Vamos combinar: quem acompanha a carreira do Terno Rei já se acostumou com a sua música de ambientação urbana, cinzenta, de final de tarde em meio aos prédios altos e as calçadas ásperas - o tipo de sentimento palpável, que emana da sonoridade nostálgica e melancólica. Sim, a impressão que dá é a de já termos ouvido essas músicas antes - nas madrugadas das rádios alternativas ou em algum lugar na transição dos anos 80 e 90, pra quem viveu ali a juventude. As referências são quase óbvias, indo de Smiths e The Cure a Phil Collins e Radiohead -, sempre com uma guitarrinha pulsante e um letras urgentes a respeito de dores cotidianas ou sofrimentos contemporâneos mal curados -, o que jamais significa falta de personalidade ou estilo próprio. O que fica bastante evidente em Nenhuma Estrela, quinto disco de inéditas que, não por acaso, é um dos melhores da carreira.
Com um conjunto de canções perfumadas por sintetizadores enevoados, bateria frontal e refrãos nunca óbvios, o quarteto paulistano capitaneado por Ale Sater mostra maturidade e segurança em um registro extremamente bem produzido, requintado em sua estética e emocionalmente arejado - como comprovam músicas excelentes, como, Nada Igual, Próxima Parada e Programação Normal (sempre propondo algum tipo de dança em meio à tristeza, que vai no limite entre o pop e o experimental). Já Casa Vazia brinca com a ideia por trás da solidão de um bicho de estimação - no caso um cãozinho e seu eterno estado de espera (Dessa casa vazia / Sou protetor / Isso é tudo que tenha pra dar). "Fico muito feliz em ver como nossa música consegue tocar as pessoas e acompanhar fases da vida delas. Assim como vocês sentem isso, eu também sinto", resumiu o vocalista Ale Sater ao site Música Pavê. Os fãs agradecem.
De Érico Rassi. Com Ângelo Antônio, Babu Santana, Antônio Pitanga e Rodger Rogério. Faroeste / Drama, Brasil, 2025, 97 minutos.
Existe uma cena divertidamente melancólica em Oeste Outra Vez que talvez, em alguma medida, evidencie parte das discussões que a obra propõe. Nela, dois capangas do sertão goiano tentam estabelecer algum diálogo no quarto que compartilham. A noite já avança e um deles alega estar sem sono. "Tô tentando dormir mas a cabeça não deixa", comenta, afirmando que talvez esteja meio pra baixo. "Quer conversar um pouco?" questiona o companheiro. "Pode ser", responde o primeiro. Após alguns instantes de silêncio meio desconfortável em que eles se perguntam sobre o que exatamente irão conservar, o insone verbaliza: "não consigo pensar em nenhum assunto". "Bom, caso o senhor se lembre, me fale". Em geral essa poderia ser uma sequência meio boba, quase dispensável. Mas homens ainda meio jovens, incapazes de se comunicar - que não seja na base da violência, claro -, aqui, é a alegoria mais óbvia que ecoa nos tempos individualistas e niilistas que vivemos.
Sim, a aspereza daquele espaço ermo e desalentador pode até aludir aos faroestes clássicos de John Ford e a eterna busca por ocupação geográfica. De conquista e de vitória sobre algum inimigo forjado naquele ambiente em que a única linguagem possível é a do revólver. Claro que esse cenário pouco convidativo - arenoso, sem cor, sujo - parece indicar um tempo que não existe mais. Mas se fosse essa uma obra sobre redpills da classe média, que se alternam entre a misoginia galopante dos interiores de escritórios bem arejados e os encontros do clube de motoqueiros de final de semana, a coisa não fugiria muito dessa lógica. Aliás, se fosse um faroeste urbano, com homens violentos, toscos e bem vestidos, vivendo uma vida miserável de golpes, talvez a alegoria fosse ainda melhor. Refletindo ainda mais esse tempo em homens não sabem conversar sobre absolutamente nada na era do jogo do tigrinho e do pastorzinho coach, ao passo em que acreditam serem capazes de conquistar uma "mulherzinha" pra arrumar a casa e fazer companhia.
E, nesse contexto, eu admito que estou sem saber até agora se a escolha por músicas do Nelson Ned para integrar a trilha sonora da produção é apenas uma metáfora involuntária que envolve homens minúsculos tendo de compensar suas fragilidades emocionais empunhando pistolas, ou se foi algo deliberado. Justiça seja feita, Ned tinha nanismo e tinha um vozeirão que convertia suas canções - quase sempre libelos do sofrimento amoroso - em maiores (com o perdão do trocadilho) do que já eram. Já os homens de Oeste Outra Vez são pequenos porque são pequenos. Porque não sabem verbalizar aquilo que sentem. Que são desamparados - pelo Estado, por outras instituições, por suas famílias que lhes abandonam (uma ausência sentida e que poderia conferir ainda mais profundidade praqueles sujeitos mínimos se soubéssemos a origem desse desamparo). Onde estão as demais pessoas que circundam aqueles existências ordinárias? Afinal, se eles são como são isso também é efeito do meio em que vivem. E crescem. Sem perspectivas. Sem esperanças.
Hábil em suas rimas visuais, o diretor Érico Rassi apresenta aqueles homens sedentos por vingança - a maioria das vezes por causa de sofrimentos amorosos nunca tornados claros -, como sujeitos falhos até na banalidade. Nesse sentido talvez não seja por acaso que praticamente todas as tentativas de atirar em alguém sejam estapafúrdias. Aqui não fica evidenciado o heroísmo daqueles bravos homens - tal qual os caubois de Ford de outrora (pistoleiros de código moral duvidoso, mas extremamente eficientes naquilo que se propõem) - e, sim, a total incapacidade até mesmo de executar aquilo em que deveriam ser bons. Efetivos. O capanga contratado por Toto (Angelo Antônio) para dar cabo de Durval (Babu Santana), após uma desavença, alega ser experiente. Mas não é. Bebe - aliás, a bebida é onipresente -, arma mal a arapuca, atira em tudo que é parte, mas deixa seu alvo escapar. O que inicia uma briga de gato e rato que quase sempre para na incapacidade de parte a parte de resolver a questão. Triste e esmaecido, esse é um filme que culmina numa cena tão aleatória quanto as decisões equivocadas daqueles que acompanhamos. Numa dança que segue mesmo frente ao imponderável.
De David Michôd. Com James Fecheville, Jackie Weaver, Joel Edgerton, Guy Pearce e Ben Mendelsohn. Policial / Drama, Austrália, 2010, 112 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]
Existe uma sequência bastante simbólica lá pela metade de Reino Animal (Animal Kingdom), em que o detetive Nathan Leckie (Guy Pearce) faz uma analogia entre a natureza e seus complexos ecossistemas e o ambiente de crime em que o jovem Joshua (James Frecheville) parece cada vez mais imerso. "Você sabe no que consistem as florestas?", questiona ele. "São árvores que estão aqui a milhares de anos e de insetos que morrerão em menos de um minuto. São estruturas gigantes e pequenos seres irritantes". Alegoricamente, o que Leckie tenta lembrar ao jovem é que certas partes sobrevivem porque são fortes. Ao passo que outras são fracas e dependerão das demais para sobreviver. "Você pode pensar que é forte por conta daqueles que estão no seu entorno. Mas a realidade é que você é fraco e foi protegido pelos fortes. Que, no momento, estão perdendo a sua força", completa o investigador.
Naquela altura do campeonato o filme dirigido por David Michôd - vencedor do Festival de Sundance, que completa 15 anos de lançamento em junho - já evoluiu bastante. E o fato é que a casa está começando a cair, definitivamente, para Pope Cody (Ben Mendelsohn), tio aloprado de Joshua, que está em permanente fuga da polícia por envolvimento com o tráfico de drogas e também para a matriarca Janine 'Smurf' Cody (Jacki Weaver), avó do rapaz. Na trágica história está uma trilha de sangue que levará à morte outros familiares, como Baz Brown (Joel Edgerton) e Craig Cody (Sullivan Stapleton). A polícia de Melbourne não parece estar com muita paciência e na incessante busca por alguma pista de Pope, que se esquiva aqui e ali sem dar muito na cara, a coisa vai complicar. Nesse ecossistema, não é demais lembrar: Joshua é um arbustinho em um cenário de sequoias. É um pequeno, protegido pelos grandes. Mas até quando?
O caso é que o jovem de apenas 17 anos chega meio que por acaso aquele contexto familiar sombrio, violento e de poucas perspectivas. Quando sua mãe morre de overdose ainda no começo do filme, ele se vê sozinho e, no desespero, resolve ligar para a vovó Smurf. Como uma idosa de modos excêntricos e que gosta de manter a prole próxima - o modo com que ela trata seus filhos, um bando de barbados de trinta e poucos ou quarenta anos, faria Freud se revirar no túmulo -, Smurf resolve trazer Joshua para perto. Para morar com ela. E, assim, tal qual o personagem de Sean Penn em O Pagamento Final (1993), que deseja de todas as formas fugir do universo do crime, o protagonista se vê inserido nesse submundo meio que sem querer querendo. Não parece haver muita escapatória nesse reino animalesco. Ainda que Leckie tente lembrá-lo, de forma quase comovente, que talvez aquele ambiente não seja pra ele.
