quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Quando Chega o Outono (Quand Vient L'automne)

De: François Ozon. Com Hélène Vincent, Ludivine Sagnier, Garlan Erlos e Pierre Lottin. Drama, França, 2024, 102 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor François Ozon sabe que ele não é apenas altamente prolífico - com uma produção média de quase um filme por ano -, mas também é muito versátil. O que o faz ser capaz de trafegar pelos mais variados estilos - indo da farsa policial no ótimo 8 Mulheres (2002), passando pelo suspense no, injustamente, pouco lembrado Swimming Pool: À Beira da Piscina (2003), até chegar ao drama familiar em Dentro da Casa (2012), à comédia em Potiche: Esposa Troféu (2010) e mesmo à fantasia no bobinho Ricky (2009). Em resumo, o realizador não se apega a nenhum gênero específico, o que faz com que cada uma de suas obras reserve boas surpresas, já que quase nunca temos certeza de para onde seremos levados. E, em alguma medida, é possível dizer que isso se repete no recente Quando o Outono Chega (Quand Vient L'automne), que está disponível para aluguel nas plataformas.

Aqui, temos um certo retorno ao drama familiar por excelência - mas, verdade seja dita, sem nunca apelar para o óbvio. Quando Valérie (Ludivine Sagnier) chega a casa de sua mãe Michelle (Hélène Vincent) com o filho Lucas (Garlan Erlos) à tiracolo pra uma visita, a gente meio que não entende muito a flagrante má vontade da mulher. Michelle, afinal, parece aquela avó afetuosa que, à beira dos 80 anos, aguarda com ansiedade pela visita do neto - a ponto de se maquiar e de caprichar na colheita de cogumelos selvagens, que servirão para a refeição em família. Cogumelos, que aliás, são obtidos em companhia da melhor amiga Marie-Claude (Josiane Balasko), sua parceira de caminhada pelas matas do entorno do pequeno vilarejo em que vivem. Ambas solitárias idosas, encontram algum tipo de amparo uma na outra. Marie-Claude sofre com a prisão do filho em circunstâncias nunca claras. Já Michelle preserva a solidão resiliente, com o afastamento da filha sendo motivado por eventos passados.

 

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Só que algo sai errado quando da janta envolvendo Valérie, Lucas e Michelle. Valérie passa mal após consumir os cogumelos do mato - que, muito provavelmente, eram de uma variedade tóxica. Lucas não come porque odeia a iguaria - como muitas crianças. E a idosa não comeu porque, enfim, estava sem fome. Valérie sobrevive, mas fica furiosa com a mãe - acredita que ela tenha, deliberadamente, tentado envenená-la. Mais do que isso, Lucas, que passaria o final de semana em companhia da avó para uma série de atividades, acaba apartado desta. Consumida pelo remorso e até pelo receio de estar ficando demente, Michelle encontra companhia da forma mais inusitada possível, quando o filho de Marie-Claude, Vincent (Pierre Lottin), é libertado da prisão. Com ela o convidando para trabalhar com ela, fazendo o manejo da horta, cuidando do jardim e realizando outras atividades como podas, colheitas, revolvimento do solo e outros. Parece o ideal, ao menos em partes. 

Bucólico e extremamente sutil - o que é reforçado pela fotografia terrosa e verdejante -, esse é aquele tipo de projeto agradável de se assistir, não porque haja grandes acontecimentos ou reviravoltas, mas pelas cargas emocionais contidas mas que se expandem, nos fazendo abrir pequenos sorrisos. [SPOILERZINHO] A revelação de que tanto Michelle quanto Marie-Claude eram garotas de programa no passado - aliás, tema pouquíssimo explorado pelas artes em geral -, funciona como câmara de eco para preconceitos, que se espalham pelas gerações seguintes. Lucas sofre com os valentões da escola que zombam da profissão pretérita de sua avó, ainda que Vincent esteja lá para dar uma enquadrada nos abobados dali. Em linhas gerais, após a ocorrência de uma tragédia, o filme ainda explora as possibilidades de novas configurações de famílias e de amizades, com pessoas fraturadas das mais variadas idades, se aproximando para tentar recolher os cacos. Somos muito mais do que o estereótipo, afinal.

Nota: 7,5 

  

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Depois da Caçada (After the Hunt)

De: Luca Guadagnino. Com Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Chloë Sevigny e Michael Stuhlbarg. Drama / Suspense, EUA / Itália, 2025, 141 minutos.

"Se é verdade pra você, então é verdade". Mas será que é verdade mesmo? Acho que dá pra encarar o ousado Depois da Caçada (After the Hunt), de algumas formas distintas. Em um primeiro olhar, o novo projeto do diretor Luca Guadagnino - dos recentes Rivais (2024), que é ótimo, e Queer (2024), que é fraco -, parece um filme conservador que acena para uma Geração X atualmente cansada e meio saudosista de algum tipo de passado, em que certas liberdades meio exageradas, inclusive no que diz respeito à preconceitos e abusos de poder em geral, eram mais naturalizadas. Meio que entranhadas na sociedade. Por outro lado, e meio que conectando a coisa, a obra soa pretensiosamente moderna em um estilo meio Tár (2022) ao apontar certo cansaço da era do cancelamento, e que muitas vezes envolve millenials com pautas relevantes debaixo do braço, mas meio incapazes de encampar lutas efetivas, que deem resultado.

A galera mais apressada, diante desse cenário, tratou logo de dar uma semicancelada no diretor que, ao não ser necessariamente maniqueísta em sua abordagem, pode ter perdido uma ótima oportunidade de aprofundar o debate sobre o ainda existente cenário de misoginia e de racismo - especialmente no meio acadêmico. Sim, esse é um caso. Quantas mulheres negras diretoras de centros universitários ou doutoras vemos por aí? Sim, é legítimo que isso seja questionado e seria muito cômodo para Guadagnino jogar pra torcida, colocando Maggie (Ayo Edebiri) como a mocinha injustiçada (e abusada) por um professor mais velho, porque simplesmente a vida é assim. Mas aqui o diretor opta por adicionar algumas camadas, com nem tudo sendo assim tão oito ou oitenta. Maggie pode ter plagiado a sua tese e estaria chantageando o professor que ousou questioná-la a respeito? Talvez. Não sei. Acho que ninguém sabe.

 


E talvez esteja aí parte da magia de Depois da Caçada que, sim, como o título sugere, tenta tratar, à sua maneira, do que acontece após uma denúncia de abuso - infundada ou não. No caso do professor universitário Hank Gibson (Andrew Garfield), ele se torna uma espécie de pária entre seus pares. De sujeito respeitado, que participa de jantares sofisticados e de diálogos pedantes, se torna um desempregado do dia para a noite, após as (gravíssimas) denúncias de Maggie. Com tudo se tornando ainda mais avassalador em um período de #MeToo (a trama se passa em 2019). Maggie espera contar com o suporte, também emocional, de sua mentora intelectual Alma (Julia Roberts), uma respeitada professora de filosofia que está retornando à vida acadêmica após um tratamento de saúde - que, ainda lhe afeta. A denúncia da violência praticada por Hank, que garante ter havido consentimento no ato (sem nunca negá-lo), abala a relação de amizade dos dois. Com tudo piorando frente a um gritante conflito de interesses, já que ambos pleiteiam a mesma vaga de professor titular de Yale, no departamento de Humanas.

Em geral, o público parece ter torcido o nariz para essa trama em que não há certeza de nada e que muito do que se vê ali fica nas entrelinhas. Enquanto assistia à obra, me lembrei de outros filmes modernos, que abordam o tema, como os esplêndidos Dúvida (2008) e A Caça (2012) e, em ambos os casos, também não temos meio que certeza de nada. Aqui, muita coisa fica nas entrelinhas, ou mesmo nos diálogos de todos ali - Aristóteles era um xenófobo? Nietzsche era um nazista? Freud era misógino? Devemos cancelá-los retroativamente? Ou é possível estudá-los separando a obra do autor? Conceitos como o do panóptico de Foucault, e que serve bem à uma sociedade em permanente vigilância, ou da Ética das Virtudes, de Aristóteles se espalham pela narrativa, pretendendo dar algum estofo para as discussões (o que talvez até possa confundir, ao invés de ajudar). Há excesso de vitimização hoje em dia? De mimimi? As pessoas tendem a julgar e a condenar sem necessariamente haver provas mais contundentes? Ou as pautas seguem atualíssimas e devem ser mais discutidas do que nunca em tempos em que ainda nos deparamos com violências diversas contra pessoas mais vulneráveis? São muitas questões e eu, particularmente, tendo a concordar com essa última ideia. Mas não ignoro a experiência com um filme que expande as questões, e que coloca outros pontos como centrais no debate.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Belén: Uma História de Injustiça (Belén)

De: Dolores Fonzi. Com Dolores Fonzi, Camila Plaate, Julieta Cardinali e Laura Paredes. Drama / Policial, Argentina, 2015, 109 minutos.

"Em plena democracia em um hospital público Belén foi acusada, torturada e condenada na mesma noite.

Vamos combinar que, nos tempos políticos atuais, talvez não haja assunto mais divisivo do que o direito ao aborto. Se por um lado, a extrema direita fanatizada e de Bíblia debaixo do braço, quer, sob a desculpa da valorização incondicional da vida, obrigar até mesmo gestações resultantes de violências sexuais diversas - aliás, pouco importando se a vítima for uma adolescente ou, pior ainda, uma criança -, de outro, o campo progressista luta para que as mulheres possam ter meio que o básico. No caso o direito ao aborto minimamente em casos já previstos em lei - como em estupros ou aqueles que envolvem riscos médicos. A decisão, ao cabo deveria ser da dona do corpo - uma coisa tão óbvia que chega até a ser meio bizarro estar discutindo isso às portas de 2026. Esperávamos carros voadores nesse ano? Não, temos de brigar com a tal da bancada evangélica, preocupadíssima com os bebês - mas apenas quando eles estão nas barrigas das futuras mamães. Depois disso, que se explodam, né?

