Vamos combinar que, quando o assunto é a música alternativa, existem algumas bandas que são apostas certeiras. Daquelas que praticamente não têm como dar errado. E esse é justamente o caso dos ingleses do Wolf Alice que, depois de lançarem o melhor disco internacional de 2021, o essencial Blue Weekend, retornam com o ótimo The Clearing, o quarto trabalho de estúdio. Mais maduros e, consequentemente mais preocupados com questões que dizem respeito aos trinta mais, o grupo capitaneado por Ellie Rowsell, nunca soou tão limpo. É como se o seu soft rock psicodélico, antes diluído em algum tipo de plasma que o deixava mais garageiro, mais sujo e até mais sonhador, agora tivesse passado por um polimento. Reflexo da chegada em uma nova gravadora (um braço da Sony), que tentará vendê-los como os "novos" salvadores do pop britânico? Talvez. Mas, também e provavelmente, uma vontade pessoal de se aproximar de um público mais amplo.
Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na pegajosa Just Two Girls, que não apenas tem aquela pegada mais setentista e estrutura clássica de estrofe e refrão, como ainda possui uma letra comovente sobre amizade entre duas mulheres, ecoando sentimentos de vulnerabilidade, julgamentos e inseguranças (Apenas duas garotas / Como duas crianças no parque / Aqui está o palco, você é a estrela). Já a ótima baladinha Play It Out aborda às pressões relacionadas à maternidade e sobre como as jovens mulheres só parecem ser validadas enquanto forem jovens ou férteis. Talvez os mais apressados possam se sentir à vontade pra dizer que não há nenhuma canção tão potente como Don't Delete the Kisses ou Lipstick on the Glass nesse álbum. Mas esse é um trabalho que cresce a cada nova audição. O que faz com que a cada dia canções diferentes - como Thorns, Bloom Baby Bloom, Bread Butter Tea Sugar ou White Horses - permaneçam conosco.
De: Bernhard Wenger. Com Albrecht Schuch, Julia Franz Richter e Theresa Frostad Eggesbø. Comédia / Drama, Áustria / Alemanha, 2024, 102 minutos.
Em um dos filmes mais engraçados de Woody Allen, o diretor e ator vive Leonard Zelig, um sujeito meio sem graça que sofre de uma curiosa condição psicológica: a de ser capaz de adequar não apenas a sua personalidade, mas também a sua aparência, para que esta fique ajustada ao grupo em que está convivendo. Se está ao lado de médicos ingleses afetados, logo ele estará comentando os avanços da ciência com sotaque característico. Se estiver próximo a um coletivo de jazz, ele, como um camaleão humano, modificará a cor da pele, tornando-se um habilidoso saxofonista. A necessidade de se ajustar às convenções era o que estava no centro de crítica de Zelig (1983), um mocumentário absurdamente hilário e que, hoje, anda meio esquecido na filmografia de Allen. O que nos leva à O Pavão (Pfau: Bin Ich Echt?) que, em alguma medida, repete as ideias da obra do nova iorquino em suas discussões sobre personalidade (ou ausência de uma), quebra de padrões sociais e outros temas relacionados.
Só que, como não poderia deixar de ser quando o assunto é o cinema alternativo europeu, aqui temos uma espécie de episódio de Black Mirror, feito para ser exibido no Festival de Locarno. Na trama do filme de Bernhard Wenger - o enviado da Áustria para o Oscar 2026 -, Matthias (Albrecht Schuch) é uma espécie de mestre na personificação de papeis. Aliás, a ponto de tornar essa habilidade a sua profissão. Ele pode até parecer meio tímido ou um tanto normie, mas como o dedicado funcionário de uma empresa chamada My Companion, ele pode se converter em qualquer pessoa, encarnando um papel que esteja de acordo com o desejo do cliente. Alguém para ser companhia durante um concerto musical? Na mão. Um namorado gay, que ajudará o parceiro na compra de um apartamento que só é vendido para casais? Não seja por isso. Um piloto de avião que surge como o pai improvisado de uma criança, em sala de aula? Oras, vamos lá.
Como um Zelig dos tempos modernos, Matthias vai pra lá e para cá com seu ar blasé, solicitando aos clientes uma avaliação positiva no site, a cada serviço concluído, para que os negócios sigam satisfatórios. Só que a vida real não é feita de personagens. Quer dizer, pode até ser, em partes, mas sempre haverá o dia em que a máscara pode cair. Exatamente como dizia o Lulu Santos, na ótima Tudo Igual (Não leve o personagem pra cama / Pode acabar sendo fatal). E o caso é que a namorada de Matthias, Sophia (Julia Franz Richter), já tá de saco cheio da apatia do companheiro. Incapaz de tomar qualquer decisão, de mostrar qualquer tipo de autenticidade. "Você simplesmente não parece mais real", reclama ela na discussão central da narrativa, enquanto ele assiste a um enorme cachorro recém adotado por ela, comer ração diretamente do sofá. Aliás, o caso é que até o drama da DR soa fake, como se as lágrimas tivessem de ser aplicadas artificialmente.
Enquanto vive seu próprio drama pessoal, Matthias se prepara para dois novos papeis. Em um deles, auxilia uma idosa - seu nome é Vera (Maria Hofstätter) - a ser capaz de argumentar com o marido reinento. O que ocorre em sessões periódicas em um apartamento improvisado no centro. Já outro contratante é um senhor que organiza uma festa de 60 anos, com Matthias encarnando o filho do sujeito. O homem quer que ele capriche no discurso - algo emotivo, convincente -, para que ele possa se cacifar para a presidência de uma associação de ricaços que ele representa. Enigmático, estranho e meio delirante, o filme aposta em situações que vão no limite do deboche à burguesia pequena, sendo impossível não encontrar eco na obra de diretores como Ruben Östlund (especialmente a sequência final, com sua referência à The Square: A Arte da Discórdia, 2017) e Yorgos Lanthimos, com sua crítica lúcida ao vazio da experiência das elites econômicas abastadas. Contexto que é reforçado pelo exótico retiro espiritual feito pelo protagonista. Tá na Mubi e vale prestar atenção.
De: Paul Thomas Anderson. Leonardo DiCaprio, Teyana Taylor, Sean Penn, Chase Infiniti e Benicio Del Toro. Ação / Policial / Comédia / Drama, EUA, 2025, 161 minutos.
Existe uma frase atribuída à Che Guevara que diz que "a revolução se faz através do homem, mas o homem tem de forjar, dia a dia, o seu espírito revolucionário". Em alguma medida e, em uma interpretação bastante livre, é possível afirmar que tal sentença resume bem o sentimento vivido por Pat Calhoun (Leonardo DiCaprio), personagem central de Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another), que está em cartaz nas cinemas do País. Ao cabo, a obra dirigida por PaulThomasAnderson - um dos favoritos da casa - é uma experiência larga, grandiosa, que alterna momentos frenéticos de perseguição e de fugas espetaculares (tanto a pé, como em carros em movimento), com instantes um tanto intimistas, domésticos e reflexivos. Não apenas sobre os tempos em que vivemos - de ascensão de uma extrema direita a cada dia mais radical -, mas também da persistência quase romântica em não deixar os ideais revolucionários esmorecerem.
Porque em geral é muito cômodo aceitar o mundo em que vivemos. Com Bolsonaro, Trump, Netanyahu, supremacismo branco, nazismo da pós-modernidade, xenofobia, genocídios e instabilidade social generalizada. Mas como é possível acordar todas as manhãs, recolhendo todo o ânimo restante para que o ideal de um mundo melhor para as gerações futuras se perpetue? Como ir para além da paixão sanguínea e ideológica que move os movimentos de esquerda (ou progressistas) que lutam por justiça social e um maior equilíbrio entre quem está acima e abaixo da pirâmide? No primeiro terço da produção é meio que impossível não se comover com uma espécie de deleite amorosamente revolucionário. Aquela coisa de tesão e fúria, de sexo e bomba, de luta panfletária por liberdades em meio a tiros, gozo e tentativas espetaculares de driblar as forças militares que se instauram nas entranhas do poder. E que acham que podem determinar o futuro do cidadão comum, levando-se em conta sua raça, gênero ou cor da pele.
Pat e a parceira de crimes (e de cama) Perfídia Berverly Hills (a ótima Teyana Taylor) - como se fossem uma espécie de Bonnie and Clyde das trincheiras revolucionárias -, integram o coletivo French 75 que realiza, por baixo dos panos, uma série de ações que envolvem explosões com bombas, resgates mirabolantes de presos políticos, e ataques a rede elétrica, que visam a desestabilizar o governo tirânico e autoritário de extrema direita em vigor. E que tem no comandante Steven Lockjaw (Sean Penn, como se fosse um General Heleno do universo nem tão alternativo), o seu principal rosto. Aliás, rosto asqueroso como costuma ser o desses neofascistas que compensam algum tipo de ausência, com muito grito, muita arma empunhada, um tanto de cara feia e muita raiva de qualquer minoria. Negros, gays, imigrantes, quem quer que seja. E é por isso que ele fica absolutamente exasperado quando ele é humilhado por Perfídia, durante uma ação do grupo. Para mais tarde capturá-la, obrigando-a a fazer sexo com ele.
