores precarizados vulneráveis.

Os poucos momentos de sossego do protagonista envolvem encontros fortuitos e esporádicos com outros refugiados que circulam alucinadamente pela cidade, também em suas bicicletas. É com eles que ele conversa amenidades, pequenas bobagens, assuntos futebolísticos, ou a respeito de clientes gostosas que passaram por eles durante o dia. São pessoas, como quaisquer outras, com virtudes, defeitos, medos e sonhos. A ideia de conseguir se estabelecer na França envolve um plano de fuga da Guiné, por supostas perseguições políticas. O interlocutor que atende os imigrantes junto a assistência social, garante que o relatório fictício pode dar bom resultado. Só que as coisas são mais complexas do que aparentam. Mais cruas, doloridas e verdadeiras. Souleymane quer a proteção do governo francês para que tenha o mínimo. Para poder trabalhar. Deixa pra trás sua família, o amor da sua vida, para sobreviver em pátria estrangeira, que não a sua. Longe de casa, de tudo. O ápice do filme nem seria necessário para que nos compadecêssemos. Mas ele serve como a cereja do bolo de uma experiência dolorida, desalentadora, mas que preserva uma pontinha de esperança.

Nota: 8,5 

 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Cinema - Cloud: Nuvem de Vingança (Cloud)

De: Kiyoshi Kurosawa.Com Masaki Suda, Daiken Okudaira, Masataka Kubota e Kotone Furukawa. Suspense / Drama / Ação, Japão, 2024, 124 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Kiyoshi Kurosawa sabe que seus filmes podem até ter um caráter mais experimental, ainda que, em muitos casos, sejam apenas um veículo para o exame de questões um tanto mundanas. Em clássicos cult como Pulse (2001), uma história de terror abstrato, com assombrações que aparecem e somem por meio de um computador depois que um suicídio acontece, parece haver apenas uma análise desse mal estar proveniente do uso da tecnologia que, verdade seja dita, apenas escalaria nas décadas seguintes. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que projetos como o recente Cloud: Nuvem de Vingança (Cloud) bebam na mesma fonte temática. Aqui, o aparato tecnológico já evoluiu. Até chegar onde estamos atualmente: em uma sociedade adoentada, individualista, niilista e violenta, com o ambiente online sendo apenas o meio para a exacerbação do ódio.

Na trama, Ryosuke Yoshii (Masaki Suda) é um tipo de picareta que adquire produtos no mercado paralelo - em muitos casos itens falsos, como bolsas; ou de colecionador, como bonecas da cultura pop -, para revendê-los na internet. Na primeira cena da obra, ele está barganhando com um casal de idosos a compra de aparelhos terapêuticos supostamente milagrosos (uma mercadoria que parece ter sido roubada). Após levar pra casa - seu depósito improvisado - 30 desses equipamentos por três mil ienes cada, ele os revende pela bagatela de 200 mil ienes online. Um dinheiro fácil e que chega até ele com muito mais velocidade do que aquele que ele obtém como um modesto empregado da indústria têxtil. Tanto é que, por mais que seu chefe insista na ideia de promovê-lo para que ele permaneça no local (ele parece ter o perfil ideal para chefiar), ele se recusa. Pede as contas. E passa a investir ainda mais fortemente no comércio online.

 


E, bom, como não poderia deixar de ser, não demora para que os negócios, que parecem estar indo de vento em popa - com direito até mesmo a compra de uma casa mais espaçosa (e afastada) para uma melhor organização logística, a sombra de tudo - desandem. Especialmente após um grupo de pessoas que se sente lesada, formar uma espécie de milícia digital com o objetivo de fazer com que Yoshii, que mantém nas suas redes o nome falso de Ratel, seja devidamente punido. Em linhas gerais, o que Kurosawa pretende evidenciar nessa escalada de violência que parece meio inevitável é que, nesse ecossistema moderno em que todo o mundo se acha mais esperto que o outro (em tempos de Tigrinho, de jogos digitais e de promessas de grana fácil), não há mocinhos. Movendo-se pelas sombras, pelas bordas, o protagonista sente a ameaça chegar não se sabe exatamente de onde. Mas ela está prometida. Na janela quebrada, na sensação de ser observado ou em um simples arame esticado na rua.

Hábil nessa construção das sensações como parte da experiência - a gente sabe o tempo todo que as coisas podem ficar ruins, seja pelo uso das sombras ou da fotografia que parece mais escurecida do que o normal -, o realizador converte o filme em um espetáculo selvagem no terço final, com uma perseguição digna dos melhores filmes de ação. Em tese pode parecer uma solução meio óbvia e que acaba contrastando com a ambientação mais sofisticada, de pesadelo onírico da hora inicial. Mas parece ser o ideal para evidenciar o fato de que ninguém está livre do ódio online (especialmente quando ele deixa de ser um mero xingamento em uma rede social). Os tempos de hoje são brutos. Preconceito, intolerância, extremismo, autoritarismo, vigilância, medo. Pulse parecia apenas um ensaio sobrenatural do tipo de tensão que seria mostrado em Cloud. E quando a ficha cai a respeito do absurdo de tudo aquilo - com pessoas desumanizadas e reduzidas a nada -, não há choro que resolva.

Nota: 8,0 

 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - tUnE-yArDs (Better Dreaming)

Talvez um pouquinho menos agitado como no anterior sketchy. (2021), mas ainda o Tune-Yards que conhecemos bem. Aliás, taí uma banda que faz o seu trabalho direitinho e, em muitos casos, acaba passando meio fora do radar. Bom, pra quem não conhece, a banda capitaneada por Merril Garbus faz uma mistura saborosíssima de folk psicodélico e pop experimental, com influências de afrobeat, hip hop e eletrônica - tudo isso servindo de base para letras políticas, eventualmente alegóricas, em que os temas mais íntimos, mais mundanos, servem como metáfora para questões mais amplas. O que pode ser comprovado em canções, como o ótimo single Limelight, que integra o recém lançado sexto álbum (e talvez o melhor da carreira) Better Dreaming.

