quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Novidades em Streaming - A Garota da Agulha (Pigen Med Nålen)

De: Magnus von Horn. Com Victoria Carmen Sonne, Trine Dyrholm, Besir Zeciri e Joachim Fjelstrup. Drama, Dinamarca / Polônia / Suécia, 2024, 123 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

A Garota da Agulha (Pigen Med Nålen) talvez seja o tipo de filme que precisaria vir com um "alerta de gatilho", tamanha a sequência de tragédias, de dores e de violências diversas exibidas nas cerca de duas horas da obra - a enviada da Dinamarca ao Oscar. E o mais incrível é que, por mais pesado que tudo seja, nada ali parece ser gratuito. Como uma mera forma de chocar por chocar. Ao cabo nessa narrativa há algo que martela: qualquer que seja o período permanecemos como uma sociedade hipócrita, em que muitos de nós se travestem de paladinos da moral, como se fôssemos o tempo todo sujeitos incorruptíveis ou nunca falhos. Na era do cancelamento e dos dedos apontados o problema está sempre no outro. E nunca em nós ou no que pensamos. Mas a arte serve para nos lembrar disso. Para nos alertar para essas contradições. Então por mais duro ou sombrio que seja o projeto do diretor Magnus von Horn, ele tem razão de ser.

Aliás, mais do que isso, ele é um filme que se passa no contexto do final da primeira guerra - ou seja, no começo do século passado -, mas que dialoga E MUITO com os nossos tempos. Tempos esses que parecem flertar com todo o tipo de retrocesso. Em que se perdeu a vergonha de se agir de forma absurda. "O mundo é um lugar horrível, mas precisamos acreditar que não é", lembra em um dos momentos decisivos da produção, a idosa Dagmar (a ótima Trine Dyrholm), que, em um cenário de desolação, administra uma espécie de empresa - por assim dizer - que se ocupa de encontrar casas para bebês que não são desejados. Claro, tudo as escondidas. E é justamente salvando a protagonista Karoline (Victoria Carmen Sonne) em uma situação de extrema violência - digamos que ela usava uma agulha de tricô, mas não para produzir uma peça de roupa -, que ambas formam uma amizade.

 


 

Amizade talvez não seja ao certo a palavra. Um tipo de vínculo. O que entre mulheres em um cenário tão patriarcal e machista pode ser uma boa. Até mesmo porque, quando Dagmar acolhe Karoline, ela já passou por uma dúzia de humilhações e agressões. Primeiro é despejada do seu apartamento por falta de pagamento, tendo de se abrigar numa pocilga que fica dentro do orçamento. Depois, acredita que o seu chefe em uma indústria de confecções - um certo Jorgen (Joachim Fjelstrup) - esteja apaixonado por ela (o que a faz sonhar uma vida melhor, especialmente quando iniciam um relacionamento meio às escondidas). Por fim, ela se descobrirá grávida de Jorgen, sendo rejeitada por ele e pela família dele. Com um filho pra criar mais adiante. E como se a desgraça não fosse pouca, o marido da protagonista - seu nome é Peter (Besir Zeciri) -, dado como morto no conflito, reaparece, mas com o rosto totalmente desfigurado (o que o faz aceitar um trabalho em um daqueles antigos circos sensacionalistas).

Sim, e nesse cenário em que uma punhalada atrás da outra ocorre, parece que o pior sempre vai ser o que está por vir. O próximo passo. A nova reviravolta. E é mais ou menos isso que acontece no terço final, sendo absolutamente incrível a forma como Von Horn nos conduz e nos faz compreender as atitudes - por mais desesperadas e cruéis que sejam - de todos ali. Em linhas gerais trata-se de uma obra permanentemente sombria, soturna, com a fotografia em preto e banco de contrastes reforçando o desencanto. Imagens secas de chaminés que soltam uma fumaça pastosa, ou frases cheias de simbolismo (você é a garota da agulha?), ampliam a sensação de sofrimento. O mesmo valendo para a trilha sonora com guinchos de violino, que é bastante original e perturbadora. Em tempos de avanço da extrema direita e em que temas como aborto e violência contra a mulher seguem mais atuais do que nunca, A Garota da Agulha é um tapão na nossa cara, que talvez pudesse nos fazer despertar. Talvez. Por que do jeito que vai, não sei se temos alguma salvação.

Nota: 8,5 


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Cinema - Flow (Straume)

De: Gints Zilbalodis. Animação / Aventura, Letônia / França / Bélgica, 2024, 85 minutos.

Um simpático gatinho tenta fugir de uma enorme inundação e, talvez, com essa premissa simples, tenhamos um dos grandes filmes desse começo de temporada. Visualmente impecável e essencialmente contemplativo, Flow (Straume) - o candidato da Letônia ao Oscar e que também foi indicado na categoria Animação (tendo a credencial de ter vencido o Globo de Ouro) -, é daqueles projetos que ficam na nossa mente, após a subida dos créditos. E ainda que não haja nenhuma grande evidência das temáticas que a obra pretende explorar - já que tudo é muito sutil a ponto de não haver diálogos -, é possível perceber, no mínimo, dois grandes assuntos que se sobressaem: o da importância da coletividade e do respeito às diferenças, para que obstáculos sejam superados e o da inadiável percepção de que o meio ambiente pode estar chegando ao seu limite. E uma enchente estratosférica é só um bom indicativo do preço que pagamos por não tratarmos a questão com mais seriedade.

Claro que o diretor Gints Zilbalodis não levanta essa bandeira de forma tão escancarada, tão nítida - até mesmo pelo fato de ter explicado, em entrevistas, que a ideia para o projeto surgiu ainda antes da pandemia (e talvez até como uma alegoria para o enfrentamento de uma catástrofe sanitária global ele servisse, se tivesse sido lançado mais cedo). Mas o caso é que o timing não deixa de ser impressionante, com o mundo cada vez mais em colapso por conta de fatores climáticos, sejam eles as enxurradas que nos afetam como nunca antes, o calor insuportável e até mesmo o frio exagerado. Isso sem falar em terremotos, furacões, vulcões em erupção e outros. Quando uma cheia devastadora ocorre, a gente não costuma pensar muitos nos animais da floresta, em meio ao salve-se quem puder. Mas eles também sofrem. E precisam lutar para sobreviver. Flow parece nos lembrar também disso.

 

 

Na trama, um gatinho percorre uma densa (e linda) floresta, que mais parece saída de algum jogo de videogame estilo Crash Bandicoot -, até o momento em que ele passa a ser perseguido por um grupo de cães não muito amistosos, após furtar deles um peixe. Só que como desgraça pouca é bobagem, uma manada de cervos em fuga será o indicativo de que a coisa não anda bem: a água chega sem muito aviso e depois de tomar uma dúzia de "caldinhos", o protagonista consegue se refugiar em uma casa isolada, decorada com esculturas de gatos de madeira - e é interessante notar como essa cabana pode ser um indicativo de que a vida humana por ali já não é mais uma possibilidade, ainda que uma série de rabiscos e de desenhos ali permaneçam. Da mesma casa se aproxima um amistoso labrador, que se vê em apuros com a subida da água - até que uma embarcação com os outros cães o leva embora. A água sobe mais e, bom, o gatinho que lute pra manter a pele seca.

Após a água subir até o limite do suportável, surge uma capivara em um pequeno veleiro - o que faz com que o nosso destemido protagonista se salve. Mais adiante, eles resgatarão um lêmure e um pássaro gigante de pernas longas. Além do labrador, que reaparece. De personalidades distintas - o gato mais rabugento, a capivara mais preguiçosa, o lêmure mais organizado, o labrador mais amistoso e o pássaro com espírito de liderança -, esse conjunto excêntrico navegará pelas águas em busca de comida, de um destino, de sobrevivência. Para o espectador, a percepção de que a união faz a força em um cenário inóspito (e como o mundo seria um lugar bem melhor se avançássemos para além da simples caridade, quando o assunto é o coletivo) é evidente. As lições dessa animação lindíssima, feita com recursos modestos - o total gasto foi de US$ 3,7 milhões, usando um software livre (a ferramenta Blender) -, pode parecer meio vaga. Mas quando o ciclo da vida e das coisas se repete, é meio difícil não sentir um gosto meio amargo.

Nota: 8,5 


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Novidades em Streaming - Um Homem Diferente (A Different Man)

De: Aaron Schimberg. Com Sebastian Stan, Renate Reinsve e Adam Pearson. Drama / Comédia, EUA, 2024, 112 minutos.

Precisamos falar sobre a solidão das pessoas bonitas e bem sucedidas. Se interpretado como uma grande alegoria sobre a importância da autoaceitação e da busca por evitar fingir ser aquilo que não somos, Um Homem Diferente (A Different Man) pode ser uma obra com algo a mais a dizer. "A máscara pode cair a qualquer momento", diz o chavão, revelando a nossa verdadeira natureza - e, em muitos casos, decepcionando aqueles que nos rodeiam. Se encarado como um drama sobre um sujeito que supera uma severa deformidade facial - resultado de uma neurofibromatose -, mas que tem dificuldade de se ajustar a essa nova "identidade", o projeto do diretor Aaron Schimberg talvez seja apenas razoável. E até meio forçado, em última análise. O que não impede de considerarmos a produção inovadora, instigante, e que parte de uma premissa pouco convencional e que pode gerar algum desconforto.

Na trama acompanhamos Edward Lemuel (Sebastian Stan), um ator amador de rosto desfigurado e que, naturalmente, passa por dificuldades no que diz respeito ao convívio social - como fica claro, logo no começo, em uma sequência dentro do metrô em que ele simplesmente esconde o rosto, para não ser percebido por um bêbado chato que está incomodando a todos. Só que mesmo sendo introspectivo, ele consegue vencer a barreira da timidez, para uma aproximação meio desajeitada de sua vizinha, a carismática e vivaz Ingrid Vold (Renate Reinsve, vista no excelente A Pior Pessoa do Mundo, 2021), uma escritora iniciante que parece genuinamente interessada em Edward, a despeito do susto inicial. Conforme a amizade avança, Edward aceita participar de um tratamento experimental à moda A Substância (2024), com a promessa de cura para a sua condição. E, em resumo, a coisa funciona. O que faz com que o protagonista simplesmente mate, metaforicamente, Edward, entrando em seu lugar um certo Guy Moratz, o dono do rosto novo.