Perfídia, mais adiante, dá à luz à filha Charlene (Chase Infiniti), mas, incapaz de seguir uma vidinha de "bela, recatada e do lar", ela foge de casa para seguir os ideais da revolução, deixando a cargo de Pat a criação da pequena. Só que, em uma das ações do French 75 as coisas saem errado, Perfídia é presa, indo parar em uma espécie de Programa de Proteção de Testemunhas, que é conduzido pelo próprio Lockjaw, com seus trejeitos e tiques nervosos absurdamente irritantes. Um conjunto de situações que obrigará Pat e Charlene a fugirem, enquanto Perfídia também consegue escapar do seu asilo forçado - no caso, para o México. Um salto de 16 anos no tempo mostrará pai e filha vivendo agora com outra identidade (seus novos nomes são Bob e Willa), tentando tocar a vida em uma cidade santuário isolada. E, claro, como não poderia deixar de ser, a caçada em si ainda não terminou, especialmente após Lockjaw se tornar integrante de luxo de um grupo supremacista - o que faz com que Bob / Pat se torne a cada dia mais paranoico. Tendo no vício em drogas uma espécie de válvula de escape.
Com uma trilha sonora envolvente, de cordas e pianos cortantes que sobem e diminuem, mas que permanecem meio que o tempo todo - cortesia de Jonny Greenwood, do Radiohead -, e uma edição ágil, mas nunca confusa, Uma Batalha Após a Outra é uma aventura política quente, inspirada em um conto de Thomas Pynchon, e que dialoga, inevitavelmente, com o atual contexto político (ainda que Vineland, o texto de Pynchon, tenha sido escrito na esteira do governo do republicano Ronald Reagan). Por vezes exagerado, em outros momentos engraçado, mas o tempo todo hipnótico, esse é o tipo de produção que, as pessoas elogiam dizendo que "nem se vê às 2h40 passarem". Sim, isso pode ser um mérito, especialmente em uma obra bem costurada, ágil e que mantém a atenção do público. Claro que, no terço final, quando a perseguição parece não ter mais fim - depois da entrada em cena do professor de caratê de Willa, Sergio (Benicio Del Toro) -, a coisa pode dar uma certa cansada. Ainda mais quando meio que já compreendemos a mensagem que fica, no que diz respeito ao combate permanente de regimes autoritários. E da importância de nunca desmobilizar.
De: Fernando Coimbra. Com Leandra Lea, Irandhir Santos, Stepan Nercessian, Thiago Thomé e Irene Ravache. Drama / Policial, Brasil, 2024, 123 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor Fernando Coimbra sabe de sua habilidade em construir aquele drama policialesco e essencialmente urbano - repleto de personagens de caráter duvidoso, que navegam em um cenário de criminalidade reinante. Foi assim, por exemplo, com o ótimo O Lobo Atrás da Porta (2013) - que lhe credenciaria para a direção de alguns episódios da série Narcos, da Netflix -, é assim com o recente Os Enforcados, que passou meio que batido pelos cinemas e, agora, chega para aluguel nas plataformas de streaming. A trama gira em torno de um casal de trambiqueiros - Regina (Leandra Leal) e Valério (Irandhir Santos) -, que comercializa máquinas de caça níquel clandestinas na periferia do Rio de Janeiro. Só que, a despeito da reforma que eles estão executando em sua voluptuosa casa, o caso é que eles estão falidos. Endividados. Em crise. O que, ao menos em partes, não altera o sexo fetichista da dupla.
A oportunidade de ouro para quem tá meio que ligando o foda-se surge quando o tio de Valério, um certo Linduarte (Stepan Nercessian), uma figura influentíssima no jogo do bicho, anuncia que vai deixar os negócios - o que representa uma tentativa de recomeço para Valério, que é influenciado por Regina que, mais adiante, perceberemos ter uma ambição atroz. Sentimento ampliado por um outro trambique. Esse perpetrado pela mãe de Regina, Helena (Irene Ravache) - uma charlatã leitora de cartas de tarô, que anuncia a filha que a lua em Saturno (ou algo que o valha) configurará uma virada financeira. Nem tudo será tão simples porque a ideia de Valério era vender a sua parte dos negócios para o tio. Só que ele descobre que o sujeito anda enrolado com políticos, com milícia e gente grande do local. "Todo mundo quer a morte desse cara e você nunca será o suspeito, já que é o sobrinho", insinua Regina. E, bom, é mais ou menos por aí que se inicia uma trilha de sangue, de violência, de chantagens e de perseguições.
O caso é que Regina e Valério não apenas matam o próprio tio para assumir seus negócios, como ainda o escondem em meio as paredes da casa em reforma - uma coisa estilo Festim Diabólico (1948), mas talvez com menos charme blasé. Enquanto as obras avançam, os golpes (e paranoias) também se ampliam. Há outros homens interessados em saber do paradeiro de Linduarte que, eles dão a entender, teria algo a ver com a morte do próprio pai de Valério, uma outra figura controversa e ligada ao crime. Há uma escola de samba no meio dos negócios - e que faz aquele aceno ao estelionato -, além de uma empresa de fachada para a lavagem de dinheiro. Só que o casal central descobrirá, a duras penas, que o tio também era um falido de marca maior, estando endividado até o pescoço. Com gente graúda. O que levará a uma investigação da Polícia Federal e uma tentativa desesperada de sobreviver em meio a tudo.
Sim, essa resenha meio mal construída pode dar a entender que é tudo meio sem graça nessa perseguição de gato e rato e em tentativas aleatórias de um bando de alpinistas sociais ascenderem a qualquer custo. Mas aqui temos não apenas o resumo alegórico desse Brasil atual do jogo do Tigrinho, e de pessoas em um desejo nem tão secreto de enriquecerem percorrendo menor caminho possível, como tudo é feito com um senso de humor meio Marçal Aquino, meio Guy Ritchie (na melhor fase) - se é que isso é um elogio. Há uma tentativa de graça que não fica só na violência estilizada pela violência. Por exemplo, quando o tio morre o sangue se espalha até pelo teto, se bobear. O cachorro sapateia por cima da gosma vermelha. O que exige de Regina um esforço a mais no alvejante. Há outros acenos sobre questões sociais e políticas, como no momento em que Valério afirma, como "cidadão de bem que paga impostos", ser a favor de um combate mais efetivo do crime organizado. Como se ele não fizesse parte daquele contexto. Enfim, nada mais Brasil do Brasil. E méritos para Coimbra, que é capaz de levar tudo isso pra tela apostando na excentricidade de tudo, sem pedantismo ou academicismo excessivo.
De: Aga Woszczynska. Com Agnieszka Zulewska, Dobromir Dymecki, Ibrahim Keshk e Marcello Romolo. Drama / Suspense, Itália / República Checa, 2022, 113 minutos.
Na primeira cena de Terra Silenciosa (Cicha Ziemia), um sujeito sofre para abrir uma persiana meio emperrada, que faz um barulho estridente. Uma mulher, que parece ser sua esposa, coloca alguns produtos em uma geladeira, enquanto um zumbido agudo surge incômodo. No instante seguinte, o casal examina um ventilador que não funciona, carece de reparos. A piscina do local está quebrada. Não demora para que percebamos que o casal polonês Anna (Agnieszka Zulewska) e Adam (Dobromir Dymecki) está de férias, em uma ilha paradisíaca da Itália. O sol brilha, a praia luminosa convida. É tudo alvo e caloroso, a dupla parece estar conectada - ao menos é o que indicam as aparências. Mas há um ruído (alegórico ou não), um tipo de desconforto que parece pronto pra emergir não se sabe bem de onde, e que marca essa ótima estreia da diretora Aga Woszczynska, que finalmente chega à Reserva Imovision.
Tal qual o burguês histriônico que reclama de seu quarto de hotel na primeira temporada da sempre imperdível White Lotus (2021), aqui o casal se queixa, de forma mais comedida, por óbvio, com o proprietário da pousada a respeito da inoperância da piscina. "Vocês são meus primeiros clientes da temporada", argumenta o carismático Fabio (Marcelo Romollo), que também é o proprietário da trattoria local. A proposta de compensar os clientes com um lauto prato de massas não convence, o que faz com que o homem garanta: em dois dias a piscina estará consertada. Após uma noite de sexo quente, a tranquilidade de Anna e Adam é quebrada logo cedo da manhã do dia seguinte, quando entra em cena o jovem árabe Rahim (Ibrahim Keshk) - um sujeito de corpo esguio e de pele morena (e suada), que, em um cenário de objetificação, talvez não fizesse feio em um vídeo pornô mais teatralizado -, que, de britadeira em punho, trabalha no reparo.
Branco e meio sem graça - inclusive do ponto de vista do senso de humor -, Adam fica claramente desconfortável com a situação. O casal deseja a piscina mas parece não gostar da presença do empregado - que surge ali como a figura "invasiva", estranha, que quebra essa lógica de rotina, de tranquilidade. [SPOILERS A PARTIR DAQUI] Há um incômodo no todo, que só piora quando Rahim sofre um grave acidente - ele tropeça e cai na piscina que, justamente, está sendo enchida. Anna e Adam presenciam o fato. Mas fazem pouco para socorrer o jovem empregado. Que bate a cabeça nos azulejos e... morre. Afogado. Para a polícia local uma ocorrência trágica. Mas talvez rotineira. As câmeras de segurança evidenciam que pode ter havido negligência por parte de Adam, que optou por telefonar pedindo socorro, ao invés de correr para acudir o ferido. "Os turistas são bem-vindos em nossa cidade", comenta o delegado, diante dos depoimentos cheios de ambiguidades.