 


Em Limelight, a letra ambígua (O bebê está bem, as crianças estão bem) conduz o ouvinte em meio a uma sonoridade sessentista, funky e quente, com batidas hipnóticas, vocais em loop e percussão pontuada por barulhinhos bem encaixados. Aliás, esse contraste entre as melodias festivas e o estilo primaveril frente aos versos potentes é uma marca registrada. "Esta (Limelight) quase não entrou no álbum porque parecia banal, especialmente considerando vários genocídios em todo o mundo e o impacto particular nas crianças", citou a artista no material de divulgação, comentando ainda a resposta positiva do público para que ela fosse inclusa no disco. Há uma série de outros momentos de brilho no registro, como nos casos da Heartbreak e na sofisticadíssima Get Through, forte candidata a ser uma das músicas do ano. Provavelmente Better Dreaming passará batido nas listas de final de ano. Mas faça um favor a você mesmo: não o ignore.

Nota: 9,0 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Magic Farm

De: Amalia Ulman. Com Chloé Sevigny, Alex Wolff, Valeria Lois e Camila Del Campo. Comédia, Argentina / EUA / Reino Unido, 2025, 93 minutos.

Vamos combinar que Magic Farm consegue um feito raro: ser um filme nonsense sem nenhum tipo de apego à realidade. Sim, em linhas gerais o cinema excêntrico e que vai no limite do absurdo talvez não necessite de verossimilhança. Mas o caso é que acaba sendo totalmente incoerente assistir à uma equipe de filmagem tão ignorante acerca de seu próprio papel frente ao que pretendem retratar em vídeo. Ok, a ideia central talvez esteja justamente em evidenciar o quão alienado e despreparado é aquele coletivo - que acaba no interior da Argentina após uma confusão envolvendo o nome da cidade que eles procuram (San Cristóbal que, ao que tudo indica, se repete em todo e em qualquer País latino). Só que essa falta de organização travestida de preconceito colonialista vai escalando até o ponto da irritação, conforme a obra da diretora Amalia Ulman avança. 

E preciso dizer que quando li a sinopse fiquei bastante animado com o que parecia ser uma produção que satirizava a exploração da mídia e esse ideal bastante contemporâneo da viralização a qualquer preço. Quando chegam à San Cristóbal, o grupo liderado por Edna (Chloé Sevigny), que realiza uma série sobre subculturas diferentonas ao redor do mundo, está atrás de um músico que se veste com orelhas de coelho e que responde pelo nome bastante sugestivo de Super Carlitos. Sim, isso mesmo. Só que, como dito, eles dão com os burros na água justamente por não terem se estabelecido no local correto. E pra não desperdiçar a pauta (ou algo do tipo) e as diárias já contratadas na improvisada pousada capitaneada por um carismático recepcionista (Guillermo Jacubowicz), eles resolvem percorrer o vilarejo atrás de alguma boa história que possa render pra série.

 


Tudo parece promissor quando a obra inicia, com um estilo de filmagem pouco óbvio do ponto de vista estético e com o uso de cores berrantes, que contrastam com a melancolia provinciana e letárgica dessa pequena comunidade rural argentina. Só que o poderia ser a deixa óbvia para uma série de comentários bem humorados sobre diferenças culturais entre nova iorquinos bem nascidos em contraste com interioranos raiz, logo apela para a obviedade galopante sobre o excesso de cachorros da região, a ausência de uma infraestrutura mais adequada para atender os caprichos daqueles sujeitos ou o uso de roupas excessivamente de grife em estradas de chão poeirentas. Edna está acompanhada de uma equipe de produtores estúpida e mesquinha (pra não dizer escrota), que bate cabeça, enquanto se aproxima de forma entortada dos habitantes locais - como no caso de Popa (Valeria Lois) e sua filha Manchi (Camila Del Campo), que deixa o produtor Jeff (Alex Wolff) caidinho de paixão (ao menos até a hora de eles irem para os "finalmentes").

Além de Jeff, a própria Amalia no papel de Elena funciona como a intérprete do grupo, mediando as conversas entre os nativos e a equipe, o que auxiliará na fabricação de um documentário forjado a respeito de um novo culto religioso, com pessoas que utilizam um adereço bastante peculiar sobre a cabeça. Que a pior equipe de produção do planeta não perceba onde verdadeiramente estava a pauta - os moradores da região sofrendo permanentemente com a pulverização de agrotóxicos, inclusive espalhados por aviões (o que resulta em pessoas com deformações, deficiências e outros problemas), é só a cereja do bolo desse ambiente de alienação que povoa as redes sociais na atualidade (com sua presunção torpe, falta de criatividade e ignorância sobre tudo que não está em volta do próprio umbigo). Essa acaba por ser a parte mais efetiva ao final. O que não salva a experiência do mero escapismo tolo e tedioso, que nunca aprofunda as suas questões.

Nota: 5,0

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Apocalipse nos Trópicos

De: Petra Costa. Com Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcante, Lula e Jair Bolsonato. Documentário / Drama, Brasil / EUA / Dinamarca, 2025, 109 minutos.