Ao cabo, essa é uma experiência tensa e urgente, que permite ao espectador um mergulho meio que sem concessões nesse ambiente de assaltantes à mão armada, de gangues traficando cocaína, de golpes e de contragolpes. Andando pra lá e pra cá como a figura escamosa que coordena meio que tudo, Smurf é capaz de tratar cada um dos seus "bebês" como crianças em corpo de adulto, ao passo em que também ignora qualquer sentimento mais profundo frente ao luto inevitável. Os negócios são apenas os negócios e a família está ali para que tudo saia a contento. Ainda que nem sempre a coisa ocorra de forma satisfatória. Policiais corruptos, amigos cheios de contradições, advogados de índole questionável, violência que parece emergir de qualquer canto, inclusive de brigas de trânsito (ou de homens da lei decididos a resolver a coisa na marra). Nessa fauna em que só os maiores sobrevivem, talvez seja o caso de evitar a trocação. Pra evitar ser preso. Ou morrer. O que costuma ser o destino óbvio do peixe pequeno.
De: Teddy Lussi-Modeste. Com François Civil, Toscane Duquesne e Mallory Wanecque. Drama / Suspense, Bélgica / França, 2024, 90 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM OS MAIS VARIADOS SPOILERS]
Quem já assistiu ao ótimo filme dinamarquês A Caça (2012) lembra do sentimento de revolta pelo qual somos tomados, frente a uma grande injustiça - no caso, um professor de séries iniciais sendo acusado de abuso sexual e as graves consequências disso. Mesmo sem provas, a situação escala e, verdade seja dita, ainda que inocentado, a pecha de abusador nunca mais sairá de sua testa - como nos lembra a brilhante conclusão da envolvente produção de Thomas Vinterberg. No caso de O Bom Professor (Pas de Vagues), a situação é mais ou menos parecida. Temos um docente do primeiro grau que, depois de uma brincadeira meio boba em sala de aula, vê sua reputação, sua carreira e quase toda a sua vida irem por água abaixo. Havendo aqui uma pequena diferença, que é o fato de professor ser gay e morar com seu namorado - o que fará com que percebamos que, talvez, o buraco seja mais embaixo.
Bom, antes de mais nada, é preciso que se diga que não se trata de minimizar a importância do assunto e sim do fato de imputar crimes a alguém sem que de fato haja uma prova mais contundente. E quando o assunto são casos do tipo, as paixões parecem ainda mais exacerbadas, com parte da população já aparentemente desejosa de julgar, condenar e se possível destruir de todas as formas o "culpado". Linchar, matar, trucidar - e vamos combinar que essa sanha punitivista muitas vezes não é nem exclusividade apenas da extrema direita. Até que se prove o contrário, o abusador é o abusador, mesmo sem muitas certezas. Isso me faz lembrar, aliás, outra excelente produção, no caso o ótimo Dúvida (2008) que é concluído com uma Irmã Aloysius (personagem de Meryl Streep, sempre maravilhosa) aos prantos, afirmando ter dúvidas depois de um padre/professor cheio de carisma, com métodos mais inovadores e bastante próximo dos alunos, ser expulso do educandário por talvez ser um pedófilo.
Só que diferente do que ocorre no filme estrelado pelo saudoso Philip Seymour Hoffman, aqui não parece haver muita margem pra incerteza. Tudo o que há são os alunos exacerbados, após o professor de francês Julien (François Civil) fazer um elogio ao cabelo da introspectiva estudante da sétima série Leslie (Toscane Duquesne), como parte de uma explicação sobre figuras de linguagem. Visivelmente desconfortável, Leslie leva a questão adiante: apresenta uma carta à diretoria, onde denuncia uma sequência de atitudes de Julien que, supostamente, evidenciariam os abusos. O que vai de situações episódicas, como dirigir o olhar a ela, a frases mais ambíguas, como quando o educador afirma gostar de tomar água para se "refrescar". O que ele teria dito dando uma mordidinha provocadora no lábio. Com a tensão estabelecida, caberá a Julien se esforçar para apagar a imagem já criada - e não ajudará em nada o fato de um bando de crianças da sétima série se mostrarem dispostos à agitar o entorno.
Leslie tem um irmão que parece - salvo algum estereótipo -, muito mais abusivo do que Julien. Aliás, irritado, o rapaz ameaça de morte o professor. Mas também ameaça a menina, para o caso de ela estar mentindo. No educandário, os demais docentes não parecem muito animados em apoiar Julien - cada qual preocupado apenas com as suas carreiras e os possíveis desgastes que a situação poderia gerar. Com tudo piorando quando vaza um vídeo íntimo do protagonista em uma noitada em uma boate gay, sendo apenas feliz ao lado do seu companheiro. "Talvez isso pudesse ter te ajudado dessa vez", afirma alguém em certa altura, de maneira meio torta. Em tempos em que os dedos parecem todos apontados para os professores, para seus métodos, para o que escolhem como parâmetros de ensino, uma obra como essa dirigida por Teddy Lussi-Modeste que, de quebra é inspirada em eventos reais ocorridos com o próprio, se converte em um verdadeiro filme de terror e um verdadeiro desafio para pedagogos mundo afora. Afinal, a homofobia não pode dar espaço para a censura. Ou impedir um professor de exercer seu ofício com dignidade. O gosto é amargo. Mas propor a reflexão já é um começo.
De: Laurent Cantet. Com François Bégaudeau, Jean-Michel Simonet, Boubacar Touré e Rachel Régulier. Drama, França, 2008, 128 minutos.
Vamos combinar: quem assiste Entre os Muros da Escola (Entre les Murs) normalmente se surpreende com o caráter naturalista da obra. Esse é um filme de sala de aula. Aliás, de muita sala de aula. Com professor e alunos dialogando, gritando, colidindo, rindo se confrontando. Só que, aqui, diferentemente do que ocorre no subgênero das produções escolares - em que a encenação toda pode soar meio fake -, temos a impressão de a câmera ter sido apenas ligada no ambiente de uma escola de verdade, com os estudantes tendo sido estimulados a apenas agirem como se estivessem, de fato, em aula. Adolescentes se provocando, olhando para trás o tempo todo, tirando sarro uns dos outros, gaitando. Ou mesmo deitados com ar cansado em cima da carteira. Desgostosos com algo ou apenas insatisfeitos porque essa etapa da vida é um saco mesmo e a gente ainda tem de prestar atenção no que o professor diz. É tudo tão, mas tão realista - e ao mesmo tempo tão magnético, tão envolvente, tão vivo -, que não dá pra sair ileso.
Só que essa representação tão fiel à realidade tem um por quê, que é o fato de o professor François (François Bégaudeau) ter sido não apenas o escritor do livro que baseia a obra dirigida por Laurent Cantet, mas também ser corroteirista. Ou seja, três em um. Que isso vá automaticamente garantir esse caráter de "vida como ela é", bom, talvez não. Mas certamente ajuda. E em si, o filme é uma joia não por possuir algum tipo de grande trama dramática de superação de dificuldades em uma escola de segundo de Ensino Médio de um bairro de classe trabalhadora de Paris (daqueles cheios de imigrantes, pessoas pretas, pobres e, em alguma medida, marginalizadas). Ou mesmo algum suspense emergente, que nos deixe vidrados. Mas por permitir que a gente mergulhe naqueles universos, e reflita sobre aquelas histórias, apenas escutando aqueles alunos curiosos, complexos, cheios de sonhos e de receios sobre uma existência futura que se avizinha.
E é importante que se diga, não é porque a produção se passa 80% dentro de sala de aula, com discussões no limite entre o divertido e o aborrecido, que não haja nada acontecendo. Há tudo. Em certa altura, um dos carismáticos estudantes questiona a sexualidade de François . "A gurizada tem dito por aí que você gosta de homens", instiga Boubacar (Boubacar Touré). Sem se alterar, o professor lhe questiona sobre se aquilo faz alguma diferença para o aprendizado. E, bingo, esse assunto nunca mais volta porque, de fato, o que importa é que o docente tenha uma adequada metodologia, ou uma pedagogia eficiente. O que nem sempre será possível e é interessante notar que, a despeito das boas intenções de François, ele também se mostrará, eventualmente, como um sujeito falho, que nem sempre é capaz de conduzir a turma de forma correta, como fica evidente no instante em que ele dá a entender que duas estudantes se comportam como "vagabundas".
E é dessas pequenas complexidades que emergirão os fragmentos mais movimentados e comoventes. Há, por exemplo, um momento em que os meninos debatem longamente sobre seleções de futebol - o que torna o ambiente mais pesado já que, num grupo racialmente miscigenado, pode ser bastante natural que os filhos de imigrantes africanos, tenham preferência pela Costa do Marfim ou pelo Mali, em detrimento da França. Com a coisa descambando, e o problemático Souleymane (Franck Kesta) sendo conduzido à diretoria. Em outro instante, o já citado Boubacar é perguntado sobre o que lhe daria "vergonha". A resposta dele deixa uma pulga atrás da orelha: "sentar na mesma mesa para almoçar com a mãe de Burak". O que nos leva a inferir a respeito da complexidade das relações religiosas, raciais e culturais como um todo. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, Entre os Muros da Escola segue como uma experiência engenhosa, que faz um verdadeiro raio x de uma sala de aula, com cada aluno funcionando como um indivíduo de personalidade distinta e com o professor sendo apresentado não como um Deus intocável, mas como uma pessoa cheia de imperfeições, mas que tenta fazer o melhor. Magnífico é pouco.
Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é AVIA, o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara e que tem como narrativa central o "encontrar-se e o perder-se no outro, as delícias e implicações disso" - como a artista baiana explicou em entrevista à Revista Noize. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito.
Peça central do trabalho, a deliciosa e sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Com co-produção de Rafael Ramos e parcerias com nomes como Liniker, Pitty, Juliana Linhares, Pitty e Iara Rennó, este também é um álbum muito mais colaborativo do que, por exemplo, o anterior ÀdeusdarÁ (2022), uma experiência mais solitária e intimista - e que foi o nosso vigésimo colocado na lista de melhores discos nacionais daquele ano. Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas.
De: Claude Chabrol. Com Sandrine Bonnaire, Isabelle Hupert, Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Cassell. Suspense / Drama, Alemanha / França, 1995, 112 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]
Houve uma vez, durante uma entrevista ao famoso crítico de cinema Roger Ebert, que Claude Chabrol afirmou: "sou um comunista, mas isso não significa que eu tenha que fazer filmes sobre a colheita do trigo". Talvez, em uma interpretação meio livre, o que o diretor quisesse dizer é que, para se fazer um filme político ou mais panfletário, que marque seu ponto (ou ideologia), não há a necessidade de ser tão explícito. Até mesmo porque a sutileza pode contribuir para que o debate seja fortalecido. Sim, filmes sobre greves de trabalhadores por condições mais justas ou sobre proletários sofrendo nas mãos de patrões certamente escancaram os ideias de quem os faz. Mas e que tal uma obra sobre uma empregada doméstica que, revoltada pelas sistemáticas humilhações que sofre de uma família burguesa, resolve se unir a uma amiga funcionária dos correios para dar cabo desses ricos afetados?
E, mais do que isso, que tal se colocássemos nessa equação uma dupla de atrizes cheias de personalidade - no caso, Sandrine Bonnaire e Isabelle Huppert -, e ainda envolvêssemos a produção em uma aura de mistério à moda Hitchcock (que é algo que Chabrol sempre fez muito bem), com acontecimentos excêntricos se espalhando pela narrativa? Sim, enquanto a personagem da Regina Casé no ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) simboliza a vitória do proletariado com uma arrojada entrada na piscina dos patrões (o que ela era impedida, mesmo sendo parte da "família"), em Mulheres Diabólicas (La Cérémonie), temos as protagonistas meio que ficando de saco cheio, invadindo a casa dos burgueses torpes que haviam recém demitido a diarista Sophie (Bonnaire) para, enquanto eles apreciavam uma ópera enfadonha de Mozart, sacarem suas armas e meterem bala. Extremo? Sim. Simbólico? Bastante.
Ok, por mais que não seja possível celebrar uma vitória plena na conclusão desse clássico moderno que completa 30 anos - baseado no livro de Ruth Rendell e que pode ser conferido na Reserva Imovision - há que se comemorar o espírito catártico, quase anárquico do desfecho, que junta um clima meio Laranja Mecânica (1971) com Violência Gratuita (1997). Chabrol sempre afirmou ser um sujeito fascinado por "assassinos sorridentes" e aqui essa parte da gargalhada entortada, em que a gente ri mas mais de nervoso do que qualquer outra coisa, cabe à debochada Jeanne, vivida com entusiasmo por Huppert. É ela que parece arquitetar, em suas entranhas, algum tipo de plano macabro que possa compensar Sophie das seguidas humilhações sofridas por ela, vinda de uma família de quatro pessoas (pais com dois filhos), com seu casarão onipresente, de jardim largo. E por mais atenciosa e estranhamente sorridente que a patroa, a afetada dona de uma galeria de arte chamada Catherine (a sempre bela Jacqueline Bisset) seja, parece haver algo muito errado no fato de ela nunca conseguir manter uma diarista.
Claro que Sophie também tem os seus segredos. Em um mundo em que nem o mais favorável espírito meritocrático a salva do analfabetismo - o que ela esconde com receio e vergonha e que também dá conta das desigualdades vividas naquele cenário -, a jovem se mantém silenciosa e reservada, enquanto prepara os pratos cheios de proteína para aquela família que só tem dinheiro e mais nada. Mesquinha, Catherine sequer parece perceber o absurdo de apontar onde fica o quartinho da empregada, ao passo que seu marido mais ou menos truculento Georges (Jean-Pierre Cassell) não vê problema algum em desferir um tapão no rosto de Jeanne, quando ele desconfia de que ela esteja abrindo suas correspondências. Esses abusos justificam a violência desmedida? Talvez não. Sophie e Jeanne tem uma série de esqueletos no armário e traumas passados, que revelam que elas também não são flor que se cheire - o que, por sinal, é ótimo em uma narrativa que evita o maniqueísmo. Ainda assim, o filme tem força por lembrar às elites a importância de não meter demais o louco. Porque o proletariado pode se revoltar. E aí as forças, no mínimo, vão se equilibrar.
De: Tim Mielants. Com Cillian Murphy, Emily Watson, Eileen Walsh e Zara Devlin. Drama, Irlanda / Bélgica / EUA, 2024, 98 minutos.
Não são poucas as cenas em que assistimos Bill Furlong (Cillian Murphy), o protagonista de Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These), lavando freneticamente as mãos. É algo que faz total sentido, já que o sujeito é um comerciante de carvão do interior da Irlanda que, ao final de mais um dia de trabalho, tem como ritual sagrado essa higienização. Só que, para além do sentido de se limpar antes de ir ao encontro da família, parece haver ali, naquele esfregar que parece evoluir de maneira sôfrega, uma alegoria a respeito da tentativa de se livrar de um outro tipo de sujeira. Algo que vai ficando claro - por mais sutil que tudo seja - conforme a narrativa se desenrola e de como entendemos, em alguma medida, os traumas de Bill do passado. Especialmente aqueles que envolvem o complexo relacionamento com a sua mãe. Entre memórias dolorosas que vêm e vão, o homem parece considerar a possibilidade de, no presente, minimizar esse sofrimento.
Claro que nem tudo será fácil. Ao menos não de maneira óbvia - ainda mais quando percebemos qual a ponta forte nesse jogo de poder entre um trabalhador e as instituições religiosas que operam na pequena New Ross. O ano é 1985 e o Natal se aproxima. Bill tem uma série de entregas de cargas de carvão, já que o frio parece crescer de maneira palpável - e em obras do tipo, não deixa de impressionar como as paisagens enevoadas, as estradas cinzentas e o céu sempre nublado, parecem contribuir para uma espécie de melancolia onipresente, que se espalha para além da trama. Para as bordas, para os limites. Que tornam tudo mais desolador. E tenso. Ainda que essa tensão, esse medo, não fique exatamente claro. Há um tipo de horror que parece incrustado naquela rotina - e que parece rondar a vida um tanto simplória do protagonista, um homem bem casado, com a amorosa Eileen (Eileen Walsh) e pai de cinco filhas.
Em certa altura, Bill faz uma entrega em um convento local - um espaço taciturno, fechado, pouco convidativo. Enquanto está no galpão despejando os sacos de carvão, consegue espionar uma jovem sendo entregue à força no local. Ela implora aos gritos para não ficar ali. Chama por sua mãe ou por alguém que lhe socorra. Bill fica paralisado. Não consegue agir. E assim permanece, meio letárgico. Olhando pela janela, enquanto a vida acontece. Por meio de flashbacks, descobriremos que sua versão menino era a de uma criança dócil, fã livros de Charles Dickens, de música e de quebra-cabeças. Em suas memórias, perceberá aos poucos como a infância relativamente feliz ao lado de sua mãe Sarah (Agnes O'Casey), escondia segredos que refletiriam no presente. E certamente não é por acaso que ao encontrar uma jovem escondida no mesmo depósito de carvão do convento, dias depois, ela revele que se chama Sarah (Zara Devlin). E que está grávida de cinco meses.
[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Quem já assistiu ao ótimo - e sempre impressionante - Em Nome de Deus (2002) que, infelizmente não está disponível em nenhuma plataforma de streaming -, não demorará para compreender do que se tratam aqueles conventos. Famosas na Irlanda, especialmente no século passado, as Lavanderias Madalena - um tipo de asilo católico para mulheres - funcionavam como um espaço para onde eram enviadas mulheres supostamente pecadoras ou depravadas. Ou mesmo órfãs, abandonadas pelas famílias, vítimas de abuso (sim), prostitutas e outras. Lá, além de terem sua liberdade cerceada, eram escravizadas e humilhadas, com jornadas de trabalho excruciantes e sem espaço para discussão das penas. Sarah, a jovem grávida, tenta escapar de todas as formas desses rituais de tirania travestidos de "amor de Deus" e busca por salvação. Em confronto com a madre superiora (e asquerosa), Mary (Emily Watson), a religiosa tentará comprar o silêncio de Bill. Mas talvez ela não possa comprar as atitudes. E, bom, pode ser o caminho para que as portas, vagarosamente, se abram.
De: Bong Joon-ho. Com Robert Pattinson, Steven Yeun, Mark Ruffalo e Toni Collette. Ficção Científica / Comédia / Aventura, Coréia do Sul / EUA, 2025, 138 minutos.