E é nesse contexto que entra Belén: Uma História de Injustiça (Belén) - o enviado ao Oscar 2026 pela Argentina, que está disponível na Amazon. Inspirado em eventos reais ocorridos em 2014, o filme de estreia na direção da atriz Dolores Fonzi narra o bizarro episódio ocorrido com a jovem Julieta (Camila Plaate) que, depois de dar entrada no hospital com fortes dores estomacais, é presa preventivamente, acusada de ter, deliberadamente, praticado um aborto. Levada pela polícia, ela aguarda durante dois anos por um julgamento pelo suposto crime de "homicídio agravado por parentesco" - tudo isso acontecendo após uma sequência revoltante em que policiais, como sempre investidos de certa síndrome do pequeno poder, invadem a ala hospitalar em que Julieta está, para lhe colocar algumas em plena maca do hospital. Sim, ela ainda está sangrando, com dor, agredida física e moralmente e está sendo presa. Sem provas, ainda por cima.

 


Após um salto no tempo entra em cena a destemida advogada Soledad Deza (a própria Dolores Fonzi), que promete auxiliar a garota, após descobrir que o caso teria uma série de incongruências - o que envolve a participação de uma defensora pública inescrupulosa, daquelas que prefere tomar decisões carregando uma cruz a tiracolo (e não a Constituição). Julieta está condenada a oito anos de prisão e o desenrolar da trama resultará em uma série de sequências de tribunal, com ótimos diálogos e um clima de tensão geral extremamente bem construído - que faz com que o espectador se conecte solidamente com a história. Em linhas gerais, o que a trama evidencia é que, quanto mais conservadora e provinciana for a cidade ou a região, mais complicado será evoluir em temas como este - e não demora para que a própria Deza passe a ser perseguida e intimidada, após seu nome chegar à imprensa (o que envolve uma participação em um programa sensacionalista e altamente cringe de TV, que tenta humilhá-la de todas as formas).

Nesse sentido e não por acaso, Julieta entra em uma espécie de conflito em relação ao fato de os motivos de sua prisão - que permanecem em sigilo -, chegarem à esfera pública, com movimentos coletivos ganhando força nas ruas e exigindo a anulação da sentença. E mesmo sofrendo uma grande injustiça ela teme represálias - como no caso do receio de que seus pais percam o emprego, ao descobrirem que sua filha teve um aborto. A sensação de certa desorientação, aliás, é ampliada com uma sequência de alucinações envolvendo sangue - como nas cenas do chuveiro (com a água funcionando como uma alegoria para a limpeza moral tão desejada). Sem ter vergonha de defender com clareza seu lado, mas sem soar excessivamente panfletária, Dolores consegue conferir complexidade às suas personagens. Ainda assim o que fica claro é que, mesmo em um cenário de democracia e de avanços sociais, políticos e culturais pontuais, esse é um tema que exige vigilância permanente para que não haja retrocessos. Especialmente frente à governos autoritários, ligados à extrema direita reacionária.

Nota: 8,0 

 

Novidades em Streaming - O Filho de Mil Homens

De: Daniel Rezende. Com Rodrigo Santoro, Miguel Martines, Johnny Massaro e Rebeca Jamir. Drama / Fantasia, Brasil, 2025, 126 minutos.

Quem leu O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, já tinha o conhecimento de que se trata de uma obra um tanto poética e lírica, que parte de uma premissa bastante simples - sobre um pescador solitário que nunca conseguiu concretizar o sonho de ser pai -, para uma análise de temas como pertencimento, autoaceitação, família e respeito às diferenças. Em linhas gerais poderia ser meio difícil transportar esse caráter quase onírico e eventualmente existencialista da narrativa do autor para as telas, mas, verdade seja dita, Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs, 2017) conseguiu - e muito. Com uma abordagem delicada, envolta em sutilezas, o diretor converte a obra em uma experiência de fluidez meio ondulante - assim como é o próprio vai e vem do mar -, com tudo ocorrendo sem muita pressa e com uma aposta muito maior em silêncios e em olhares do que em excessos didáticos.

Porque por mais que a narração de Zezé Motta surja, aqui e ali, para conectar certos pontos da história, ela nunca soa invasiva demais ou mesmo desnecessária. No livro de Mãe o protagonista Crisóstomo (Rodrigo Santoro) é apresentado como um sujeito fraturado que, a beira dos 40 anos, vive "pela metade", com seus amores frustrados e uma vida permeada por traumas. O filho desejado se converte numa alegoria bastante concreta - que é representada por um boneco de pano do tamanho de uma criança. Um boneco que é cuidado pelo pescador com esmero, afeto e dedicação. Só que em uma obra tão mágica, quase no limite do realismo fantástico, a criança real não demora a se materializar - como que enviada pela própria natureza (o que é reforçado peças sequências de Crisóstomo colocando uma concha no ouvido ou mesmo deitado na areia luminosa, em uma conversa interna particular).

 


A chegada de Camilo (Miguel Martines), um menino órfão que acaba de perder o seu avô emprestado, transforma a vida do pescador. No cotidiano, estabelecem rapidamente uma relação de pai e filho - com direito a jogos de bola e parceria tanto na hora de comer geleia de jabuticaba, como na hora da pesca. Só que a dupla não está sozinha. Camilo sonha em ter também uma mãe - já que, como descobriremos mais adiante, ele perdeu a própria durante o seu parto. Aliás, sua mãe, Francisca (Juliana Caldas), era uma anã que, por conta de sua condição, sofria todo o tipo de preconceito na comunidade. Menos dos homens, os mais diversos, com quem ela "deitava", pelo visto - o que exaspera um trio de vizinhas enxeridas, que funciona como alívio cômico. Aliás, a discriminação se espalha por toda a parte, atingindo também o jovem gay Antonino (Johnny Massaro), que é forçado a se casar com Isaura (Rebeca Jamir), num arranjo feito pela mãe extremamente religiosa do rapaz, para tentar conter o falatório na região.

Sim, o filme salta de lá para cá e, por vezes, as histórias parecem todas meio desconectadas. Mas, mais adiante fica mais simples de compreender como a obra se converte em um elogio ao conceito atual de família escolhida - e de como podemos encontrar amor em companhia, amizade e afeto de pessoas que, não necessariamente, possuem laços de sangue conosco. Ao cabo, o quarteto central vira uma família improvisada - tida como desajustada pelos cidadãos do vilarejo. Como assim Antonino vai morar com Crisóstomo e Camilo, deixando a sua mãe verdadeira para trás? E, ainda por cima, acompanhado de Isaura? O clima de vigilância é ampliado, quando se toma por base os dogmas religiosos - o que torna ainda mais escancarado o fato de o cidadão de bem médio ter extrema dificuldade em aceitar o diferente. Aquele que não segue um padrão. [SPOILERZINHO] Crisóstomo cresce sozinho, mas alcança o objetivo de formar uma família, ao final. Aliás, as últimas sequências são daquelas de derrubar rios de lágrimas. É difícil sair ileso.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Pitaquinho Musical - Rosalía (LUX)

Vamos combinar que, assim como ocorreu com o BRAT, em 2024, nesse ano o evento musical mais aguardado, comentado, viralizado foi o LUX, da Rosalía. Mas, preciso ser honesto com vocês: talvez o quarto registro de inéditas da artista espanhola não tenha o mesmo potencial de difusão rede afora, como no caso do disco da Charli XCX, mas, musicalmente, meus amigos, aí é AULAS! Porque, aqui, não temos apenas música pop contemporânea. É multiplicidade de gêneros, de estilos, de ideias, de culturas e até de mundos - físico e espiritual, terreno e divino, concreto e abstrato (numa dualidade que parece estar no conceito). Um pouco ópera ao piano (algo meio Tori Amos hispânica), um tanto de cordas épicas e elevadas. Uma pitada de flamenco, outra de rap japonês, uma dose de uma eletrônica meio mística, que se junta a orquestração da música clássica. Tudo no limite entre o divino e o profano, a fé e a carne. Quase como um ritual onde a música é muito mais trajetória do que chegada.

 


Sim, honestamente é até difícil resumir, que não seja no modo "apenas ouça pra entender". Talvez um bom começo seja pelo single Reliquia, uma canção fragmentada, de geografia espalhada, que soa espiritual e sacra inicialmente, para mais adiante emergir eletronicamente fria, como em alguns dos melhores momentos de MOTOMAMI (2022). Isso sem falar a letra sobre a formação da personalidade ampla e de como, ao cabo, somos formados pela nossa bagagem (Somos golfinhos pulando / Pra dentro e pra fora / Do aro escarlate / E brilhante do tempo). Mas isso é uma canção. Um ato. Há todo um conjunto. Cantado em treze línguas distintas, com participação de Orquestra Sinfônica de Londres - o que torna tudo maior, mais revolucionário, mais único. E é importante dizer que essa congregação de referências nunca torna o registro hermético. O que pode ser comprovado em momentos acessíveis, como no caso da divertidíssima La Perla (talvez a música do ano).

