quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Grandes Filmes Nacionais - Deus e o Diabo na Terra do Sol

De: Glauber Rocha. Com Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle e Lídio Silva. Drama / Faroeste, Brasil, 1964, 118 minutos.

Existem grandes clássicos do cinema que passam a sua mensagem, mas sem esquecer o ponto de vista artístico. Nesse sentido, Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme maior de Glauber Rocha - na realidade o segundo de sua curta carreira -, não apenas retrata o espírito de seu tempo, no caso, o de um País a beira de adentrar no abismo de uma Ditadura Militar, como o faz em um sentido ao mesmo tempo onírico, fluído, operístico e documental. A impressão que se tem o tempo todo ao assistir a esta obra-prima é a de estarmos diante de uma grande encenação pública, com cenários megalomaníacos, em que atores de verdade se misturam com a massa, com o objetivo de denunciar as mazelas de uma população que fica a mercê de diversas instituições - o mercado, a religião, ou até mesmo o crime organizado -, mas sem encontrar em nenhuma delas o amparo necessário para uma vida minimamente digna. Ou com algum tipo de salvação, qualquer que seja.

E não deixa de ser interessante o fato de, já na primeira sequência de imagens, sermos arrebatados. O sertão reluzentemente seco, uma cabeça de gado que jaz ensanguentada, a trilha sonora urgente e angustiante de Heitor Villa Lobos. É o cenário de desolação do Nordeste - tão repetido em nosso cinema nos anos seguintes - se apresentando a partir de ícones e símbolos que servirão quase como um resumo metafórico daquilo que presenciaremos nas duas horas seguintes. Evidentemente não há nenhum glamour na história contada à moda de Graciliano Ramos (em Vidas Secas) ou Euclides da Cunha (em Os Sertões). É uma obra que mistura certo misticismo com um clima de faroeste americano e que explora um cenário de inerente mudança na esfera político-ideológica para correlacioná-la com a violência desesperada que (pode) simbolizar o grito dos oprimidos. Glauber, afinal de contas era um sujeito altamente politizado, como é possível inferir.


No começo do filme somos apresentados a Manoel (Geraldo Del Rey), um boiadeiro que se rebela contra o seu empregador, que quer lhe prejudicar em meio a uma negociação envolvendo cabeças de gado. "A Lei tá comigo" brada o coronel durante um debate que envolve uma ponta histórica mais forte e outra mais fraca e desemparada. O resultado trágico do encontro faz com que Manoel parta em disparada com sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães), pelas áridas terras do sertão, com o objetivo de encontrar apoio junto a um grupo de fanáticos religiosos e seu líder Sebastião (Lídio Silva), que prega que o "sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão". Só que Sebastião e seu misticismo que busca a libertação dos bens materiais será duramente perseguido por um certo Antônio das Mortes (Maurício do Valle), matador de aluguel contratado pelos ricos latifundiários da região, que são contrários a suas idéias. No fim das contas a própria Rosa matará Sebastião, enquanto Antônio das Mortes liquidará com o grupo de fiéis.

É um filme absolutamente violento e que pode ser considerado naturalmente subversivo pelas mentes mais conservadoras - incapazes de compreender o fato de que, nas terras áridas do interior do Nordeste não há mocinhos nem vilões, não há "famílias de bem" e nem "adoradores de satã". Há sim a tentativa afoita de pertencimento e (talvez) de intenção de se sentir incluso em um mundo que, definitivamente, não parece ser o de ninguém. O que faz com que Manoel e Rosa, em uma tentativa ainda mais desesperada de permanecerem vivos em meio a tantas mazelas, se aliem a Corisco (Othon Bastos), o "diabo louro", último cangaceiro do grupo de Lampião ainda vivo. E que em seu fluxo de consciência, em seus delírios aparentemente sem lógica e suas roupas e modos extravagantes, seguirá a sua luta numa tentativa desesperada de explicitar a origem dos problemas - que pode estar em um Governo que não olha para o seu povo como deveria, por exemplo.


Mais de 50 anos depois de seu lançamento, é incrível notar como Deus e o Diabo na Terra do Sol segue atual em seu debate, e mesmo em seu estilo de filmagem - documental, granuladamente árida e olhando para seus personagens com certa ternura desencantada - em uma obra moderna, que chega a bordejar a antropofagia dos autores dos anos 20. Maior filme do cinema nacional na história, a película é filmografia básica para a compreensão de um período, especialmente pelo seu espírito totalmente visionário e imprevisível - e não foi por acaso que o Golpe Militar de 64 foi instaurado apenas 15 dias após a sua primeira exibição em um cinema nacional. Por mais difícil que possa ser, seu simbolismo e seus contrastes ainda pavimentaram o terreno para outra obra-prima de Glauber Rocha: Terra em Transe, que sacramentou o seu nome entre os grandes, estabelecendo-o ainda como um dos principais nomes do movimento nacional conhecido como Cinema Novo - e que tinha também entre seus expoentes Nelson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla e Ruy Guerra.

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