 

Ingrid fica sabendo da morte e, após um salto temporal, Guy/Edward já se converteu em um bem sucedido agente imobiliário, com uma boa casa, respeitado pelos seus pares. Só que não demorará para que constatemos que, na essência, Guy não mudou nada. Afinal, muito mais complicado do que simplesmente mudar a aparência é trocar de personalidade. A gente pode até adquirir um ou outro traço distinto na vida adulta, mas um sujeito introspectivo não se torna expansivo da noite pro dia. Uma pessoa quieta e taciturna não se torna vibrante ou entusiasmada num piscar de olhos. Guy agora está bonito, de acordo com o padrão. Mas permanece desencaixado, incapaz de ter um relacionamento amoroso sólido ou amigos que existam para além do ambiente de trabalho. É uma existência vazia, oca, ordinária. E que traz uma relevante discussão, em seu âmago, sobre autoestima. 

E como se a desgraça não fosse pouca, tudo piora quando Guy reencontra, meio que sem querer querendo, Ingrid, que está produzindo uma peça off Broadway justamente sobre um sujeito com neurofibromatose, que tenta se aproximar de sua vizinha. Sombria, mas bem humorada, essa é uma obra que também joga alguma luz sobre a discussão que envolve a escalação de certos atores que atendam certos requisitos físicos - e de como isso impacta a indústria. Sebastian Stan, que atua muito bem por sinal, usa uma máscara no começo do filme - o que, inclusive, poderá resultar em uma indicação ao Oscar na categoria Maquiagem e Penteado -, diferentemente de Adam Pearson que, com seu irresistível charme, empresta seu rosto real para a produção. "Meu velho amigo, você não mudou nada!", comenta Oswald (Pearson) quase na conclusão. Esse é o grande problema. Ou dilema. Quando a essência é uma e a estampa é outra. E aí uma pode burlar os limites da outra.

Nota: 7,5


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Novidades em Streaming - Emilia Perez

De: Jacques Audiard. Com Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez. Drama / Comédia / Musical, França / EUA / Espanha, 2024, 132 minutos.

Com tantas décadas de cinefilia, devo dizer a vocês que poucas foram as vezes em que senti vergonha alheia assistindo a um filme. Aliás, no caso de Emilia Perez, que chega à Netflix na quinta-feira (06/02), mais de uma vez. Com tantas sequências cringe é até meio difícil escolher a mais constrangedora. Mas creio que o "prêmio" vá para o instante em que a advogada Rita Mora (Zoe Saldaña) chega à Turquia para conferir in loco - em uma clínica especializada -, como se dão os procedimentos de redesignação sexual. Circulando em meio a macas, equipamentos, pacientes e enfermeiras Rita estabelece um diálogo com um médico local, que imediatamente vira um número musical: "Olá, muito prazer em conhecê-la / Gostaria de saber sobre a operação de mudança de sexo / Entendo, entendo, entendo / Homem para mulher ou mulher para homem? / Homem para mulher / Do pênis para a vagina / É para você? / Para mim? Não / O que você gostaria de saber sobre isso, senhora? Eu quero saber tudo, qual é o protocolo?". É sério, eu quase não consegui segurar o riso diante dessa obra-prima lírica, entoada em um vergonhoso spoken word.

Aliás, talvez o maior problema do filme de Jacques Audiard - indicado a treze Oscar e o grande rival de Ainda Estou Aqui na disputa por estatuetas douradas (isso, ao menos até o dia em que os brasileiros escavaram o passado de Karla Sofía Gascón, descobrindo que ela atacava uma minoria diferente por hora, no Twitter) - seja o fato de que esse é um musical em que praticamente todas as músicas são terríveis! Além das letras péssimas (sobre pênis e vaginas imaginários) cantadas de uma forma supostamente engraçadinha - e, vejam bem, não se trata de moralismo barato e sim de um momento que mais parecia saído da comédia Team America (2004), mas feita com atores de carne e osso -, as inserções muitas vezes truncam a narrativa. Ou repetem conceitos que já havíamos compreendido previamente. E tudo ocorrendo de uma forma chata, forçada e irritante. Sim, um musical pode ser chato, forçado e irritante. Mas esse aqui quer bater todos os recordes.

 

 

Durante a tortuosa sessão, admito que cheguei a comentar com a minha companheira que esse poderia ser um grande filme se ele se levasse mais sério. Um drama, com menos estereótipos e maniqueísmos sobre um chefão de um cartel que, para deixar seu passado de crimes para trás e evitar que uma trilha de sangue e morte persiga a ele e a sua família, opta por uma nova vida, distante de tudo, com outra identidade, ofício e endereço. Talvez com mais polidez e um conjunto menos bobo, as coisas pudessem funcionar. Porque o caso é que até a suposta redenção de Emilia (Gascón) é difícil de comprar. Quais os motivos centrais para essa mudança drástica de vida? Sim, ela sente que está em uma identidade que não lhe representa, mas e todo o resto? Filhos, família, esposa? Tudo fica para trás quando acaba a Era Manitas e, para alguém que se converterá na rainha da filantropia em meia dúzia de anos, parece que essa conta não fecha. E se a conta não fecha, tome-lhe música ruim!

A despeito de todas as polêmicas envolvendo Gascón, o Oscar e tudo o que vocês já sabem, eu confesso que fui conferir o filme de sangue doce. Com a mente aberta, como sempre faço. E adoraria ter encontrado uma grande experiência. Que fizesse sentido nas discussões sobre identitarismo e gênero e não reduzisse a protagonista à uma caricatura. Mas enquanto a coisa se desenrolava, eu só conseguia pensar em como esse é exatamente o tipo de produto que servirá de matéria-prima para que o reacionário de extrema direita se sinta à vontade para dizer que hoje em dia a arte é só lacração, que a cultura woke vai dominar o planeta e que está em curso a implantação de uma agenda gayzista para as crianças ao redor do globo, até 2030. Sério, galera, se é para o campo progressista ser acusado disso, que façamos a coisa bem feita. Com inteligência, sagacidade, sutileza e criatividade. Sim, sei que cada filme é um filme, mas tomemos como comparação o ótimo Conclave, que também está indicado ao Oscar. Ninguém precisa empurrar a coisa goela abaixo, em uma produção de gosto duvidoso. Ao cabo, pouca coisa se salva. O que, em partes, me deixa feliz, já que esse pode significar o caminho aberto para que nós, brasileiros, sejamos muito felizes no próximo 2 de março, quando ocorre a noite do Oscar. Aguardemos.

Nota: 2,0


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Cinema - A Verdadeira Dor (A Real Pain)

De: Jesse Eisenberg. Com Kieran Culkin, Jesse Eisenberg, Will Sharpe e Jennifer Grey. Drama / Comédia, EUA / Polônia, 2024, 90 minutos.

Acho que A Verdadeira Dor (A Real Pain) poderia entrar em uma espécie de subcategoria de "filmes click bait de festivais". Aquele tipo de produção com homens brancos e héteros sofredores de meia idade, traumatizados não se sabe bem exatamente por quê - até porque, em muitos casos, a obra não se ocupa em explicar isso direito -, e que costuma funcionar direitinho em Sundance ou em outras premiações do circuito alternativo (e que, se a temporada for efetivamente fraca como essa que estamos vivenciando, pode se estender até o Oscar). E nesse filme dirigido por Jesse Eisenberg, que também atua, tem um bait a mais: o de colocar Kieran Culkin - o eterno Roman Roy, de Succession -, como uma figura atormentada, supostamente complexa e que pode ser mal educada num instante, para no momento seguinte ser carismática e cativante.

Sim, tudo aqui parece que meio que feito sob medida pra capturar uma parcela do público com pendor pro progressismo de sofá - há um pano de fundo sobre as dores do holocausto e que parece se cruzar de forma meio estranha (ou torta) com as mazelas da modernidade -, mas que, ao cabo, resulta naquele sentimento de enfado. Como crítico amador, e estudioso autodidata do cinema e da produção cultural como um todo, já compreendi que a arte não precisa ter necessariamente uma função. Ela pode entreter, ou nos fazer refletir. Mas é meio que impossível não pensar em A Verdadeira Dor como um filme tão fugaz que, assim que os créditos passam, já esquecemos dele. Há um grupo de personagens que tenta ser interessante mas não consegue - não nos conectamos com ninguém -, ao mesmo tempo em que a dupla de protagonistas se apresenta como de personalidade diametralmente oposta, como se isso fosse inovador em pleno 2025.


 

Bom, na trama desse elogiadíssimo produto - a média da nota no Metacritic é 89% (então, não deixem de assistir por NADA) -, David (Eisenberg) e Benji (Culkin) são dois primos não muito compatíveis, que resolvem fazer uma viagem - aquelas vendidas em pacotes turísticos - à Polônia, pra homenagear a recém falecida avó, uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra. E, enfim, boa parte da obra consiste em apontar as gritantes diferenças de comportamento entre os dois sujeitos - e de que formas isso faz com que eles se amem e odeiem ao mesmo tempo. Sim, quem nunca, e ok, esse pode ser um mérito que sempre valorizo: o de nos apresentar a figuras dotadas de alguma complexidade, afinal, não somos uma mera caricatura maniqueísta, que age sempre da mesma maneira. Mas o caso é que tudo soa meio forçado.