Nota: 9,5 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Pitaquinho Musical - Joy Crookes (Junipero)

Acho que o disco que mais me impactou na lista daqueles que ninguém ouviu em 2025 foi esse Junipero da Joy Crookes. Sabe aquele álbum que é exatamente aquilo que você precisa em certo momento? Que conecta imediatamente com, sei lá, a alma? Foi o que me ocorreu quando ouvi esse desfile de canções sofisticadas, que fundem R&B, jazz e pop adulto contemporâneo, com um pezinho no trip hop. Tudo empacotado pela voz aconchegante da artista, que parece ficar perfeita não apenas como trilha sonora noturna, daquelas que percorre os bares mais interessantes, mas também para o dia levemente ensolarado, talvez à beira de uma piscina, com um drink à mão. Britânica de Londres, mas filha de mãe bengali e de pai irlandês, a artista parece incorporar toda uma mescla de influências que vão de Marvin Gaye e Macy Gray, até chegar a Amy Winehouse e Lily Allen.

 


O resultado são verdadeiras obras-primas da música moderna, como a irresistível e acetinada Pass the Salt, feita em parceria com Vince Staples. Já a deliciosa Carmen, interpola Bennie & The Jets, do Elton John, na construção de uma melodia poderosa ao piano, com efeitos levemente oníricos. Com tudo culminando em um refrão pegajoso, que combina perfeitamente com a letra sobre os cada vez mais altos - e muitas vezes excludentes, especialmente em relação às mulheres negras - padrões de beleza na sociedade (Morena europeia com meu olhar londrino / Eu fico com inveja desse tipo baunilha / Você é clássica como Coco Chanel / É errado eu querer isso pra mim?). Mas, sinceramente, pessoal, aqui é até difícil falar de músicas em específico, porque tudo é perfeito demais. First Last Dance, Somebody to You, Mathamatics, House With a Pool, Mother, enfim, é até difícil selecionar aquela que se destaca. Tudo é destaque, afinal. Só dê o play. De nada.

Nota: 10 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Cinema - O Agente Secreto

De: Kleber Mendonça Filho. Com Wagner Moura, Tânia Maria, Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha / Holanda, 2025, 159 minutos.

Muito provavelmente poucos filmes serão tão didáticos em evidenciar de que formas eram perseguidas pessoas que, não necessariamente, estavam conectadas ao aparato político em meio à ditadura militar, como no no ótimo O Agente Secreto - o enviado do Brasil ao Oscar, que está em cartaz no País. Professores, intelectuais, pesquisadores, jornalistas, artistas e muitos outros precisavam entrar em rota de fuga pelos motivos mais aleatórios - e que nem sempre estavam diretamente ligados ao confronto direto com os milicos ou às frentes de resistência ao regime. No caso de Marcelo (Wagner Moura), o protagonista da obra de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, 2016 e Bacurau, 2019), ele é um professor universitário especializado em tecnologia que meio que precisa sumir do mapa - e da faculdade em que ele trabalha em São Paulo -, depois que um industriário mal intencionado (e que detém o dinheiro) se sente incomodado com aquele "comunista cabeludo", que ousou patentear uma pesquisa a respeito de baterias de lítio.

Aliás, a construção dessa tensão ambiental pode ser percebida já nas primeiras sequências da produção, quando Marcelo faz uma parada em um posto de gasolina nos arredores de Recife - um local um tanto ermo, ladeado por vastas lavouras de capim elefante -, sendo surpreendido pelo fato de, ali, no pátio do estabelecimento, jazer um corpo. "Está desde domingo aí e a polícia ainda não veio ver", resume o frentista, atribuindo a demora aos festejos de Carnaval. Quando uma patrulha da Polícia Rodoviária Federal finalmente aparece, não é para averiguar o cadáver. E sim o fusca amarelo dirigido por Marcelo. "Tu não carrega tóxico aí dentro, não, né?", inquire o agente da lei, que, investido da síndrome do pequeno poder, atua no sentido de intimidar o cidadão nesse modelo de minúsculas opressões. Marcelo claramente está desconfiado. Talvez até com medo. Os motivos compreenderemos mais tarde.

 


Em linhas gerais esse é mais um filme de fluidez lenta, que aposta nas sutilezas como forma de fortalecer os seus pontos. Não há aquele caso ostensivo de militares de botas, balas de borracha e cassetetes em punho, dispostos a levar sujeitos tidos como subversivos para cativeiros onde serão sistematicamente torturados. Aqui, Marcelo chega placidamente a uma espécie de comuna na capital pernambucana, na ideia de fugir da vigilância constante do tal Ghirotti (Luciano Chirolli), o odioso industriário da Eletrobrás que chega à universidade como convidado, mas que sai cagando regra de uma forma quase caricata, abusando de comentários preconceituosos, racistas e xenofóbicos. Recebido pela carismática Dona Sebastiana (a ótima Tânia Mara), Marcelo tentará reiniciar a vida naquele local quase idílico que abriga refugiados (na falta de outra palavra), arranjando um emprego improvisado em um órgão público meio decadente, enquanto tenta antecipar ao máximo a obtenção de um passaporte falso para ele, e para seu pequeno filho. O que pode ocorrer com um contato mais direto com figuras da resistência que circulam à sombra, como Elza (Maria Fernanda Cândido) e Arlindo (Tomás Aquino).

Nesses dias de estada no Recife, o protagonista estabelece um vínculo bastante fraterno com o seu sogro Alexandre (Carlos Francisco), pai da falecida Fátima (Alice Carvalho), que teria morrido de uma pneumonia mal curada (ainda que nunca seja possível ter certeza disso, já que descobriremos mais adiante que ela também foi alvo de perseguição da corja de Ghirotti). Em meio àqueles dias turbulentos do ano de 1977, a população recifense será impactada por um excêntrico episódio, que ocupará as manchetes dos jornais de forma recorrente: uma perna humana é encontrada no estômago de um tubarão que encalha (e morre) na orla. Ocorrência que, evidentemente, terá a ver com o misterioso sumiço de corpos, alvos de execução por milicianos ligados ao Estado - destino que poderá ser o do próprio Marcelo, se ele não conseguir empreender seu projeto de fuga do País. Com tudo piorando quando Ghirotti contrata dois capangas para persegui-lo.

 

 

Para além do roteiro em si, recheado de diálogos inteligentes e até bem humorados (principalmente aqueles que envolvem a Dona Sebastiana) - mesmo em um cenário de tensão -, o filme ainda merece elogios pela qualidade técnica, com um desenho de produção caprichoso, que recria absolutamente todo o cenário da época à perfeição (o que vai desde a arquitetura, passando pelos veículos, até chegar a objetos de decoração e figurinos). Há também um clima geral meio que de letargia do período. Uma espécie de nostalgia festiva de um Carnaval como alegoria da esperança, em um contexto político, social e econômico perto do colapso - e não deixa de ser interessante ver como o diretor une todos esses pontos de maneira quase lúdica, com instantes de devaneio que vão no limite do realismo fantástico (há uma cena com a "perna" que consegue ser assombrosa e engraçada em igual medida). O que é reforçado pela onipresença do cinema, com seus cartazes e reações do público à clássicos do terror como A Profecia (1977) ou Tubarão (1975), numa rima inevitável. A esperança e a dor se encontram em tempos de pirraça. Como numa música do Chico, tão trágica quanto envolvente.

Nota: 9,0

Novidades em Streaming - Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho)

De: Koya Kamura. Com Bella Kim, Roschdy Zem, Ryu Tae-Ho e Park Mi-Hyun. Drama, França, 2024, 104 minutos.

Vamos combinar que a trama do estrangeiro que visita um outro País e se encanta pela sua cultura, gastronomia, arquitetura, história e gente - em muitos casos até estabelecendo laços sólidos no local -, é meio que um lugar comum. Um clichê. Ainda mais em obras literárias ou filmes românticos. Afinal, firmar raízes em outra nação - o que abre possibilidades para novas amizades e amores -, talvez seja uma das grandes alegorias para os recomeços. Onde o passado fica para trás em prol de um futuro muitas vezes idealizado (mas que na tela sempre parece perfeito). Só que nem sempre a vida é tão óbvia como muitas vezes é no cinema - por mais paradoxal que isso seja -, e é por isso que é tão interessante o arco narrativo visto no tocante Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho), produção inspirada em livro da autora Elisa Shua Dusapin, que estreou recentemente na plataforma Mubi.

Aliás, o filme já começa com uma série de paisagens geladas e enevoadas que, somadas à trilha de notas tristes, já identifica aquele espaço como um local isolado, dotado de uma estética em que a melancolia geral prevalece. É nesse contexto - o da pequena Sokcho do título, uma cidadezinha pesqueira da Coreia do Sul, quase no limite coa vizinha Coreia do Norte -, que vive a jovem Sooha (Bela Kim), uma funcionária de uma pousada que tem a sua rotina alterada pela chegada do misterioso escritor Yan Kerrand (Roschdy Zem), que ocupará um dos quartos justamente nesse meio de temporada, em que a quantidade de turistas do lugar reduz drasticamente. Yan parece estar ali por certo interesse que tem a ver com seu trabalho. Talvez esteja buscando inspiração para um novo romance. "Gosto de ir a lugares movimentados, mas quando estão vazios", comenta ele em uma das caminhadas ao lado de Sooha, que funcionará como uma guia improvisada do local.

 


A protagonista inicialmente estranha certos comportamentos do estrangeiro. Ele não parece tão encantado assim com a culinária local, como deveria ser o caso - em certa altura dá preferência para um pacote de Cheetos do que para uma saborosa sopa de rabanete branco. Pior, ele parece sempre disposto a recusar qualquer tentativa de inclusão nos hábitos do pequeno povoado - o que também tem a ver com as refeições nunca aceitas (ele prefere ir a um restaurante genérico). Sooha considera tudo um tanto enigmático, ainda que nunca enfrente uma barreira linguística, já que tem o francês como segunda língua. Seu pai, que ela nunca chegou a conhecer, era de Paris - e sua mãe (Park Mi-Hyun) não parece muito disposta a contar a história real a respeito do sujeito. E não deixa de ser curioso perceber como, quanto mais Yan parece distante e apenas conectado com seu trabalho (sempre recluso em seu cubículo), mais Sooha parecerá encantada. Talvez até apaixonada. Por um homem que, vejam bem, tem idade para ser seu pai.

