De: Magnus von Horn. Com Victoria Carmen Sonne, Trine Dyrholm, Besir Zeciri e Joachim Fjelstrup. Drama, Dinamarca / Polônia / Suécia, 2024, 123 minutos.
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]
A Garota da Agulha (Pigen Med Nålen) talvez seja o tipo de filme que precisaria vir com um "alerta de gatilho", tamanha a sequência de tragédias, de dores e de violências diversas exibidas nas cerca de duas horas da obra - a enviada da Dinamarca ao Oscar. E o mais incrível é que, por mais pesado que tudo seja, nada ali parece ser gratuito. Como uma mera forma de chocar por chocar. Ao cabo nessa narrativa há algo que martela: qualquer que seja o período permanecemos como uma sociedade hipócrita, em que muitos de nós se travestem de paladinos da moral, como se fôssemos o tempo todo sujeitos incorruptíveis ou nunca falhos. Na era do cancelamento e dos dedos apontados o problema está sempre no outro. E nunca em nós ou no que pensamos. Mas a arte serve para nos lembrar disso. Para nos alertar para essas contradições. Então por mais duro ou sombrio que seja o projeto do diretor Magnus von Horn, ele tem razão de ser.
Aliás, mais do que isso, ele é um filme que se passa no contexto do final da primeira guerra - ou seja, no começo do século passado -, mas que dialoga E MUITO com os nossos tempos. Tempos esses que parecem flertar com todo o tipo de retrocesso. Em que se perdeu a vergonha de se agir de forma absurda. "O mundo é um lugar horrível, mas precisamos acreditar que não é", lembra em um dos momentos decisivos da produção, a idosa Dagmar (a ótima Trine Dyrholm), que, em um cenário de desolação, administra uma espécie de empresa - por assim dizer - que se ocupa de encontrar casas para bebês que não são desejados. Claro, tudo as escondidas. E é justamente salvando a protagonista Karoline (Victoria Carmen Sonne) em uma situação de extrema violência - digamos que ela usava uma agulha de tricô, mas não para produzir uma peça de roupa -, que ambas formam uma amizade.
Amizade talvez não seja ao certo a palavra. Um tipo de vínculo. O que entre mulheres em um cenário tão patriarcal e machista pode ser uma boa. Até mesmo porque, quando Dagmar acolhe Karoline, ela já passou por uma dúzia de humilhações e agressões. Primeiro é despejada do seu apartamento por falta de pagamento, tendo de se abrigar numa pocilga que fica dentro do orçamento. Depois, acredita que o seu chefe em uma indústria de confecções - um certo Jorgen (Joachim Fjelstrup) - esteja apaixonado por ela (o que a faz sonhar uma vida melhor, especialmente quando iniciam um relacionamento meio às escondidas). Por fim, ela se descobrirá grávida de Jorgen, sendo rejeitada por ele e pela família dele. Com um filho pra criar mais adiante. E como se a desgraça não fosse pouca, o marido da protagonista - seu nome é Peter (Besir Zeciri) -, dado como morto no conflito, reaparece, mas com o rosto totalmente desfigurado (o que o faz aceitar um trabalho em um daqueles antigos circos sensacionalistas).
Sim, e nesse cenário em que uma punhalada atrás da outra ocorre, parece que o pior sempre vai ser o que está por vir. O próximo passo. A nova reviravolta. E é mais ou menos isso que acontece no terço final, sendo absolutamente incrível a forma como Von Horn nos conduz e nos faz compreender as atitudes - por mais desesperadas e cruéis que sejam - de todos ali. Em linhas gerais trata-se de uma obra permanentemente sombria, soturna, com a fotografia em preto e banco de contrastes reforçando o desencanto. Imagens secas de chaminés que soltam uma fumaça pastosa, ou frases cheias de simbolismo (você é a garota da agulha?), ampliam a sensação de sofrimento. O mesmo valendo para a trilha sonora com guinchos de violino, que é bastante original e perturbadora. Em tempos de avanço da extrema direita e em que temas como aborto e violência contra a mulher seguem mais atuais do que nunca, A Garota da Agulha é um tapão na nossa cara, que talvez pudesse nos fazer despertar. Talvez. Por que do jeito que vai, não sei se temos alguma salvação.
Nota: 8,5