quarta-feira, 19 de abril de 2017

Tesouros Cinéfilos - Gosto de Cereja (Ta'm e Guilass)

De: Abbas Kiarostami. Com Homayon Ershadi, Abdolrahman Bagheri, Afshin Khorshid Bakhtiari e Safar Ali Moradi. Drama, Irã / França, 1997, 95 minutos.

Gosto de Cereja (Ta'm e Guilass), assim como ocorre com a grande maioria dos filmes feitos no Irã, possui uma história simples, linear, sem efeitos especiais ou grandes interpretações. Não é por acaso que a escola denominada como Novo Cinema Iraniano - vertente em que se produzem obras de diretores como Jafar Panahi, Majid Majidi e Abbas Kiarostami, entre outros - está muito mais para Neorrealismo Italiano do que para Cinemão Hollywoodiano. (o que não é nenhuma surpresa, vamos combinar) O estilo por vezes lento, capaz de emular um cotidiano pasmacento, numa alegoria para uma rotina aparentemente trivial e inegavelmente realista combina bem com a lógica vista nos filmes do pós-guerra na Itália, em que características como uso do som diegético, filmagens em locação, tom documental e uso de atores não profissionais eram a ordem do dia.

Na obra de Kiarostami, peça central do movimento, somos apresentados a um homem de meia idade (Ershadi), que vaga em sua caminhoneta pelas ruas empoeiradas de Teerã atrás de alguém que possa lhe auxiliar em um trabalho bastante particular. Disposto a se suicidar, o homem, chamado de senhor Badii, precisa de alguém que lhe acompanhe em sua jornada até um local pré-determinado para que, em um buraco junto a uma árvore, seja possível lhe enterrar (caso seja bem sucedido) ou lhe socorrer (caso a sua tentativa seja falha). Evidentemente a tarefa não será fácil, por mais que Badii ofereça uma boa quantidade de dinheiro a qualquer um que aceite ao menos ouvir a sua proposta. E a cada novo caroneiro, aumenta a nossa curiosidade sobre as motivações desse homem de ar melancólico, aparentemente infeliz e, talvez, solitário.



E aí está, justamente, um dos grandes acertos de Kiarostami. Ao não apresentar absolutamente nenhum flashback do passado do protagonista, nos tornamos impotentes diante de sua ação e, ao mesmo tempo, incapazes de tomar qualquer tipo de partido. Ele deve se matar? Sim? Não? Ele parece ter dinheiro o suficiente. Por quê dar cabo de sua vida então? Ele sofreu por amor? Perdeu alguém importante em sua vida? São todas perguntas que possibilitam a nós, espectadores, ampliar a noção de existência desse sujeito para um sem fim de possibilidades. Afinal de contas, seremos nós que elaboraremos, de forma ativa, uma parte dessa história. Será por meio de nossas ideias e fluxos de pensamento que refletiremos sobre nossas próprias vidas, bem como sobre como as conduzimos, analisando ainda o que é importante ou não em nossas existências.

Transformando ainda cada passageiro em um personagem essencial para a trama, Kiarostami torna, assim, a obra muito mais dinâmica do que os cenários desérticos e o clima arrastado fariam parecer. Se o soldado iraniano visto logo no começo do filme parece disposto a fugir a todo o custo daquela que pessoa que ele considera maluca, o seminarista visto no instante seguinte não apenas ouve toda a conversa do protagonista como ainda, de maneira comovente, tenta demovê-lo de sua ideia. Mas certamente nenhum dos "caroneiros" de Badii supera o professor universitário turco que trabalha como taxidermista e que conta a sua própria história sobre ter tido vontade de se suicidar quando jovem. E é praticamente impossível não sorrir ao ouví-lo falar sobre a importância do sabor das amoras, do nascer do sol e da felicidade das crianças indo para a escola, quando resolveu desistir de sua ideia.


Inconclusivo em seu final, Gosto de Cereja ainda é recheado por uma série de imagens metafóricas e enigmáticas que dão conta da qualidade de Kiarostami enquanto diretor. Se ao parar em uma pedreira para observar as escavações Badii vê sua própria sombra sendo soterrada por uma máquina que lhe despeja terra, por outro é capaz de trazer vivacidade para o encontro peculiar com um afegão que trabalha como segurança - e lhe oferece um prato de omelete. São aquelas coisas simples da vida que nos fazem pensar, que nos envolvem e que nos tocam, nos tornando parte existente do desalento daqueles que vemos. Sensação que é aumentada pelo fato de Kiarostami ter utilizado, em grande parte das filmagens, atores não profissionais, que sequer tinham lido o roteiro. Construir um filme assim, delicado, sutil e ao mesmo tempo potente sobre um tema tabu é digno de Palma de Ouro em Cannes. O prêmio, concedido em 1997, não foi por acaso.

Um comentário:

  1. Muito bom, Tiago. Assim, fico tentado, mais uma vez, a usufruir destes pequenos prazeres da vida, como assistir a um filme. Aliás, como o professor universitário que está no filme,que descreve o sabor das amoras, do nascer do sol e da felicidade das crianças indo para a escola, como prazeres que o fizeram desistir da ideia do suicídio.

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