E aqui talvez esteja a grande sacada dessa produção silenciosa e cheia de sutilezas, que aposta em alegorias e metáforas para discutir xenofobia, crises envolvendo imigrantes, preconceitos de classe e privilégios burgueses. Ninguém ali parece muito disposto a apontar dedos para Anna e Adam. "Ele nem estava legal aqui", argumenta um casal de amigos - um professor de mergulho e sua esposa -, com quem eles fazem amizade no transcorrer da estada. Só que há uma coisa chamada consciência. E tal qual Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, o que atormentará inabalavelmente a existência do casal será a culpa, o conflito moral e a crise ética. Como seguir em frente sabendo que, talvez, uma morte pudesse ter sido evitada? Mais: de alguém que integra uma minoria, já tantas vezes vulnerável nesse sistema capitalista em que vivemos? O desfecho simbólico é a cereja do bolo nessa obra que parte do microcosmo, para uma análise minuciosa do todo. Vale muito.
Vamos combinar que existem alguns discos que demoram pra ser absorvidos em sua totalidade. Que exigem mais de uma audição - em muitos casos cinco, seis, oito repetições. Até mais. E, ainda assim, a cada novo encontro será uma descoberta. É algo que vai meio que na contramão do consumo moderno de música, pautado por canções curtas que possam render dancinhas viralizantes no Tik Tok (e que, vá lá, daqui a algumas semanas talvez ninguém se lembre mais, quando a nova moda aparecer). E esse é justamente o caso de Ethel Cain que, não apenas lançou o seu segundo álbum apenas em 2025, como este novo registro, um panegírico intitulado Willoughby Tucker, I'll Always Love You, também ultrapassa os sessenta minutos de duração - como foi o caso do estranho e experimental Perverts, que deu as caras no comecinho de janeiro.
Funcionando como uma continuação de Preacher's Daughter (2022) - que esteve na nossa lista de melhores daquele ano -, Willoughby adota o mesmo estilo elegíaco, quase etéreo, ao contar uma história ficcional e trágica de amor, que percorre cada fragmento do álbum. Alternando momentos de versos profundamente emocionais e de grande vulnerabilidade, como em Nettles (O tempo passa mais devagar no piscar de luzes do hospital), com instantes de puro deleite instrumental, caso de Radio Towers, Cain entrega um registro flutuante, cru e vertiginoso sobre a sensação nauseante de se apaixonar e de se ver profundamente alterada por essa relação, independente do que ocorra. É um disco de vibrações sombrias que emergem de cordas e pianos atmosféricos. Mas também de estranho acolhimento em meio à dor.
De: Andrea Arnold. Com Nykiya Adams, Barry Keoghan, Franz Rogowski, Jason Buda e Frankie Box. Drama, Reino Unido / EUA / França / Alemanha, 2024, 118 minutos.
"É bonito né? O quê? O dia." Talvez a mensagem geral de Bird, mais novo filme de Andrea Arnold e que está disponível na Mubi, seja mais simples do que a narrativa sugere, vamos combinar. No centro da jornada da protagonista - a adolescente Bailey (Nykiya Adams) - parece estar aquela típica história de amadurecimento, com todos os elementos do cinema alternativo de gênero: família disfuncional, pobreza, violência no entorno, falta de perspectivas ou mesmo diálogos impossíveis. Uma infelicidade geral que consome - e que é reforçada pelo aparato técnico, que vai da fotografia dessaturada, passando pelos elementos cênicos caóticos, até chegar à trilha sonora impecável. Só que quanto mais esse filme lindo avança, mais a gente percebe que a luta por uma vida melhor está em reconhecer as próprias limitações. Tentando superá-las naquilo que está ao alcance. Mas também abraçando meio que essa "geografia".
Já na primeira sequência da obra, temos Bailey na carona da scooter elétrica do pai, Bug (e ninguém melhor do que Barry Keoghan pra interpretar um trambiqueiro tatuado) que, mais adiante, anunciará o controverso noivado com a jovem Kayleigh (Frankie Box). Como se a vida já não fosse uma coleção de aparentes desastres, Bug quer que Bailey esteja bonita em um vestido de gosto duvidoso, para a cerimônia que ocorre no próximo sábado. Só que, por mais que Bug pareça se esforçar para amar a filha, assim como se dedica ao meio irmão Hunter (Jason Buda), as condições financeiras parecem bastante limitadas. A ponto de o sujeito capturar um sapo que ele acredita ser capaz de expelir uma substância de grande valor, que possibilitará uma reviravolta em termos de grana pra todos ali. Aliás, o tipo de situação meio mágica e sensorial, de crença meio que no abstrato e no poder simbólico que, em muitos casos, percorre o cinema de Arnold.
E talvez não seja por acaso que Bird (o sempre ótimo FranzRogowski) se apresente justamente como essa figura enigmática - um sujeito misterioso que parece guardar segredos do passado (especialmente em relação à sua família, que teria lhe abandonado ainda criança). Bailey conhece Bird após um episódio envolvendo Hunter, que integra uma milícia juvenil, dedicada a fazer justiça com as próprias mãos. Após uma ação que não dá muito certo envolvendo o grupo, Bailey precisa fugir da polícia, indo parar num descampado. Ela dorme no local. E amanhece nesse espaço idílico, meio isolado de tudo, com cavalos em volta, o vento soprando de forma misteriosa, dobrando as gramíneas. E Bird se aproximando como um esquisitão saído de uma obra de realismo fantástico. Dançando de forma torta. E elogiando a beleza da vida. É dele, aliás, a frase que abre essa resenha. A estranheza inicial dará início à uma amizade. Com Bailey empenhada em descobrir o paradeiro dos pais do novo amigo.
Sim, pode ser difícil encontrar beleza onde não parece haver, mas o caso é que família só muda de endereço. As decisões de Bug podem não ser as melhores, mas as intenções são. É ele quem é responsável por cuidar dos filhos e, a seu modo, faz isso. O que envolve, inclusive, incluir a protagonista nessa nova "vida" - e, observe como nem tudo é tão preto no branco, como no instante em que a jovem recorre justamente à Kayleigh, quando a sua primeira menstruação acontece. Entrecortado por uma trilha sonora absolutamente inebriante de nomes como Sleaford Mods, Blur, Coldplay e The Verve (num divertidíssimo apelo à nostalgia, com a música de "velho" tendo papel central nessa construção), o filme não fornece soluções fáceis. E nem opta pela estilização banal da violência, que poderia ser uma saída. Ao cabo há uma vida a viver e fugir pode não ser a melhor solução. Eu, honestamente, não imaginava terminar essa obra às lágrimas. Mas foi o que aconteceu. Há uma mensagem simples e poderosa de amor, de família, de afeto e de esperança em meio à desordem diária. É drama social eficiente, essencialmente humano, e pouco óbvio, que ainda aposta na fantasia e na alegoria como amplificador de ideias mais esperançosas. (Ah, importante: há uma brincadeira sobre uma canção em específico que é ótima! Vocês saberão quando ocorrer.)
De: Virginie Sauveur. Com Karin Viard, François Berléand, Annie Mercier e Nicolas Cazalé. Drama, França, 2023, 98 minutos.
"Ela não injetou hormônios para ser homem. Ela o fez para ser padre!" Assim como ocorreu no recente e ótimo Conclave (2024), Disfarce Divino (Magnificat) é mais um daqueles filmes a discutir os papeis de gênero na Igreja Católica. Mais precisamente no que diz respeito à ocupação de cargos de sacerdócio pelas mulheres - e de como isso pode parecer uma política bastante atrasada em tempos em que a sociedade, assim se espera, evolui. Na primeira cena do filme de Virginie Sauveur - que foi exibido no Festival Varilux e que agora está disponível na plataforma Amazon Prime -, a chanceler da diocese Charlotte (Karin Viard) recebe uma ligação, após a morte de um padre da paróquia local - seu nome é Pascal. Tudo parece ok, ele estava doente, só que, durante os procedimentos que encaminhariam o falecido para a cremação, vem a revelação bombástica: o padre, na realidade era uma mulher. Com genitália feminina. Seios. Escondidos. Por toda uma existência.
A situação, curiosa por natureza, deixa todos exasperados. E, na realidade, preocupados - especialmente com o risco desta verdade vir à tona, o que poderia ser um escândalo para a Igreja Católica. Sim, tudo poderia ficar meio que por baixo dos panos, mas o caso é que Charlotte fica realmente intrigada com o caso. Como é possível que, durante uma vida inteira, uma mulher tenha vestido a batina sem que ninguém ao redor soubesse? Pelo simples amor à sua vocação? É a partir disso que a protagonista inicia uma investigação bastante particular, que lhe levará à juventude do padre - que não apenas faria uma transição que lhe conferiria uma aparência mais masculina (com barba e tudo), mas que envolveria ainda uma troca de identidade. Uma troca de identidade com uma outra jovem - taco a taco -, que serviria para superar o ambiente conservador, de intolerância e de preconceito que povoa os bastidores da religião.