Aproveitando a narrativa para uma série de outros comentários sociais - os mais aprofundados envolvendo o culto à imagem e à necessidade de, nos tempos atuais, as mulheres recorrerem a procedimentos estéticos que quase nunca precisam -, a obra de Koya Komura ainda utiliza uma série de animações tão oníricas quanto transcendentais, como forma de reforçar as suas ideias. Nesse sentido não deixa de ser comovente o instante em que o sexo é "desenhado" como uma profusão carnal de traço sofisticado, capaz de ampliar a sensação de busca por algo que talvez nunca seja alcançado (por mais bonito e interessante que seja o namorado de Sooha, um jovem modelo). Sim, há uma fantasia ali que talvez seja quase óbvia sobre a idealização de um amor que jamais se concretiza, o que não reduz a surpresa do ato final quando Yan é franco de uma forma quase dolorosa demais. Isso não é um filme, afinal. Quer dizer, até é. Mas não do jeito que estamos acostumados.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - A Melhor Mãe do Mundo

De: Anna Muylaert. Com Shirley Cruz, Seu Jorge, Luedji Luna, Rihanna Barbosa, Benin Daihler e Lourenço Mutarelli. Drama, Brasil, 2025, 105 minutos.

"Nós não vamos dormir aqui, né? Não, nós vamos acampar!" Sinceramente, não é difícil entender os motivos de o público associar o comportamento de Gal (Shirley Cruz), a protagonista de A Melhor Mãe do Mundo, com o de Guido, o trágico personagem central de A Vida é Bela (1998), que tenta esconder os horrores da guerra do filho, ao tentar converter o campo de concentração em um espaço de "aventuras". Situações diferentes, mas tristezas semelhantes em um mundo que vira as costas para as minorias - sejam os judeus vítimas dos nazistas, sejam as mulheres pretas na sociedade como um todo. Tendo de matar um leão por dia para oferecer o mínimo - e não deixa de ser comovente o instante em que Gal coloca os filhos para dormir ao ar livre, na carroça que ela utiliza como catadora de papelão, enquanto recusa uma série de ligações do marido abusador Leandro (Seu Jorge), de quem ela está fugindo.

Quando contratou Shirley para ser a sua protagonista, a diretora Anna Muylaert - do ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) -, afirmou em entrevista ao Globo, que "ela tem uma coisa 'brava' de que gosto muito". Pode ser que esteja no olhar, ou nos movimentos do corpo, mas o caso é que a atriz é extremamente convincente em seu papel. Não apenas pelo fato de a maioria das catadoras serem negras, mas por Shirley já ter vivido na pele um abuso na vida real. "Ele passou 24 horas me estuprando e agredindo. Tinha um teste para uma novela na TV Globo, e me fez ligar para desmarcar", explicou na mesma entrevista. Nesse sentido, o resultado que se vê em tela parece muito próximo da verdade. Algo quase documental - do início em uma delegacia, encontrando pouco apoio após a abertura de um BO, ao final, quase esperançoso, em um ambiente de apoio e sororidade.

 


No meio do caminho, após a fuga de casa com as crianças à tiracolo - no caso os pequenos Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Daihler) -, encontros com um sem fim de pessoas, bem ou mal intencionadas, em uma jornada que foi apelidada em alguns veículos com a alcunha de road movie de carroça. O ponto final da jornada de Gal será a casa da prima, Bia (Luedji Luna, que se já não bastasse ser uma de nossas melhores cantoras da atualidade, também entrega muito na atuação), na região de Itaquera, onde deverá receber abrigo provisório. Em um dos encontros, Gal conhece Munda (Rejane Faria), uma vendedora de bandeiras de time de futebol que é cadeirante e que lhe explica de forma quase excessivamente didática, como funciona a ocupação onde ela reside.

Poética em alguma medida, a produção que chega à Netflix se ocupa em entregar momentos meio Projeto Flórida (2017) futebolístico, já que o sonho das crianças, que estão em um local muito próximo ao campo do Corinthians, é ver um jogo do Timão. Em outro instante, Gal recebe a ajuda de um certo Reginaldo (Lourenço Mutarelli), que parece disposto à auxiliá-la (ao menos até o instante em que ele revela sua verdadeira faceta). Discutindo nas entrelinhas um sem fim de temas políticos e sociais, com diálogos divertidos e curiosos (especialmente aqueles envolvendo as crianças), o filme ainda reafirma as dificuldades que envolvem se livrar de um marido abusador. Ainda mais quando este é o provedor da família - e, nesse sentido, não é por acaso que o churrasco na casa de Bia, é pago por Leandro. Que tenta uma reaproximação torta, com a conivência de todos ali. Ao final resta o banho que lava a alma de tudo. E que pode ter um significado para além do simples asseio e que versa sobre a complexidade de ser uma mãe periférica.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Balada de Um Jogador (Ballad of a Small Player)

De: Edward Berger. Com Colin Farrell, Tilda Swinton, Fala Chen e Alex Jennings. Suspense / Drama, Alemanha / Reino Unido, 2025, 102 minutos.

Preciso admitir pra vocês que se tem uma coisa que me deixa meio desgostoso quando o assunto é o cinema atual, são os excessos estilísticos que só servem para acobertar filme ruim. Para além do fato de que, hoje em dia, tudo parece ter de ser ultraprocessado pra uma melhor "digestão" do público, há também aquele amontoado de clichês que vão do tom sombrio ou misterioso, passando por narrações em off sussurradas (e supostamente inteligentes), que formarão um contraponto para uma coleção de imagens exuberantes e maximalistas, que tendem a buscar certa quebra da lógica. Um bom exemplo de algo nesse perfil é o horroroso Megalópolis (2024) que talvez seja, até com alguma folga, a pior coisa lançada nesse ano. Só que essa fonte de completo vazio, de oco absoluto, parece longe do fim, como comprova o recém chegado Balada de Um Jogador (Ballad of a Small Player), que está disponível na Netflix.

E há que se considerar que a expectativa era alta, já que o diretor Edward Berger vinha de duas elogiadíssimas produções - aliás, duas favoritas aqui da casa -, no caso a releitura de Nada de Novo no Front (2022) e o provocativo e ousado Conclave (2024). Só que aqui, toda o aparato técnico bem executado do primeiro e a sutileza do segundo, dão lugar a uma trama abobalhada sobre um apostador que se vende como a última bolacha do pacote dos cassinos de Macau (com direito até mesmo a luvas especiais, que talvez tenha sido compradas na Shopee), um nome fictício mas nada pomposo e um figurino que parece saído de algum filme B do Brian De Palma. De bon vivant vencedor, que sempre pede a champanhe mais cara, o cara só tem a marra mesmo. Já que tá devendo na praça uma cacetada de grana. Não apenas pro hotel em que está hospedado, mas também pra uma ricaça que ele roubou em um golpe no passado, pra alimentar seu vício.

 


Ok que, vá lá, o Colin Farrell até se esforça em entregar algum tipo de charme comovente no seu Lord Doyle, que se movimenta de forma furtiva pelos corredores do cassino em que costuma jogar - isso após acordar de alguma noite aleatória de bebedeira. Em uma das primeiras narrações em off ele se vende como uma figura que vive às sombras, enquanto toca uma vida hedonista em terras chinesas. Isso, ao menos até o surgimento da esquisitona Cynthia Blyte (Tilda Swinton, que entra naquele bloco das atrizes de papel único, afinal, quem melhor pra interpretar uma figura excêntrica, né?), que aparece em sua vida como representante de uma firma que cuida do patrimônio de figuras da elite inglesa. Após uma perseguição meio aleatória, Cynthia dá a morta para Doyle: ele tem 24 horas pra saldar uma dívida milionária que ele tem com uma de suas clientes. É isso ou a deportação.

E como desgraça pouca é bobagem, Doyle já tinha sido alertado pelo pessoal do hotel de que sua dívida ali só vinha aumentando. E que ele tinha 72 horas pra pagar uma grana preta para os proprietários, pra não se ver no olho da rua. E é esse o trambiqueiro sem nenhum grande encanto, sem nenhuma grande história pregressa, sem nada que façamos com que tenhamos algum apego, que acompanharemos pelas próximas duas horas, adotando o modo Corra Lola Corra (1999) - mas com magnetismo nulo -, pra tentar obter os pilas. No caminho, ele conhece uma idosa, que responde apenas como Vovó (Deanie Ip) e que parece ter um outro por dentro, já que ela não perde uma rodada sequer de Bacará (um jogo de cartas que nem conhecia). E, enfim, essa senhora parece ser a chave para alguma solução, especialmente após a aparição de uma enigmática crupiê - seu nome é Dao-Ming (Fala Chen). E, bom, a coisa se arrasta com muito corte seco, tomadas aleatórias da metrópole iluminada, closes estranhos e fotografia saturada. Mas, assim, história mesmo, algo com mais substância, é pouco.