Em uma das tantas cenas impactantes de Apocalipse nos Trópicos estamos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Após as "velhinhas de Bíblia na mão" invadirem e destruírem a sede dos três poderes, um grupo é filmado no interior do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) ajoelhado, mãos em concha, rezando. Em meio aos escombros, à fumaça e ao caos completo reforçado pela câmera trepidante, o que se vê parece uma cena saída de uma distopia estranha sobre uma seita fundamentalista que toma o poder. Zumbificadas, alienadas em sua forma mais extrema, aquelas pessoas entoam cânticos e clamam a Deus - ao seu Deus, aquele que elas idealizam - por algum tipo de salvação. Ao cabo, a guerra não é entre esquerda ou direita - ou sobre qualquer outro campo do espectro democrático. A batalha é do bem contra o mal. Ou ao menos é essa a ideia que vem sendo vendida pelos setores mais reacionários da Igreja Evangélica. E que tem sido replicado junto a uma população de crentes que mais do que quintuplicou nas últimas décadas.

E é partindo disso que a documentarista Petra Costa - do igualmente imperdível Democracia em Vertigem (2019) - traça um panorama  de como a influência dos evangélicos têm sido determinante para as decisões políticas de nosso País nos anos recentes, com o aumento considerável de integrantes da chamada Bancada da Bíblia, no Congresso; a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (um ungido do Senhor, uma espécie de escolhido por Deus para livrar a população de todo o mal, ao menos de acordo com esses profetas da modernidade) e até a indicação de um integrante do STF que receberia a sugestiva alcunha de "terrivelmente evangélico", no caso André Mendonça. Um conjunto de ações que teve (e tem) como objetivo barrar qualquer avanço do espectro progressista - seja em questões sociais, trabalhistas ou de costumes -, mas combater também o mais famoso fantasma dos delírios da extrema direita: o do comunismo. E que tantas pessoas - muitas delas trabalhadoras, periféricas, vulneráveis -embarquem nessa jornada delirante de fanatismo, é algo que entristece. Ainda que não surpreenda.

 


Centrando a narrativa na figura do pastor Silas Malafaia, a quem Petra acompanha de perto - com direito a entrevistas em sua casa, carro ou jatinho particular (uma ninharia de R$ 1,4 milhões, que a mídia insiste em dizer que custa muito mais, o que seria uma injustiça de acordo com o líder evangélico) - a cineasta constrói um painel sobre como esse grande espectro político tem no pânico moral - com seus banheiros povoados por trans e abortistas depravadas, além de kits gays e mamadeiras de piroca sendo fartamente distribuídos pela esquerda às crianças nas escolas, contagiando-as com suas ideologias dissonantes - uma de suas grandes forças. Em certa altura da produção uma mulher de origem humilde é questionada sobre em quem votaria nas eleições de 2022. "Eu até acho que o Lula tem coisas boas, mas não posso votar nele por causa da minha crença", pondera. Já a sua filha parece revelar um voto envergonhado em Lula. "Ainda que eu não goste dessa história de banheiro unissex", verbaliza. Sim, o impacto é inegável. E decisivo para o voto.

Com uma grande riqueza de imagens de arquivo - algumas já conhecidas, outras inéditas - a realizadora explica ainda como a ascensão evangélica se deu também por influência de líderes carismáticos dos Estados Unidos, que desde o governo Reagan e o ambiente da Guerra Fria já estabelecia esse campo de batalha de nós contra eles como um ideal de colonialismo teológico, que tinha também como objetivo central desmobilizar a Teologia da Libertação, que surgiria na América Latina como uma resposta da Igreja Católica com o objetivo de interpretar os ensinamentos de Jesus à luz da justiça social, e que seria oposta à opressão. O contrário do que prevê um ideal pautado por Deus e o Diabo em sua acepção mais simples do ponto de vista maniqueísta, que utiliza a fé como fachada para um laboratório brutal de capitalismo tardio. E não é por acaso que, para além do filme, as tais igrejas church, com seus legendários, coachs do abstrato, jogos de azar e individualismo atroz parecem o incubatório perfeito para a extrema direita vigente nos nossos tempos.

 

 

Em alguma medida o filme de Petra, dividido em seis partes com nomes bíblicos sugestivos - Deus nos Tempos do Cólera, Domínio, Gênesis - é ao mesmo tempo melancólico e preocupante, mas também esperançoso e iluminado. E confesso que me comovi ao reassistir as cenas da vitória de Lula em 2022, sob a desconfiança de todos e a crença cega, inclusive de Malafaia, de que sem a ajuda da Igreja Evangélica, que representa atualmente cerca de 30% da população atual, ele não venceria. E isso depois de todo o descalabro da pandemia, com mais de 700 mil mortes - muitas delas ocorridas por atraso na compra das vacinas (o que é lembrado na produção como mais um efeito colateral danoso desse segmento que, ao invés de acreditar na ciência, optava por delírios que envolviam greves de fome, orações e outros subterfúgios sem nenhum efeito do ponto de vista prático). Talvez para alguns espectadores, a obra não represente nenhuma grande novidade no espírito dos tempos atuais - de um Brasil que, por muito pouco, não descambou para uma versão piorada do impressionante Divino Amor (2019), filme de Gabriel Mascaro. Mas há perigos que não podem ser esquecidos. Ou ignorados. E isso Petra faz muito bem - ainda que seja importante mencionar o fato de a obra se empenhar em evidenciar o fato de haver um outro lado, quase desconhecido, de líderes evangélicos que abominam os métodos de Malafaia e sua gangue. Ainda assim, já diria Brecht, "o fascismo é uma cadela sempre no cio". E essa cadela receberá, muito provavelmente, a bênção de algum pastor. Sempre perto da urna mais próxima.