Na primeira sequência, David já se apresenta como aquele cara supostamente metódico, preocupado com horários e agendas prévias, e que é um homem de família, um cidadão de bem com esposa, filhos, um bom emprego e tudo conforme o script (e eu confesso que me incomodam um pouco as obras de arte que acenam para a normalidade como algo estranho, excêntrico ou a ser evitado). Já Benji é a figura que, mesmo com mais de 40 anos de idade no lombo, ainda mora com a mãe, se ocupa de fumar maconha, e que é charmoso e expansivo com estranhos, ainda que pareça julgar, em seu cerne, as suas vidinhas enfadonhas. Como alguém que convive com algum transtorno de personalidade, ele pode estar em estado meditativo ou pacífico agora, para, no minuto seguinte explodir em fúria, em gritos e, enfim... os outros que lutem. Por quê ele teria tentado se matar, também, meses antes, é algo que fica no ar. Resumo da coisa toda, galera: façam terapia. Tomem os medicamentos. Pratiquem exercícios. Cuidem da saúde mental e física. E evitem ser chatos. Falo isso com conhecimento de causa. Porque a terapia não estando em dia talvez só te torne meio insuportável. Como esse filme, nas suas entranhas, é.

Nota: 4,0


Pitaquinho Musical - Benjamin Booker (Lower)

Vamos combinar que alguns discos são tão prazerosos de se ouvir, que mais parecem um abraço de alguém que a gente gosta. É uma sensação de conforto. De acalento. É algo nostálgico, meio familiar, mas também inovador, delicado e claustrofóbico. E essa pluralidade de sentimentos é exatamente o que ocorre quando escutamos o lindo Lower, o terceiro registro de estúdio do cantor e compositor estadunidense Benjamin Booker. Ao cabo, tudo é perfeito nesse trabalho, que inicialmente se destaca pelo estilo vocal sedutor e aveludado do artista - que funcionará como uma espécie de fio condutor de canções que se espalham em histórias suburbanas (e violentas), devaneios existencialistas e alegorias desconfortáveis e cômicas de uma forma meio torta. Sim, cômicas, como no caso de Rebecca Latimer Felton Takes a BBC, canção sobre sexualidade e racismo, que coloca o dedo na ferida da hipocrisia dos conservadores (a tal Rebecca Latimer do título seria uma frígida senhora de escravos do passado).

 

 

Em linhas gerais as entrevistas de Booker e as próprias explicações sobre o significado de suas canções são pontuadas por tiradas bem humoradas, ainda que jamais ignorem a complexidade do fazer artístico. Sobre a maravilhosa Same Kind of Lonely - um shoegaze que lembra um The 1975, em um flerte com a periferia -, ele brincou ao afirmar que seu produtor Kenny Segal lhe enviou um material sobre como escrever uma música pop e que o caminho era "tocar em um assunto universal, com os versos mais vagos possíveis". O resultado é a melhor canção do ano sobre solidão e o desejo de recomeçar em um outro lugar - mas que surpreende no meio do caminho ao tomar uma direção inqueitante. O expediente se repete em outros instantes estranhos e belos, como no caso de New World, que presta homenagem ao injustiçado filme de Terrence Mallick de mesmo nome e a inaugural Black OOPS, que fala de violência e preconceito de forma bastante franca. Neo soul, psicodelia sessentista, art rock e até bedroom pop. Está tudo lá, redondinho e irresistível.

Nota: 9,5

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Novidades em Streaming - A Suprema (La Suprema)

De: Felipe Holguin. Com Elizabeth Martínez, Antonio Jiménez e Pabla Florez. Comédia / Drama, Colômbia, 2024, 82 minutos.

Mais um daqueles filmes que partem de um fiapinho de história, que serve de desculpa para uma análise mais ampla de uma série de questões sociais, culturais, políticas e outras. Assim é o singelo A Suprema (La Suprema), o enviado da Colômbia para a edição do Oscar desse ano, e que está disponível para aluguel na plataforma da Amazon Prime. Na trama, a adolescente Laureana (Elizabeth Martínez) é impactada por uma notícia lida em um jornal, nos arredores do modesto vilarejo que dá nome à obra: no texto, a informação de que o lutador de boxe Anastásio Paez disputará o título mundial da sua categoria dali a três dias. Anastásio não apenas é nativo da remota La Suprema - uma daquelas aldeias isoladas do mundo, que sequer aparecem no mapa -, como é o tio de Laureana. O que será o gatilho para um singelo objetivo: assistir a luta de qualquer maneira.

Ocorre que esse povoado parece tão distante de tudo que sequer a energia elétrica chegou por ali. E, como consequência disso, nenhum dos habitantes do pacato local possui uma televisão. Empenhada em seu intento, Laureana conseguirá ajuda de dois amigos - ambos apaixonados por ela -, que não medirão esforços para colocar um gerador velho em operação, ou cruzar a mata fechada com quilômetros de fiação que poderão servir de extensão para a conectar um aparelho de TV que sequer existe. Mobilizada, a comunidade acompanhará a movimentação em meio à desconfiança de alguns - como no caso do hilário quarteto de idosos que passa o dia entre jogos de dominós e deboches em série -, e o apoio de outros, como no caso do taciturno Efraín (Antonio Jiménez) que sai da relutância inicial - ele parece guardar algum segredo ou mágoa do passado envolvendo Anastásio -, e o suporte comovente na segunda parte.




Mas esse não é apenas um filme sobre um vilarejo disposto a ultrapassar qualquer limite para assistir a uma simples luta de boxe - por mais que o aspecto inusitado da coisa toda já seja, por si só, um atrativo. Laureana parece ter uma relação complexa com a sua avó - que insiste que ela deveria usar mais vestidos e outros adereços, que a forçassem a parecer uma "mocinha". Na história nunca fica necessariamente clara a orientação sexual da jovem - e, em geral, talvez isso pouco importasse -, mas em um vilarejo fechado, onde o comportamento geral tende a ser mais conservador, esse não deixa de ser um aceno para um tipo de debate que poderia passar ao largo. O fato de que a adolescente é também uma apaixonada por boxe, que sonha em ser treinada por Efraín - que, na juventude, era o treinador de Anastásio -, reforça um pouco dessa tese. Ok, o boxe hoje em dia é praticado por gênero. O que não impede a avó de Laureana de lhe lembrar que aquele "não é um esporte para mulheres".

Carismático até dizer chega, esse é um daqueles projetos que faz com que torçamos para que as coisas saiam a contento. Que faz com que, de fato, nos importemos com aquelas figuras tão vulneráveis quanto embrutecidas. Quando num ato de desespero, Efraín e Laureana vão até a grande cidade de Cártago para tentar comprar uma TV, faltando apenas algumas horas para a luta, é difícil não ter compaixão e sentir a dor daquela dupla empobrecida, que empreende uma via crúcis que resulta em uma série de frustrações. A expectativa geral da comunidade parece ser a melhor: o presidente pode ir até o local, a visibilidade pode aumentar. Quem sabe um sistema que traga a eletricidade, a luz? Mais infraestrutura nessa cidadela de chão batido? Turismo? Uma vida mais digna? O entusiasmo faz lembrar o de outro projeto de rara beleza, rodado na América do Sul, no caso o uruguaio O Banheiro do Papa (2007), que nos faz rir e chorar em igual medida. Mas o legado é outro. Que fica evidente no canto uníssono das lavadeiras ao final.

Nota: 8,0


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Picanha.doc - Dahomey

De: Mati Diop. Documentário, França / Senegal, 2024, 68 minutos.

Vamos combinar que relatos de roubos de obras de arte em períodos coloniais são bastante conhecidos. Efeito colateral da violência da violência praticada especialmente por países europeus, os saques funcionam não apenas como uma pilhagem econômica - já que essas peças costumam ter grande valor material -, mas também cultural, histórica e de tradições. Um patrimônio imaterial que vai embora junto com tropas militares, contribuindo para a supressão de todo um legado de costumes e de hábitos de um povo. Um apagamento. Um desenraizamento. Um desses casos que ficou mais ou menos famoso, recentemente, foi o da devolução de 26 objetos ao tesouro real do Benin, País africano que foi colonizado pela França na segunda metade do século XIX. E um pouco dessa jornada é narrada em Dahomey, documentário disponível na Mubi.

Dirigida por Mati Diop (do lindo Atlantique, 2019) e integrante da short list em sua categoria no Oscar 2025 - não chegou a ser indicado -, a produção foge da solução fácil de ouvir especialistas sobre o tema - historiadores, arqueólogos, antropólogos e outros -, que poderiam fornecer mais elementos para o espectador, para fornecer ao espectador uma experiência sensorial, poética e existencialista. Como se fosse um espectro vindo do além - o que é reforçado pela narração em off com forte reverberação (que não faria feio em um filme de horror, até porque, em alguma medida, dado esse passado sangrento, é) -, a principal relíquia enviada de volta ao Benin, uma imagem do Rei Guezô, conduz o público por entre caixotes, aviões e cuidados profissionais que dêem condição para que cada um desses tesouros chegue em segurança ao seu País de origem.


 

"Isolado da Terra em que nasci, como se estivesse morto. Há milhares de nós por aí, com suas cicatrizes, espólios de um enorme saque. Hoje é a mim que escolheram como a sua mais legítima vítima. [...] Minha cabeça ainda é atormentada pelo ruídos das correntes. Tenho na boca o gosto residual do oceano", divaga o nosso protagonista simbólico, nos fazendo pensar sobre a natureza exploratória da colonização, com todas as marcas, dores e sofrimento causados. Supostamente nobre, a formalização da entrega das obras recebe um novo verniz na segunda metade do curto projeto - que mal ultrapassa os 60 minutos -, quando uma espécie de audiência pública é realizada para discutir o futuro a partir do fato em si. O que em um período de crise imigratória, de xenofobia, de preconceitos e de individualismo atroz amplia as possibilidade de reflexão a respeito das intenções por trás do acontecimento.