Nota: 4,0 

 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Big Thief (Double Infinity)

"Essa música surgiu como tantas outras, sem pensar muito". Vamos combinar que se fosse outra artista falando essa frase, que não a Adrianne Lenker, e ela poderia soar apenas presunçosa. Mas não é o caso da vocalista do Big Thief, porque é simplesmente impressionante a capacidade dela - e de sua banda - de simplesmente produzirem grandes canções, sem que haja um grande esforço. Com o resultado sempre sendo uma coleção impecável de discos, que tem por marca aquele indie folk encharcado, meio diluído em névoa, que se torna gigante não pelo grande aparato tecnológico, mas sim pela sua total discrição. Tudo soa moderado, mas rigoroso. "É uma canção espiritual sobre fazer amor. É sobre tirar essa vergonha dos nossos corpos, do nosso sexo, da nossa cultura", comentou ao site inglês INews, a respeito de All Night All Day, a tal canção feita sem "muito pensar", que integra o recente Double Infinity.

 


Ainda assim, é importante reiterar que simplicidade - talvez pudesse ser chamado também de conforto - nunca significa negligência. Em momento algum a sonoridade soa opaca demais, sem brilho ou personalidade. Ao contrário, mesmo quando o agora trio (após a saída do baixista Max Oleartchik), formado ainda por Buck Meek e James Krivchenia, fala de temas cotidianos e nostálgicos, como no single Incomprehensible, que aborda o medo de envelhecer e a efemeridade da juventude (Daqui a dois dias vou fazer aniversário e vou fazer trinta e três / Isso realmente não importa diante da eternidade), tudo soa maior, mais estofado. Com um toquezinho de psicodelia meio mágica, reforçada pela cítara que aparece um canções como Grandmother, o álbum poético até dizer chega, é daqueles que cresce a cada audição. Evidentemente, sem que haja qualquer esforço.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - Casa de Dinamite (A House of Dynamite)

De: Kathryn Bigelow. Com Rebecca Ferguson, Tracy Letts, Idris Elba, Gabriel Basso e Jared Harris. Suspense / Drama, EUA, 2025, 113 minutos.

"Então gastamos 50 bilhões de dólares para isso?". A frase dita pelo secretário de defesa Reid Baker (Jared Harris), em um dos pontos altos de Casa de Dinamite (A House of Dynamite) talvez passe batida pelo espectador mais desavisado. A ponto de ela retornar no terço final, como uma espécie de lembrete do absurdo da guerra. Será que, nos tempos atuais, naturalizamos esse tipo de aporte financeiro destinado a tanques, mísseis e outros equipamentos que incluem o aparato bélico? Vocês entenderam a dimensão disso? Cinquenta BILHÕES de dólares, na ideia de acertar uma "bala com outra bala"? E que, ainda por cima, falha na hora decisiva. Qual o propósito, afinal, disso? Qual a lógica de simplesmente aguardar o fim do mundo, enquanto um bando de burocratas fardados ou uniformizados decide sobre botões a serem apertados? E que resultarão na morte ou não de milhares de civis?

Desde a ascensão dessa extrema direita tosca - que tem na figura de Donald Trump o seu mais alto representante -, que o medo de uma possível terceira guerra mundial ronda o planeta. Se em tempos de Guerra Fria, o diretor Stanley Kubrick optou pelo deboche como ferramenta, no inesquecível Dr. Fantástico (1964), o tom sério e meio envolto por ideais sobrevivencialistas (com direito a imagens aéreas de um bunker gigantesco), não me parecem gerar o mesmo efeito. Aliás, pior, talvez só resulte em medo. E em pessoas achando que os Estados Unidos devem dobrar a aposta quando o assunto forem os confrontos que quase parecem inevitáveis, entre nações. Se for preciso gastar 50 bilhões de dólares? Que se gaste. Se dez milhões de pessoas vão morrer nos arredores de Chicago? Azar, temos de contra atacar para não sermos taxados de covardes. De fracos. Na eterna disputa por quem tem o maior pênis, em um quadro provável de micropenia coletiva, que só pode ser compensada com bazuconas.

 


Sim, o que o filme de Bigelow - que ganhou o Oscar por Guerra ao Terror (2009) - tenta imaginar é como os Estados Unidos reagiriam diante de uma ameaça catastrófica: um míssil nuclear lançado de algum lugar do Pacífico, sem origem identificada. E sem autoria clara. E que explodirá nos arredores de Chicago, massacrando parte da população de um dos seus principais estados. Como baratas tontas, generais, secretários de defesa, integrantes do Pentágono e o próprio presidente dos Estados Unidos, encarnado com niilismo por Idris Elba, batem cabeça para tentar decidir os próximos passos. O artefato deve colidir em 19 minutos. Não há tempo para um plano de evacuação. A tentativa de abater uma bala com uma bala falha miseravelmente (com 50 bilhões de esfarelando) e só resta o que muitos ali fazem: chorar, pensar nos seus familiares, se apegar às rotinas pacíficas, distantes desse mundo hostil.

Como eu disse, parece haver aqui e ali uma mensagem legítima antiguerra - e que talvez esteja na simples beleza da vida de cuidar de um filho doente ou de projetar pedir alguém em casamento. Mas que também aparece em discursos tolos e mesmo no comportamento idiotizado de certas figuras que deveriam tomar decisões claras - mas não tomam. Em geral o mundo está a deriva, se ficarmos nas mãos dessas figuras que são hábeis em explodir bombas atômicas, mas que são péssimas em diplomacia. Em relações institucionais. A meu ver um filme como esse pode aumentar o sentimento de paranoia. Por mais que, lá no meio, em uma criação propositadamente teatral da Guerra da Secessão, a oficial de inteligência Ana Park (Greta Lee), lembre que apenas a Batalha de Gettysburg tenha resultado em quase 50 mil mortes. 

 

 

É um absurdo a guerra, né? Mas quando há tanta gente falando em tela sobre os "inimigos" de sempre - Rússia, China, Coreia do Norte e outras ameaças "comunistas" (como se estivéssemos em uma produção dos anos 80) - e repetindo toda a encenação por outros dois pontos de vista distintos, não sei se a mensagem, se é que há mensagem, cola tão bem. O primeiro terço, o que Rebecca Ferguson como a capitã Olivia Walker aparece, é bem urgente, angustiante, tenso. Depois, tudo meio que se dilui, quando a coisa migra pra outras salas e outras siglas e outras tentativas de decidir algo. Quase caindo no banal. Algo que nem as mensagens espalhadas de "pare o genocídio" em cartazes ao fundo, enquanto crianças circulam pelas ruas tranquilamente, parece amenizar. 

Nota: 6,0 

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - TOPS (Bury the Key)

Vamos combinar que esse ano está tão impressionante do ponto de vista musical, que até aquelas bandas que, em muitos casos, não chamam muito a atenção, parecem empenhadas em entregar o seu melhor lançamento em anos. E é justamente esse o caso do TOPS e de seu quinto registro de inéditas Bury the Key. A capa, de tintas meio sombrias, pode até enganar os ouvintes desavisados, mas o que o grupo capitaneado por Jane Penny faz, aqui, é arredondar ainda mais o seu sophisti-pop etéreo, deixando-o ainda mais limpo, mais acessível. Claro que os trabalhos anteriores nunca foram aquele exemplar de som garageiro, mas aqui temos uma banda tão iluminada e tão dedicada a uma ambientação mais aconchegante, que singles como ICU2 não fariam feio em algum disco dos conterrâneos do The New Pornographers.

 


Em linhas gerais é até meio divertido ver canções de títulos potentes como Falling on My Sword - que parece saída de algum disco de love metal dos anos 80 -, fazendo de conta que há um peso a mais de guitarra, que nunca chega a se converter em um abalo roqueiro de fato. Até mesmo porque a natureza do TOPS sempre foram as canções pegajosas inundadas em sintetizadores primaveris, cheios de carisma e de guitarras arejadas, como no caso da saborosa Chlorine, um esforço eficaz sobre a sensação de solidão em meio aos bares da cidade (Pare de encher meu copo com tanto amor vazio). Já Mean Streak consegue soar açucarada e metafórica, mesmo que os versos sugiram a eventual dor decorrente de um amor não correspondido ou de uma relação mais tóxica (Por quê você fica com ela, quando sempre me quis?). Enfim, mais um disco que parece pequeno nas aparências. Mas que se agiganta a nova audição.

Nota: 8,5 

Novidades em Streaming - Éden (Eden)

De: Ron Howard. Com Jude Law, Ana de Armas, Siney Sweeney, Daniel Brühl e Vanessa Kirby. Suspense / Aventura, EUA / Austrália, 2025, 129 minutos.

Eu preciso ser honesto com vocês: um filme como Éden (Eden) deve ter um amontoado de inconsistências, pouca coisa deve fazer sentido do ponto de vista histórico e há uma grande chance de que não haja qualquer pé na realidade. E, ainda assim, trata-se de uma experiência cinematográfica irresistível, divertida, tensa e sexy - capaz de nos deixar meio que hipnotizados pelas mais de duas horas de duração. Dirigida por Ron Howard - que tem uma carreira irregular, marcada por clássicos modernos oscarizáveis, como, Apollo 13 (1995) e Uma Mente Brilhante (2001) e por bombas atômicas como o recente Era Uma Vez Um Sonho (2020), a obra se inspira na história real do casal Friedrich Ritter (Jude Law) e Dore Strauch (Vanessa Kirby) que fogem da Alemanha no pós Primeira Guerra, para viver na pequena Floreana, um ponto isolado da Ilha de Galápagos.