Em linhas gerais esse é um filme interessante, que reserva algumas surpresas que vão se descortinando aos poucos. No cerne está o atraso da Igreja para essas questões - e não são poucas as sequências de diáconos e arcebispos discutindo os rumos do catolicismo em meio à pautas progressistas e disputas políticas (e, admito, que a obra poderia ser ainda melhor se investisse mais nesses bastidores). Quando sai para sua jornada em busca do que teria acontecido, Charlotte vai ao setor de assistência social local, após o agente funerário ser chantageado para que o caso não chegue à público. Lá, a protagonista descobre que Pascal era um filho de mãe desconhecida que, aos cinco anos vai parar em um seminário no final dos anos 60. E é meio que lá que ele/ela recebe o chamado de Deus. Claro que nada será tão simples e há mais pessoas envolvidas.
Uma delas é a mãe adotiva de Pascal, Agathe (Annie Mercier), que lhe mostra uma foto da juventude do menino. Dando a entender que a responsável pelo registro possa lhe auxiliar de alguma maneira. DE lá para cá, Charlotte encontra outros irmãos do falecido, enquanto lida com as suas próprias angústias - especialmente aquelas que dizem respeito ao seu filho adolescente de 15 anos. Que também cresce sem o pai por perto, em um caso envolto em segredos obscuros e traumas do passado. Ao cabo, a obra marca seu ponto sem forçar a mão, trazendo a discussão de forma sofisticada, sutil e sem dificuldade para ser digerida. "Ele era um pacifista, uma figura gentil e discreta, um padre amado por todos", lembra o monsenhor Mével (François Bérleand), que contribuiu para que o segredo fosse mantido. "Eu teria coragem de expulsar essa mulher quanto ele tinha encontrado refúgio na fé?". É a pergunta que fica em um filme que trata o tema de forma adulta e, como cereja do bolo, sem ignorar o papel da ciência na equação.
De: Zach Cregger. Com Julia Garner, Josh Brolin, Cary Christopher, Alden Ehrenreich e Amy Madigan. Suspense, EUA, 2025, 129 minutos.
Vamos combinar que, se fosse um curta ou um média metragem, e talvez A Hora do Mal (Weapons) pudesse ser um dos grandes filmes do ano. Especialmente na primeira parte, a obra do diretor Zach Cregger é hábil em construir a atmosfera necessária para deixar o espectador em estado permanente de alerta. Atento à ambientação e ao caráter alegórico da narrativa, que parecem contribuir para preencher a produção de significados. Quem já leu qualquer resenha sobre, já sabe que essa é uma experiência que não se esgota quando os créditos sobem, afinal, são muitas as possibilidades de interpretação. E isso é tão bom que, se Cregger tivesse optado por manter a coisa no campo mais do simbólico, o resultado provavelmente seria mais efetivo. Resumidamente: talvez não precisasse um "monstro" do ponto de vista concreto, ou material, se o mal pudesse ser entendido como outro. Maior. Intangível. Abstrato, mas que está no tecido da sociedade. Nas suas vísceras. Entranhado.
Dividido em capítulos com os nomes dos personagens que, em alguma medida, protagonizam cada excerto, o filme começa com o sensacional trecho sobre Justine (Julia Garner), a professora de Ensino Fundamental que precisa lidar com um caso que impacta toda a comunidade da pequena Maybrook, na Pensilvânia - e que envolve o sumiço, inexplicável, de dezessete crianças da terceira série que está sob sua responsabilidade meio que, assim, sem mais nem menos. Misteriosamente, às 2h17 da manhã, todos os pequenos levantam de suas camas, descem as escadas, saem porta afora correndo, com os braços retesados para trás, em direção à escuridão. Ao nada. Para nunca mais serem vistas. Estranhamente, apenas uma das crianças permanece: o introvertido Alex (o ótimo Cary Christopher), que não parece ter muitas informações. Ou mesmo que esteja disposto a falar qualquer coisa.
A comunidade escolar exige uma imediata explicação. Não apenas da direção, mas também de Justine, da polícia, enfim, qualquer coisa que leve a alguma pista. Agindo como os pais desesperados do ótimo Os Suspeitos (2013), de Denis Villeneuve, o operário Archer Graff (Josh Brolin), o pai de uma das crianças desaparecidas, resolve iniciar por conta uma investigação - o que se desenrola no segundo ato, que recebe o nome do sujeito. Até esta parte o filme consegue preservar o clima instigante de tensão. Justine é acusada de negligência por parte dos pais - teria sido desligada de uma escola anterior em circunstâncias pouco claras, além de ter sido presa ao dirigir embriagada (o problema com álcool parece recorrente). Por não ser "flor que se cheire" alguns, como Archer, pensam que ela possa estar por trás do ocorrido com as crianças. Na ânsia por justiça, em uma sociedade punitivista, violenta (e armamentista) como a estadunidense, o barril de pólvora parece pronto a explodir. Com outros pequenos eventos contribuindo para essa escalada de tensão.
Parte fundamental da narrativa, a casa em que Alex vive surgirá envolta em mistério, com as janelas cobertas por jornais, a mobília suja e pais, excêntricos (pra dizer o mínimo) - isso sem contar uma outra parente que aparecerá mais adiante. E que meio que assustará geral. Aqui e ali as trucagens podem ser surpreendentes. Há outros personagens com boas histórias, como no caso do policial amigo de Justine - seu nome é Paul (Alden Ehrenreich) -, além de um drogadito de nome Anthony (Austin Abrams), que parece disposto a qualquer coisa pra manter seu vício. Só que, como afirmei, a partir da metade, a coisa desanda em uma busca pela simplificação. O que faz com que se deixe de lado a metáfora poderosa sobre violência, traumas, preconceitos, senso de justiça e luto, para uma aposta meio sem sentido em um componente estranhamente sobrenatural. Que quase vai no limite do lugar comum, do caricato e do preconceituoso. Tornando uma potente história exploratória que poderia ampliar as discussões sobre um sem fim de temas sociais atualmente em alta, em uma obra tola, que recorre ao mais óbvio dos chavões: o do monstrinho estranho que deve ser extirpado para que o final seja, minimamente, feliz. Decepcionante.
De: Danny e Michael Philippou. Com Sally Hawkins, Billy Barratt, Jonah Wren Phillips e Sora Wong. Terror / Drama, Austrália / EUA, 2025, 104 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]
Da lenda egípcia de Osíris, passando por livros como Cemitério Maldito, de Stephen King, ou mesmo filmes como Hereditário (2018), de Ari Aster, não foram poucas as obras de arte que se ocuparam do tema dos mortos que "retornam" à vida. Ou de vivos que, diante de um contexto de luto, se empenharão em trazer de volta aqueles que tenham partido para uma melhor. Em muitos casos, essa acaba sendo uma boa desculpa para trabalhos que examinam traumas que emergem de cenários de perda, e quais os caminhos para a superação. No caso do recente Faça Ela Voltar (Bring Her Back) a coisa não parece assim tão profunda do ponto de vista psicológico - ainda que, aqui e ali, a obra dirigida pelos irmãos Danny e Michael Philippou espalhe alguns símbolos que nos ajudam a compreender as motivações de Laura (Sally Hawkins), a mãe enlutada que parece disposta a qualquer coisa pra trazer a falecida filha de volta à vida.
O filme inicia com uma experiência um tanto traumática para Andy (Billy Barratt) e sua meia-irmã, a jovem Piper (Sora Wong) - que tem um severo problema de visão que lhe permite ver apenas vultos e sombras -, que encontram o próprio pai morto, no chuveiro. Aparentemente ele tratava um câncer (ou não, vai saber). Após uma conversa com a assistente social, a dupla é enviada para morar com uma ex-conselheira da Instituição - seu nome é Laura (Sally Hawkins), uma excêntrica mãe também enlutada (ela perdeu a própria filha após um trágico afogamento, na piscina de casa) -, que também abriga um outro menino, no caso Oliver (o ótimo Jonah Wren Phillips). Oliver parece estranho e taciturno - seu olhar é fundo, meio denso, mas ao mesmo tempo disperso. O que combina com o cenário como um todo: uma casinha isolada no meio do nada, rodeada por uma floresta (um ethos inevitavelmente óbvio).
Como não poderia deixar de ser, tudo começa mais ou menos bem naquele ambiente. Andy estranha um pouco o carinho desmedido de Laura com Piper - talvez o fato de ela também ter perdido uma filha que, curiosamente, era cega. E tinha mais ou menos a mesma idade. A mesma altura, tudo. E, bom, não precisa ser nenhum adivinho para saber que, dali pra frente, coisas estranhas começarão a acontecer naquele ambiente. Especialmente por Laura, reiteradamente, colocar para rodar um vídeo que parece explicar uma espécie de ritual satânico, em que uma pessoa morta é trazida de volta à vida, com o uso de um hospedeiro (que meio que suga a alma do vivo, para depositá-la no morto, fazendo-o despertar). Sim, é tudo um tanto bizarro e a coisa vai escalando conforme a loucura de Laura (e de Oliver, que não compreendemos bem as motivações, inicialmente), avançam.
Em linhas gerais trata-se de uma obra tensa, sombria e que se utiliza, em alguma medida, do horror físico - que ficam evidenciadas nas impactantes transformações corporais de Oliver. Que sai de um menino que, de forma um tanto esquisita, resolve morder uma faca, até chegar em alguém que come mesas, objetos e a própria carne se for preciso. Tudo para saciar a fome de algo que parece estar parasitando, de forma oculta, seu pequeno corpo. Seu ser. Há no contexto uma ambiguidade sobre o que pode ter ocorrido, de fato, com a filha de Laura e isso nunca fica claro - sendo parte do mistério geral. Mas o caso é que trata-se de uma experiência que alterna momentos mais contemplativos, com outros um tanto movimentados e que traz o elementos sobrenatural como metáfora para a superação da dor.
