Uma das teorias que circulou pela internet à época do morte do ator Heath Ledger foi a de que ele teria mergulhado de forma tão intensa na composição de sua interpretação arrebatadora para o Coringa, em Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008) que, finalizada a película, teria tido dificuldade de "sair" de um personagem tão intenso, magnético, ambíguo e complexo. E que, atormentado pela sua permanente e esquizofrênica melancolia, teria sido psicologicamente influenciado para o triste destino que lhe foi imposto. Verdade ou não - e uma pequena busca na web revelará uma série de notícias contraditórias sobre o caso - o fato é que as pressões no mundo das artes parecem ser extremas em muitos casos. Exigências físicas, psicológicas, de moral duvidosa ou eticamente questionáveis, vindas de pais e mães, professores, instrutores, técnicos... para o cinema, o teatro, a dança e, vale colocar, o esporte, não parece haver limites quando o assunto é a entrega do melhor em termos de atuação ou caraterização. Especialmente em um mundo competitivo em que o segundo colocado sempre parecerá o "primeiro entre os últimos".
Muito mais do que um "filme sobre balé", Cisne Negro (Black Swan), obra-prima de Darren Aronofsky trata, de certa forma, desse assunto. Mas ao invés de investir no drama direto de seu protagonista na busca por alcançar aquilo que esperam seus "mentores" - assim como ocorre por exemplo com o baterista de Whiplash - Em Busca da Perfeição (2014) de Damien Chazelle - aqui temos uma obra que investe no suspense psicológico, com pitadas de um sombrio realismo fantástico, capaz de perturbar o espectador. E que o conduzirá para a torcida que possa ir para além da superação redentora de sua personagem principal. Condição que amplia o valor artístico e estético do filme, recheando-o com nuances e detalhes não apenas surpreendentes, mas que flertam com aspectos psicológicos e com temas amplos como a superproteção materna, as dificuldades de relacionamento, o sentimento de frustração diante das derrotas impostas pelo "mundo" ou ainda as inesgotáveis tentativas de agradar os outros - o que faz com que as pessoas esqueçam de si e de sua felicidade.
A protagonista é a bailarina Nina, vivida de maneira singela e angelical por Natalie Portman. O problema do excesso de candura se dará quando Nina for escolhida pelo exigente diretor artístico Thomas (Vincent Cassel, sempre uma boa presença na tela) para protagonizar a peça O Lago dos Cisnes - o que se dará também com a traumática aposentadoria de Beth (Winona Ryder) considerada "velha" demais para o público. Tendo que contrastar em sua caracterização a placidez do "cisne branco" (ou a personagem Odette, da peça original), com a luxúria bruxuleante, quente e lasciva de Odile (o "cisne negro"), Nina tem dificuldade em encontrar o equilíbrio e a harmonia entre os dois papéis, uma vez que, como numa espécie de paradoxo, será justamente a ausência de vivências mais "mundanas" em uma vida asséptica e exclusivamente dedicada ao balé - como comprovam já as cenas iniciais da película, em que a jovem ensaia dentro de casa -, que lhe resultará na insuficiência para a sua transformação desta para aquela persona. Condição que gerará frustração, medo e insegurança no meio em que a bailarina trafega.
Tudo piorará com a chegada de Lilly (Mila Kunis). Extrovertida, leve e cheia de personalidade, a jovem funcionará como uma espécie de curiosa antagonista de Nina, estando no limite entre a amizade e a rivalidade. Lilly é o que Nina deveria ser - ao menos no caso da personagem que pretende interpretar. Sedutora, cativa todos a sua volta somente com o sorriso e o olhar que, de alguma forma, compensam a sua falta de técnica. Não bastasse a presença da rival, a mãe de Nina (Barbara Hershey, ótima), sufoca a filha com o seu comportamento superprotetor, mantendo-a embaixo de sua asa como se esta fosse uma eterna criança - o que pode ser comprovado pelo quarto em tons de rosa (que a mãe NUNCA deixa ser chaveado) ou pela inexplicável quantidade de bonecas de pelúcia presentes no ambiente. Algo pouco convencional para uma mulher já na fase adulta.
Com tantos "fantasmas" a lhe assombrar não tardará para que Nina passe a ter visões, seja de uma outra mulher a lhe perseguir ou de sua antagonista em sonhos em que, inconscientemente, se liberta de uma sexualidade a vida toda reprimida. Imagens estáticas a se mexer, sussurros por entre os corredores da companhia, deformidades gerais no espelho da sala de treino... tudo isto, somado a sombria fotografia (de Matthew Libatique) e a trilha sonora que subverte levemente os temas de Tchaikovsky (de Clint Mansell) transforarão a experiência de assistir Cisne Negro em algo não menos do que especial. Sutil em sua abordagem psicológica - mas sem deixar de GRITAR aquilo que pretende - o filme de Aronofsky ainda possibilitou a Portman a justa conquista do Oscar. A clara dedicação - física (ela tá tão magra que é quase preocupante) e mental - quase funciona como um exercício metalinguístico da trama: e quando ela surge, quase ao final, transformada no tão aguardado "cisne negro", só nos resta aplaudir de pé. É um filmaço.
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