A ideia era meio que abrir mão dos valores burgueses e capitalistas que pareciam estar corroendo o tecido social, para viver uma espécie de utopia de comunhão com a natureza, em uma nova vida bem distante do mundo "civilizado" e livre de qualquer amarra moderna. Na companhia apenas dos sons da mata e da praia do entorno, Ritter, que era médico, encontrava bastante tempo para se sentar diante de sua máquina de escrever, na intenção de compor uma série de manifestos que encontrariam espaço em jornais estadunidenses e europeus. E é mais ou menos aí que iniciam-se os problemas do casal, com outras pessoas buscando esse espaço idílico, como no caso dos agricultores Margret e Heinz Wittmer (Sidney Sweeney e Daniel Brühl), que chegam ao local com o filho tuberculoso Harry (Jonathan Tittel); além da excêntrica e hedonista baronesa Eloise Wernhorn (Ana de Armas), que chega com seus servos na intenção de construir um resort de luxo no local.

 

 

Uma rápida pesquisa na internet nos permitirá saber que todas essas pessoas, de fato, existiram e, muito provavelmente, coabitaram o local ao mesmo tempo. Mas o que Howard parece desejar fazer, aqui, é nos lembrar de certos ideais um tanto niilistas, baseados em figuras como Nietzche ("quem quiser permanecer limpo entre os homens, deve aprender a banhar-se em águas sujas") ou filósofos como Sartre ("o inferno são os outros"), que são citados de forma permanente e quase presunçosa por Ritter - como uma espécie de metáfora fragmentada do todo. Porque ao final e ao cabo, o casal não consegue deixar a civilização pra trás, sem que ela o encontre. E junto com ela, todos os preconceitos, mentiras, manipulações e antagonismos. Com uns se colocando contra os outros em disputas territoriais - por água, por comida, por poder (e até por prazer) -, o que nos faz lembrar as crianças perdidas do clássico literário O Senhor das Moscas (1954).

Quando os Wittmer chegam, Ritter não acredita que eles tenham força pra permanecer. Há muitos perigos ali e uma série de exigências de sobrevivência que parecem inadequadas para forasteiros. Mas eles ficam, persistem, constroem uma boa horta e se estabelecem com muito trabalho - a despeito dos olhos sempre tristes de Margret, que descobre estar grávida na ilha (o que renderá uma das sequências mais tensas do longa). Já a baronesa é absolutamente irresistível com o seu apelo à luxúria e consumo desenfreado, como uma pequena burguesa autoritária e cheia de personalidade, que antagoniza a todos ali, especialmente ao anunciar ser meio que a dona da ilha. Como um microcosmo da própria falência do capitalismo tardio, o filme consegue ser engraçado e reflexivo ao mesmo tempo, alternando momentos de diálogos hilários (a cena do almoço ou a da tentativa de sedução à um figurão de Hollywood são imperdíveis), com outros repletos de ressentimentos e de uma quase inevitável escalada da violência. Eu tenho a impressão de que se esse filme tivesse sido lançado na década de 90, ele seria sucesso absoluto. Talvez até sendo lembrado nas premiações. Hoje em dia, as pessoas parecem menos dispostas à papagaiadas escapistas. Tudo é levado a sério. Mas quem se aventurar sem grandes pretensões, deve se divertir.

Nota: 7,0 

 

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - Skinamarink: Canção de Ninar (Skinamarink)

De: Kyle Edward Ball. Com Dali Rose Treteault e Lucas Paul. Terror / Fantasia, Canadá, 2023, 100 minutos.

Assistir ao estranho Skinamarink: Canção de Ninar (Skinamarink) me fez lembrar um episódio ocorrido há uns dez anos, quando fui convidado pela organização de um festival de curta-metragens local para ser jurado da competição técnica. A tarefa, verdade seja dita, era bastante ingrata: assistir a uns trezentos curtas, em um período de poucos meses, fazendo anotações e selecionando aqueles que integrariam a lista final de indicados. Só que uma categoria me chamou a atenção a ponto de quase me deprimir: a dos filmes experimentais. Aliás, fiquei surpreso em perceber o apreço de jovens diretores, muitos deles claramente estreantes, em realizar obras herméticas, impenetráveis, repletas de imagens e de sons com ausência de qualquer lógica, funcionando apenas como um exercício de estilo, eventualmente provocador. E, invariavelmente, chato. Por sinal, acho que foi a existência dos curtas experimentais que me fez desistir de participar, novamente, de qualquer outra experiência semelhante a essa.

E, Skinamarink é, assim como aqueles curta-metragens presunçosos, pretensiosos, pernósticos, um filme experimental (corram para as montanhas). Mais ou menos como uma longa instalação de 100 minutos, criada pelo Radiohead na época do Kid A - mas sem qualquer personalidade para bancar isso - o filme do diretor Kyle Edward Ball, que estreou nesta semana na Mubi, é uma sequência infinita de pequenos takes de uma casa na penumbra, colados um no outro, com fotografia granulada, sombria, como se emulando alguma coisa no estilo fita VHS dos anos 80. Não sei muito bem como funcionaram as campanhas de marketing que, a bem da verdade, acho que nem existiram frente ao orçamento minúsculo de apenas 15 mil dólares, mas o fato é que o projeto viralizou no Tik Tok e alcançou uma boa base de adeptos daquele cinema de horror estilo found footage, como A Bruxa de Blair (1999) e Atividade Paranormal (2007).

 


Só que diferentemente desses, aqui não acontece muita coisa. O horror deve estar mais nos efeitos psicológicos da escuridão? No medo infantil do abandono? Nas incertezas diante do desconhecido? Há algo ali que vai mais adiante, chegando no limite entre realidade e fantasia? Vida e morte? Sim, quando o filme acaba são muitas perguntas e poucas respostas e, em geral, quem acompanha o Picanha sabe que eu não tenho nenhum problema com obras menos palatáveis, desde que eu não tenha a impressão de ter sido feito de bobo durante quase duas horas. Será que foi essa a impressão? Será que é esse o cinema do futuro e eu não tô sabendo? E se for, por Deus, tô fora! O resumo que se encontra por aí fala em duas crianças de seis e quatro anos - seus nomes são Kaylee (Dali Rose Treteault) e Kevin (Lucas Paul) - que acordam no meio da madrugada e percebem que o pai desapareceu de casa sem explicação.

Só que, assim, "pai sumiu de casa sem muita explicação" é algo que o espectador vai supor, se não tiver muita informação sobre, depois de um bom tempo de takes de brinquedos lego espalhados, de tetos de casa com suas lâmpadas, de cantos da sala ostensivamente escuros, de corredores isolados, de conversas espaçadas e monossilábicas. Enquanto tentam descobrir o que ocorreu, as crianças percebem que coisas estranhas começam a acontecer no ambiente: as portas e janelas desaparecem, objetos como cadeiras e brinquedos surgem no teto ou em outros locais impossíveis e uma voz do além lhes dá instruções. A madrugada avança enquanto elas assistem desenhos animados antigos, com trilhas sonoras assustadoras e fantasiosas em igual medida. Há na internet e nos fóruns online uma série de tentativas de explicar o que se vê - e que vão de medos embotados de infância, passando por traumas domésticos, até chegar em sonhos nostálgicos. 

 

 

Claro que nada vai ser definitivo e cada um é cada um. Quem nunca se assombrou ao acordar de madrugada e descobriu que aquela forma humana que está no quanto do quarto, na penumbra, é, na verdade uma pilha de roupas em cima de uma cadeira? Ou ouviu barulhos e estalidos na casa que parecem vindos de uma dimensão paralela? Parece que a ideia de Ball foi meio que essa: convidar os seguidores do seu canal de Youtube a relatarem pesadelos noturnos, na tentativa de recriar as imagens desses sonhos. Que essas imagens sejam tão escuras, tão opacas e tão assustadoramente NULAS é meio que decepcionante. A crítica e o público tem sido divisivos entre a aclamação total e a completa abominação, e anda até meio difícil de encontrar um meio termo. Talvez tenha havido boas intenções que colidem com tempos tão urgentes, tão frenéticos. Mas admito a vocês que esse foi um dos filmes recentes em que mais peguei o celular para scrollar aleatoriamente o Insta, enquanto o tempo passava. Não consegui fazer o mergulho necessário talvez? Vocês que me digam.

Nota: 2,5 

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - Família (Familia)

De: Francesco Costabile. Com Barbara Ronchi, Francesco Gheghi, Francesco Di Leva e Marco Cicalese. Drama, Itália, 2025, 125 minutos.

Talvez uma das melhores histórias da atualidade sobre o quão difícil pode ser para uma mulher - para qualquer mulher -, escapar de um ciclo sem fim de violência doméstica. Sem rede de apoio. Com nenhuma garantia de segurança por parte do Estado. E à mercê de uma sociedade incapaz de fornecer o suporte necessário em casos de agressões não apenas físicas, mas psicológicas. Isso é o que assistimos no desalentador Família (Familia), drama dirigido por Francesco Costabile e que foi o enviado da Itália para o Oscar do ano que vem. Disponível na Reserva Imovision, a obra, inspirada em eventos reais que foram relatados em um livro escrito por Luigi Celeste, acompanha a via crúcis de Licia (Barbara Ronchi), que não apenas precisa lidar com o ex-marido criminoso que, recentemente, saiu da prisão - seu nome é Franco (Francesco Di Leva) -, como, mais adiante, ainda precisa confrontar o filho Gigi (Francesco Gheghi), que começa a se aproximar perigosamente de grupos supremacistas brancos, de extrema direita.

Claro que, aqui, temos uma história complexa de como famílias absolutamente disfuncionais podem formar o embrião que gerará adultos desajustados, como no caso de Gigi, que cresce à sombra de um pai que espanca a mãe à ponto de lhe quebrar os dentes da boca, sendo, na medida do possível, tranquilizado pelo irmão mais velho Alesso (Marco Cicalese). Nesse sentido, o filme de Costabile se converte em uma experiência complexa e de escolhas e soluções nunca óbvias. O mesmo valendo para os seus personagens, que nunca surgem em tela como figuras unidimensionais, capazes de ser apenas violentas ou bondosas em tempo integral. O próprio Franco, quando reaparece para os filhos em uma das sequências iniciais, enquanto esses batem bola despreocupadamente no pátio de casa, se empenha em compensar a ausência na vida dos meninos os levando ao parque de diversões e se comportando como um pai mais ou menos dentro do normal (a despeito de sua feição pouco amigável).