De: Wes Anderson. Com Benicio Del Toro, Mia Threapleton, Michael Cera, Riz Ahmed e Tom Hanks. Comédia / Drama, EUA / Alemanha, 2025, 101 minutos.
Quem acompanha a carreira do Wes Anderson sabe que, meio que sempre, o seu cinema terá as mesmas características. Aliás, poucas vezes será tão fácil encontrar uma assinatura tão particular em filmes, como no caso do realizador - com sua paleta de cores invariavelmente vibrante, simetria geometricamente organizada, travellings hotizontais que nos levam de um personagem à outro e uma certa teatralidade no todo. Bom, e pra que o troço não se torne cansativo demais, repetitivo demais - aquela coisa da estética pela estética, sem um propósito mais claro -, restam, claro, as boas histórias. E se não é sempre que o diretor acerta, como no caso do recente Asteroid City (2023), com O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme) é possível afirmar que temos um grande filme. Tragicômico na medida certa e com aqueles personagens adoráveis e imperfeitos, em suas famílias disfuncionais.
Aqui, a comédia bobagenta e irônica tem como pano de fundo uma trama de espionagem, que envolve o industriário Anatole Zsa-Zsa Korda (Benicio Del Toro), um traficante de armas que pretende ampliar o seu império, mas que se vê em maus lençois quando o Governo, em uma manobra pra tentar conter as ambições do megaempresário, aumenta artificialmente os tributos de materiais utilizados na construção. O caso é que Korda é um trambiqueiro de marca maior e os agentes do Estado estão, de toda a forma, tentando barrá-lo. Aliás, na primeira sequência do filme, o sujeito escapa da morte após uma explosão em um de seus aviões - em uma tentativa de sabotagem. Preocupado com os rumos de seus negócios, o protagonista se (re)aproxima de sua única filha, a noviça Liesl (Mia Threapleton). A ideia é fazer com que ela abandone a Igreja e siga o projeto de expansão com a construção de uma série de projetos de engenharia.
Ao mesmo tempo, desesperado pelo aumento do preço de parafusos e roldanas, Korda empenhará uma complexa jornada pelo deserto, na intenção de visitar cada uma das obras - de túneis, hidrelétricas e vias fluviais -, na intenção de tentar diluir as futuras dívidas entre outros investidores. E, bom, não será preciso ser nenhum adivinho para perceber como esse microcosmo, em alguma medida, reflete justamente o macro, com suas ambições políticas, mesquinharias e práticas nem sempre éticas - o que pode ser percebido pela diversidade de sujeitos extravagantes que ele encontra pelo caminho, casos do príncipe fenício Farouk (Riz Ahmed), o investidor Leland (Tom Hanks), o revolucionário comunista Sergio (Richard Ayoade) e o gângster dono de uma boate Marseille Bob (Mathieu Amalric). Todos surgindo como motivos para uma série de piadas que quase parecem saídas de algum programa de humor dos anos 90.
Em uma delas, Korda é instigado a decidir o futuro das taxas (com suas fraudes e chantagens) em uma partida de basquete com Farouk e Leland e mais o desconfiado irmão e parceiro de negócios deste último, o mal-humorado Reagan (Bryan Cranston) - e talvez não sejam por acaso esses nomes de personagens, que aludem a figuras reais ou fictícias de um passado não tão distante (aliás, a trama se passa nos anos 50). Como se não bastassem as "duras" negociações de Korda, ele ainda precisa lidar com uma série de problemas familiares. Há os mal tratados filhos adotivos e um possível caso de adultériio, que envolveria o próprio irmão Nubar (Benedict Cumberbatch), que o teria traído com sua própria esposa, o que o teria levado, talvez, a assassina-la. O que gera uma desconfiança permanente em Liesl.
Com piadas que aludem a clássicos como Dr. Fantástico (1964) - em certa negociação, os envolvidos trocam armas de guerra, como bombas e granadas, como se fossem meros objetos domésticos -, e instantes que dobram a aposta na bizarrice da violência moderna, como no momento em que Maresille Bob ameaça se explodir em um atentado, caso as partes não concordem sobre as questões orçamentárias, esta é aquela obra que condensa suas críticas a toda a estrutura do capitalismo, com suas ambições, truculência e individualismo atroz. Repleto de grandes estrelas - ainda há os não citadas Scarlett Johansson (como a prima Hilda), Michael Cera (o tutor de Liesl), Rupert Friend (o agente do Governo Excalibur, que está empenhado em destruir o império de Korda) e, como não poderia deixar de ser, Bill Murray (que encarna, óbvio, Deus), esse é aquele projeto que diverte para além do aparato estético. Há alguma substância aqui. Em um conjunto que faz valer a pena.
Já faz umas três temporadas que sempre que a CMAT lança um novo disco, ele vai imediatamente pras cabeças, Ninguém por aqui deu muita bola quando ela entregou, em 2022, o absolutamente imperdível If My Wife New I'd Be Dead - nosso segundo colocado na relação daquele ano -, mas agora, com Euro-Country, tá com cara de que ela finalmente (e com justiça) vai furar a bolha. Até porque na lista de melhores artistas da última semana que ninguém ouviu (mas já deveriam ter ouvido), poucos terão a capacidade única de unir letras debochadas - pontuadas por uma série de críticas e comentários sociais e políticos ácidos e quase cínicos -, com violões country e arranjos pop perfeitos como Ciara Mary Alice Thompson. Como em seus registros anteriores, esse é um disco de dor e de humor, que ri de si, mas que também examina as crises atuais com sincera confiança.
Um bom exemplo dessa mistura pode ser percebido no sofisticado single Take A Sexy Picture of Me, que discute imagem e aceitação, a partir de uma experiência pessoal, em que a irlandesa sofreu uma onda de hate após um vídeo publicado no Instagram da BBC Radio 1, ano passado. "Nunca achei que fosse obesa e agora deveria ser presa por ter uma bunda grande e gorda", debochou à época, após ser surpreendida pela chuva de comentários atacando sua aparência. E a real é que essa é a habilidade de CMAT: a de pegar temas espinhosos para convertê-los em grandes canções, cheias de versos irônicos e de refrãos pegajosos. Político mas cintilante, reflexivo mas agridoce, esse é um álbum que parece se expandir a cada nova audição. O que faz com que ótimas músicas como When a Good Man Cries (sobre fazer um parceiro sofrer, mesmo que ele não tenha feito nada de errado) ou Running/Planning (a respeito de pressões sociais e planos conformistas) se tornem melhores a cada repetição!
De: Hiroshi Okuyama. Com Keitatsu Koshiyama, Sosuke Ikematsu e Kiara Nakanishi. Drama, Japão / França, 2024, 90 minutos.
Existe uma cena bastante singela ainda no início de Sol de Inverno (Boku no Ohisama) e que, em alguma medida, resume o encantamento daquilo que acompanharemos na obra do diretor Hiroshi Okuyama. Nela, o pequeno Takuya (Keitatsu Koshiyama) fica hipnotizado enquanto assiste a um grupo de meninas praticando patinação no gelo. A estação mais gelada do ano chegou, e o jovem troca o beisebol dos dias primaveris, pelo hóquei congelante, em que ele não parece se adaptar muito bem. Como goleiro - que é o que sobra pra quem não tem muita habilidade em qualquer esporte coletivo -, ele acaba levando uma dolorida "bolada" (ou discada, vá lá), que lhe dá um vergão junto às costelas. A real é que ele abomina com todas as forças o hóquei sobre o gelo. E o interesse pelas patinadoras não envolve necessariamente as meninas em si e, sim, a delicadeza do esporte que ele observa. Com seus gestos majestoso e elegância única.
Sim, como se fosse o menino apaixonado por balé clássico de Billy Elliot (2000), aqui temos um garoto que sonha em ser patinador artístico. Algo que ele nem entende direito por quê gosta. "Um esporte de garotas", debocha uma das meninas quando percebe Takuya - que, de quebra, sofre uma gagueira que lhe rende o apelido de Tata - ensaiando os primeiros (e um tanto desajeitados) passos. Só que no canto do rinque, o protagonista também é espionado pelo professor Arakawa (Sosuke Ikematsu), que fica comovido com as tentativas do menino, com suas repetidas quedas e jeito meio desengonçado. "Os patins de hóquei não servem para isso", explica o instrutor à Takuya, enquanto lhe estende um par ideal para a prática. "Considere isso um empréstimo", afirma. O que dá início a uma parceria e também a uma amizade entre treinador e aluno.
Claro que, diferentemente do que ocorre em filmes hollywoodianos, aqui não teremos um exame do preconceito e da homofobia tão acentuados, tão escancarados. As coisas ocorrem meio que pelas frestas, evoluindo com sutileza, assim como se espalham de forma econômica, mas vigorosa, os raios de luz que entram no complexo esportivo em que boa parte da ação ocorre. Como filme oriental, muito do que se diz é o não dito. Os silêncios são longos, assim como as sequências cheias de carisma em que a dupla celebra qualquer evolução. Tudo sempre meio na encolha pra não chamar a atenção. Incluído entre as garotas, Takuya passa a fazer dupla com a patinadora Sakura (Kiara Nakanishi), uma atleta bastante técnica, que será justamente o ponto de desequilíbrio. Ela parece nutrir uma certa paixão pelo professor, que mostra uma afetuosa (no melhor sentido) atenção ao seu novo pupilo. Além do fato de o instrutor ser gay - ele tem um namorado que reside com ele.