"Ei, Mickey, qual a sensação de morrer?". Essa é uma pergunta que o protagonista de Mickey 17 (Mickey 17), vivido por Robert Pattinson, ouve diversas vezes no transcorrer da história. Como é esse sentimento? "Digamos, você está acostumado com isso". E, bom, esse dilema poderia marcar o ponto de partida de mais uma ficção científica com um viés mais existencialista - e que é o tipo de projeto que, em muitos casos, adoro. Aliás, não são poucos os exemplos bons de distopias do tipo - de bate-pronto lembro do ótimo Lunar (2009), que deve estar escondido em alguma plataforma de streaming e que fez sucesso antes de Black Mirror ser o que é hoje. Só que essa coisa de o mundo em 2025 operar como um grande Black Mirror em edição estendida traz também um problema: parece mais difícil sermos surpreendidos. Ou nos impressionarmos. Ainda mais ao sabermos que as consecutivas mortes de Mickey são apenas parte daquele contexto. Como é partir desta pra uma melhor? Ou, mais do que isso, como é ser simplesmente descartado? São perguntas que param no meio do caminho.
Porque o caso é de que nessa obra de Bong Joon-ho - sim, o nome por trás não apenas do oscarizado Parasita (2019), mas também de outras joias do cinema alternativo, como Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017) -, pouco importa a morte, a vida ou as possíveis reflexões sobre luto, memória, futuro ou passado. O capitalismo tardio é um problema de AGORA e é nele que o livro do romancista Edward Ashton, escrito em 2022, parece centrar sua força. Sim, as questões tecnológicas estão todas ali - e as operações que envolvem esses avanços podem até gerar um certo impacto (especialmente do ponto de vista do mercado, dos empregos e da substituição do homem pela máquina). Só que, nesse sentido, diferentemente do que ocorre em experiências mais metafísicas, aqui temos o exame da necessidade apenas de sobreviver. De ascender. De forma inadiável e individualista. Nem que para isso seja necessário morrer. Para viver. Num paradoxo legítimo do século.
Em alguma medida, esse tipo de conflito em um cenário pós-apocalíptico, com pessoas tentando sair de um espaço de vulnerabilidade a qualquer custo, já havia sido explorado no citado O Expresso do Amanhã. Aqui, Mickey é um sujeito de vida simples, um empresário do baixo escalão que, desesperado com a perseguição de um agiota com cara de poucos amigos que deseja a sua cabeça numa bandeja, resolve se inscrever em uma expedição espacial em um cargo nomeado de "dispensável" - que é o integrante da tripulação incumbido de realizar uma série de tarefas perigosíssimas no espaço e em novos planetas. Tarefas que podem resultar na sua morte, o que não chegará a ser exatamente um problema, já que ele já teve uma morte previamente induzida (de seu eu real), com sua memória sendo preservada e restaurada, o que lhe permitirá uma espécie de retorno infinito a partir de um processo de reimpressão (em que ele ressurge como um clone, com mente reimplantada e tudo). Sim, parece estranho. É. E até aí tava tudo mais ou menos interessante.
Só que não demora para que Mickey desenvolva um sentimento de paixão - algo legitimamente humano - pela agente de segurança Nasha (Naomi Ackie), que é outra viajante que está na expedição em direção do gelado planeta Niflheim. E, como dei a entender anteriormente, as coisas dentro da nave poderiam ser bastante estranhas se não fosse a vida real. Do mundo que fica pra trás pouco se sabe, que não seja o fato de o nosso planetinha ter se tornado uma espécie de Terra de ninguém. A replicação de clones não está permitida em solo terrestre, até mesmo pela controvérsia que poderia gerar (e é uma pena que não haja mais espaço para esse debate). Ainda assim o congressista Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), que parece uma mistura de Elon Musk com Donald Trump (bem apropriada ao momento), deseja levar seu plano de colonização adiante. Arrumando uma brecha para que o procedimento da cópia humana role solta no espaço. E, bom, depois disso o filme envereda pra ação, pra perseguição, com clones dos clones em confronto, um romance torto que a gente nunca se importa inteiramente, um líder lunático tentando dominar o universo, uns bichos meio estilo Star Wars bem amigáveis e um sem fim de alegorias caóticas que poderiam ser resumidas com um "veja bem, galera, talvez pudéssemos ser melhores do que isso". Só que é um filme que morre pelo caminho. E não há clone que resolva.
De: Katatlin Moldovai. Com Ágnes Krasznahorkai, Soma Sándor, Tunde Skovran e Áron Dimény. Drama, Hungria, 2023, 104 minutos.
Ana (Ágnes Krasznahorkai) é uma professora exemplar de Artes e Literatura do Ensino Médio. Tem uma reputação ilibada, é respeitada pelos demais docentes e muito querida pelos alunos. Aliás, seus resultados são excelentes não apenas em sala de aula, local em que ela é capaz de gerar interesse genuíno dos estudantes por autores e poetas - com métodos divertidos que tornam as aulas sobre Whitman e Baudelaire mais leves -, mas também após a conclusão do terceiro ano, em vestibulares na sequência da vida acadêmica. Desde que ela começou a lecionar há mais de 10 anos no educandário húngaro Balassi é assim. Só que lá pelas tantas, Ana comete um "grave" erro. Ela resolve sugerir aos seus pupilos - um grupo de jovens na faixa de 17 anos -, uma atividade extracurricular: assistir ao filme Eclipse de Uma Paixão (1995), que conta a história dos autores dos escritores Verlaine e Baudelaire que, não apenas foram contemporâneos, mas viveram um tórrido relacionamento.
Aparentemente não há nenhum problema ou algo que impeça adolescentes próximos de atingir a maioridade assistirem a esse tipo de conteúdo, né? Esconder a homossexualidade, a diversidade das preferências sexuais ou tentar fazer com que os jovens passem ao largo de obras do tipo, simplesmente fará os gays e as lésbicas desaparecem da face da Terra, né? Claro que não. Sempre haverá um pai de família preocupadíssimo com as suas crianças - aquele "cidadão de bem" exemplar, que acha que se seu pobre filhinho tiver contato com produções como a citada acima, ele se converterá automaticamente em um ouvinte assíduo da Lady Gaga, um seguidor de Ru Paul e suas drag races e um defensor contínuo da cultura woke e do gayzismo cultural. Sim, pessoas trans usando banheiros unissex costuma ser uma preocupação permanente do conservador reacionário que adere à extrema direita. Enquanto o mundo derrete - e não apenas do ponto de vista ambiental.
Bom, não é preciso dizer que o ótimo Código de Ética (Elfogy a Levego) - confesso que o título em português não me agradou muito -, é atualíssimo. Ainda mais em tempos em que pais e mães preocupadíssimos com aquilo que seus filhos consomem (mais em sala de aula do que na internet, imagino), se sentem autorizados a interferir em ementas ou conteúdos programáticos de instituições de ensino - e basta lembrar do recente caso envolvendo o ótimo livro O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório, e toda a celeuma causada na nossa adoentada sociedade, pra percebermos que o que se vê no filme, que está disponível pra aluguel em diversas plataformas de streaming, é de um realismo atroz. É mais ou menos aquilo que encontramos no também formidável curta metragem indicado ao Oscar O ABC da Proibição dos Livros (2024) ou mesmo, de forma meio enviesada, no espetacular filme romeno Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021).
Ana apenas indica um filme. Que os alunos sequer são obrigados a assistir. Mas Viktor (Soma Sándor), um jovem de grande sensibilidade e que tem um interesse genuíno por teatro e poesia, resolve conferir a obra no espaço privativo do seu quarto. Tudo corre mais ou menos bem até o seu pai entra no quarto e o flagra assistindo a produção. "Meu Deus, dois homens se amando?". Ok, ele não verbaliza isso. Mas pensa. E vai cobrar uma posição da escola sobre o fato de uma professora estar passando pornografia, pederastia ou o que quer que seja para os estudantes. Há um pano de fundo interessante sobre o educandário estar prestes a completar 150 anos de atividades e estar na dependência da liberação de uma linha de crédito de possíveis investidores para a sua continuidade - sendo o pai de Viktor uma pessoa influentíssima nesse sentido. "Mandei meu filho para a escola para ter uma educação adequada", esbraveja na sala da diretora esse provável seguidor apaixonado de Viktor Órban e do Escola Sem Partido. A verdade é que só muda o País. Enquanto as calotas polares derretem, a guerra comercial escala e os imigrantes são tratados como a escória humana, alguns pais acreditam em lavagens cerebrais de esquerda, em comunismo abstrato ou em ideologia de gênero. O mundo anda pra trás. E nós que lutemos.
De: Alfred Hitchcock. Com Jane Wyman, Marlene Dietrich, Richard Todd e Alastair Sim. Suspense / Drama, Reino Unido, 1950, 110 minutos.
Muitas vezes tido como um filme menor de Alfred Hitchcock, Pavor nos Bastidores (Stage Fright) possui uma camada mais abaixo que parece dialogar perfeitamente com os cenários labirínticos da casa de espetáculos em que boa parte da trama se desenrola. E que envolve o poder da atuação. Da persuasão. Da arte de interpretar papeis e, em última análise, enganar o público. Filmes de suspense com triângulos amorosos, mulheres fatais, investigadores charmosos, assassinatos e motivações escusas não eram uma novidade nos anos 50 - e o próprio diretor inglês já havia encarreirado alguns clássicos no gênero. Mas aqui há uma alegoria meio óbvia sobre papeis se modificando o tempo inteiro, como no caso de Eve Gill (Jane Wyman), a aspirante a atriz que, mais adiante se converte não apenas em uma jornalista improvisada, mas também em uma empregada.