 


Sabendo que o ex violento está prestes a sair da prisão, Licia obtém uma medida protetiva, o que a faz trocar também as chaves da fechadura da casa - o que não impede a entrada de Franco, o que ele consegue com a ajuda dos próprios filhos, o que lhe oportunizará escancarar a sua face mais violenta. E, por mais que no aniversário de Gigi os integrantes se esforcem em tornar tudo "normal", um grupo de oficiais de justiça chega com uma ordem para que não apenas Franco fique distante dos filhos e da esposa. Mas a própria Licia seja apartada dos filhos, em um dos tantos instantes comoventes da produção. E que exemplificam a complexidade desses casos. Um salto temporal nos apresentará a um Gigi que já integra uma célula neonazista, ao passo que Alesso segue com uma vida de trabalho - o que não lhe retira a amargura. Os dois já voltaram a viver com a mãe em um modesto conjunto habitacional. Mas o drama ainda tá bem longe do fim. Especialmente após Gigi esfaquear um integrante de um grupo antifa em uma briga de rua e, pior de tudo, o pai reaparecer na vida de todos ali. O que sobrecarregará ainda mais o ambiente.

Em linhas gerais essa tragédia um tanto shakespereana, de pais e filhos em conflito, pode não ter muito espaço para redenção, já que não são poucos os instantes sombrios. Gigi até deixa de lado os ideais neonazis depois de ser preso - e de se apaixonar por Giulia (Tecla Insolia), que abomina essa vida dupla em que ele se encontra. Em certo ponto, Licia confronta o filho, ao mencionar que ele lhe "faz lembrar alguém", sem nem saber que Gigi tem encontrado Franco às escondidas, porque é justamente o pai quem primeiro vai lhe visitar na cadeia (após anos preso por assalto). As idas e vindas podem ser preenchidas por cenas cheias de simbolismos, como aquela em que Gigi e Giulia entram no túnel do terror de um parque, mas o que fica é a alternância e os altos e baixos em que, de novo, as personalidades nunca são limitadas. De qualquer forma e a despeito disso, muitas coisas se sobressaem aqui. Entre elas a dificuldade de expor às autoridades os casos de violência. Que se perpetuam de forma inevitável.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - The Beaches (No Hard Feelings)

Vamos combinar que, até pra fazer música bobinha, é preciso ter personalidade. Sim, porque se relacionamentos falhos, incertezas românticas ou paixões arrependidas costumam ser a matéria-prima ideal para uma banda de power pop festivo ainda na flor da idade, não tem porque ela ser apenas óbvia. Afinal, a gente pode até já ter ouvido essa guitarrinha acelerada antes, a bateria urgente e o estilo vocal meio Sleater Kinney tomando uma ducha de doçura, mas em 2025 ainda dá pra ser descolado, divertido e levemente anárquico dentro do estilo - como comprovam as meninas canadenses do The Beaches que, recentemente, lançaram No Hard Feelings, seu terceiro registro de inéditas. Um álbum cheio de canções de letras irônicas e sem rodeios, e que tem no vocal sensual mas potente, de Jordan Miller, um dos pontos altos.

 


Talvez esse seja mais um disco que não receberá a devida atenção em um ano tão espetacular como 2025. Mas quem se aventurar, dificilmente não abrirá um sorriso nostálgico frente a músicas envolventes e cheias de refrãos ganchudos, como, Fine, Let's Get Married, Touch Myself ou Can I Call You In the Morning? - está última uma peça mal humorada, mas engraçadíssima, a respeito de uma relação tóxica em que os sentimentos de amor e ódio parecem andar lado a lado (Eu gostava da sua antiga banda, mas não das novas músicas / Devemos terminar então?). O expediente de confissões, frustrações e de medo de ter sido excessivamente honesto sobre algo, se repete na deliciosamente sarcástica Did I Say Too Much?, sobre a luta interna que envolve se apaixonar por alguém do mesmo sexo, que deseja um relacionamento aberto. "É sobre a intensidade de compartilhar seus sentimentos mais profundos, sobre algo que é construído para não durar", afirmou em entrevista. Vale a atenção!

Nota: 8,5 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - A Prática (La Práctica)

De: Martín Rejtman. Com Esteban Bigliardi, Manuela Oyarzun e Camila Hirane. Drama / Comédia, Argentina / Chile / Portugal, 2023, 95 minutos.

Era pra ser curioso, engraçado, excêntrico, diferente, mas foi apenas chato mesmo. Ou vai ver fui eu que não consegui embarcar - e, devo admitir que, por vezes, me dá um pouco de ranço esse cinema metido à alternativo que soa apenas presunçoso. O auge do auge nesse 2025 nem era tão indie assim - o horroroso Megalópolis (2025) -, mas tem umas outras joias nessa série B do catálogo da Mubi, que exigem uma boa dose de boa vontade do fã de cinema. E é exatamente esse o caso do recente argentino A Prática (La Práctica), do diretor Martín Rejtman. Espécie de pastiche cômico que tenta soar como um Ari Kaurismäki latino, esse é o tipo de projeto que sai do nada pra lugar algum, enquanto tenta fazer algum tipo de exame aleatório dos sofrimentos, frustrações e dores da classe média, hétero e branca. E que, ao cabo, também luta pra sobreviver.

No centro da narrativa está o professor de ioga Gustavo (Esteban Bigliardi), um sujeito de meia-idade que está se separando da esposa Vanesa (Manuela Oyarzun), que também é instrutora da mesma prática. Enquanto tentam em vão uma terapia de casal tardia para um casamento que não tem mais salvação, Gustavo busca se adaptar à nova vida depois de sair do apartamento da ex, indo morar com o ex-cunhado fumante inveterado, que convive com a esposa meio maluca. Havia uma viagem para a Índia agendada, que o casal desmarca, ao mesmo tempo em que Gustavo vai para uma espécie de retiro espiritual (e, vamos combinar, nada mais burguesia nem tão emergente do que isso). É lá naquele local meio estranho que o protagonista descobrirá uma severa lesão no menisco, que quase lhe impedirá de trabalhar. 

 


E, aqui, a meu ver inicia essa tentativa meio desesperada do diretor em converter qualquer coisa em uma alegoria para as fraturas sociais daqueles que acompanhamos. Uma separação exige que a pessoa se reerga com suas próprias pernas, então que tal colocar uma inflamação no pé como uma metáfora pra isso? Mas há outros momentos meio constrangedores, como no caso do começo da película, instante em que um tremor leve de terra acontece. Uma aluna se lesiona na cabeça e perde a memória - aliás, aluna que parece preocupada com os excessos do instrutor em relação a ela. Assédio? Vai saber. Fica tudo mais ou menos no ar, exatamente como uma pedra flutuante completamente aleatória que aparece como um Deus ex-machina quase ao final, tentando solucionar algo que, ao cabo, é meio que insolúvel. Ver aquelas pessoas apenas aborrece. E nada mais.

Por sinal, o próprio fato de o sujeito ser um instrutor de ioga - um tipo de prática com rígido código de conduta, com exigências físicas e mentais -, aparece como uma desculpa para comentários sociais estúpidos a respeito de culturas regulamentadas. Aliás, é verdade que professores de ioga não comem alho?  Ah, Gustavo também é vegetariano. E tem uma mãe controladora. O que talvez ajudasse a compreender alguns comportamentos, se lá pelas tantas a gente não tivesse meio que de saco cheio daquelas pessoas vazias, que lavam roupas como um processo de purificação. E que perambulam pra lá e pra cá sem muita lógica, em atos entorpecidos e vazios, que culminam em diálogos ocos e que parecem retirados da pior peça de teatro juvenil da história. O surgimento de novos personagens, como o jovem Matias (Giordano Rossi), que é acusado de furto por Gustavo, ou mesmo a ex-aluna e enfermeira Laura (Camila Hirane) acrescentam ZERO em termos de interesse. Em uma experiência que termina oca como a vida simplória e ordinária de todos ali.

Nota: 2,5 

 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Nourished By Time (The Passionate Ones)

Paixão, fé, revolta política, falta de dinheiro, guerra, consumismo, lavagem cerebral. Vamos combinar que poucos artistas da atualidade mesclam tão bem as experiências pessoais - que envolvem dificuldades financeiras, incertezas sobre o futuro e até a análise do poder transformador da arte -, com questões mais amplas sobre as falhas do capitalismo tardio e da sobrecarga vivida por qualquer minoria que insista, meramente, em sobreviver nos Estados Unidos, como o Nourished by Time. Com um elogiado disco de estreia na bagagem, Erotic Probiotic 2 (2023), a banda capitaneada por Marcus Brown agora retorna com o ótimo The Passionate Ones, onde novamente une R&B experimental, bedroom pop e neo soul, em um projeto cheio de vigor, com seu vocal espectral se mesclando à sintetizadores sedutores, pianos levemente caóticos e cordas estranhas.