"Histórico!" estampa a capa de um jornal da capital beninense, enquanto a população realiza danças e outros rituais típicos, com roupas e adereços coloridos, que contrastam com o visual insípido dos corredores dos museus, que isolam estátuas, esculturas e outros do mundo exterior. "Esse é um ato político, não tem nada de histórico", observa um dos participantes da reunião, que é retrucado por outro, que afirma que todo aquela conversaiada é só pra limpar a imagem de Emmanuel Macron, que anda arranhada. Questões diversas sobre o peso simbólico dessa reparação, a respeito do papel da arte (e da elitização desta, muitas vezes destinada à museus elegantes), sobre o direito à autodeterminação de um povo, a ancestralidade e outros, são discutidos em um diálogo tão rico quanto naturalista, jogando luz a diversos temas, com inúmeros ângulos, sentidos e significados. Que um filme tão pequeno faça tudo isso, é algo notável.

 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Cinema - Conclave (Conclave)

De Edward Berger. Com Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto, Isabella Rossellini e Carlos Diehz. Drama / Suspense, Reino Unido / EUA, 2024, 120 minutos.

"Os homens perigosos são os que querem esse posto!"

É uma imagem de forte carga simbólica a da fumaça branca saindo da chaminé. Um evento que costuma mobilizar católicos no mundo todo e que, dada a sua raridade, também gera grande expectativa. A escolha de um Papa, afinal, não é algo tão simples. Aliás, é uma cerimônia ritualística, cercada de mistério e de suntuosidade, que pode levar dias para ser concluída. E que um filme recrie todos esses bastidores de uma forma tão envolvente, coesa e magnética é algo digno de nota. Afinal de contas, pensar em uma produção sobre a seleção de um novo pontífice poderia soar pouco empolgante. Mas, no microcosmo em que ocorre um conclave após a morte do atual Papa, parece importar menos a votação em si. E sim os rumos da coisa toda. As maquinações, os jogos de poder, as chantagens, as traições, as crises de fé. Afinal de contas, desejar um dos mais altos cargos do planeta, é algo que move ambições. Egos. Intenções. Gera sofrimentos. Dores. Incertezas.

Ao cabo, Conclave (Conclave) é um filme completo em todos os seus aspectos. A parte técnica, vamos combinar, não é preciso nem que sejamos grandes especialistas em temas como figurino, fotografia ou desenho de produção para que fiquemos assombrados. É tudo majestoso e sacro: das vestimentas e suas cores vivas - especialmente o vermelho sangue que marca o Vaticano -, aos cenários recriados de forma fidedigna. A ponto de achar que aquele ambiente, de fato, pudesse ser a Capela Sistina. E seu entorno. E se a ambientação ajuda, a história em si não fica atrás. O roteiro é bem costurado e monta o quebra-cabeças de uma forma que nos deixa conectados, com cada movimento desse jogo de xadrez alegórico (aliás, não é por acaso que um tabuleiro surge com certa importância ainda no começo da obra) sendo friamente calculado. É algo que a gente vai saboreando aos poucos.

 

 

Sim, é apenas um bando de homens idosos, servis à Cristo e a todos os dogmas da Igreja Católica, com objetivos distintos e falhas como todos os homens supostamente comuns? Sim, é. E é aí que está a magia. A gente tende a achar que essas pessoas são infalíveis por conta das suas crenças. Que tem um código moral inabalável. Que possuem uma ética inquestionável. Mas conforme os dias do conclave se sucedem, uma série de verdades que podem comprometer o futuro de todos ali começam a vir à tona. Um Papa pode definir os rumos de muitas questões em uma sociedade - políticas, culturais, estruturais. Religiosas, claro. Avanços pontuais podem se converter em retrocessos. O conservadorismo pode tomar o lugar do progressismo. Se o mundo está em evolução - para onde exatamente? -, com a Igreja Católica não é diferente. E é isso que parece embaralhar o pensamento do decano Thomas Lawrence, o sisudo cardeal vivido por Ralph Fiennes, que está indicado ao Oscar.

Andando pra lá e pra cá pelos corredores do Vaticano, ele parece estar em campanha permanente para que o liberal cardeal Aldo Bellini (Stanley Tucci, em ótima interpretação) seja o sucessor natural. Mas a ala conservadora também tem seus interesses - e é representada aqui pelo expansivo cardeal Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto) e pelo antiquado nigeriano Joshua Adeyemi (Lucian Msamati) que, a despeito de ser negro, tem sérias restrições no que diz respeito aos direitos de outras minorias, especialmente os grupos LGBTQIA+. Correndo por fora há um arcebispo mexicano de nome Vincent Benitez (Carlos Diehz), um sujeito de poucas palavras, que trabalhou como missionário por anos no Afeganistão, e que parece ter uma história de vida bastante pesada. E o arcebispo Joseph Tremblay, (John Lithgow), que tem a particularidade de ter sido o último a se encontrar com o falecido antecessor. É um coletivo de homens complexo, de personalidade distinta - aliás, mais um mérito, que é a capacidade de dar uma "cara" para cada um daqueles senhores -, e que trabalham pelos seus interesses.


 

Para que um Papa seja eleito, são necessários dois terços dos votos dos cardeais. Dos 108 votantes são 72 votos. Um processo que poderia ser arrastado, se converte em uma experiência dinâmica, cheia de boas surpresas e que, dependendo o seu lado político (e vocês sabem do meu), pode te arrancar um sorrisinho na conclusão. Edward Berger já tinha sido bastante impressionante na recriação do clássico dos anos 30 Nada de Novo no Front (2022), que teve várias indicações ao Oscar - tendo ganho na categoria Filme em Língua Estrangeira. Aqui, ele pega o polêmico romance de Robert Harris, que não li e que foi escrito em 2016, e entrega tudo. Uma obra urgente, atual, cheia de grandes frases e com um microcosmo que, em tempos de retrocessos, de extrema direita e de novo governo Trump, parece funcionar como uma metáfora mais do que perfeita para os caminhos que tomam o mundo. É um filme que dá tempo ao tempo. Que não tem pressa em acontecer. Mas que causa um tremendo rebuliço. Todos nós estamos apaixonados por Ainda Estou Aqui (2024) - e com justiça. Torcendo muito. Mas vale dar atenção a esse projeto grandioso, indicado a oito Oscar, mas que ainda precisa encontrar seu público.

Nota: 9,5

Cinema - Anora

De: Sean Baker. Com Mikey Madison, Mark Eydelshtein e Yura Borisov. Drama / Comédia, EUA, 2024, 139 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]

Não vou negar, eu gostei de Anora - até por ser um filme que traz importantes reflexões sobre como a elite burguesa utiliza seu poder basicamente econômico, para manipular pessoas vulneráveis ou marginalizadas. É algo dolorido e que impacta. Mas devo confessar que essa também é uma experiência exaustiva. Que desgasta o espectador. A gente chega cansado ao final dos 140 minutos - e não vou ignorar que, sim, isso pode ser proposital. Uma semana na vida de uma stripper pode ser algo absurdamente intenso e turbulento. Sexy, mas amedrontador. É preciso mostrar força o tempo todo, mas como esquecer que as dançarinas (ou as acompanhantes ou qualquer pessoa que atua nesse mercado) também são seres humanos? Que sonham, têm desejos, projetam futuros que vão para além da dança em colos que, muito provavelmente, elas nem gostariam de estar?

Vamos combinar que Sean Baker é mestre em humanizar essas figuras que trafegam nas margens - sejam as mulheres trans de Tangerine (2015) ou as crianças pobres que sonham em visitar à Disney de Projeto Florida (2017). Até mesmo no subestimado Red Rocket (2021), o sonho americano parece soterrado em preconceitos generalizados e utopias nacionalistas fantasiosas. Então quando Anora, a 'Ani' (a maravilhosa Mikey Madison) vê seu conto de fadas pessoal se esfacelar, entrando em uma espécie de surto catártico contínuo (marcado por gritos infinitos de todos os tipos contra seus agressores), dá mais ou menos pra entender a reação dela. Por mais ingênua que ela tenha parecido ser, ao acreditar no amor supostamente real do playboyzinho hedonista Ivan (ou Vânia), encarnado por Mark Eydelshtein (uma espécie de Timothée Chalamet de baixo orçamento) como uma figura claramente imatura e bem nascida, interessada apenas em bebedeiras, festas, putaria e jogos de videogame.

 

 

Vânia é filho de um magnata russo e se aproxima de Ani na boate em que ela trabalha, justamente por ela ser a única capaz de falar a língua do rapaz. O contrato inicial para uma dança particular, logo se converte em um valor mais alto pago para algo a mais. A química é imediata, o que faz o jovem fazer uma ousada proposta: ela ser uma namorada de aluguel por uma semana, pelo valor de U$S 15 mil. Para Ani, a possibilidade de ganhar um bom (e fácil) dinheiro de um riquinho abobado parece uma boa pedida. Especialmente pelo glamour embutido, com a bela mansão da família, as melhores festas e o dinheiro que parece jorrar infinitamente. Então, quando uma ida meio inesperada à Las Vegas (tudo nessa mesma semana sem limites, filmada de forma vertiginosa e com uma edição frenética), resulta em um desajeitado pedido de casamento, a protagonista aceita. Parece uma vida ideal a ser conquistada, que lhe retiraria da rotina da boate, com alguma chance de melhorar a própria condição.

Só que o que Ani não percebe logo é que pra Vânia esse também parece ser um bom negócio. Se tornando americano por conta do matrimônio, ele poderia simplesmente escapar de suas obrigações familiares - seu pai, aparentemente, estabeleceu um prazo para que ele retorne à Rússia para começar a trabalhar nos negócios da família. Ani se demite da boate, e vai morar com Vânia. Por um ou dois dias - ou ao menos até o momento em que um tabloide publica a notícia, que chega à Moscou. Com tudo desandando em uma enxurrada de acontecimentos em cascata que vai de capangas perseguindo a dupla e praticamente sequestrando Ani, aos pais do jovem exigindo à anulação do casamento - especialmente pela suposta vergonha causada pelo menino, em casar com uma puta (como eles, equivocadamente, chamam Ani). Em geral, essa é uma obra caótica, meio intragável, mas que tem um propósito de existir, afinal, no capitalismo tardio, não dá pra confiar em bilionário que só pensa no próprio umbigo. É uma mensagem simples, mas que talvez o choro suplicante de Ani ao final - ela só queria, talvez, ser amada por quem ela é -, evidencie. Forte, humano e engenhoso. Ainda que na base do gritedo.