Claro que esse comportamento camaleônico tem um propósito: o de proteger o namorado Jonathan Cooper (Richard Todd), que se torna o principal suspeito do assassinato do marido da excêntrica cantora Charlotte Inwood (Marlene Dietrich), com quem estaria tendo um caso. Mas claro que num ambiente teatral e de ilusões como o dos palcos, nada será o que parece. Quando o filme - que é inspirado em um romance de 1947 escrito por Selwyn Jepson - inicia, Jonathan interrompe um ensaio de Eve para lhe relatar um grave caso: o de que Charlotte o teria visitado após assassinar o próprio marido, com o vestido sujo de sangue. Para auxiliá-la, o sujeito teria ido até a casa da cantora para buscar uma outra muda de roupas, tendo na ocasião a ideia de modificar o cenário, mexendo em moveis, quebrando portas, espalhando papeis para dar a impressão de ter havido, ali, um assalto brutal.
Só que, enquanto o marido de Charlotte jaz no chão, Jonathan é surpreendido por Nellie Goode (Kay Walsh), a governanta que retornava a casa e que, talvez o tivesse flagrado lá dentro. Em resumo, ele consegue fugir da polícia e agora precisa da ajuda de Eve, que o leva até a casa do seu pai (Alastair Sim), um sujeito bem humorado e extravagante que reside na costa, em uma residência idílica. Só que enquanto protege o namorado, Eve inicia uma espécie de investigação a parte. Primeiro faz amizade com o detetive Wilfred Smith (Michael Wilding). Após, finge ser uma repórter que está escrevendo uma matéria sobre o caso, subornando Nellie para que ela se finja de doente, apresentando Eve como a prima distante Doris, para que esta passe a trabalhar com Charlotte. Esse vai e vem parece confuso e parte do charme está justamente no esforço da protagonista em modificar de papel a cada novo encontro - o que faz a narrativa se desenrolar.
Por fim, Eve acha um tanto curioso o fato de Charlotte ter recém se tornado viúva, o que não a impede de se apresentar nos palcos. "O show tem de continuar", afinal - e é inegável o impacto da ambígua cena em que a personagem de Dietrich se apresenta em um palco onírico, cheio de plumas e outros adereços, ao som de The Laziest Gal in Town, de Cole Porter (aquela dos clássicos versos "não é porque eu não deveria / Não é porque eu não faria / E, você sabe / Não é porque eu não poderia / É simplesmente porque / Eu sou a garota mais preguiçosa da cidade"). Com idas e vindas, excelentes interpretações e ótimas surpresas, Pavor nos Bastidores seria criticado, mais tarde, por enganar o público até demais, utilizando como recurso um flashback pouco confiável (pra não dizer falso). Ainda assim, se levarmos em conta o uso do próprio teatro como símbolo da arte - escapista ou não - e de como nos refugiamos por duas horas nesse espaço tão artificial quanto elegante, o fato de sermos deliberadamente manipulados, nos parecerá apenas mais um truque certeiro de Hitchcock. Eu passo pano.
Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu. Uma varanda à beira-mar e uma espécie de retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, o sensual e noturno Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo (ou mesmo de alguém que ainda estava tateando na busca por um caminho na carreira). Só que qualquer incerteza parece definitivamente apagada com a chegada do terceiro álbum, o ótimo Coisas Naturais - que é resultado de uma série de gravações fluídas, feitas em um sítio no interior de São Paulo, na companhia de seus antigos parceiros d'A Outra Banda da Lua, André Oliva e Matheus Bragança, além do produtor musical Janluska.
Foi esse time que auxiliou Marina nesse processo de reconexão artística - uma imersão que envolveu outros músicos, todos com bastante tempo pra criar, pra exercer o "ócio criativo". Em entrevista para a revista Rolling Stone, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa do começo da carreira. "Mais norte de Minas" e mais Brasil enquanto um País latino. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase. O público agradece.
De: Francis Ford Coppola. Com Adam Driver, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Giancarlo Esposito e Shia LaBeouf. Ficção Científica / Drama / Fantasia, EUA, 2024, 138 minutos.
Metáforas tolas, diálogos e narrações em off vazias, dificuldade de compreender qual exatamente é a crítica, ausência de qualquer propósito e um senso de autoimportância fetichista e irritante. Sinceramente, são tantos os problemas em Megalópolis (Megalopolis) - o projeto megalomaníaco de Francis Ford Coppola, que agora chega às plataformas de streaming para aluguel -, que é difícil saber por onde começar. A história é que o famoso realizador de clássicos inadiáveis como O Poderoso Chefão (1972) e Apocalypse Now (1979) levou quarenta anos para conceber essa ambiciosa produção. Que custou cerca de US$ 140 milhões do próprio bolso - em um dos maiores casos de desperdício deliberado de dinheiro que se tem conhecimento. Enquanto assistia ao interminável filme, revirava tanto os olhos frente ao absurdo, que eles quase foram parar na minha nuca. É algo digno de dor de tão ruim. Quase de pena, já que a expectativa era alta.
E, vamos lá, eu não tenho problema algum com obras complexas ou mais eventualmente filosóficas e existencialistas - e que exigem do espectador uma pequena saída da zona de conforto, para que haja um maior envolvimento. Esse até é um processo bastante natural pra quem consome produções do circuito alternativo - e não quero soar pedante aqui. Mas o caso é que a grandiosidade aqui é apenas oca. Quase infantil. "O fim da raça humana será morrer de civilização" comenta alguém, citando outra pessoa (que não lembro quem) em certa altura, como que tentando resumir o que está nas entranhas do filme. Se o futuro parece incerto e sombrio, cabe aos sujeitos do presente tentarem se prevenir. Lá no meio, se a gente cavoucar bastante, vai parecer haver, em cada divagação supostamente épica de Cesar Catilina (Adam Driver), uma crítica ao capitalismo, ao fascismo, à sociedade de consumo hedonista, à burguesia e a sua sede de poder. Mas, assim, nunca fica exatamente claro.
Em tempos em que a realidade sempre será pior do que a mais lamentável distopia, assistir a disputas de poder familiares, talvez shakespereanas (mas sem nenhum charme), geram apenas bocejos. Sim, nesse País alternativo que é uma Nova York retrô futurista - chamada de Nova Roma -, os poderosos e aristocratas têm nomes que aludem aos romanos (Cesar, Cícero, Crassus, Clódio), vestindo togas, adereços e adotando cortes de cabelo de séculos atrás, mesclados com capas e outros enfeites que parecem de algum lugar entre o início do século passado e um futuro já meio kitsch. E será em um evento televisionado por uma emissora sensacionalista, que Cesar apresentará para os moradores da cidade, incluindo o prefeito Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito), uma espécie de substância milagrosa, de nome Megalon, que possibilitará desbloquear o potencial artístico da cidade, que estaria meio preso em visões políticas ultrapassadas e em uma inércia galopante.
Cesar, esse jovem meio idealista, encontrará resistência de Cícero que não acredita que o caminho seja o das grandes revoluções. Ainda assim, o sujeito receberá apoio, na surdina, de Julia (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito (para desgosto dele). Em paralelo, outras figuras (nem tão) relevantes se movimentarão em suas ambições, estando entre elas a apresentadora de TV Wow Platinun (Aubrey Plaza), seu tio milionário Hamilton Crassus (Jon Voight), seu primo Clodio (Shia LaBeouf) e o motorista e assistente de Cesar, Fundi (Laurence Fishburne) - e, sério, acho que não citei até aqui 20% dos personagens que surgem, aqui e ali, nesse emaranhado. No mais, existem uma série de supostas ousadias estilísticas que não servem pra coisa nenhuma. Uma delas, a principal: Cesar é capaz de parar o tempo. Mas nunca sabe o quê fazer exatamente com essa habilidade, que se converte ali adiante na mais superficial alegoria. O tempo está passando depressa? Ou não? Qual a ideia por trás? Em certa altura um satélite russo está para cair na Terra, justamente em Nova Roma e não pode haver nada mais anos 80 do que um satélite russo caindo em solo estadunidense.
Há ainda outras metáforas vazias, como o instante em que estátuas que representam figuras da Justiça começam a ruir - uau, a decadência jurídica do tecido social -, ou aquela em que uma virginal cantora pop surge em cena como uma espécie de representante da pureza perdida nessa sociedade em declínio (que mais adiante só se revelará completamente hipócrita, naquela que talvez seja a sua única boa sequência). É tudo tão desconectado, com cada ponto sendo unido sem muita coerência, que a impressão que temos é a de estar diante de uma grande esquete de teatro amador e alternativo em que, em certa altura, não entendemos coisa com coisa. E só torcemos pra acabar logo pra poder ir embora. Com interpretações ruins - especialmente um Adam Driver empolado, verbalizando cada frase com uma solenidade opaca - e com personagens que a gente não dá a mínima, o filme ainda desperdiça aquela que poderia ser a sua fortaleza: no caso, a parte técnica. Já que a impressão, em certos planos, é de estarmos diante de uma cidade feita com uma versão beta de IA. A gente não tem como parar o tempo, assim como Cesar. Então resta lamentar as quase duas horas e meia cinéfilas desperdiçadas nessa bomba.
