Um dos maiores cineastas brasileiros da história, o documentarista Eduardo Coutinho costumava dizer que "não haveria impulso maior para o ser humano do que ser reconhecido e escutado" - e pode-se dizer que esta sentença moveu grande parte das obras-primas que produziu, de Edifício Master (2002) e As Canções (2011). E foi tomando por base essa premissa que Coutinho lançou em 2007 o clássico moderno Jogo de Cena. Em sua estrutura o filme parece simples: começa com a imagem de um classificado de jornal que convida mulheres maiores de 18 anos residentes no Rio de Janeiro, para contar histórias em um teste para um documentário. Mulheres comuns, simples, cheias de segredos, angústias, anseios, lamentos. Pessoas que têm saudades, arrependimentos, vontades. Pessoas que riem e choram, que pensam antes de falar. Ou não. Que cantam. Que esquecem. Pessoas como eu e você. Imperfeitas, complexas, improváveis.
Mas a beleza do filme de Coutinho não está apenas em ouvir atentamente as histórias - que podem ser a narrativa de uma rapper lésbica que luta para se ajustar em uma sociedade preconceituosa, de uma jovem mãe que ama a sua recém-nascida filha mas que tem a consciência de certa perda da "liberdade" representada pela maternidade ou da mulher abandonada pelo marido e traumatizada em assuntos relacionados ao sexo: está também em burlar os limites entre realidade e ficção, veracidade e fantasia. Na tela também surgem atrizes reconhecidas do cinema e do teatro nacional - como Fernanda Torres, Andréa Beltrão e Marília Pêra - que interpretarão as mesmas memórias narradas pelas mulheres que protagonizam o filme. As mesmas histórias com outras visões, outras reações, outras expressões. Verdade e, talvez, mentira se cruzando o tempo e nos movimentando como parte desse processo de construção capaz de gerar dúvidas o tempo todo.
No cenário apenas um teatro vazio que permite ver algumas cadeiras também vazias. A câmera em close capta detalhes dos rostos das entrevistadas. Reações imprevistas. Riso seguido de choro. O medo de seu relato soar excessivamente trágico - e perder um filho e tentar reencontrar forças pra viver certamente o é. E quem não tem as suas histórias? Com uma câmera tão franca, Coutinho nos faz perceber que as atrizes, na ânsia de repetir aquelas mesmas histórias tão reais que, para elas, não passam de ficção, se atrapalham. Se confundem. Passam a ter medos e incertezas a respeito de seu ofício. E assim também se desnudam. Se desnudam da mesma forma que a mãe que sonha em se reaproximar da filha ou da filha que se arrepende de ter brigado com o pai que morreria. Em uma obra como Jogo de Cena há espaço sim para a encenação, mas também para a vida real confrontada, na cara limpa, sem maquiagens ou trucagens de interpretação.
Em uma votação realizada por membros da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), em 2016, considerou Jogo de Cena o segundo Melhor Documentário Brasileiro da história - atrás apenas de Cabra Marcado Para Morrer (1984) também de Eduardo Coutinho. É muito provável que a sua "brincadeira" prazerosa capaz de modificar a lógica, de repetir eventos e de misturar sentidos tenha sentido determinante para esta escolha. Aliás, talvez não seja por acaso o fato de o crítico francês Jean-Claude Bernardet ter considerado a obra um "abalo sísmico de sete graus na Escala Richter". Sem abuso de recursos, sem explosões mirabolantes, sem uma trama excessivamente exagerada ou cheia de reviravoltas, Coutinho mostra que o poder do cinema está inevitavelmente nas boas histórias. Floreadas ou não, enfeitadas ou não. E que cada um de nós tem uma delas. Basta ligar a câmera para que possamos contá-las. E é dessa forma que a magia se faz.
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