Em alguma medida, esse é um filme nunca exagerado. Como se emulasse a passagem das estações, aqui o que vale é o exercício de paciência. As sequências em que a família é envolvida surgem envoltas em uma aura enigmática, quase incerta. Há uma beleza onírica que se percebe já na primeira sequência do longa, quando um Takuya paralisado, percebe a queda dos primeiros flocos de neve que evidenciam a chegada da nova estação. O inverno ali naquela ilha japonesa será invariavelmente gelado, mas o sol será uma figura onipresente, mostrando que há calor em cada fragmento - o que é reforçado pela fotografia levemente granulada, de tons amarelados. Há uma maravilhosa sequência de treino em um lago congelado - cenário que retornará mais adiante -, com um outro sentido. Não há nada definitivo aqui. Apenas um exame sobre liberdade de fazer o que se ama. E de como isso pode ser fundamental na nossa formação como sujeitos.
De: Mike Flanagan. Com Tom Hiddleston, Chiwetel Ejiofor, Mark Hamill, Karen Gillan e Jacob Tremblay. Drama / Fantasia, EUA, 2025, 111 minutos.
Uma jovem artista de rua toca bateria em uma esquina qualquer. As pessoas passam, não dão muita bola, seguem suas vidas. Aquilo que a gente meio que vê nas grandes cidades, cotidianamente. Até o momento em que um sujeito bem vestido - com um terno bem cortado -, de pasta na mão, cruza por ela. E, de forma inesperada, para. Para, ouve, começa a absorver aquele ritmo cadenciado e inicia uma dança. Que começa econômica, mas evolui de forma expansiva, chamando a atenção de outros. Uma outra mulher é convidada pelo homem a dançar com ele, se propondo a conduzi-la. O que formará um conjunto belo e envolvente, e que talvez dê conta do caráter aleatório da existência. A gente nunca sabe onde está exatamente a linha de chegada, quem deixará marcas em nossas vidas, quais memórias teremos. Ou mesmo dores, desejos, arrependimentos. É meio óbvio que tudo isso nos percorra. E ao mesmo tempo muito lindo como A Vida de Chuck (The Life of Chuck) lida com todas essas questões.
A etapa em que o homem dança com a mulher, ao som de uma baterista em um dia tranquilo faz parte do segundo ato da obra de Mike Flanagan, inspirada em um conto recente de Stephen King (aliás, uma das especialidades do realizador, adaptar obras do autor de livros de mistério). Esse segmento - seu título é Artistas de Rua Para Sempre -, é meio que fundamental para a compreensão daquelas que parecem ser algumas das ideias centrais da produção. A de que não somos absolutamente nada e ninguém "na fila do pão", mas que ao mesmo tempo somos capazes de coisas maravilhosas. Chuck (Tom Hiddleston na fase adulta), o homem que dança, é apenas um contador que deixou o sonho de ser artista pelo caminho. Mas que reaviva esse ideal, justamente no momento em que encontra Taylor (Taylor Gordon), a baterista. Chuck ainda não sabe, mas tem apenas nove meses de vida pela frente. Ou vai ver talvez ele saiba e sinta isso. E não queira desperdiçar nenhuma oportunidade.
Importante que se diga que nenhuma análise que se faça desse belo projeto poderá ser definitiva. Essa é uma obra bastante aberta e cheia de possibilidades de interpretação. Chuck é alguém que morre com apenas 39 anos e, quando o filme começa, no exato instante em que o ocaso de sua existência parece em curso, ao mesmo tempo o nosso planeta parece ir pelo mesmo caminho. No ato 3, chamado de Obrigado, Chuck - sim, a coisa vai de trás pra frente, tornando tudo mais formidável - temos o professor de Ensino Médio, Marty Anderson (Chiwetel Ejiofor). Que parece enfastiado com os rumos da educação, ao mesmo tempo em que se depara com o caos ambiental que se instala - com grandes tsunamis, queimadas, vulcões e crateras que afetam sua vida e os demais -, que resulta na queda da internet, na perda de serviços telefônicos, da luz e da esperança como um todo. Desesperado, ele tenta ir ao encontro de sua ex-esposa Felicia (Karen Gillan), enquanto tudo o que enxerga são placas, outdoors e mensagens oficiais na TV, saudando a existência de um certo Chuck. Que parece ser ao mesmo tempo o último meme, e algum tipo de esperança que conecta todos ali ao espaço material.
Já na primeira parte, Eu Contenho Multidões, viajaremos para infância e para a juventude de Chuck, com suas memórias embotadas pela perda precoce dos pais em um acidente de carro, com ele sendo criado pela afável avó Sarah (Mia Sara) - que é quem estimula o protagonista a dançar - e pelo taciturno avô Albie (Mark Hamill), que se torna alcoólatra após a perda do filho. Na casa dos avós, permanece um mistério que envolve um quarto no sótão: a recomendação é de que ele nunca seja aberto. Sob hipótese alguma. Na juventude, os dissabores e as complexidades do crescer, com suas paixões gerais e incertezas, colidem com certo idealismo capaz de superar fantasmas literais, ou reais, que rondam a vida do menino. Fantasioso, eventualmente onírico, repleto de simbolismos e de metáforas sobre dor, perdas, memória, luto e amadurecimento e futuro, essa é uma das grandes obras da temporada e que nunca se fecha simplesmente, quando sobem os créditos. Somos uma partícula minúscula dentro da teoria do Calendário Cósmico - nos lembra o professor Marty em certa altura. E ainda assim, repletos de vida, de contradições e de experiências extraordinárias.
De: Adam Elliot. Com Sarah Snook, Jacki Weaver, Kodi Smit-Mcphee e Eric Bana. Animação / Drama, Austrália, 2024, 95 minutos.
Vamos combinar que em tempos de inteligência artificial e de consumo rápido, um filme em stop motion como Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail) - um dos indicados ao Oscar na categoria Animação na edição desse ano - se torna ainda mais relevante. E bastam os primeiros minutos da obra dirigida por Adam Elliot - do igualmente ótimo Mary e Max: Uma Amizade Diferente (2009) - para que sejamos impactados pelo visual (e isso que um amontoado de entulho, em muitos casos, não parece ter assim tanta "beleza"). Mas esse é um projeto que se deleita em sua complexidade do ponto de vista técnico, ao mesmo tempo em que entrega uma narrativa simples e trágica sobre dois irmãos gêmeos que perdem a mãe durante o parto e, mais adiante, veem o próprio, que sofre de um quadro severo de apneia do sono, também padecer.
Sim, apesar de essa ser uma animação, é importante que se diga que não há nada de infantil aqui. Aliás, a própria classificação indicativa do projeto - voltado à maiores de 17 anos ou menores acompanhados dos pais -, deixa claro o fato de esta ser uma produção para adultos. Com temas complexos como luto e solidão e até fanatismo religioso, problemas de saúde e fetiches sexuais, surgindo aqui e ali como parte da narrativa. Na trama, a protagonista Grace (Charlotte Belsey na versão criança e Sarah Snook, na adulta) é quem conta a história - que tem como ponto de partida a trágica morte de Pinky (Jacki Weaver), uma ex dançarina de bordel e leitora compulsiva, que se torna uma espécie de amiga involuntária da jovem. Em seu leito de morte, Pinky grita um inesperado "potatoes" - como se fosse algum tipo de Rosebud dos novos tempos -, deixando uma pulga na orelha sobre o significado daquilo. O que é só uma desculpinha pra uma volta no tempo para que toda a história seja rememorada.
De forma divertida, Grace solta no jardim um de seus caracois - seu nome é Sylvia - e mais adiante entenderemos como ela se tornaria uma colecionadora desse tipo de molusco. Na volta no tempo, a protagonista narra como sofria bullying em sua juventude por conta de uma cicatriz acima de sua boca, resultado de uma operação de lábio leporino, e de como o seu irmão Gilbert (Mason Litsos na infância e Kodi Smit-Mcphee na fase adulta), a defendia de seus colegas provocadores. Aliás, a defendia a ponto de se oferecer para uma transfusão de sangue comovente durante sua cirurgia - o que lhe levaria a crer que morreria. São pequenos instantes que emocionam e que ajudam a construir a história, inspirada em eventos reais da própria juventude de Elliot, cheia de adversidades, que ajudariam na formação e no amadurecimento de Grace.
Em sua trajetória, Grace descreve desde o auxílio e um sem teto de quem se torna amiga - um magistrado de nome James (Eric Bana), que é destituído do cargo por se masturbar em público -, e de como viria a ser adotada por um excêntrico casal de swingers (sim, de troca de casais). Já Gilbert, um piromaníaco de carteirinha, acaba enviado à casa de uma família de fanáticos religiosos, que utiliza a sua intolerância para oprimir. O que gera uma série de instantes tragicômicos. A chegada de Pinky à vida de Grace também é descrita com riqueza de detalhes - sendo ela uma senhora de hábitos curiosos, que teve uma série de empregos, perdeu dois maridos, teve o dedo mindinho decepado e frequenta praias de nudismo. Já o candidato a namorado da protagonista, se insere na trama como um jovem provavelmente fetichista, que se aproveita dela pelo seu fascínio por "gordinhas". Esquisito, mas esperançoso, soturno mas cheio de humanidade, esse é um filme que une técnica e roteiro de forma inequivocamente honesta. O que faz valer cada segundo.