De: Cameron Crowe. Com Kate Hudson, Patrick Fugit, Billy Crudup, Frances McDormand e Philip Seymour Hoffman. Comédia, EUA, 2000, 122 minutos.
"Blue jean baby, LA lady / Seamstress for the band / Pretty eyed, pirate smile / You'll marry a music man". Existem alguns filmes que possuem algum tipo de mágica meio inexplicável, que faz com que pareçam envoltos em uma névoa nostálgica. Em linhas gerais essas costumam ser obras sonhadoras - mas um tipo de sonho meio vida real, de memória afetiva (ainda que nem saibamos direito o por quê), que vai direto ao coração. Vocês que são fãs de cinema, certamente já sentiram isso. Aliás, hoje em dia no mundo das artes existe todo um mercado que evoca esse tipo de saudade tão carinhosa quanto melancólica. De lembrança sombria, mas que entusiasma. A nostalgia, ao cabo, vende. E devo confessar que é justamente esse o tipo de sentimento que me invade, a cada vez que reassisto o Quase Famosos (Almost Famous), filme de Cameron Crowe que reestreou no Max e que completa 25 anos de lançamento nesse 2025.
Pra quem viria a se tornar jornalista - meu caso -, tendo passado parte da juventude acumulando edições de revistas como Showbizz, SET e Bravo!, o sonho de integrar uma editoria de cultura era quase onipresente. O leitor, em muitos casos, queria ser aquelees repórteres. Estar naqueles ambientes - de bastidores, tensos e vívidos. O tipo de sonho juvenil que é justamente aquilo que motiva o jovem William Miller (Patrick Fugit) a rabiscar os primeiros artigos sobre rock, que enviaria para fanzines locais de San Diego. Aos 15 anos, William sempre foi vigiado de perto por sua mãe superprotetora Elaine (Frances McDormand) - uma viúva metade do tempo conservadora e na outra hippie -, que fica de cabelos em pé com a possibilidade de o caçula bater asas e enveredar por esse universo de cultura pop, de estrada, de turnês, de loucuragem. Só que o caso é que já era tarde. Quando a irmã do rapaz sai de casa para ser aeromoça (fugindo assim das amarras da mãe), ela lhe deixa um pequeno tesouro: sua coleção de discos de vinil, cheios de obras-primas que influenciariam a vida de William (na juventude interpretado por Michael Angarano) pra sempre.
O ano é 1973. Época de efervescência cultural, de contracultura e de veículos de imprensa importantes no meio - como no caso da famosa revista Rolling Stone. Aliás, é justamente um artigo sobre um show do Black Sabbath, escrito por William, a pedido de Lester Bangs (o sempre saudoso e ótimo Philip Seymour Hoffman) que chama a atenção dos editores do periódico. Que lhe contratam como freelancer para que ele acompanhe a turnê dos emergentes roqueiros do Stillwater - com quem o protagonista havia tido contato nos bastidores da apresentação da banda de Ozzy Osbourne. Foi a partir da amizade improvisada com a groupie Penny Lane (Kate Hudson) que William consegue entrar no backstage. "Não esqueçam que ele é o inimigo!" brada o vocalista do Stillwater diante da investida do adolescente, que se empenha em juntar material pra reportagem (como que condensando toda a imprensa cultural em um mesmo balaio). É o início de uma relação bonita e complexa não apenas com Penny, mas também com a banda, que tem em seu centro o sedutor guitarrista Russel Hammond (Billy Crudup).
Em linhas gerais esse pode ser considerado o filme de amadurecimento por excelência. Em meio as ligações insistentes da mãe - que tem dificuldade de conversar com o rapaz (resumindo seus recados telefônicos a um comovente, angustiado e engraçado "não use drogas") -, o ônibus da banda percorre uma série de cidades, enfrentando desafios variados, que vão de produtores mal intencionados, públicos nem sempre convidativos e, especialmente, as disputas internas de egos e vaidades, que vão deteriorando aos poucos as relações de todos. Olhando com olhos curiosos de quem vive várias primeiras vezes - beijos, sexo, bebida, show de rock, viagem longa -, William, um sujeito nada cool e com cara de parecer mais velho do que de fato é, empreenderá uma jornada ao infinito na tentativa de entrevistar Russell, que nunca parecerá realmente disponível (com suas oscilações de humor, que vão da instabilidade ao sentimentalismo na mesma sequência).
E como de praxe nos filmes de Cameron Crowe - e este tem claríssimas tintas autobiográficas -, temos na trilha sonora uma de suas fortalezas, com cada uma das músicas de artistas diversos, como, Velvet Underground, Rod Stewart, The Who, Cat Stevens, Led Zeppelin e Simon & Garfunkel, contribuindo para dar o tom da narrativa. Para explicar, ainda que por linhas menos óbvias, esse ou aquele momento. E é aí que chegamos àquele que é o momento mais comovente da produção, que é o instante em que, depois de um desentendimento homérico e uma noite sem fim de bebedeira e drogadição de Russell, os viajantes se unem no ônibus para cantar, no alvorecer, o clássico Tiny Dancer, de Elton John. Um momento de comunhão que ficaria famoso não apenas por sua beleza lúdica e polida, mas também porque os executivos não concordavam que essa parte, feita meio que no improviso, permanecesse no corte final. Ao cabo esse é uma sequência de união pela música, que reforça esse ideal mesmo nas adversidades. E que nos ajuda, como espectadores, a olhar para todos aqueles sujeitos - desajustados, fraturados, incertos, cheios de medos futuros e anseios presentes - como aquilo que de fato são: apenas humanos. "Você está em casa", diz Penny a William em certa altura. É como todos nós nos sentimos. Comovente.
Vamos combinar: se existe alguém versátil no mundo da música essa pessoa é o Seu Jorge. Capaz de trafegar por estilos brasileiros variados, como samba, funk e MPB, o artista jamais ignora o poder da conexão com públicos estrangeiros e as possibilidades de levar a sua arte para além dos limites geográficos do País - e basta pensar nas versões de David Bowie para a trilha sonora de A Vida Marinha com Steve Zissou (2003), de Wes Anderson, ou nas canções em espanhol ou italiano da época de Cru (2004) para que essa certeza só aumente. Só que, ainda assim, talvez faltasse em sua discografia aquele registro que condensasse todas as possibilidades da nossa música. E que fosse capaz de representar toda a nossa diversidade e riqueza culturais. O que ele parece alcançar com Baile à la Baiana, seu sétimo álbum de estúdio.
"Esse disco é uma junção de influências que venho acumulando ao longo dos anos, misturando minhas raízes cariocas com a força da música preta da Bahia", mencionou o músico em entrevista à Rolling Stone, afirmando ainda que esse é um trabalho para dançar, se divertir e celebrar a vida. De essência festiva, mas sem ignorar as questões sociais que costumam perpassar as suas músicas, o disco se converte rapidamente em uma experiência de altíssima voltagem. A inspiração, de acordo com o artista, teria vindo depois de uma visita ao espaço cultural Galpão Cheio de Assunto, em Salvador, um local que abrigava música, exposições e outras expressões de convergência criativa. O resultado é uma mistura de soul, funk, afropop, carimbó e samba rock, que resultam em uma sonoridade harmônica e enérgica, sendo impossível resistir à joias como Sábado à Noite, Batuque, Lasqueira, Gente Boa se Atrai e Sete Prazeres.
De: Justin Kurzel. Com Jude Law, Nicholas Hoult, Tye Sheridan e Jurnee Smollett. Drama / Policial / Suspense, EUA, 2024, 116 minutos.
"É difícil um homem honesto ganhar essa quantia de dinheiro no nosso País. É porque esse não é mais o nosso País". Sim, é meio inevitável termos uma sensação meio que de déjà vu quando assistimos ao diálogo acima, entre dois supremacistas brancos dos Estados Unidos, e que é parte do filme A Ordem (The Order), que chegou não faz muito à plataforma da Amazon. Após um assalto bem sucedido em um banco de uma pequena cidade do interior do Idaho, a dupla divaga sobre aquilo que eles acreditam ser o problema da sociedade americana, que estaria envolta em uma suposta decadência moral, que resulta em perda de espaço por parte de homens brancos, héteros, cidadãos de bem. Que só querem formar suas famílias, ir na Igreja, rezar, humilhar minorias, dar um ou outro tiro de espingarda, explodir algo ou alguém que desagrade. Nada de muito diferente daquilo que prega o redneck fã do Trump, em seu dia mais comum.
Só que no filme de Justin Kurzel, que é inspirado em eventos reais, não estamos em 2025. Ou numa cruzada contra imigrantes que retiram vagas de emprego provavelmente arrombadas de moradores do Arkansas e do Texas. Aqui, estamos em 1983 e quando essa boa obra começa, a impressão que temos é a de que acompanharemos um daqueles suspenses policiais típicos dos anos 90, sobre o agente do FBI em fim de carreira, que vai para o interior se aposentar e que se depara com as maiores atrocidades. Sim, em partes é mais ou menos isso. Mas a violência não é apenas a violência em si. Com um serial killer meio desvairado matando sem muito critério. Tanto que quando o policial veterano Terry Tusk (Jude Law) chega ao pequeno Condado de Kootenai, ele é surpreendido não apenas com o relato do jovem xerife Jamie (Tye Sheridan), que menciona a existência de uma quadrilha de falsificadores de dinheiro, mas com o fato de que esse grupo pode ter ligações com células neonazistas e antissemitas, que estariam se fortalecendo nas redondezas.