Nota: 9,0 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Super Happy Forever

De: Kohel Igarashi. Com Hiroki Sano, Nairu Yamamoto, Yoshinori Miyata e Hoang Nh Quynh. Romance / Drama, Japão / França, 2024, 94 minutos.

Existe uma cena bem no comecinho de Super Happy Forever e que envolve uma placa fixada em um hotel. O cartaz em questão avisa que a hospedagem fechará dali a um mês. Só que, nesse ponto, já fica claro pro espectador que essa ideia de encerramento, de conclusão - de ciclos, de etapas, de relacionamentos -, não é apenas simbólico. Há algo no marasmo meio acinzentado daquela praia não muito acolhedora que grita uma certa melancolia do fim. A pandemia passou, mas as pessoas ainda estão de máscara. Espaços estão encerrando atividades, por falta de público será? Ou porque no mundo a vida é meio que feita disso mesmo? De transformações, de mudanças, de memórias que ficam enquanto novas se criam? Sim, pode parecer excessivamente filosófico para uma resenha sobre uma obra alternativa e agridoce do cinema japonês, mas o caso é que esses pontos começam a se conectar sem muita demora.

Sano (Hiroki Sano) está de luto. Mas, mesmo assim, resolve acompanhar o melhor amigo Miyata (Yoshinori Miyata) em uma viagem justamente para o resort de luxo em que conheceu, cinco anos atrás, a sua falecida esposa Nagi (Nairu Yamamoto). Sano está naquele estágio meio ranzinza, meio melancólico, de quem viveu uma perda que pesa uma tonelada nos ombros, enquanto percorre a orla em uma investigação particular - como se buscasse algum objeto, algum fragmento de algo que pudesse lhe remeter àqueles dias vividos cinco anos atrás. O que envolve o mesmo quarto de hotel, a mesma vista, o mesmo restaurante que, agora, jaz solitário, com as portas cerradas. Na caminhada pela praia, o rapaz tem a impressão de ver o boné perdido de sua amada, nunca mais encontrado. A negativa a respeito só lhe enfurece mais. Uma ligação esquisita faz com que ele arremesse o celular no mar.

 


Já Miyata tá ali pra uma espécie de seminário de autoajuda - com palestras de nomes sugestivos como Super Happy Forever, que não fariam feio na cartilha do mais novo coach abstrato a tentar enganar um grupo de seguidores incautos. Aliás, o tipo de coisa que enoja ainda mais Sano, que não consegue não responder de forma ríspida, um tanto debochada, quando o amigo convida duas outras cursistas para sentarem a sua mesa. Não demora para que o papo derive para as coincidências do mundo ou os problemas de uma sociedade tão materialista. Tudo parece meio vazio pro protagonista atormentado. Que não consegue não ser mais do que honesto ao falar sobre a relação que não existe mais: "Nagi não era feliz. Eu era muito covarde e egoísta". O tipo de franqueza que faz com que fique evidente também um certo remorso. Que avança para a alegoria no fato de Nagi ter simplesmente morrido dormindo, mesmo sendo alguém tão jovem. Uma morte simbólica e real em igual medida - como muitas vezes ocorre para casais que se formam para, mais tarde, com o desaparecimento do encanto inicial, se desfazerem.

Na segunda metade a trama recua para 2018, justamente para o dia em que Nagi e Sano se conhecem. Com a ação centrada na jovem, não demora para que compreendamos o encanto do protagonista. Nagi fica chateada por um encontro com uma amiga que lhe dá um bolo - mas aceita percorrer a cidade com Sano e Miyata para um almoço, seguido de um passeio, uma conversa prazerosa e uma ida a uma danceteria. Quase aquele ideal juvenil de primeiros encontros em que tudo o que temos de fazer é sermos felizes, viver o momento. Ao cabo tudo é muito simples, ainda que a narrativa seja pontuada por instantes singelos, como aqueles em que Nagi auxilia a vietnamita An (Hoang Nh Quynh), que deixa seu almoço cair no chão. An terá papel importante mais tarde, especialmente após as duas fazerem amizade, o que será marcado ainda pela onipresença da canção Beyond the Sea, de Bobby Darin. O sentimento ao final será ambíguo, já que a felicidade pode ter outro significado.

Nota: 8,0

 

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - Luedji Luna (Um Mar Pra Cada Um,)

Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre Um Mar Pra Cada Um, o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo já que já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro.

 


Para a artista, o processo de fazer música não requer pressa. O mesmo valendo para o seu consumo, já que esse é o tipo de trabalho que, naturalmente, cresce a cada nova audição. Evidentemente que, assim como ocorreu com o fenomenal Bom Mesmo É Estar Debaixo da Água - o nosso preferido na lista de melhores de 2020 -, a mescla de neosoul, jazz, R&B e ritmos africanos - segue central no projeto. Por mais romanticamente torto que sua poesia soe. "Eu tô indo pra um lugar muito menos superficial que esse, que é essa paisagem. Tô indo pra um lugar mais profundo. Eu tô investigando o mar invisível. Eu tô investigando o mar abissal", revelou na mesma entrevista. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Cinema - Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio)

De: Maura Delpero. Com Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico, Tommaso Ragno e Rachele Potrich. Drama, Itália / França / Bélgica, 2024, 119 minutos.

