segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Cinema - A Qualquer Custo (Hell Or High Water)

De: David Mackenzie. Com Chris Pine, Ben Foster, Jeff Bridges e Dale Dickey. Faroeste / Drama, EUA, 2016, 102 minutos.

Subverter a lógica por trás da dicotomia eventualmente simplista que envolve mocinhos e bandidos - cada um defendendo o seu lado - é o que torna algumas obras não apenas mais complexas, mas também superiores, no que diz respeito a narrativa. Muitas vezes há mais camadas, mais nuances, que, se não são necessariamente "esfregadas" na cara do espectador, são apresentadas por meio de sutilezas ou detalhes que respeitam a inteligência de quem está assistindo e também modificam as nossas percepções sobre bem e mal ou certo e errado. Como exemplo, podemos citar o caso da série Breaking Bad: quem não torceu vertiginosamente para que Walter White conseguisse alcançar o seu "nobre" objetivo de deixar a família em uma situação financeira estável, após a sua morte? Ainda mais sabendo que, como professor de química, sua condição econômica era precária, num sistema que não valoriza o ensino? (aliás, qualquer semelhança...)

No caso de Walter, quem era o vilão? Ele, que na condição de traficante pensava - ao menos até certo ponto - no conforto e no bem estar de sua família? Ou algo maior, como o Estado que não lhe dá condições diante de problemas graves de saúde? Quem é o bandido, quando um homem negro, pobre e desesperado invade um supermercado pra roubar comida para os seus filhos? Se nos antigos filmes de faroeste bandidos e mocinhos eram retratados de maneira maniqueísta e unidimensional, hoje em dia o cinema parece ter mudado, servindo, em muitos casos, para uma análise mais ampla da vida em sociedade. E, assim, as individualidade podem ser vistas como parte do todo. E, nesse todo, conseguimos torcer para os eventuais "vilões", sem culpa. E é exatamente esse o caso do indicado ao Oscar de Melhor Filme A Qualquer Custo (Hell Or High Water), excelente obra do diretor David Mackenzie (do sensível Sentidos do Amor).



O filme se passa no interior do Texas - aliás, não por acaso, Estado natal do ex-presidente norte americano George W. Bush. No começo, somos apresentados aos irmãos Toby (Pine) e Tanner (Foster), que vivem de pequenos roubos a bancos. "Quem rouba bancos hoje em dia?" pergunta um senhorzinho sentado em um café de beira de estrada, no interior, diante do estupefato delegado Marcus Hamilton (Bridges), que tenta entender a lógica por trás das ações da dupla, que sempre leva pequenas quantidades e sempre do mesmo banco. Não demora para que passemos a compreender as intenções da dupla, que percorre o interior dos Estados Unidos cruzando cidadelas em que a crise imobiliária está instalada - aquela mesma de 2008 - com a população liquidando imóveis e buscando socorro em agências bancárias ambiciosas que lhes afundarão ainda mais. Toby e Tanner estão com a hipoteca do terreno da falecida mãe atrasada. E para garantir o futuro dos filhos de um deles, é necessário quitar a dívida, a qualquer custo, sob pena de perder o único bem da família.

A trama é simples, mas isso não significa filme preguiçoso. Aliás, muito pelo contrário. Mackenzie mostra versatilidade ao incluir símbolos e signos que conferem à obra um tom quase premonitório sobre o que se imagina de uma América que vá ser "grande de novo" - como espera o inexplicável presidente Donald Trump. Em um lugar em que todo mundo anda armado, até na igreja se for o caso, o racismo e o preconceito ainda fazem parte da rotina - aliás, nunca devem ter se apagado. Assim não chega a surpreender quando a personagem de Dale Dickey, diante da pergunta sobre a raça dos invasores do banco em que trabalha, responde com a pergunta: "da pele ou da alma"? Ali, estamos diante de uma América conservadora, obsoleta, anacrônica, empalidecida, que sonha em poder fazer piadas com índios e mexicanos novamente - como o faz o personagem de Bridges com o parceiro Alberto (Gil Birmingham), mas sem que ninguém o censure, o questione, o desafie. E, nesse sentido, um ponto a mais para Mackenzie por repaginar um estilo ultrapassado como o faroeste, mas sem esquecer daquilo que havia de mais patético em boa parte dos filmes comandados por John Ford e estrelados por John Wayne. Assim como naquela época, estão de volta os roubos a bancos. Só que hoje feitos por homens brancos, católicos e integrantes das "famílias de bem".


Com boa caracterização do trio central - a despeito do sotaque esquisito empregado por Bridges, que ainda assim foi indicado ao Oscar na categoria Ator Coadjuvante, e da repetição do papel de Foster (sempre o sujeito no limite do lunático)  - o filme ainda merece crédito pelo roteiro absolutamente original de Taylor Sheridan, primeira vez indicado ao Oscar. A edição de Jake Roberts, também lembrado nas premiações, é outro diferencial, com a obra funcionando tanto como um road movie que acompanha dois bandidos, como uma película contemplativa sobre os últimos dias de um delegado veterano antes de se aposentar - e as trocas entre ambas as histórias, conferem uma dinâmica à narrativa que a torna ao mesmo tempo urgente e plácida, objetiva e melancólica (algo reforçado pelas imagens suntuosas das planícies arenosas do Texas). A Qualquer Custo é a prova de que a safra de filmes nominados para a noite do dia 26 de fevereiro é uma das melhores dos últimos anos. Talvez seja o menor de todos os filmes - e a indicação talvez tenha pego alguns de surpresa. E, ainda é assim, é uma baita obra que merece ser vista!

Nota: 9,0

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