As coisas começam a se encaixar quando Jamie e Terry investigam o assassinato de um homem que teria conexões com esses grupos de ódio - se deparando com um cadáver enterrado em uma cova rasa. De forma concomitante a esse crime e aos roubos de banco, a dupla também precisa lidar com os seguidos atentados à bomba em sinagogas, em sex shops ou casas de cinema adulto - espaços de suposta "perversão" que os hipócritas da extrema direita costumam abominar (ao mesmo tempo em que mamam os parças na broderagem). Claro que não vai demorar para que os investigadores cheguem à uma Igreja existente em uma comunidade afastada, onde o pastor local lhes informa sobre a dupla Bruce (Sebastian Pigott) e Gary (George Tchortov), que teria sido expulsa da ordem das Nações Arianas por causa da prática de crimes como falsificação. O fato de a Igreja local ter uma série de imagens de suásticas e de letreiros estilo white power? Capaz, tudo certo. Só um detalhe. Eles não incomodam ninguém.
Só que o caso é que os roubos de grana alta integram um plano ainda maior. E envolvem um jovem líder de nome Bob Mathews (Nicholas Hoult), que pregava uma espécie de revolução supremacista nos Estados Unidos, que envolveria o extermínio de pretos, judeus, comunistas e outras minorias, que estariam tornando a sua raça "impura". Sim, em 1983 o papo era o mesmo pregado nas altas rodas republicanas da atualidade. Esse sonho de uma América higienizada, livre de misturas raciais, com uma meia dúzia de famílias brancas, bem nascidas e agrupadas, se perpetuando infinitamente. "É hora de recuperar a terra que foi prometida aos nossos pais. Senão onde estaremos em dez anos?", brada Bob, durante uma pregação, em um dos momentos mais impressionantes. Talvez esse filme fosse menos perturbador se aquilo que assistimos estivesse em um passado distante, agora apenas enterrado. Que as ideias propagadas em panfletos bizarros, como o tal Turner Diaries fossem motivo apenas de estudo para que a história nunca mais se repetisse. Mas em tempos em que grupos de incels e de redpills se sentem pertencentes a coletivos que lhes prometem um retorno a essa terra prometida, que homens médios de autoestima baixa encontram propósito na culpabilização do outro como forma de compensar as suas próprias falhas ou fraquezas, o caso é que a alegoria se torna assombrosamente real. O que faz com que essa obra cresça ainda mais.
De: Pedro Almodóvar. Com Juliane Moore, Tilda Swinton, John Turturro e Alessandro Nivola. Drama, Espanha / EUA, 2024, 107 minutos.
Vamos combinar que não é de hoje que Pedro Almodóvar vem numa toada mais melancólica em suas obras. Talvez seja a experiência. Ou o senso de finitude. O que faz com que suas produções mais recentes venham banhadas em momentos mais introspectivos - ou menos caricatos. Claro que os temas ligados à morte (e ao medo dela), à memória (coletiva ou não) e a busca por uma certa paz de espírito para seguir adiante, nunca deixaram de fazer parte dos seus filmes. Em meio às cores quentes e saturadas e aos dramas novelescos, essa consciência de que somos seres complexos, cheios de medos, desejos e traumas nem sempre bem resolvidos, sempre esteve presente. Mas é preciso que se diga que nos recentes Dor e Glória (2019) e Mães Paralelas (2021) parece haver um tipo de silêncio mais reinante. Que preenche espaços que, anteriormente, talvez fossem ocupados por barulhos histriônicos. Vai saber.
O caso é que essa impressão, proposital ou não, combina bastante com O Quarto ao Lado (The Room Next Door), que, baseado em obra de Sigrid Nunez, chega agora em diversas plataformas de streaming. Em entrevistas, o diretor chegou a mencionar a dificuldade que temos, como seres humanos, de falar a respeito da morte, por mais inevitável que ela seja "Não é natural que algo que esteja vivo deva morrer", comenta ainda na narração em off do início da projeção, a personagem Ingrid (Juliane Moore) uma escritora de best sellers que está em uma livraria, para a sessão de lançamento de sua nova publicação. Essa parece ser a deixa ideal para que, ali, naquele ambiente movimentado por fãs, uma antiga conhecida lhe dê uma notícia um tanto trágica: sua amiga Martha (Tilda Swinton), uma antiga colega de trabalho de quem ela meio que perdeu o contato, está com um câncer terminal.
Ingrid resolve visitar Martha. E é desse reencontro provocado por uma situação adversa que se estabelecerá um vínculo que determinará o futuro de ambas as mulheres. Sim, falando assim pode não soar tão interessante. Mas o que o diretor espanhol faz aqui é um pequeno tratado sobre estoicismo, esperança e autopiedade nos tempos atuais. Tempos, aliás, de avanço da extrema direita e de uma agenda antiambientalista que, de uma maneira bastante curiosa, se encaixará mais adiante na história. Especialmente após a aparição de Damian (John Turturro), um escritor que já teve algum tipo de relacionamento amoroso com ambas as mulheres no passado. Em suas recordações, em meio a momentos tristes e de euforia, Martha contará a Ingrid sobre como ficou grávida, no passado, de um jovem que foi para o Vietnã e que voltou traumatizado pela guerra - e com quem ela teve uma filha, Michelle, com quem ela perde contato após uma tragédia familiar.
[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Já Ingrid se apresenta como a figura onipresente em um momento delicado para Martha que, desesperada em meio a tratamentos experimentais que dão errado e o receio generalizado de ter uma morte excessivamente dolorosa, faz uma proposta extravagante para a amiga: a de que ela lhe auxilie na condução de um processo de eutanásia, com pílulas que ela adquire na deep web. Para além de toda a complexidade ética ou os questionamentos morais que decorrem do fato, o caso é que Almodóvar coloca uma pulguinha atrás da orelha do público, em mais um tema considerado tabu em vários países do mundo: as pessoas deveriam ter o direito de simplesmente morrer, de forma confortável e assistida, se assim desejassem? Como se fossem criminosas, ambas alugam uma casa de campo meio escondida no Airbnb, para que a ideia amadureça. E claro que tudo isso será uma boa desculpa para mais uma experiência soturna, de humor torto e absolutamente cativante do espanhol.
De: Philip Kaufmann. Com Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine. Drama / Biografia, Reino Unido / EUA / Alemanha, 2000, 124 minutos.
"O homem que altera sua maneira de pensar para agradar os outros é um tolo." Se em pleno 2025 as "famílias de bem" são capazes de se aterrorizar, se atormentar, arrancar os próprios cabelos com um livro um pouco mais descritivo na hora de relatar um ato sexual - ainda que no cerne da mesma obra esteja a crítica ao racismo estrutural e o preconceito em suas mais variadas formas -, imagina como não deve ter sido no final do Século 18, na França governada por Napoleão, e que marcaria o encarceramento do Marquês de Sade. Famoso por sua literatura, provocativa, obscena, iconoclasta, libertina, o Marquês (seu nome real é Donatien Alphonse François) teria sido preso não apenas por seus romances e novelas que denunciavam a hipocrisia reinante da época, mas também por blasfêmia e supostos crimes sexuais, como estupro e outros abusos. E é mais ou menos esse o pano de fundo para o delicioso Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills), obra de Philip Kaufmann que completa 25 anos de lançamento em 2025.
Sim, a conduta do Marquês (vivido pelo ótimo Geoffrey Rush) pode ter sido questionável. E talvez até siga sendo até hoje - e uma pesquisa breve nos permitirá compreender a complexidade da sua personalidade e as infinitas polêmicas em que ele se meteu. Da prisão, publicou anonimamente uma série de livros, entre eles Justine, que é mais ou menos o ponto de partida da produção, que foi injustamente esnobada na cerimônia do Oscar daquele ano (a despeito de uma ou outra indicação em categorias técnicas). O manuscrito de Justine - sobre uma jovem que se torna escrava sexual de monges em um mosteiro e que, salva por um cavalheiro, acaba presa também por ele -, é enviado para fora do sanatório de Charenton com a ajuda da lavadeira Madeleine (Kate Winslet), que entrega o material para um cavaleiro anônimo. De lá para a editora e para as ruas e para o mercado negro e para mundo. Chegando ao imperador, que se horroriza com o teor pornográfico do material. A solução? Calar o Marquês. Inicialmente, queimando seus livros em praça pública. Depois, enviando o médico psiquiatra Royer-Collard (Michael Caine) pra tentar dar jeito na mente (supostamente) perturbada do sujeito.