Nota: 8,0


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Pitaquinho Musical - FKA Twigs (EUSEXUA)

Pode parecer meio estranho pensar que a semana da FKA Twigs teve dois momentos diametralmente opostos, mas que estão conectados, já que na quarta-feira ela recebeu uma indicação ao Framboesa de Ouro por sua participação na releitura cinematográfica de O Corvo para, logo em seguida e nesta sexta-feira, lançar EUSEXUA, seu terceiro disco, que estará em todas as listas de melhores no final do ano. Afinal, foi durante as filmagens da obra em Praga, que a artista passou a frequentar casas noturnas da capital da República Tcheca, com a vida notívaga servindo de inspiração para um disco etéreo e hipnótico, com uma mistura moderníssima de techno, trip hop, psicodelia, R&B e pop. Sim, mas pop à maneira de Twigs: enigmático, sensual e efervescente. Com as batidas cheias de idas e vindas e os sintetizadores nada óbvios formando um conjunto coeso, mas que se espalha de forma fluída.

 


 

Sobre o conceito por trás do álbum, a cantora comentou em entrevista à Revista Vogue britânica que Eusexua é um neologismo que serviria para descrever uma sensação de euforia tão intensa que transcenderia a forma humana. E, em alguma medida, não deixa de ser interessante notar como esse estado de espírito é palpável conforme percorremos as curvas do registro - o terceiro da carreira de Twigs. Seja nas letras ambíguas e excitantes, como em Girl Feels Good (Quando uma garota se sente bem / Isso faz o mundo girar), nos vocais sussurrados e arfantes (Striptease) ou na produção limpíssima, tudo parece conduzir para um sentimento de elevação ritualística no interior do inferninho hedonista em que o fim de noite chega cheio de suor, amor, tesão e lágrimas. Ao cabo, é sempre bom ouvir artistas que fogem do óbvio. E que não tem vergonha de misturar sexo, niilismo, vagabundagem, diversão, Ray of Light, Björk e violência no mesmo conjunto. É pra dançar. Enquanto o mundo se despedaça.

Nota: 9,0


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

7 Considerações Sobre os Indicados ao Oscar 2025

Bom, como vocês já sabem, a Academia divulgou na manhã desta quinta-feira os indicados ao Oscar 2025 - a premiação ocorre no dia 02 de março e, para nós brasileiros, promete ser o maior evento cinematográfico da história recente. Tanto que ainda estamos aqui e emocionados, pra elaborar essa rápida listinha com as nossas considerações sobre indicados, esquecidos, surpresas e tudo o mais!

1) Antes de mais nada PARA TUDO que Ainda Estou Aqui fez história ao ser indicado não apenas na categoria Filme em Língua Estrangeira - e até havia alguma dúvida de que alcançaríamos esse feito, dada a qualidade natural dos nominados (quase sempre a melhor produção do País naquele ano, ou a que mais merece reconhecimento) -, mas também na de Melhor Filme! MELHOR FILME! Em quase 100 edições do Oscar essa é a primeira vez que isso acontece - de um filme brasileiro ser lembrado na categoria máxima, o que aumento E MUITO as nossas chances. 

 


 

2) E a cereja do bolo é a indicação da Fernanda Torres como Atriz, aumentando a visibilidade e as expectativas, após a conquista do Globo de Ouro! A maior "rival" na categoria segue sendo a Demi Moore pelo trabalho espetacular em A Substância - o que comprova que nesse quesito o carecão de ouro vai estar em boas mãos. Claro que a gente vai estar na torcida pela nossa Fernanda totalmente INDICADA! Mas o que vier daqui pra frente, é lucro. Em tempo, fecham a categoria de Melhor Atriz Cynthia Erivo por Wicked, Mikey Madison por Anora e Karla Sofía Gascón por Emilia Perez.

3) Aliás, falando em Emilia Pérez ele é a nossa verdadeira pedrinha no sapato para a premiação desse ano. O filme, que ainda não assistimos, tem sido divisivo, gerado polêmica e uma sensação de ame ou odeie - o que nesse meio também pode ser positivo (para ele), por conta do buzz gerado. O filme que representa a França - mas se passa no México -, foi lembrado em 13 categorias. Claro que isso não significa vitória, ainda mais em um cenário de incerteza, como parece ser o desse ano. De acordo com o Dalenogare, no canal dele, o fato de Ainda Estou Aqui ter sido lembrado a Melhor Filme aumentas as chances nas outras duas categorias, já que tudo daqui pra frente, nesse mês todo, é um novo jogo.

4) Em tempo, O Brutalista, um épico histórico sobre a experiência imigrante, que ainda não conferimos, e Wicked, a versão cinematográfica de sucesso da Broadway - que estamos com ZERO ÂNIMO de conferir - receberam 10 indicações. Conclave, ótima surpresa do começo do ano sobre os bastidores da eleição do Papa - resenha em breve -, e Um Completo Desconhecido -, um olhar sobre os primeiros anos do Bob Dylan, foram lembrados em oito categorias, sendo esses os principais filmes na disputa. 

 


 

5) Claro que por mais emocionados que estejamos, não é difícil perceber que esse parece um ano meio fraco cinematograficamente falando, com poucas obras que se sobressaem ou que são unanimidade. A parte boa é que isso torna tudo ainda mais imprevisível - o que é bom para nós e para a nossa torcida.

6) Em relação às surpresas, vale comentar que o próprio A Substância é uma ótima surpresa na categoria máxima - um body horror exagerado, maravilhoso e repulsivo, que é um tipo de filme que não costuma ser atrativo entre os votantes. Talvez para os americanos e para alguns de nós, a Fernanda chegar à Atriz também seja surpreendente, por mais que o nosso patriotismo (o nosso, não o daqueles que batem continência pra bandeira estadunidense) estivesse em alta. E, bom, nem precisamos dizer no quão surpreendente foi a obra de Walter Salles chegar à categoria máxima!

7) Sobre os esnobados, penso que havia algumas certezas que parecem não ter se confirmado - caso das atrizes Pamela Anderson, por The Last Showgirl e Nicole Kidman, por Babygirl, além da Angelina Jolie por seu trabalho tão elogiado em María.  A ausência de Rivais, em Trilha Sonora, também surpreende, dada a ótima receptividade do trabalho de Trent Reznor e Atticuss Ross, premiados mundo afora. Aliás, Rivais acabou por ser uma decepção como um todo e a campanha de lembrança parece não ter funcionado. No mais, fora o esquecimento de diretores como Edward Berger por Conclave, numa categoria disputadíssima, não há grandes esnobadas a serem destacadas, ao menos inicialmente.

E, bom, que venha o Oscar!

 

Melhor Filme

    Anora
    O Brutalista
    Um Completo Desconhecido
    Conclave
    Duna: Parte Dois
    Emilia Pérez
    Ainda Estou Aqui
    Nickel Boys
    A Substância
    Wicked



Melhor Atriz

    Cynthia Erivo - Wicked
    Karla Sofia Gascón - Emilia Pérez
    Mikey Madson - Anora
    Demi Moore - A Substância
    Fernanda Torres - Ainda Estou Aqui

 

Melhor Ator

    Adrien Brody - O Brutalista
    Timothée Chalamet - Um Completo Desconhecido
    Colman Domingo - Sing Sing
    Ralph Fiennes - Conclave
    Sebastian Stan - O Aprendiz

 

Melhor Direção

    Sean Baker - Anora
    Brady Corbet - O Brutalista
    James Mangold - Um Completo Deconhecido
    Coralie Fargeat - A Substância
    Jacques Audiard - Emilia Pérez



Melhor Filme Internacional

    Ainda Estou Aqui
    A Garota da Agulha
    Emilia Pérez
    A Semente do Fruto Sagrado
    Flow



Melhor Atriz Coadjuvante

    Monica Barbaro - Um Completo Desconhecido
    Ariana Grande - Wicked
    Felicity Jones - Brutalista
    Isabella Rossellini - Conclave
    Zoe Saldaña - Emilia Pérez



Melhor Ator Coadjuvante

    Yura Borisov - Anora
    Kieran Culkin - A Verdadeira Dor
    Guy Pearce - Brutalista
    Jeremy Strong - O Aprendiz
    Edward Norton - Um Completo Desconhecido



Melhor Roteiro Original

    Anora
    Brutalista
    A Verdadeira Dor
    Setembro 5
    A Substância



Melhor Roteiro Adaptado

    Um Completo Desconhecido
    Conclave
    Emilia Pérez
    Nickel Boys
    Sing Sing 



Melhor Animação

    Robô Selvagem
    Divertida Mente 2
    Flow
    Wallace & Gromit: Avengança
    Memoir of a Snail



Melhor Documentário

    Black Box Diaries
    No Other Land
    Porcelain War
    Trilha Sonora Para um Golpe de Estado
    Sugarcane



Melhor Trilha Sonora Original

    O Brutalista
    Conclave
    Emilia Pérez
    Wicked
    Robô Selvagem



Melhor Fotografia

    O Brutalista
    Duna: Parte Dois
    Emilia Pérez
    Maria
    Nosferatu



Melhor Montagem

    Anora
    O Brutalista
    Conclave
    Emilia Pérez
    Wicked



Melhores Efeitos Especiais

    Alien: Romulus
    Better Man
    Duna: Parte Dois
    Kingdom of Planet of the Apes



Melhor Figurino

    Conclave
    Wicked
    Nosferatu
    Um Completo Desconhecido
    Gladiador II



Melhor Maquiagem e Penteado

    Um Homem Diferente
    Emilia Pérez
    Nosferatu
    A Substância
    Wicked



Melhor Direção de Arte

    Duna: Parte Dois
    Wicked
    O Brutalista
    Nosferatu
    Conclave



Melhor Som

    Um Completo Desconhecido
    Duna: Parte Dois
    Emilia Pérez
    Wicked
    Robô Selvagem



Melhor Curta-Metragem

    ALien
    Anuja
    I'm Not a Robot
    The Last Ranger
    The Man Who Could Not Remain Silent



Melhor Curta Animado

    Beatuitul Men
    In the Shadow of the Cyrpess
    Magic Candles
    Wander to Wonder
    Yuck!