 


Em linhas gerais é um tipo de som até meio difícil de definir. A um amigo, numa tentativa meio falha, comentei que a coisa toda lembrava uma junção do TV on the Radio com o Jamie XX - especialmente no componente da estranheza, com melodias que olham para o futuro, mas também honram o passado, como no caso da sofisticada 9 2 5, que tem um quê meio Chaka Khan, com uma letra cheia de personalidade que se inspira na vida real de James, que teve outros empregos, até "acontecer" como artista (Tentando driblar o sistema / [...] Trabalhando em restaurantes de dia / Escrevendo canções de amor de noite). O expediente da música de protesto, mas que também serve para dançar e amar (como resumiu o The Guardian), se repete em outros instantes, como no single Baby Baby um rap ágil com coralzinho gospel e um quezinho de disco music, que traz letra sobre desejo de fama e bombardeio na Palestina. É único, brilhoso, onírico e sensual em igual medida. Não há como ouvir a balada Tossed Away, ou a magnética It's Time (a melhor) e ficar alheio. É artista cheio de alma que veio pra ficar.

Nota: 10 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Taylor Swift (The Life of a Showgirl)

Apenas por curiosidade resolvi abrir alguns fóruns online pra ver o que os ouvintes estavam falando sobre The Life of a Showgirl, o décimo segundo disco da Taylor Swift e confesso a vocês que fiquei impactado em como as pessoas levam a sério o trabalho da loirinha! De comentários maldosos sobre ela estar sendo uma paródia de si própria, passando por discursos moralistas a respeito das letras tardiamente safadas da artista e críticas a um certo cansaço da imagem, até chegar ao auge de alguém dizer que ela só faz música pra atender o seu público, não seguindo seu "coração", aparentemente tudo está em julgamento. E nada está em seu lugar. Como o fã de novela que se queixa dos seguidos furos de roteiro, ou o consumidor de fast food que não entende como um hambúrguer tão famoso pode ser tão pobre do ponto de vista nutricional, espera-se que a Taylor, aparentemente, seja como uma espécie de baluarte da salvação da música no ano de 2025. Que ela dê um novo direcionamento para o seu pop de violão. Para que ela avance ainda mais pra dentro do matagal e da fogueira depois dos excelentes folklore e evermore (2020). E fuja do óbvio sem nunca mais olhar pra trás.

 


Mas, vamos combinar que talvez a Taylor só esteja feliz, convertendo essa alegria de um novo amor - alguém que a trata com doçura sem arroubos irônicos (Honey), que tem uma rola mágica de uns 20 centímetros (Wood) -, em um disco cheio de petardos brilhosos pra cantar junto, como as ótimas Opalite e The Fate of Ophelia (esta última com citações à Shakespeare, pra quem tá sedento por algum tipo de profundidade). Não é todo o dia que a gente precisa de uma dissertação de Mestrado musical - e o que não faltam são bandas diferentonas nessa seara. E o que o que me deixou surpreso, de fato, foi que a cantora chegou a anunciar que estava fazendo uma espécie de retorno aos tempos de Red (2012) e de 1989 (2014), que é o que acontece aqui. Ou seja, tudo estava alinhado! Sim, há acenos sobre o drama da mulher branca e famosa na era do cancelamento (CANCELLED!), a respeito da exploração na indústria da música (Father Figure, que tem uma interpolação de George Michael em uma canção de mesmo nome), além de uma diss track desajeitada, que parece direcionada à Charli XCX (Actually Romantic). Nada mais adequado para a hora do treino ou para encarar uma louça em cima da pia. E vida que segue!

Nota: 8,5 

Cine Baú - Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock)

De: Peter Weir. Com Anne-Louise Lambert, Margaret Nelson, Rachel Roberts, Helen Morse e Jacki Weaver. Drama / Suspense, Austrália, 1975, 115 minutos.

Uma montanha enevoada, um clima de sonho febril e bucólico, os banhos de flores, as roupas rendadas, a trilha sonora onírica e delicada, os letreiros góticos - absolutamente tudo, no início do clássico hippie Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock), sugere um ambiente romântico, mas misterioso, sensível, porém enigmático. Ao cabo, a obra conduzida pelo versátil Peter Weir (de O Show de Truman, 1998) e que recém completou 50 anos de seu lançamento, pode ser uma experiência excessivamente contemplativa para alguns paladares. Especialmente por não adotar, como seria esperado em uma produção dos anos 70, o esquema de início, meio e fim desenhados de uma forma mais tradicional, ou com algum tipo de solução mais satisfatória. Só que esse é um filme muito mais sobre a atmosfera criada. A respeito de sensações evocadas. E sobre temas que ficam uma camada abaixo - e que vão do amadurecimento, passando pelas descobertas sexuais, até chegar às diferenças sociais ou mesmo o medo do desconhecido.

Em um primeiro momento, a produção estabelece diálogo com suspenses típicos de gênero, quando três alunas e uma professora simplesmente desaparecem, sem muitas explicações, em meio a um piquenique junto às opressivas formações geológicas de Hanging Rock, em Victoria, na Austrália. É o Dia dos Namorados no ano de 1900 e as jovens estudantes de um internato para meninas estão animadas com a possibilidade de saírem à campo para celebrar a data. A severa diretora Mrs. Appleyard (Rachel Roberts) alerta para as situações de risco: os rochedos podem ser perigosos, há chance de haver cobras ou formigas e a exploração está proibida. A ideia é que elas elaborem uma redação como tema de casa e o clima é amistoso. Menos para uma garota de nome Sara (Margaret Nelson), que é obrigada a ficar no educandário - e, mais adiante, compreenderemos os motivos, dado o conservadorismo reinante e um certo estranhamento no que diz respeito ao afeto excessivo que Sara dispensa à outra jovem, no caso Miranda (Anne-Louise Lambert).

 


Aliás, aqui está uma das grandes habilidades do filme - inspirado em obra da romancista Joan Lindsay -, que é apresentar uma série de subtextos de forma sutil, sem apelar para obviedades ou convenções. O suposto lesbianismo de Sara nunca vai para além do campo da sugestão - ela é impedida de ir ao piquenique por ser uma novata recém-chegada de outro orfanato e que teria sido apartada de seu irmão. Com a opressão à ela se ampliando conforme ela apresenta uma série de dificuldades financeiras, ficando em "dívida" com a escola. Miranda é uma das jovens que desaparecem em Hanging Rock, ao lado de Marion (Jane Vallis) e Irma (Karen Robson). O sumiço se dá após um misterioso evento que faz os relógios pararem (às 12h em ponto), ao mesmo tempo em que os professores aceitam que as jovens saiam do seu raio de ação, sob a desculpa de investigarem melhor o local. No caminho, o trio que é acompanhado ainda por Edith (Christine Schuler) - que é a única que consegue fugir -, é sorrateiramente observado pelos jovens Michael (Dominic Guard) e Albert (John Jarratt).

Quando Edith retorna desesperada ao acampamento, após um transe que leva Miranda, Marion e Irma para uma espécie de fenda, as explicações são desencontradas. Uma professora, que teria tentado auxiliar nas buscas, também desaparece. A força tarefa que faz as buscas não tem muitas informações. Edith alega ter visto uma nuvem vermelha. O quarteto teria desmaiado junto às rochas antes do ocorrido. Pessoas aleatórias teriam sido vistas em meio às frestas estreitas, à distância, como se não tivessem uma "função" bem definida. "Na Inglaterra não se permite que jovens passeiem assim sozinhas", lembra Michael, fazendo um aceno ao patriarcalismo da época, que se une a um apelo à violência como forma de dominação. Nada fica muito claro e também a situação não se resolve, quando Irma é localizada desacordada. A sensação é de alarmismo e de colapso, com especulações sobre estupro e assassinato e outros crimes que podem abalar a reputação da escola - com a tragédia se ampliando perto do desfecho, com o mistério permanecendo insolúvel. O que não reduz o impacto dessa joia cult, que integra uma série de listas de melhores, inspirando, anos mais tarde, uma série de outros projetos, como As Virgens Suicidas (2000), de Sofia Coppola.

 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Wolf Alice (The Clearing)

Vamos combinar que, quando o assunto é a música alternativa, existem algumas bandas que são apostas certeiras. Daquelas que praticamente não têm como dar errado. E esse é justamente o caso dos ingleses do Wolf Alice que, depois de lançarem o melhor disco internacional de 2021, o essencial Blue Weekend, retornam com o ótimo The Clearing, o quarto trabalho de estúdio. Mais maduros e, consequentemente mais preocupados com questões que dizem respeito aos trinta mais, o grupo capitaneado por Ellie Rowsell, nunca soou tão limpo. É como se o seu soft rock psicodélico, antes diluído em algum tipo de plasma que o deixava mais garageiro, mais sujo e até mais sonhador, agora tivesse passado por um polimento. Reflexo da chegada em uma nova gravadora (um braço da Sony), que tentará vendê-los como os "novos" salvadores do pop britânico? Talvez. Mas, também e provavelmente, uma vontade pessoal de se aproximar de um público mais amplo.

 


Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na pegajosa Just Two Girls, que não apenas tem aquela pegada mais setentista e estrutura clássica de estrofe e refrão, como ainda possui uma letra comovente sobre amizade entre duas mulheres, ecoando sentimentos de vulnerabilidade, julgamentos e inseguranças (Apenas duas garotas / Como duas crianças no parque / Aqui está o palco, você é a estrela). Já a ótima baladinha Play It Out aborda às pressões relacionadas à maternidade e sobre como as jovens mulheres só parecem ser validadas enquanto forem jovens ou férteis. Talvez os mais apressados possam se sentir à vontade pra dizer que não há nenhuma canção tão potente como Don't Delete the Kisses ou Lipstick on the Glass nesse álbum. Mas esse é um trabalho que cresce a cada nova audição. O que faz com que a cada dia canções diferentes - como Thorns, Bloom Baby Bloom, Bread Butter Tea Sugar ou White Horses - permaneçam conosco.

Nota: 8,5