Guerras, fanatismo religioso, patriarcado, autoritarismo. Vamos combinar que essa trinca pode até parecer um resumo do mundo em 2025, mas não. No caso de Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio), filme da diretora Maura Delpero que estreia nesta semana nos cinemas, trata-se apenas da Itália nos anos 40. O cenário é uma remota (e gelada) aldeia nas montanhas onde uma numerosa família se ocupa de atividades cotidianas típicas do meio rural - tirar leite das vacas, juntar lenha, buscar água no poço. É aquela rotina que até hoje vemos em pequenas comunidades do campo, que possuem sua própria lógica de funcionamento, enquanto lá fora, à uma certa distância, o mundo acontece. Só que tem vezes que esse universo meio paralelo encontra uma brecha que perturba aquele dia a dia ordinário - e que, aqui, é representado pela chegada inesperada de Pietro (Giuseppe De Domenico), um jovem e taciturno soldado, que está em fuga da guerra.

Da forma como a narrativa é construída, em estilo fragmentado - os silêncios são inúmeros, bem como os longos planos em que a ação ocorre ao fundo, de forma quase abstrata, enquanto a neve oprime - caberá ao espectador ir meio que montando o quebra-cabeças daquilo que se acompanha. Ao chegar no local, Pietro é saudado pela família de Cesare (Tommaso Ragno), um sisudo professor local, por ter salvo Attilio (Santiago Fondevila), carregando-os nos ombros diretamente do front. O ato heroico ganha tração no povoado - para muitos uma atitude digna. Já para outros, parece haver certa vergonha no ato de desertar. "Talvez se todos fossem covardes não haveria mais guerra" comenta alguém em certa altura. Para a jovem Lucia (Martina Scrinzi), uma das filhas de Cesare, há um outro interesse, que pode ser percebido em seus olhares claudicantes: ela se apaixona por Pietro.

 


Em linhas gerais essa poderia ser uma história mais ou menos simples sobre o amor nos tempos de guerra - e sobre como tudo pode ser mais complexo do que, de fato, é, em tempos brutos. Mas o filme de Delpero, que é inspirado nas memórias da juventude da realizadora, guarda um espaço interessante para, de forma sofisticada e sutil, discutir uma série de temas que seguem mais do que relevantes nos dias atuais. Irmã de Lucia, a adolescente Ada (Rachele Potrich) claramente sofre por jamais poder verbalizar o seu amor pela amiga Virginia (Carlotta Gamba) - o que seria um escândalo em um espaço tão conservador e misógino em que as expectativas sobre as mulheres recaem apenas em um projeto: o de servirem de depósito de filhos para os seus maridos (sim, duro, mas real). A própria Ada, assim que conclui seus estudos, ouve de Cesare uma sentença dita com um naturalismo sufocante: "sua trajetória escolar termina aqui". Isso depois de ter sido aprovada em disciplinas, como, Economia Doméstica.

A própria Adele (Roberta Rovelli), esposa de Cesare, sequer tem tempo de ser efetivamente consolada quando um de seus filhos simplesmente morre. Já há mais um na barriga - o décimo, que deve nascer em breve. E por mais respeitado que Cesare possa ser por seus pares a sua incorrigível rigidez se apresenta como uma de suas tantas falhas, como no caso do episódio da aquisição dos discos de Vivaldi (e as quatro estações que fluem de forma inexorável soam apenas trágicas quando percebemos que as mulheres não têm nenhum poder de decisão sobre questões financeiras). Triste, gélido, surpreendente (especialmente no terço final) e contemplativo, esse é aquele tipo de projeto que nem sempre é fácil. Há uma ambientação vagarosa, de trilha sonora mínima e uma dinâmica de filmagem pouco convencional e de quadros demorados. Mas o que fica dessa obra que foi a enviada da Itália ao Oscar desse ano, são as mensagens das entrelinhas, como no momento em que Ada revela à sua irmã Flavia (Anna Thaler), os motivos pelos quais gostaria de ser padre. "Para poder aplicar penitências?", pergunta a pequena. "Não. Para poder ser ouvida sem ser interrompida". Uma das tantas lições.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Diamante Bruto (Diamant Brut)

De: Agathe Riedinger. Com Malou Khebizi, Idir Azougli, Andréa Bescond e Léa Gorla. Drama, França, 2024, 103 minutos.

"Eu já me decidi. Vou ficar famosa e vou ter dinheiro". Diamante Bruto (Diamant Brut), a ótima estreia da diretora Agathe Riedinger, já passa da metade quando a protagonista Liane (Malou Khebizi) diz a frase que abre esse texto, com uma convicção comovente. Ela está em um consultório, onde um médico lhe explica as opções de próteses de silicone para o bumbum. Quais os tipos, os efeitos alcançados, os investimentos. Liane, uma jovem infliuencer de 19 anos que nem ainda teve as suas primeiras experiências sexuais direito, está convicta de que precisa daquilo. Para melhorar sua imagem - mesmo que, aos nossos olhos não haja nada que necessite melhoria ali. Só que a jovem precisa mais. Mais validação. Mais carinho de um público que está interessado apenas na sua aparência, no seu decote, na sua barriga a mostra, nas pernas e nos pés (machucados) sempre em um salto alto. É um efeito dos complexos tempos atuais: a fama tem um preço. E ele pode ser caro de muitas formas.

Há outras frases de efeito ditas por Liane nos transcorrer da narrativa e, muitas delas, são muito verdadeiras em sua mentalidade ainda em formação. Uma mentalidade em que plataformas de exposição como o Tik Tok funcionam como uma pequena bomba relógio em vias de explodir, quando o assunto é a saúde mental dos usuários. "Se você é bonita, as pessoas te admiram" ou "eu sei que não sou comum", são algumas das sentenças verbalizadas pela nossa anti-heroína que, ao cabo, só deseja ser conhecida a todo o custo. Não por mera vaidade, aparentemente. Mas também por acreditar que esse possa ser um caminho para que, de fato, a sua vida mude. Pra que ela saia de uma vida marginal, em que mora com a mãe narcisista e a irmã mais nova devota, indo daqui pra lá em meio a bicos feitos com produtos roubados. Aos poucos mais de 10 mil seguidores nas redes sociais, ela entrega dancinhas e performances generalistas com roupas mínimas - o que, em muitos casos, pode ser o suficiente para o acesso a algum tipo de fama.