Melhor Curta Documentário

    Death by Numbers
    I am Ready, Warden
    Incident
    Instruments of a Beating Heart
    The Only Girl in the Orchestra



Melhor Canção Original

    "El Mal" - Emilia Pérez
    "The Journey" - The Six Triple Eight
    "Like a Bird" = Sing Sing
    "Mi Camino" - Emilia Pérez
    "Never Too Late" - Elton John: Never Too Late


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Novidades em Streaming - A Besta (La Bête)

De: Bertrand Bonello. Com Léa Seydoux, George Mackay e Guslagie Malanda. Ficção científica / Drama / Romance, França, 2023, 146 minutos.

Existe uma frase meio de autoajuda que diz que se pensarmos (ou nos preocuparmos) demais com o futuro, acabamos por não viver o presente. E, em alguma medida, talvez essa sentença dialogue com a ficção científica existencialista A Besta (La Bête), que estreou na Mubi há algumas semanas. Na trama, passado, presente e futuro se entrelaçam para compor uma distopia onde as pessoas buscam, a cada dia, formas de refrear as suas emoções. Afinal, em um mundo tão individualista, hedonista e tecnológico, os sentimentos - quaisquer que sejam -, podem ser um problema. Amor? Raiva? Tristeza? Tesão? Melhor evitar e se tornar um ser domesticado, que se ajusta a esse ambiente insípido, cada vez mais distante da experiência humana. O ano é 2044 e é nesse contexto que Gabrielle (Léa Seydoux) aceita fazer parte de um experimento que lhe promete a purificação do DNA.

A ideia é conseguir um emprego em um cenário de dominação da inteligência artificial, com mais de 60% de população ociosa. Em uma grande banheira inundada por um líquido preto - algo viscoso, parecido com petróleo -, a protagonista recebe uma injeção no ouvido. A picada - feita, aliás, com uma agulha gigantesca -, lhe permitirá viajar para o passado. E para vidas anteriores. Na primeira, em 1910, a jovem é uma proeminente pianista, que frequenta festas chiques acompanhada de seu marido, um rico fabricante de bonecas. Na segunda, em 2014, ela é uma modelo e atriz participando de uma série de entrevistas de emprego. Em cada uma dessas eras, um ponto em comum: os encontros recorrentes com Louis Lewanski (George Mackay), que pode ser um charmoso aristocrata no período antigo ou um incel incapaz de se relacionar com mulheres, permanecendo virgem aos 30 anos.

 

 

Olhando assim tudo parece meio simples de entender, mas esse é aquele tipo de obra que exige do espectador a atenção aos detalhes. No centro da narrativa está uma espécie de exame da mente humana, envolta em medos onipresentes, às vezes escondidos, noutros mais evidentes. Parece que sempre temos receio de que algo muito ruim vai acontecer. Guerras, pandemias, enxurradas, destruição do meio ambiente, dominação tecnológica, violências de todos os tipos, de onde menos se espera. Se a gente deveria jogar luz para o passado para não repetir erros no futuro, talvez não estejamos fazendo a coisa da maneira correta. Simbolizada por um pombo invasor, a maldade pode ser inesperada ou premeditada, com resultados fatais independente da época (e não deixa de ser interessante notar como o sempre provocativo diretor Bertrand Bonello se utiliza de eventos reais para ilustrar seu ponto, seja uma enchente terrível ocorrida em 1910 ou um massacre perpetrado por um misógino desesperado em 2014).

Simbólica, excêntrica e alegórica, essa é uma experiência que pode ser meio complicada em um primeiro momento. Um quebra-cabeças fragmentado e cíclico que parece funcionar como um alerta para o estado das coisas. Se em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), os protagonistas procuram um procedimento para deletar a pessoa amada de suas mentes, após a dor de um rompimento amoroso, aqui temos a a ampliação desse conceito - como se o excesso de medicamentos para os mais variados distúrbios psicológicos já não fosse mais do que suficiente. É preciso extirpar da alma essa consciência, que nos torna vivos. E que nos faz sentir. Eliminar traumas passados, herdados por séculos. Que infectam o inconsciente. Talvez um estoicismo forçado. Que nos torne apáticos, alheios. E bastante ajustados a um futuro em que seremos atendidos por robôs e por máquinas, enquanto checamos mecanicamente a temperatura de placas aparentemente inúteis. Estéreis. No mínimo pra nos fazer pensar.

Nota: 8,0


segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Tesouros Cinéfilos - Inverno da Alma (Winter's Bone)

De: Debra Granik. Com Jennifer Lawrence, John Hawkes e Dale Dickey. Drama / Suspense, EUA, 2010, 100 minutos.

O famoso frio de renguear cusco, como dizemos aqui no Sul do mundo, é uma sensação absolutamente palpável no melancólico Inverno da Alma (Winter's Bone), filme dirigido por Debra Granik, que completa quinze anos de lançamento em 2025. Em alguma medida, essa é uma obra simples, que versa sobre amadurecimento mas em um contexto bem diferente daquele que assistimos em produções indie sobre adolescentes classe média sofrendo bullying ou se esforçando para um primeiro beijo (que, dada a timidez galopante e a falta de qualquer traquejo social eles sequer merecem). Aqui, o cenário é a zona rural do Missouri, onde a jovem de 17 anos Ree Dolly (Jennifer Lawrence, em seu primeiro papel de destaque), se esforça para cuidar dos seus dois irmãos pequenos e da mãe que sofre com demência, em um cenário de precariedade e de todo o tipo de ausência (inclusive de alimento).

Ajudada aqui e ali por uma afável vizinha, que cria animais e parece ter um pouco mais de recursos - mesmo em um espaço isolado e inóspito (sim, a sensação de frio parece saltar da tela, seja pela neve ou pela floresta discreta e cinza) -, Ree recebe uma notícia que piora tudo, quando um delegado de polícia bate a sua porta. Ou ela localiza o pai, um traficante de metanfetamina (seu nome é Jessup) que descumpriu a liberdade condicional e está foragido, ou ela e a sua família precisarão entregar a casa - o único bem que resta e que está alienado à justiça. Há uma data de limite para isso e que envolve o comparecimento do pai à corte local. Sendo seu paradeiro desconhecido, Ree empreenderá uma verdadeira via crúcis em casas da vizinhança, percorrendo estradas e terrenos e encontrando, aqui e ali, figuras que possam saber qualquer notícia sobre o genitor. O relógio está correndo e é contra ele que Ree está brigando.


 

No meio do caminho, ela estabelecerá contato com Teardrop (o ótimo John Hawkes), um viciado em metanfetamina, que talvez possa saber algo. Além dele, Ree confronta o chefão do tráfico local, um certo Thump Milton (Ronnie Hall) e não é preciso dizer que toda essa movimentação chamará a atenção - também da bandidagem. Como não poderia deixar de ser, a violência parece rondar esse espectro provinciano que parece parado no tempo. Ree avança, aos trancos e barrancos, cruzando cercas e lugares, mas sem ter a certeza de que faz qualquer avanço. Aliás, como espectadores, a impressão de que temos em certa altura é a de fazermos voltas no mesmo lugar, junto da protagonista. O pai, sequer sabemos se está vivo. Talvez nem esteja. E algumas pessoas, mais adiante, talvez desejem ver Ree morta. Especialmente por chafurdar onde não devia.

Indicado à Melhor Filme e à Roteiro Adaptado no Oscar 2011, a produção também levaria Jennifer Lawrence e John Hawkes à nominação, sendo lembrados pela Academia nas categorias Atriz e Ator Coadjuvante. Aliás, uma obra pequena em tamanho e que depende muito dos diálogos (bem como dos silêncios e olhares), tem como destaque justamente as atuações - críveis e potentes. Lawrence, por sinal, é convincente como a jovem interiorana de perfil embrutecido e expressão severa, que encontra pouco espaço pra respiro em meio ao jogo de mentiras e às ameaças que lhe rondam. É quase raro vê-la sorrir, o que só ocorre perto do esperançoso final. Já Hawkes converte Teardrop em uma figura complexa e ambígua, que faz com que desconfiemos e nos afeiçoemos de suas atitudes em igual medida. Tecnicamente bem executada, essa segue sendo uma experiência sombria e  amarga, que apresenta um outro lado do sonho americano. Que, na realidade, mais parece um pesadelo.


Novidades em Streaming - Kneecap: Música e Liberdade (Kneecap)

De: Rich Peppiatt. Com Liam Óg Mo Chara Ó Hannaidh, Naoise Móglaí Bap Ó Cairealláin, JJ Ó Dochartaigh e Michael Fassbender. Drama / Comédia, Irlanda, 2024, 90 minutos.

Não fosse a vida real e talvez um trio de rap de Belfast, cantando músicas provocativas e iconoclastas na língua irlandesa, conquistando o público com seu flow envolvente, talvez só fosse possível na ficção. Mas o caso é que a banda Kneecap não apenas existe de verdade, como lançou seu primeiro (e elogiado) álbum em 2024 - se chama Fine Art. E como a história é, de fato, muito boa, o trio formado por Liam Óg Mo Chara Ó Hannaidh, Naoise Móglaí Bap Ó Cairealláin e DJ Próvai, ainda foi tema do filme de mesmo nome - uma narrativa ficcional sobre como eles se conheceram (de uma forma quase aleatória) para, mais tarde, atrair multidões para suas energéticas apresentações. Movidos pelo nacionalismo - reforçado pela manutenção de seu idioma -, os músicos desenvolveriam uma predileção por temas sociais, políticos e religiosos, convertendo sua arte em veículo de combate ao domínio britânico e de exaltação a uma identidade irlandesa.