Quando Lorde lançou o Solar Power (2021), a opinião da crítica e do público foi meio que unânime: o terceiro disco da neozelandesa, por melhores que fossem as suas intenções, parecia meio deslocado do seu tempo. O mundo recém saía de uma pandemia, uma série de tensões perto em vias de ebulição e o álbum parecia um convite quase ingênuo a uma dança psicodélica de maturidade forçada. Bom, o fato é que não emplacou. Ainda mais depois do impacto de Melodrama (2017), nosso primeiro colocado na lista internacional daquele ano, que permanece, com seu apelo à dança solitária e frenética no escuro, como um dos registros mais importantes da década anterior. E, bom, passado todo esse tempo - e é quase inacreditável que a artista já esteja com doze anos de carreira -, chegamos à Virgin que é, com seus sintetizadores sombrios e letras bastante confessionais, um retorno às origens. Por mais batido que possa parecer esse conceito.
E esse tipo de renascimento observado nas canções - cheias daquela melancolia movimentada, que funciona com fones de ouvido na madrugada do quarto, mas também em danças hipnóticas nos inferninhos da vida -, também dialoga com uma série de aspectos da vida pessoal, de Lorde e que vão desde um término de relacionamento, passando por um transtorno disfórico pré-menstrual que ocorreria após ela parar de tomar anticoncepcional, até chegar às cobranças relacionadas à imagem pessoal e ligadas às exigências da indústria. O resultado é uma colação de canções que já nascem com aquela cara de hino com refrãos pegajosos, como no caso de Man of The Year (que investiga às complexidades de gênero), Favourite Daughter (sobre medos decorrentes da fama inesperada e a necessidade de aprovação) e Broken Glass (a respeito do impacto dos distúrbios alimentares). Visceral, sexy, adulto, mundano e totalmente conectado com os dilemas contemporâneos. Lorde sendo Lorde era só o que precisávamos nesse 2025.
De: Celine Song. Com Dakota Johnson, Pedro Pascal, Chris Evans e Zoe Winters. Drama / Romance, EUA / Finlândia, 2025, 116 minutos.
Vamos combinar que parte do magnetismo do cinema de Celine Song talvez esteja em sua capacidade de subverter pequenas lógicas. Ainda mais quando o assunto é o cinema e as expectativas criadas em relação ao que assistimos. No ótimo e elogiado Vidas Passadas (2023), por exemplo, ela brincou com as expectativas relacionadas ao primeiro amor. Do que poderia ter sido e nunca foi. E de como essas memórias ligadas às nossas paixões juvenis, muitas vezes podem surgir como um borrão idealizado. Como uma fantasia romantizada de uma outra época e que, verdade seja dita, muito provavelmente não existe mais. Afinal de contas as pessoas mudam e, que bom que é assim. Em seu novo projeto, Amores Materislistas (Materialists), a realizadora traz de volta um ethos meio batido, mas que costuma render em comédias românticas ou dramas de época: o casamento deve ser por amor ou por dinheiro?
Sim, a gente já viu essa história milhares de vezes e em tempos tão individualistas e de apelo à certas tradições o assunto parece receber uma injeção de oxigênio. Na trama, Dakota Johnson é Lucy, uma profissional que trabalha como casamenteira - meio que como um Tinder em forma de ser humano, que planilha candidatos solteiros, faz um levantamento de suas preferências em termos de idade, altura e condição financeira e tenta unir possíveis almas gêmeas. Um negócio que parece ser lucrativo junto à burguesia de Nova York, tanto que ela está prestes a celebrar a nona união entre pombinhos que não se conheciam e que agora estão prestes a seguir para o altar. E é justamente durante a festa de casamento de sua mais recente cliente, que ela conhece o charmosíssimo e elegante Harry (Pedro Pascal), um sujeito agradável que, nas impressões da profissional, é uma espécie de pão quente para os seus negócios. Solteiro, bem resolvido, com grana, é garantia de sucesso com suas clientes mais exaustas de tudo.
Só que, como nas tradições que envolvem obras do gênero, Harry não parece interessado em alguma das mulheres do catálogo de Lucy. O que ele deseja é a própria, com quem ensaia uma dança sensual que vai quase para além do simbólico. E como as coisas não costumam ser assim tão óbvias, há na vida de Lucy um terceiro integrante: no caso o garçom John (Chris Evans), um ator em meio período que luta para vencer na vida, enquanto as dívidas se acumulam (e as frustrações também). Por trafegar em um ambiente de tanta pompa e elegância, Lucy parece desejar ser parte daquele contexto de eventos chiques, gastronomia farta e bebidas sofisticadas. Harry, por mais que Lucy negue, tem o potencial para oferecer isso. Ao passo que o esforçado John, em meio ao desespero de um amor que nunca se resolve financeiramente, aparecerá em flashbacks bastante francos, encarnando o ex quebrado que calcula até os centavos na hora de oferecer um almoço de aniversário à protagonista ("não é que eu te odeie por ser pobre, mas nesse momento te odeio justamente por isso", afirma Lucy com uma franqueza atroz).
Para quem acredita que o amor possa superar todas as adversidades, inclusive as que envolvem a falta de dinheiro, a honestidade com que Lucy lê o mundo pode ser quase dolorida (ainda que a obra de Song possa preparar, aqui e ali, as suas ciladas). "Casamento é um negócio e sempre foi assim", "o jeito que você paga a conta de desconcerta", "um dia, sem motivo algum, vocês vão passar a se odiar, parar de fazer sexo, se trair", são algumas das frases práticas e quase niilistas que a protagonista desferirá com uma honestidade assombrosa, em meio a cenários luxuosos e que reforçam o prazer intelectual que é assistir pessoas tão bonitas, com discursos tão ambíguos e realistas, mas que denotam de forma vibrante a complexidade dos relacionamentos, com suas frustrações, vulnerabilidades, medos e incertezas. É, ao cabo, uma obra gostosa de ver e talvez não tão completa como Vidas Passadas. Mas tem uma beleza que foge daquele escopo óbvio de começo, meio e fim redondinho de comédia romântica mais previsível. Ainda que não seja necessariamente surpreendente. Ah, detalhe que não pode passar batido: a trilha sonora de nomes como The Ronettes, Cat Power, Harry Nilsson e Françoise Hardy é a cereja do bolo.
De: Rebecca Lenkiewicz. Com Emma Mackey, Fiona Shaw, Vicky Krieps e Vincent Pérez. Drama, Reino Unidos, 2025, 93 minutos.
Mesmo quem não está assim tão familiarizado às alegorias cinematográficas será capaz de compreender o significado de um cachorro que, no contexto de um filme simplesmente late de forma contínua. Um barulho que ecoa ao fundo e que parece evidenciar o fato de haver algum incômodo ali. O cão do vizinho parece estar irremediavelmente preso. De forma desconfortável. Uma metáfora mais do que perfeita para a condição vivida pela jovem Sofia (Emma Mackey), no pastoso Hot Milk: "acorrentada" à própria mãe, Rose (a sempre ótima Fiona Shaw), que padece em uma cadeira de rodas, com dores excruciantes. Dores que, aliás, lhe perseguem desde a juventude, quando se separou do marido após uma série de experiências traumáticas. O que lhe impediu de andar com as próprias pernas. Um tipo de simbolismo que, em alguma medida, percorre toda a narrativa, que é inspirada em um livro de Deborah Levy.
Exibido no Festival de Berlim, esse é aquele tipo de obra que convida o espectador a tentar unir os pontos daquilo que parece ser uma jovem umbilicalmente conectada à sua mãe controladora, dependente (física e emocionalmente) e narcisista. Por ser cadeirante, Rose é incapaz de fazer qualquer coisa por conta própria. O próprio ato de servir um copo de água pode ser complicado - com tudo piorando a partir de implicâncias tolas a respeito da qualidade da bebida (que vem embutido de um alto grau de exigência do tipo de tratamento que a genitora, essa idosa tão sofrida, acredita merecer da filha). De férias na litorânea Almería, a dupla está programada para uma série de consultas com uma espécie de curandeiro local chamado de Gomez (Vincent Pérez), que toma algumas medidas drásticas, como a interrupção de certos tratamentos com medicamentos supostamente ineficazes e uma investigação mais atenta a respeito de fatos (traumáticos) da vida de Rose, que poderiam ter desencadeado as dores crônicas.
Só que esse ambiente praiano tão sensualmente caloroso e tão magneticamente quente também transformará Sofia que, mesmo com vinte e poucos anos, parece meio travada no que diz respeito aos relacionamentos. Há algo pronto a desabrochar - e o simples toque de um enfermeiro em certa altura, após a jovem ser queimada por uma água viva, parece exalar uma energia sexual vibrante (o que é reforçado pela sensualíssima desatenção quanto a um seio que pula para fora do biquíni de forma inesperada). E, como se já não bastasse esse clima meio febril e letárgico da orla marítima inebriante, a coisa ainda escala após Rose conhecer a enigmática Ingrid (Vicky Krieps), uma alemã que, com sua personalidade desapegada em todos os sentidos, surge como o espírito livre que fornece o ideal de uma vida oposta à da protagonista. Sem amarras e extrovertida, ainda que traumatizada em alguma medida.