 


Como muitas que estão nessa segunda divisão do universo dos influencers - sem ainda uma capacidade de monetizar a contento no mercado publicitário, e sem um público mais cativo que lhe consuma para além do fetichismo voyeur -, o caminho para o estrelato ainda passa por alcançar outros espaços. Que possam gerar um status a mais. No caso de Liane, o seu desejo nem tão secreto é poder participar de algum reality show televisivo de gosto duvidoso - e é exatamente o que ocorre quando ela faz um teste para o excêntrico programa Miracle Island Miami. Que, no mundo real, nem parece tão atrativo assim, já que o salário por dois meses de trabalho alcança, com muito bom gosto, os cinco mil euros - com exigências que vão de muita exibição do corpo e um comportamento disposto para o conflito e para certo hedonismo pervertido  ("não queremos nenhuma santa", alerta a produtora). Ah, fora o fato de os apresentadores terem um histórico de assédio e violências contra as mulheres. Um "detalhezinho". 

Importante dizer que Agathe é hábil em não julgar a protagonista - que parece sim ter alguma compreensão dos papeis de gênero e do machismo que a rodeia (como na repulsiva sequência do metrô, ainda no início, ou na distância que preserva do onipresente amigo de infância Dino, vivido por Adir Azougli) -, a inserindo no papel de desajustada que luta por aquilo que, de fato, ela acredita. E como ela acredita. Como se fosse uma personagem de Sean Baker em uma experiência onírica e nebulosa que retira da França o seu glamour meio natural, Liane se converte em uma representação da potência e da persistência frente a certos ideais - mesmo que, para os cidadãos de bem conservadores, esses ideais possam parecer meio difusos. Uma bunda e um par de seios mais volumosos que a façam chegar perto daquilo que ela deseja? Que seja. O Tik Tok está descaralhando uma galera da cabeça e é fundamental que não se perca de vista os efeitos malignos em jovens, que se sentem inadequadas ou insatisfeitas com seus corpos, ou que buscam validação o tempo inteiro. Liane não é a vilã. Ela é apenas alguém tentando jogar o jogo. Com aquilo que ele oferece. E talvez seja por isso que a gente se sinta tão feliz por ela no frame final.

Nota: 8,5 

 

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Cinema - Três Amigas (Trois Amies)

De: Emmanuel Mouret. Com India Hair, Camille Cottin, Sara Forestier e Damien Bonnard. Comédia / Romance, França, 2024, 117 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

"E se meu coração não tivesse mudado?". 

Vamos combinar que não há nenhuma grande novidade no que diz respeito à análise das complexidades que envolvem as paixões, em Três Irmãs (Trois Amies). Sim, amar não é uma ciência exata, cartesiana e muitos filmes já trataram disso com maestria. Só que essa obra aqui tem carisma de sobra pra segurar o espectador, ou pra nos envolver em alguma medida. Ao cabo há um charme meio torto no todo - especialmente quando descobrimos o segredo eventualmente machadiano, que envolve o narrador da história. Sim, o filme é sobre três amigas e suas andanças, mas o ponto de ligação de tudo é o professor Victor (Vincent Macaigne), que está devastado após a sua amada Joan (India Hair) revelar a ele que não o ama mais. Simplesmente meio que acabou a paixão e ela não sabe muito bem como lidar. Victor é carinhoso, devoto, verbaliza o quanto gosta dela, da família que construíram, da convivência. Mas não basta.

E, muito provavelmente, vocês que leem essas poucas linhas já sabem disso: não há lógica. Se houvesse uma espécie de equipamento de medida do quão apaixonados estamos por nossos pares, ele certamente variaria de um dia para o outro, de uma semana para a outra. Se alteraria com a passagem do tempo, a chegada dos filhos, a rotina. Somos seres de personalidade labiríntica, que respondem a estímulos variados no cotidiano. Joan, que leciona na mesma escola de Victor, garante à amiga Alice (Camille Cottin) que ela não deixou de gostar do marido. Ela tem apreço por ele. Que parece, de fato, alguém generoso, carinhoso. Mas como a gente lida quando aquele brilho, ou aquela admiração parece nos escapar? Lida, sei lá, vivendo talvez. Joan revela ao marido os seus dilemas e uma tragédia acaba ocorrendo, com ela se culpando. Uma sensação que só começa a se dissipar com a presença do docente que justamente substitui seu ex no educandário - seu nome é Thomas (Damien Bonnard).

 


Aliás, não demora para que percebamos que Thomas está caidinho de paixões por Joan - ele a apoia em seu luto e respeita o seu tempo de depuração. Ela não parece estar interessada em um relacionamento agora. Quer dizer, ao menos até o surgimento de Martin (Mathieu Metral), um colega de Thomas que surge para dividir o apartamento com ele. Mais impetuoso do que o companheiro, Martin tem a ousadia de se aproximar de Joan que cede. Aquela coisa de não estar preparada pra um novo relacionamento, cai por terra. E a gente sabe: esse papo só cola porque a pessoa "certa" ainda não pintou. E até aqui você já percebeu que a narrativa parece percorrer uma lógica que lembra o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade (aquele do João que amava Teresa, que amava Raimundo e por aí vai). E é mais ou menos isso que vai se descortinando, com cada qual respondendo de forma nem sempre esperada.