Sim, talvez não seja muito simples compreender os bastidores dessas disputas centenárias que envolvem os países do Reino Unido - o que só é possível com um bom material de apoio. Ainda assim devo dizer que essas disputas entre católicos e protestantes, entre nacionalistas irlandeses e unionistas quase fica em segundo plano, perante o poder da música e do impacto cultural como um todo. Claro que no cerne do debate está o soft power que só a arte possibilita - o que torna a experiência ainda mais irresistível. "Em todo o mundo uma língua indígena morre a cada 40 dias", recorda um letreiro, antes dos créditos finais. A luta de Mo Chara, Móglai Bap e DJ Próvai é contra esse apagamento. Afinal seria muito cômodo fazer parte da cultura hip hop tendo como base a língua do colonizador. Muito mais fácil de furar a bolha, vamos combinar, e basta pensar nos nossos artistas e de como eles alcançam outros públicos ao adotar o inglês.

 

 

Certo ou não, o fato é que a divertida e corrosiva obra do diretor Rich Peppiatt - que é o enviado da Irlanda ao Oscar, na categoria Filme em Língua Estrangeira -, nos faz pensar sobre todas essas questões. Com muito senso de humor e sem muito espaço para o mero autoelogio. Sim, a banda pode até ter talento e ter demorado para emplacar, dados os preconceitos, mas Mo Chara e Móglai Bap, que são irmãos, são retratados como dois jovens rebeldes, cooptados pelo tráfico de drogas. Aliás, é justamente a prisão de Mo Chara, em uma noite de batida policial em uma boate de Belfast, que faz com que ele conheça o futuro DJ Próvai - até aquele momento, apenas um professor de música e de linguística, de nome JJ Dochartaigh. Mo Chara se recusa a falar em inglês, durante o interrogatório, sendo JJ acionado, em plena madrugada, para ser seu intérprete.

O furto improvisado do bloquinho de anotações do jovem será a deixa para que JJ descubra o potencial das letras rabiscadas na caderneta. Impressionado, ele coloca uma base sonora em cima. E, bom, o resto é história. Da criação do nome do grupo, passando pelos amores improvisados (como no caso de Georgia) e os preconceitos vividos pelo trio, especialmente pelo professor, que prefere preservar sua identidade com medo de retaliações, tudo é descortinado com uma dinâmica descolada, fluída, com a edição recheada de efeitos cômicos e interessantes e um sem fim de instantes tão poéticos quanto violentos (como no momento em que a dupla central confronta os rivais do coletivo Republicanos Radicais Contra as Drogas). Importante ainda mencionar a presença do pai de Chara e Bap, um ex-paramilitar republicano, que finge a sua morte para fugir do exército britânico e que ressurge, aqui e ali, como um espectro a influenciar as decisões de todos ali. Tem impacto. E vale dar atenção.

Nota: 8,0


quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Cinema - Meu Bolo Favorito (Keyk-e Mahbub-e Man)

De: Behtash Sanaeeha e Maryam Moghadam. Com Lili Farhadpour e Esmaeel Mehrabi. Drama / Romance, Irã / Suécia / França / Alemanha, 2024, 97 minutos.

Se realizado em qualquer outro País do mundo - especialmente aqueles com democracias mais sólidas -, um filme como Meu Bolo Favorito (Keyk-e Mahbub-e Man) já seria relevante, dado o pertinente debate sobre solidão na terceira idade, medo da morte ou invisibilidade dos idosos (um tema nem sempre abordado adequadamente, no cinema). Mas essa é uma obra iraniana e, em uma nação com uma política tão restritiva e cheia de códigos de conduta questionáveis (pra dizer o mínimo), tudo se torna ainda mais complexo, comovente e, à sua maneira, subversivo. No Irã, por exemplo, existe um aparato do Estado, chamado de Polícia da Moralidade, uma bizarrice instituída em 2005 em decorrência da Revolução Islâmica, e que tem como objetivo central prender mulheres que não estejam usando o hijab, aquele tecido que cobre a cabeça e os cabelos, de forma adequada.

Sim, acredite, por lá existe uma patrulha que circula em uma espécie de van por locais públicos, com a intenção de oprimir mulheres que estejam com o cabelo à mostra. Em uma das cenas da produção dirigida com delicadeza e senso de humor por Behtash Sanaeeha e Maryam Moghadam a protagonista Mahin (Lili Farhadpour) confronta esses agentes, após uma abordagem a um grupo de jovens em plena luz do dia. É um instante bonito que evidencia a força de uma mulher já idosa que, após anos de brutalidades e violências diversas, parece cansada de tanta submissão. "Você as mataria por uns fios de cabelos?", questiona a um raivoso policial que esbofeteia e empurra as adolescentes. A jovem a agradece, mas o tom resignado de Mahin entrega. Talvez ela só quisesse uma vida tranquila e feliz perto do ocaso. De preferência com alguém para amar e compartilhar esses anos finais.

 

 

Sim, tudo pode soar bastante melancólico nesse conjunto, mas a obra, vencedora do prêmio da Federação dos Críticos do Festival de Berlim, jamais pende para a lamentação excessiva. Mahin é uma viúva já há 30 anos, e que se sente bastante só depois que seus dois filhos foram morar na Europa. A casa com um belo jardim - herança deixada pelo marido militar -, parece bastante grande e vazia. Os encontros com as amigas, antes mensais, agora rarearam: ocorrem uma vez por ano. Com os assuntos variando entre crises de hipertensão, joelhos enfraquecidos e tumores que podem ser fatais - além de traumas, dores e outros. Só que nessa mesma conversa, uma das amigas provoca: talvez fosse o caso de a protagonista arranjar um novo companheiro. Ela, uma senhora de 70 anos. Em um País moralista, que vigia, para além das vestes, as confraternizações, a música ouvida e até os casais de namorados. Sim, ninguém pode andar de mãos dadas ou expressar qualquer amor em público. A van tá sempre circulando, mais ou menos e, guardadas as proporções, como um extremista de direita vigilante do nosso evangelistão.

Só que, ainda assim, Mahin resolve dar os pulos dela. Determinada a encontrar um novo companheiro, vai a um restaurante frequentado por veteranos de conflitos armados. E lá descobre a existência de um carismático taxista de olhos tristes - seu nome é Faramarz (Esmaeel Mahrabi) -, que também parece sofrer de uma severa solidão. A conversa fluirá no seu próprio tempo - econômica, jamais invasiva. A forma será educada, convidativa, como poucas vezes se vê nos dias de hoje, sempre tão apressados, tão urgentes. Toda a maldade que percorre as ruas dessa Teerã tão conservadora quanto patriarcal ficará do lado de fora, quando eles adentrarem a casa de Mahin. Jardinagem, música, dança, uma foto carinhosa, um pouco de luz - metafórica ou não - em um cenário tão sombrio. Uma conversa regada à vinho e boa gastronomia. Uma parceria que parecerá eterna dali pra frente. Ou eterna enquanto dure. Já que nesse Irã tão pesado, tão difícil, capaz de perseguir politicamente os próprios realizadores do filme, a morte parece sempre rondar. Dá um gosto amargo. E faz pensar.

Nota: 8,5


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Cinema - Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra (Lahn Mah)

De: Pat Boonnitipat. Com Billkin Putthipong Assaratanakul, Usha Seamkhum e Tontawan Tantivejakul. Comédia / Drama, Tailândia, 2024, 125 minutos.

"Quero um milhão. O que você vai fazer com um milhão? Te dar uma casa nova." Em geral é possível compreender os motivos de o público estar simpatizando tanto com Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra (Lahn Mah) - o enviado da Tailândia ao Oscar 2025, e que está na short list da categoria Filme em Língua Estrangeira. Afinal, trata-se de uma experiência bonita e afetuosa sobre laços familiares, memória, legado e senso de finitude. Tudo feito com uma boa dose de humor, que é reforçado pelo carisma dos personagens, especialmente a vozinha octogenária Amah, vivida por Usha Seamkhum. Diagnosticada com um câncer terminal no intestino, ela percebe, não sem certa irritação, uma certa aproximação da parentada nos seus meses finais - muitos deles provavelmente interessados na herança, o que inclui uma modesta casa e algum valor na poupança. Entre esses familiares ambiciosos, está o neto M (Billkin Putthipong Assaratanakul), que sonha, sem muito sucesso, em ser um streamer de jogos online.

A grande verdade é que a ficha para o grande potencial desse negócio de se aproximar, como quem não quer nada, de parentes já próximos do ocaso da existência - o que poderia render no "mercado dos testamentos" -, não cai imediatamente para M. Ao menos não até uma visita à prima Mui (Tontawan Tantivejakul), que está cuidando do avô - um idoso que mal consegue se comunicar. Com dedicação praticamente integral, a jovem auxilia em tarefas prosaicas, como trocar um canal de TV (ou mesmo chamar o conserto do equipamento), e outras de maior complexidade, como a substituição das fraldas geriátricas. Quando o senhorzinho vai de arrasta, quem herda a sua bela casa? Mui. Quando perguntada pelo primo sobre os motivos de ela não buscar um emprego "fácil e bem remunerado", ela responde, com um olhar maroto: "é exatamente o que estou fazendo".

 

 

E, assim, quando pipoca entre familiares a notícia da doença da avó do protagonista - após uma bateria de exames feita após uma queda -, ele praticamente se muda para a casa da Amah. O que resultará em uma relação complexa, turbulenta e repleta de sequências engraçadinhas, que evidenciam o abismo geracional de ambos. Em uma dessas partes, M oferece ajuda a idosa para aquecer a água para a elaboração de um chá destinado aos deuses - que ficam em uma espécie de altar da casa da senhora. Só que o rito é interrompido depois que o rapaz admite que a água foi aquecida, de forma prática, no microondas. Entre idas e vindas eles se conectarão de forma meio aleatória, seja na hora de comercializar o congee - uma espécie de sopa de arroz oriental -, ou na aquisição de um novo sapato, que melhorará o conforto dos pés de Amah.

