sábado, 10 de dezembro de 2016

Tesouros Cinéfilos - 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile)

De: Cristian Mungiu. Com Anamaria Marinca, Laura Vasiliu e Vlad Ivanov. Drama, Romênia / Bélgica, 2007, 113 minutos.

Entre tantos méritos do maravilhoso 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile), talvez o maior de todos seja a capacidade de abordar um tema difícil e campo para as mais variadas discussões e posicionamentos - no caso, a legalização do aborto -, procurando entender cada um dos lados em uma mesma obra. Sim, nós, em nosso dia a dia temos motivos os mais variados para sermos favoráveis ou contrários a prática. Um caso de saúde pública? Um atentado contra vida? Que atire a primeira pedra quem ainda não espumou de raiva atrás da telinha de seu notebook ao ver, na internet, ideias contrárias as suas sobre o assunto, que, recentemente, voltou a arena de debates. E eu também me incluo entre estes. Mas o que o romeno Cristian Mungiu alcança, de maneira exemplar nessa obra-prima moderna, é olhar para as duas "correntes", ainda que o processo possa envolver certa dor, choque e traumas diversos para os envolvidos - inclusive o espectador.

A trama se passa em 1987, nos últimos anos da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Numa espécie de alojamento estudantil, Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu) discutem amenidades que envolvem a compra de cosméticos ou cigarros no mercado negro - já que estes não eram permitidos no País - e a visita do pai de uma delas. Só que há uma certa tensão permanente no ar, possível de ser percebida já nos planos iniciais: Gabita está grávida e está decidida a abortar - prática que, naquela ditadura, assim como na nossa, tão valorizada pelas famílias de bem, não é permitida. Assim, no terço inicial da película acompanhamos a via crucis de Otilia indo de hotel em hotel, tentando ser o mais discreta possível, com o objetivo de alugar um quarto para que elas possam receber no local um certo Sr. Bebe (Vlad Ivanov), o sujeito que realizará a prática de forma clandestina.



Não é preciso nem dizer que o sistema adotado pelo Sr. Bebe - sujeito rude e de personalidade perversa, como perceberemos mais adiante - estará muito longe do ideal. Especialmente se, num comparativo, o aborto fosse realizado por um médico, em um hospital, com toda a preparação e os cuidados necessários, com equipamentos adequados e higiene idem - o que certamente evitaria a morte de milhares de mulheres ao ano. Só que nesse contexto há um agravante: em geral o grosseiro Sr. Bebe só faz abortos em mulheres com no máximo dois meses de gravidez. Talvez três. E não é preciso ser nenhum gênio para compreender que, como o próprio título da película sugere - traduzido fielmente do original -, o tempo está passando muito rapidamente no que diz respeito a essa decisão. Com tudo se tornando ainda pior quando as novas "condições" do Sr. Bebe para a realização do procedimento forem impostas não apenas a Gabita, mas também a Otilia, que, com razão, não desgruda da amiga.

É um filme duro, seco, sufocante, tenso do início ao fim. E que pode fazer com que, inclusive, convicções já há muito estabelecidas pelo espectador, possam ser eventualmente questionadas ou revistas. Otilia e Gabita são claramente pobres ou integrantes das classes menos abastadas. Para juntar o dinheiro para um hotel barato há que se apelar para a boa vontade do namorado de Otília, sujeito de família rica. E o que dizer da procura de um profissional que realiza o procedimento sem um mínimo de cuidado que seja, lavando suas mãos quanto a qualquer tipo de responsabilidade, na clandestinidade e, ainda por cima, com grotescas exigências? Tudo isso sem esquecer da comovente cena em que o resultado do aborto é mostrado, em uma sequência que martela sem parar a mente de quem assiste o filme. É uma película de sentimentos que colidem, de idéias que batem de frente. Tudo em um contexto social e de uma realidade em que pouco se sabe. Sem esquecer do fato de que não basta ser favorável ao nascimento de um bebê. Também é importante analisar a circunstância em que este será criado, educado, etc.


Genial em utilizar uma série de planos sequências angustiantes, com diálogos ultrarrealistas e naturalistas, a obra ainda tem uma aula de interpretação de cada um dos atores do trio principal. Se por um lado, Ivanov inova ao apresentar o médico como um vilão monstruoso, imprevisível e multifacetado, por outro, Marinca consegue dizer muito não apenas em sua fala geralmente mansa, mas também com silêncios, gestos, olhares (como na turbulenta cena do jantar em família). Vasiliu completa o trio como uma jovem insegura e dependente. Já a fotografia, muitas vezes sombria e opaca, mantém os personagens em um permanente estado de melancolia, bem de acordo com os sentimentos expressos por eles. 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias ganhou a Palma de Ouro, prêmio máximo na edição de Cannes do ano de 2007. Desafiador, questionador e nem sempre fácil, é daqueles filmes que certamente suscita um bom debate sobre o tema, servindo, inclusive, como sugestão para professores que queiram aplicá-lo como exercício em sala de aula.

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