Sobre Alice, bom lembrar que ela parece ter um relacionamento perfeito adequado (não exatamente fervoroso) com Éric (Gregoire Ludig). Mas as aparências enganam, já que o sujeito está, justamente, tendo um caso com a terceira amiga desse triângulo nada óbvio - seu nome é Rebecca (Sara Forestier). Sem que a amiga saiba, claro. Para os mais puristas ou conservadores, a naturalidade com que as traições, as trocas de casais e as mentiras acontecem podem incomodar. Ninguém é muito afeito a monogamia ali e, de certa forma, isso também pode evidenciar, do ponto de vista alegórico, o quão perdidos parecem os millenials, em meio a filhos que já cresceram (ou não existem), relacionamento mais longos que começam a se despedaçar sem muita explicação ou as exigências do mercado que também nos consomem. É um filme interessante, agridoce e leve. 

Nota: 7,5

 

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - Julia Mestre (Maravilhosamente Bem)

"Por debaixo da pele / Sou loba, sou fera / Olhar de felina / Poder de pantera / Se chega perto / Revelo / Por trás / Das garras minha aura mansa". Vamos combinar que, se ainda estivesse entre nós - ao menos do ponto de vista material (e não simbólico) -, Rita Lee estaria orgulhosa de ver onde chegou a sua "pupila". Sim, Julia Mestre nunca escondeu o fato de a ex-Mutantes ser uma das grandes inspirações de sua carreira e não são necessárias nem duas músicas do seu mais recente álbum, Maravilhosamente Bem, para que adentremos novamente naquele espaço de paixões sensuais, de tesão misterioso, de desejo carnal e noturno, tão bem construído por Rita. Aliás, uma simples olhada nos títulos das canções - Vampira, Pra Lua, Veneno da Serpente, Sou Fera -, já parece evidenciar esse ideal que nunca descamba para a mera homenagem protocolar, já que a artista, ex-integrante do Bala Desejo, imprime personalidade em cada fragmento da obra.

 


Sombrio, mas divertido, sexy mas onírico, esse é aquele tipo de registro que é direto, mas que vai crescendo a cada nova audição. Os refrãos estão lá, assim como as melodias sofisticadas, aconchegante, havendo sempre um detalhezinho da produção polida, que pode ser descoberto a cada reencontro - até mesmo pela força vocal da artista, que parece ser mais central (ainda) neste disco. "É um espelho lúdico de dias felizes do passado, artisticamente reimaginados com um toque moderno de Julia. Um álbum repleto de amor e nostalgia, que homenageia seu amor por divas clássicas da discoteca, como Donna Summer, Sade, Alcione, Lady Zu e as rainhas do rock brasileiro Marina Lima e (a já citada) Rita Lee", resumiu, a cantora no material de divulgação. Aliás, sobre Marina, a homenagem fica mais explícita na magnética Marinou, Limou - que converte o nome da veterana em uma espécie de mantra, um verbo que se espalha por cada canto do registro. Uma delícia do lo-fi e do pop vintage que vale o play.

Nota: 8,5 

terça-feira, 1 de julho de 2025

Novidades em Streaming - O Segundo Ato (Le Deuxième Acte)

De: Quentin Dupieux. Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard. Comédia, França, 2024, 80 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor francês Quentin Dupieux sabe que seu cinema costuma ser anárquico, provocativo, iconoclasta. As experiências podem ser mínimas. Mas costumam entregar o máximo em termos de reflexões sobre tudo o que envolve esse certo mal-estar da contemporaneidade. No cerne de O Segundo Ato (Le Deuxième Acte), que está disponível na Mubi, parece residir uma questão meio prosaica: qual o sentido de estarmos aqui, assistindo a um filme, enquanto tudo ao redor parece ruir? Inteligência artificial, destruição da natureza, pandemia, guerras, extrema direita, fascismo - e nós, aqui, interpretando esses papeis? A troco de quê? As angústias se tornam mais claras quando o veterano Guillaume (o sempre ótimo Vincent Lindon) simplesmente abandona as filmagens de seu mais recente projeto em andamento. Sai andando a contragosto, insatisfeito meio que sem saber exatamente com o quê. Ou ele sabe.

Enfim, ele parece insatisfeito. Mas estará mesmo? Ao seu lado, a companheira de cena Florence (Léa Seydoux) se exaspera e segue seus passos, tentando argumentar sobre o absurdo daquele comportamento. É o trabalho deles, afinal. Se tudo está ruindo, o que os impediria de continuar? "Os violinistas do Titanic seguiram tocando até que o barco afundasse", desespera-se Florence. Ao que Guillaume retruca, alegando que aquilo nunca existiu. Que foi uma mera invenção de James Cameron para tornar os artistas supostamente corajosos em meio a tudo. Coragem. O que talvez os falte para certas decisões. Ou ao menos até certo ponto, quando o homem recebe uma inesperada ligação de um agente do diretor Paul Thomas Anderson - ele mesmo, de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e Licoricce Pizza (2021). Enfim, um dos grandes de nossa geração. Que quer trabalhar com Guillaume. O que o deixa em êxtase momentâneo. Esquecendo, por um minuto, o discurso "lacrador". 

 

 


Na sequência em que estão filmando - ou não, porque nunca fica tudo exatamente claro nesse exercício de metalinguagem (a realidade por vezes pode ser outra, mas, vá lá, o que é, exatamente a realidade quando tudo o que vemos é um longo plano-sequência feito com dolly track, em que a câmera flui com maciez desconcertante?) -, Guillaume e Florence estão indo ao encontro dos amigos Willy (Raphaël Quenard) e David (Louis Garrel). Florence quer apresentar David a seu pai, que no filme dentro do filme é o próprio Guillaume, mas o caso é que o candidato a namorado não está tão interessado assim na jovem. Aliás, mais do que isso, bola um plano para colocar Willy no caminho de Florence. Enquanto se encaminham para o local, debatem uma série de temas caros à era do cancelamento - e que vão no limite do preconceito e da intolerância.