Claro que serão os pequenos atritos que darão vida à experiência, como em uma ida ao banco, em que a avó pede pro jovem ficar do lado de fora - "fique aqui que você vai usar meus dados pelas costas". E mesmo os supostos momentos de desconfiança servem mais como um gracejo, já que a idosa parece bastante consciente das intenções de M, jamais o repreendendo ou recriminando por sua ambição (já que, ao menos, o seu comportamento é mais honesto do que o dos filhos dela, que aparecem, aqui e ali, só pra fazer média e, quem sabe, garantir uma boquinha). Evidentemente que não precisa ser um Sherlock Holmes para saber onde essa história vai desembocar. Não há uma grande surpresa, ou uma reviravolta inesquecível. Mas ao construir sua fábula como um retrato moderno do impacto das relações humanas em tempos tão frios e de tanto individualismo, Boonnitipat converte esta em uma experiência comovente, agridoce, poética e gentil.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Novidades em Streaming - Jurado Nº2 (Juror #2)

De: Clint Eastwood. Com Nicholas Hoult, Toni Collette, Chris Messina, Gabriel Basso e J.K. Simmons. Drama / Policial, EUA, 2024, 114 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Pode ser apenas uma impressão, mas penso que se Jurado Nº 2 (Juror #2) fosse lançado nos anos 90, ele seria figurinha fácil no Oscar. Com o DNA das obras daquela década, o filme - propagado como o último a ser dirigido por Clint Eastwood, mas, vai saber - consiste em um drama de tribunal envolvente, daquele que nos deixa absolutamente vidrados. Ainda mais por conta do dilema moral apresentado, e que funciona como fio condutor para discussões acerca da efetividade dos sistemas jurídicos e sobre como certos preconceitos podem limitar o nosso campo de visão. Um sujeito discutindo rispidamente com a sua namorada em um bar de beira de estrada, após alguns copos de cerveja, não o converte automaticamente em um assassino. Mesmo que o corpo da jovem tenha sido encontrado sem vida, em um matagal próximo ao estabelecimento, na manhã seguinte. Ou ao menos assim não deveria ser - especialmente em um julgamento em que as provas não pareçam tão sólidas.

Como manda a tradição das obras sobre advogados e promotores decidindo sobre o futuro de réus, aqui temos uma série de idas e vindas no tempo que nos auxiliarão a compreender o que, de fato, teria ocorrido na fatídica noite em que Kendall Carter (Francesca Eastwood) morreu, com o namorado James Sythe (Gabriel Basso) se tornando o principal suspeito do crime. Imagens gravadas por uma outra jovem, que jogava sinuca no local, mostram a briga. Que leva os dois para a rua. Insatisfeita com o comportamento agressivo (e pouco amoroso) de Sythe, Kendall sai caminhando pela madrugada chuvosa. Torrencialmente chuvosa. Sythe entra no carro, vai atrás dela, um vizinho parece ter visto alguém em um carro, próximo do local do ocorrido. Para a promotora distrital Faith Killebrew (Toni Collette), não parece haver dúvidas: o júri está na presença de um assassino ardiloso, cabendo ao defensor público Eric Resnick (Chris Messina), a tentativa de mostrar o outro lado.

 

 

Tensa e envolvente, a produção recebe uma pimenta a mais, ainda no primeiro terço, quando descobrimos que o jornalista Justin Kemp (Nicholas Hoult) estava presente no local do ocorrido. Consternado pela perda prematura dos filhos gêmeos em um aborto não desejado, Justin, um ex-alcoólatra em recuperação, teria parado no bar para afogar às mágoas. Só que ele desiste de beber, pega o carro e sai pela estrada, em meio a chuva torrencial. Até o momento em que, no escuro, e em um instante de desatenção, ele bate em um cervo. Ou no que parece ser um cervo, já que ele não enxerga nada, junto à ponte em que o acidente ocorre. Sua vida segue normalmente, até o dia em que ele é convocado para participar de um júri, em sua cidade, na Geórgia. Um acontecimento de rotina, não fosse o fato de a esposa de Justin, Allison (Zoey Deutch), estar em uma gravidez já avançada. E o caso também guardar algumas inusitadas "coincidências".

Em linhas gerais, não deixa de surpreender como Eastwood converte o drama policial em uma experiência ao mesmo tempo simples, mas engenhosa. Conforme os acontecimentos vão sendo descortinados, mais difícil para Kemp tomar qualquer decisão. Sythe claramente não é culpado. O casal pode brigar, mas é isso. O cervo morto, bom, não era um cervo. E se ele se entregar, corre o risco de ser condenado a três décadas de cadeia - especialmente pelo histórico envolvendo a bebida, havendo brecha para que uma acusação de homicídio seja aberta. Os pais de Kendall querem justiça. Faith quer um cargo mais alto na hierarquia jurídica e acredita que a visibilidade do caso pode ajudá-la. As pessoas podem ser boas, ruins, imperfeitas, ambiciosas. Terem sonhos, planos, famílias, desejos para o futuro. O veredito não é fácil. Há distorções por todos os lados, argumentos aqui e ali. E, bebendo na fonte de clássicos como 12 Homens e Uma Sentença (1957), Eastwood converte este em seu melhor filme das últimas décadas. Uma premissa simples e sedutora, que nos conecta imediatamente. E que joga os holofotes para estruturas e instituições que parecem infalíveis. É muito bom.

Nota: 9,0


Picanha.doc - Frida

De: Carla Gutiérrez. Com Fernanda Echevarría del Rivero. Documentário / Animação / Drama, EUA, 2024, 87 minutos.

Frida Kahlo pode ser uma figura paradoxalmente pop nos dias de hoje - com suas feições severas, reforçadas pelas sobrancelhas grossas e sorriso ambíguo -, estampando réplicas de quadros, camisetas, toalhas, bolsas e outros adereços. Quase como um ícone da comunidade LGBTQIA+ e das feministas, sendo convertida ainda em tatuagens de jovens revolucionários de sofá, que ainda não foram cooptados pela extrema direita. Só que, muitas vezes, a gente esquece detalhes da movimentada (e trágica) vida dela - que não recebem tanta atenção. Uma delas envolve um desejo de juventude da artista ainda embrionária: na adolescência ela sonhava em ser médica. Carreira interrompida porque ela mesma se tornaria uma espécie de paciente eterna, após o famoso acidente de ônibus ocorrido em setembro de 1925, que lhe perfuraria as costas - e o abdômen e o útero -, causando ainda uma grave fratura pélvica, e uma série de fraturas nas costas ou nos pés.

Ter sobrevivido a esse episódio, foi quase como um milagre. Mas que impossibilitou Frida de alcançar seu intento. Parece irônico e estranho pensar que a artista plástica Frida Kahlo, talvez só tenha existido por causa desse trauma. Acoplada durante um ano em sua cama, lhe restou pintar - algo que ela já fazia, mais como uma distração do que como um ofício. Sua mãe teve papel fundamental nesse processo. E foi dali, também, que muitos dos seus famosos autorretratos foram concebidos. Como presentes para amigos, para amantes, para pessoas que, em seu íntimo, ela desejava que não lhe esquecessem. Tudo isso é parte do poético e fascinante documentário Frida, que está disponível na Amazon Prime. Dirigida por Carla Gutiérrez, a produção toma por base uma série de diários e cartas ilustradas da própria pintora - narrados por Fernanda Echevarría del Rivero -, além de uma seleção de fotografias, filmagens e transcrições de entrevistas com pessoas próximas, organizadas pelo biógrafo Hayden Herrera, cujo livro de 1983 foi base para o filme de 2002.


 

Ok, a gente esquece que Frida queria ser médica, assim como a memória fica meio borrada, na hora de recordar como se deu a construção de sua fama - o que ocorreria após a sua morte. Tanto que, inicialmente, ela se tornaria (apenas) a destemida companheira do muralista Diego Rivera, à quem apresentou alguns de seus quadros, sendo também influenciada por ele. Em comum entre os dois, o apreço à revolução e à identidade mexicana - ambos integraram o Partido Comunista local. Com os murais de Rivera representando, em diversas vezes, as lutas de trabalhadores, de indígenas e de outras figuras em vulnerabilidade. Acompanhando o marido ao Estados Unidos para uma série de trabalhos, Frida era apenas a mulher por trás do homem aclamado. Acompanhando-o em Nova York, pelo Harlem ou por Chinatown, em experiências vívidas e palpáveis de união entre arte, cultura e revolução, que forneciam um contraste para o vazio existencial dos ricaços que contratavam Rivera, com suas vidas fúteis e de aparências, como no caso da família Ford (do industriário).

Todo esse conjunto é apresentado não apenas como uma mera transcrição, mas como uma experiência vívida e kitsch, de cores vibrantes e modernas em contraste com o preto e branco das cenas de arquivo. Como uma espécie de imersão, o futuro ícone da artes plásticas é apresentado entre altos e baixos, dores e alegrias, com suas pinturas enigmáticas, quase surrealistas funcionando como ponto de união entre acontecimentos (e aqui merece ser citado o lindo trabalho de "animação" de Sofía Inés Cázares e Renata Galindo, que adicionam movimento aos quadros de Frida, o que resulta em folhas que se mexem, animais em movimento, olhos que se reviram, sangue que verte e outras representações engenhosas, fluídas e poderosas, que reforçam o impacto daquilo que é dito). Não que fosse necessário qualquer complemento, dada a potência das pinturas de Frida em si. Mas o recurso estético fornece ao espectador um mergulho visual pelo inconsciente da protagonista. O resultado é um projeto inebriante, que nos conduz da infância curiosa à morte prematura da pintora, de forma ágil, dramática e comovente.