Para aqueles que buscam um sentido maior naquilo que assistem, essa pode ser uma experiência eventualmente hermética e não muito fechada em uma caixinha. Sofia, por exemplo, é uma antropóloga em formação que nunca chegou a concluir os seus estudos, ao passo que a mãe é uma bibliotecária precocemente aposentada. Em meio a essa síndrome de coitadismo que avança para uma vida de frustrações e de dores nunca superadas, a idosa converte a existência da filha em um inferno para quem apenas existe para ser sua cuidadora. Envolta pela névoa litorânea cintilante e plácida, a jovem vai aos poucos quebrando essas correntes que a atam à mãe. O que envolve pequenas subversões - como soprar a fumaça do cigarro nas roupas que estão no varal ou mesmo quebrar um prato violentamente quando Sofia é impedida (em termos) de encontrar o próprio pai, que lhe abandonou aos 15 anos. O final ambíguo pode ser pouco revelador. Ainda que nos lembre que, em alguns casos, só atitudes extremas podem fazer com que ciclos se quebrem.
De: Morgan Simon. Com Valeria Bruni Tedeschi, Félix Lefebvre e Lubna Azabal. Comédia / Romance / Drama, Bélgica / França, 2024, 97 minutos.
Uma simpática comédia dramática sobre as complexidades da relação mãe e filho e que parece nos lembrar o tempo todo da importância de viver a própria vida - e não a dos outros. E, de como isso pode ser decisivo para um ambiente doméstico mais pacífico. Sim, parece papinho meio de coach, mas o caso é que no carismático Entre Nós, o Amor (Une Vie Rêvée), que acaba de estrear na Reserva Imovision, a vida da protagonista Nicole (Valeria Bruni Tedeschi) só dá um giro de 180 graus depois que seu filho sai de casa, após uma briga feia. Aliás, por briga feia, leia-se uma discussão forte em que verdades duras vêm à tona e ressentimentos emergem em uma velocidade galopante. "Tenho vergonha de você quando estou com meus amigos. Queria que você não existisse, você é um ser velho e grotesco morrendo um pouco a cada dia", verbaliza o jovem Sérgio (Felix Lefebvre), contra a sua genitora, do alto de seus 19 anos.
E, não sejamos hipócritas, né galera, todo mundo que já brigou feio com os próprios pais sabe que a quantidade de palavras agressivas por metro quadrado costuma verter sem muito espaço pra reflexão, pra racionalidade. É horrível, mas meio que parte da vida, como lembra a afável Norah (Lubna Azabal), dona de um boteco da vizinhança frequentado por imigrantes que passam os dias fumando narguilé e observando o movimento. É Norah que se aproxima de Nicole quando esta parece estar na pior para lhe oferecer um café, um cigarro, um abraço, um beijo, um... algo a mais. "Na idade deles você também não estava de saco cheio dos seus pais?", questiona amistosamente à protagonista. Que chora, mas também passa a olhar para o outro lado diante da atenção quase desmedida da afetuosa Norah. Em meio as divagações, Nicole afirma não ter nada a oferecer. Ao que recebe como resposta um "a felicidade não é questão de dinheiro".
Sim, pode parecer utópico ignorar a parte financeira em favor do amor, mas parte dos motivos da grande briga entre Nicole e Sérgio é que ela tá completamente ferrada do ponto de vista de grana. Desempregada e endividada, ela tem se empenhado em conseguir um novo trabalho - recebendo negativas excêntricas de entrevistadores, como no instante em que seu currículo é negado por ela simplesmente morar longe do local ("isso pode fazer com que você se atrase"). Após ter sua conta no banco encerrada justamente por causa das dívidas, ela resolve tomar uma decisão drástica para não deixar seu filho na pior: oferecer o seu corpo para a ciência, após a sua morte. O que impediria Sérgio de não apenas herdar o problema financeiro da mãe, mas também evitar uma despesa de cinco mil euros que seriam necessários para o enterro. Um gesto de amor que é mal interpretado pelo rapaz. Que se revolta. E sai de casa.
Tudo soa bastante simples e é. Não é que não haja uma reflexão um pouco maior sobre questões políticas da França - há sequências de Macron na TV verbalizando as conquistas econômicas de seu País, enquanto alguns setores ainda sofrem pela falta do básico. A xenofobia que parece rondar os cantos também surge, aqui e ali, salpicada em instantes meio aleatórios, mas que servem como parte do conjunto, afinal de contas os problemas domésticos nunca surgem desconectados de dificuldades sociais mais amplas. "Essa não é a sua casa pra você me tratar assim", argumenta Nicole a um senegalês que a confronta no boteco, após uma cena mais quente entre ela e Norah. É o suficiente para que o mal entendido quase escale para uma crise geral envolvendo os refugiados. Só que nesse caso bastante específico o que comove mesmo é a relação doméstica de mãe e filho. "Só quero saber se você está bem e se vem jantar", pergunta uma sofrida e chorosa mãe após a horrível discussão. É família sendo família. É carinho seguido de pancada. É celebração que se alterna com a dor. É real e intenso. O que faz valer.
De: Dea Kulumbegashvili. Com Ia Sukhitashvili, Kakha Kintsurashvili e Merab Ninidze. Drama, Geórgia / Itália / França, 2025, 134 minutos.
"Sei que você faz abortos nas vilas. Você é uma assassina." A frase dita à médica obstetra Nina (Ia Sukhitashvili), por um pai enlutado, ainda no início de April (Ap'rili), o elogiado filme de Dea Kulumbegashvili que acaba de estrear na Mubi, serve não apenas para solucionar imediatamente aquilo que poderia ser um provável mistério da narrativa, mas também para evidenciar os preconceitos que envolvem a prática. Ainda mais em países em que a justiça reprodutiva e tudo que envolve os direitos das mulheres nesse campo, são tratados não como casos flagrantes de saúde pública e, sim, com decisões tomadas por rígidos códigos religiosos, que transbordam para dilemas morais profundos, talvez onde nem devesse existir dilema. Nina é uma excelente médica, respeitada por seus pares e que já realizou milhares de nascimentos no hospital em que trabalha. Mas, em certo dia, as coisas dão errado e um bebê nasce sem vida.
Para as pessoas do entorno, pouco importa que a gravidez não tenha sido informada ao hospital, num flagrante caso de negligência. Sem acompanhamento médico e com uma mãe desejando um parto normal, as coisas se complicam. "Aquela mulher sentiu um alívio ao ver que a criança tinha morrido. Ela estava tranquila, pacífica", argumenta Nina ao diretor do hospital, David (Kakha Kintsurashvili). Só que, pelo visto, nada disso importa muito quando, paralelamente, a protagonista cruza estradas de chão precarizadas para, aqui e ali, auxiliar jovens de pequenos vilarejos, muitas delas provavelmente vítimas de violência, sem desejar uma gravidez, a retirarem os fetos ainda em formação dos seus ventres. Aliás, o que é exibido em sequências bastante gráficas, que geram desconforto não pelo ato em si, mas pelas condições precárias em que ocorrem. Em mesas improvisadas, com toalhas plásticas e instrumentos nem sempre tão adequados.
Como um filme não hollywoodiano, esse vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Veneza não segue a lógica mais esperada em produções a respeito desse tema. Aqui não haverá sequências de tribunal ou com cidadãos "de bem" rabiscando o carro da protagonista com palavras de ódio ou intolerância ou outros tipos de eventos que seguem uma cartilha. Pelo contrário, para a diretora Dea Kulumbegashvili esta parece ser uma obra muito mais sobre sensações evocadas vindas de um plano quase abstrato, eventualmente onírico, do que de situações concretas que poderiam delimitar a narrativa. Não por acaso, a produção já abre com a cena de uma figura grotesca - uma espécie de monstro -, que se movimenta lentamente em um plano escuro, enquanto ao fundo ouvimos gritos e risadas que parecem ser de crianças pequenas. Um tipo de alegoria que retornará em diversos momentos, especialmente aqueles em que Nina parece confrontar a si própria (bem como suas decisões).
Sim, Nina tem uma vida solitária que envolve fugir das investidas do próprio David - que tem interesse nela (o que pode influenciar as tomadas de decisão futuras sobre sua continuidade no hospital) - e ter encontros fortuitos com homens desconhecidos de beira de estrada para satisfação sexual, com ela mesma não escapando da violência que emerge desses indivíduos. Ao cabo essa é uma obra complexa, que não reduz as figuras que encontramos à meras caricaturas, já que Nina parece trafegar entre a nobreza e a inconsequência dos seus atos, com os traumas da juventude - como no instante em que ela conta como a irmã quase perdeu a vida diante dela, que, paralisada, ficou sem ação -, retornando para lembrá-la que, sim, há uma certa monstruosidade que habita seu ser. Alternando longos planos sequência de chuvas torrenciais, estradas embarradas e dias cinzas, com os campos floridos da chegada da primavera, Dea constroi uma experiência selvagem e rústica, mas também meditativa e de fluidez lenta. É meio magnético justamente por fugir do óbvio. O que em tempos de massificação e de mais do mesmo, também tem valor.