Claro que essa tentativa de passar um corretivo - com cheirinho de censura -, não será bem recebida pelo próprio Marquês (que, em Charenton vive com alguns luxos, como acesso a uma biblioteca, móveis, vinhos e outros confortos), mas também pelo abade Du Coulmier (Joaquin Phoenix) que, com seu espírito benevolente e, em alguma medida, progressista pra época, tenta coordenar o local de forma mais afetuosa ou menos violenta. Já os métodos de Royer-Collard beiram a tortura institucionalizada, com afogamentos forçados e outras medidas drásticas e, claro, não demorará para que o conservadorismo atroz do psiquiatra, entre em choque com as ideais libertinas de Sade - que tenta melhorar a sua imagem por meio de aulas de teatro ministradas aos demais internos e com o esforço hercúleo de jamais publicar o que escreve. O que para a sua mente borbulhante talvez seja o pior dos castigos. E é nesse cai e vem que, lá pelas tantas, uma apresentação teatral em Charenton, com Royer-Collard e sua nova esposa na plateia - a adolescente Simone (Amelia Warner) - instalarão o caos.
Divertido, sedutor, excitante e por quê não, ofensivo, o filme é um deleite, especialmente no que diz respeito às interpretações. Rush parece bem à vontade no papel de um sujeito caótico e imprevisível, que jamais se renderá às imposições de seus algozes, o que reforça também o poder da arte como veículo de quebra de padrões, de subversão e de iconoclastia. Em uma das tantas discussões com o abade, um Phoenix correto, o religioso praticamente implora para que o protagonista utilize o seu talento para escrever sobre as coisas belas e poéticas do mundo que nos rodeia. "Eu escrevo ficções, não tratados morais", exalta-se Sade. Aliás, o filme de Kaufmann, que é baseado em uma peça de teatro de mesmo nome dirigida por Doug White no circuito Off Broadway, é recheado de tiradinhas bem humoradas, que funcionam bem dada a personalidade cativante do protagonista. Aliás, quando Du Coulmier aponta, por exemplo, o absurdo por trás da mera existência de Justine - e de sua circulação deliberada pelo País -, o Marquês pega o tomo na mão e concorda: "sim, olha a falta de qualidade desse papel, a letra pequena".
E, claro, importante dizer que por mais que o filme se posicione como favorável ao poder da arte acima de tudo - ainda mais quando envolvem proibições pautadas pelo moralismo religioso -, Sade nunca é retratado como o heroi excessivamente injustiçado e sim como a figura complexa que, de fato, ele pareceu ser. Seus crimes podem ter sido apenas uma alucinação de quem queria condená-lo, achando que as atrocidades pulavam para fora das páginas? Talvez. Ou não. Vai saber. Ainda assim, em tempos em que a extrema direita parece ter desejos autoritários de impedir esta ou aquela obra de circular por ser supostamente ofensiva - lembremos o curta-metragem O ABC da Proibição de Livros indicado ao Oscar no ano passado -, uma experiência fílmica feita com vinho, sangue, vísceras e alma e que evidencia o poder libertador da literatura e de outras expressões culturais, merece toda a consideração. Ainda mais pelo fato de, para além do tema, ser um filmaço, tecnicamente bem executado cheio de suspense, violência, tesão e fúria.
Aparentemente a "temporada da feiura" ficou pra trás. Ao menos em tese, já que Glory, o sétimo registro de inéditas de Mike Hadreas como Perfume Genius, pouco lembra o hermético e pouco palatável Ugly Season, de 2022 - e que interromperia, ao menos de forma momentânea, a gradual aproximação do artista de uma sonoridade mais acessível, nostálgica e primaveril, como no caso do delicado Set My Heart on Fire Immediately (2020), que parece ter sido o ápice dessa proposta. É claro que neste novo trabalho os temas recorrentes do compositor - e que vão de medos pós pandêmicos, passando pela sensação de isolamento, identidade queer e os temores provocados por pensamentos intrusivos - surgem iluminados por sintetizadores suaves e um certo minimalismo no todo, que parecem jogar algum tipo de luz sobre a escuridão. "Um fio condutor desse álbum é a antecipação da dor", explicou Hadreas em entrevista à Stereogum.
Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido justamente na inaugural It's a Mirror, que abre o registro. "Essa é uma canção sobre se sentir sobrecarregado, ou se sentir verdadeiramente mortal ou frágil" resumiu na mesma entrevista, explicando ainda que esse tipo de instabilidade parece ser parte do mundo na atualidade pós covid. "O que eu ganho sendo tão bem resolvido? / Ainda corro e me escondo quando batem à porta", canta o artista em uma base de percussão e violão que crescem no encontro dos versos introspectivos, que nos arremessam de forma instantânea pra esse ambiente entortado, com o espelho sendo uma metáfora para o olhar pra nós mesmos. Em outras faixas, como no singleClean Heart, o medo das mudanças e o senso de finitude dão o tom, em meio à produção limpa, de melodia onírica e poesia enigmática (O tempo, ele faz um coração limpo / Quando você está a quilômetros de distância de tudo). Já na linda Left for Tomorrow há um clima meio sobrenatural que aparece e some em meio a versos existencialistas. Soturno, delicado, melancólico, sobrenatural, grandioso. O Perfume Genius segue colocando beleza na esquisitice do mundo.
De: Drew Hancock. Com Sophie Tatcher, Jack Quaid, Rupert Friend e Megan Suri. Suspense / Ficção Científica, EUA, 2025, 97 minutos.
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]
Robôs que adquirem algum tipo de consciência e que, frente a toda crueldade e maldade dos seres humanos, tentam a todo o custo se libertar deles. Vamos combinar que esse tipo de história - atualmente bastante frequente na coleção de episódios apenas medianos de Black Mirror - não chega a ser uma novidade. Em épocas de inteligência artificial embasbacante - e eventualmente ameaçadora (ao menos do ponto de vista utilitário) -, um filme como Acompanhante Perfeita (Companion) ainda é capaz de nos surpreender? E como se já não bastasse esse recurso narrativo pra lá de batido, aqui, ainda temos o suspense da casinha isolada no meio do nada, onde um grupo de amigos se reúne para um final de semana e que, com cinco minutos de filme, a gente sabe que as coisas começarão a dar errado. "Acho que a Kat não gosta de mim", diz Iris (Sophie Tatcher), já na chegada ao local, que sequer aparece no mapa do GPS.
Ok, talvez não fosse um grande problema recorrer a esses recursos pra lá de óbvios, mas o caso é que a obra de Drew Hancock não funciona muito bem em nenhum gênero em que ela tenta, de forma atrapalhada, existir. Como suspense? Bom, simplesmente na primeira linha de diálogo a gente já sabe que Josh (Jack Quaid, com a mesma cara de songa monga de sempre) vai morrer. Porque uma narração em off de Iris nos avisa disso. Como ficção científica existencialista? Nada. Não há nada que aprofunde os eventuais dilemas morais de "namorar" um robô ou uma inteligência artificial qualquer, que já não tenha sido feito anteriormente, de forma muito mais inteligente e com boas reflexões, como nos casos de Ela (2013) e Ex-Machina: Instinto Artificial (2015), por exemplo. Romance heroico? Josh, a despeito de ser um cara boa pinta, parece ser um tipo de incel pós-moderno, que não consegue se relacionar com o sexo oposto. Mas até a respeito disso não conseguimos ter alguma certeza. Não há nada sobre a vida daqueles personagens, para além do final de semana em grupo.
Claro, lá pelas tantas a gente compreenderá as motivações de todos ali. No grupo parece haver um vilão cruel - um russo (sério, em 2025), que é justamente o dono da casa e que possui negócios escusos que nunca ficam muito claros -, e nada mais justo que dar cabo dele. Como? Transformando a protagonista robô, devotíssima à seu dono, na assassina involuntária. Claro que ser apenas um objeto feito para o uso de seres humanos de códigos éticos questionáveis ("ei, eu comprei você para que você me satisfaça sexualmente, então, apenas durma") já converteria Iris meio que, automaticamente, na mocinha da história. Só que, a menos que haja alguma alegoria mais profunda sobre opressão de minorias ou algum tipo de metáfora sobre masculinismo tóxico ou a respeito de misoginia que eu não tenha pego no ar, o fato de torcer por uma robô apenas por torcer, tornando todas as pessoas do entorno em figuras lamentáveis, é de uma misantropia meio atroz. E, sim eu já tô flertando com a misantropia. Basta ver o mundo. Não preciso muito desse filme pra isso.
Em linhas gerais, a despeito de um ou outro mérito na produção, há absolutamente pouco espaço para a tensão levada até um certo limite, já que qualquer pessoa que tenha lido uma resenha descritiva, ou assistido o trailer já sabe que temos uma robô, um namorado babaca, uma casa na floresta e alguns crimes. Por vezes eu cheguei a me perguntar se a obra teria mais estofo se saísse daquele microcosmo frágil de meio dúzia de pessoas com suas atitudes estúpidas e mesquinhas, que ninguém se importa. O que tá rolando fora do Twitter? No mundo real, namorar robôs é comum? Eles nunca dão defeito ou descambam pra algum tipo de violência, estando sujeitos a redpills aleatórios, que as adquirem - sempre bonitas, com suas peles de borracha perfeitas -, diretamente de seus quartinhos fedendo a Doritos e Fanta? Por fim, acho que o mundo cresceu meio que demais, pra que consigamos prestar atenção a um filme desses. Especialmente sem alguma materialidade que instigue o debate. Robôs em fuga, correria, sangue, violência, casa isolada. Nos anos 90 - época em que Iris, do Goo Goo Dolls, que a produção tenta nostalgicamente nos forçar - talvez rolasse. Hoje em dia, nem pra distopia serve.