Na trama, David é bissexual. Já Willy é o machão da masculinidade frágil que não parece ter muitos limites na hora de verbalizar seu incômodo a respeito de pessoas que se relacionam com o mesmo sexo. "Para com isso! Você está querendo ser cancelado?", pergunta David, enquanto quebra a quarta parede para se direcionar justamente a nós, espectadores, cruzando novamente o limite entre o concreto e o fantasioso. No terço final, a coisa melhora ainda mais quando entra em cena o excelente Stéphane (Manuel Guillot), um figurante que está tão nervoso por ter de interpretar um garçom do restaurante em que a cena ocorre, que mal consegue servir o vinho de forma satisfatória. O que talvez seja mais um truque, vai saber. "Eu tenho problema com os filmes, quando os códigos são muito óbvios", comentou o realizador, anos atrás, em entrevista ao The Guardian. É mais ou menos o que resume o cinema conceitual, sombrio, entortado, nada racional e essencialmente cômico do realizador. 

 Nota: 8,0

 

Tesouros Cinéfilos - O Ódio (La Haine)

De: Mathieu Kassovitz. Com Vincent Cassel, Hubert Koundé e Saïd Taghmaoui. Drama / Policial, França, 1995, 95 minutos.

"É a história de um homem que cai de um prédio de 50 andares. O cara, durante a queda, repete sem parar para se reconfortar: até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem. Mas o importante não é a queda. É a aterrissagem". Vamos combinar que a narração em off que abre o cru O Ódio (La Haine), inicialmente parece apenas enigmática. Um microconto torto e metafórico. Que retornará diversas vezes durante a narrativa - contribuindo para que, mais adiante, seu sentido passe a ser melhor compreendido. Especialmente no universo em que habitam os protagonistas dessa experiência intensa, magnética e violenta do diretor Mathieu Kassovitz. Ao cabo, esse é o tipo de filme que podemos chamar de "pedrada". Tudo é veloz, com os acontecimentos se descortinando em um efeito cascata. Meio drama febril, meio policial estilístico, como se estivéssemos em uma mescla de Trainspotting (1996) com Guy Pearce. Ainda que muito mais político. E, talvez por isso mesmo, nem tão engraçado.

O cenário aqui é um bairro habitado por imigrantes pobres no subúrbio de Paris. A violência policial parece escalar, bem como a discriminação e a xenofobia. Um jovem de nome Abdel foi agredido durante uma série de protestos e agora está em coma. Corre risco de vida. Para o judeu Vinz (Vincent Cassel) só parece haver uma solução possível para o caso. Se o amigo morrer, ele terá de matar um policial como contrapartida. Uma coisa meio "olho por olho dente por dente" - como sinalizava o antigo Código de Hamurabi, em sua suposta proporcionalidade nem tão justa. Só que nesse contexto há um problema, que é lembrado pelo boxeador negro Hubert (Hubert Koundé), um sujeito que aparenta ser mais pacífico, a despeito de sua academia de pugilismo ter sido totalmente destruída durante os tumultos: "o ódio só gera mais ódio". Com um agravante: como minorias, eles estão na ponta mais fraca. Com tudo piorando com o avanço nem tão sutil de uma extrema direita violenta e preconceituosa que, na produção, é simbolizada por Jean-Marie Le Pen. Era os anos 90, afinal. Turbulentos como só.

 


Aliás, o racismo institucional e o discurso xenofóbico estão por toda a parte - e, nesse sentido, não deixa de impressionar o quão atual a obra segue, em tempos de crises imigratórias, de trumpismo e de células nazistas proliferando mundo afora. Em uma sequência, por exemplo, Vinz e Hubert, acompanhados do inseparável Saiïd (Saïd Taghmaoui) - um árabe meio da pá virada que completa o trio que vara uma madrugada intensa, frenética e imparável, desde a hospitalização de Abdel -, tenta entrar em uma espécie de festa de luxo. Mais do que isso, tentam conversar com algumas mulheres, mas sem muito sucesso. É só mais um motivo para que a intolerância e a raiva eclodam, com uma das jovens desprezando o trio de forma categoria, comentando algo tipo "por isso ninguém gosta de se aproximar de pessoas como vocês". Há outras partes da cidade em que esses jovens tão marginalizados quanto vulneráveis não são bem-vindos. No hospital, no mercadinho, mesmo num churrasco no terraço de um prédio abandonado.

É tudo dolorido, com a sensação de desalento sendo ampliada pela fotografia em preto e branco, que torna aquele ambiente essencialmente urbano, caótico e cinza em um espaço apenas de existência - e, vá lá, resistência. Sem muita perspectiva para quem não se sente parte de uma Pátria. Kassovitz - que seria premiado como melhor diretor no Festival de Cannes -, alguém que participou de protestos na juventude, utiliza a experiência pessoal partindo ainda de histórias reais, como a do jovem zairense Makomé M'Bowolé, que foi morto por um tiro à queima-roupa, supostamente acidental, disparado por um policial. Isto após já estar rendido. Claro que o espírito ágil e efervescente do filme reserva um sem fim de instantes mais divertidos, pautados pela cultura hip hop - com suas roupas, danças, grafites e músicas -, por discussões e debates cheios de significados - aliás, mais um mérito do ótimo roteiro -, e skinheads sendo espancados. Ousado, verdadeiro, fervilhante e cativante.