sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Jadsa (Big Buraco)

Vamos combinar que a figura da coisa grande, de tamanho maior (ou big), meio que funciona como um espectro onipresente no novo registro da baiana Jadsa. Em meio à emanações oníricas e sofisticadas que fundem jazz, samba rock e MPB e que sempre foram marca de sua carreira, não são poucas as menções ao enorme, ao gigante - nem que seja um gigante simbólico, uma alegoria para tempos de grandes expectativas, especialmente no que diz respeito à arte e seu imediatismo. Dos títulos das canções - Big Luv, Big Bang, 1000 Sensations, Big Mama, Big Buraco (que também nomeia o disco) , às letras provocativas e enigmáticas que parecem até maiores em sua simplicidade (As coisas acontecem quando querem / Quando crescem todo mundo vê / Não o caminho traçado a navalha / Mas o tamanho do bicho que é) - tudo remete a essa representação de profundidade, de intensidade.

 


Talvez uma audição descompromissada não resulte nessa percepção de imediato, mas em meio a sopros bem encaixados, efeitos que se espalham e percussão levemente experimental, o que se tem é um trabalho caloroso mesmo quando o assunto é o cotidiano. Por exemplo, na envolvente Big Bang, que abre o álbum, parece haver um certo apelo à importância das coisas simples (viver, comer e dormir bem) e da potência envolvida nisso. Já Tremedêra é aquela experiência brasileiríssima de jamelão, caju e mangaba e de metáforas sensuais, de sabores, amores e sotaques bem nossos. Expediente que se repete na sexy Sol na Pele, com seu refrão grudento e clima primaveril estilo Mahmundi. Em resumo, é o dia a dia em alegorias apaixonadas, pulsantes, de degustação de loucura e de outras sensações. Ao cabo, o buraco pode ser um lugar de aconchego também. Como vocês bem sabem.

Nota: 8,0 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Cine Baú - Nascida Ontem (Born Yesterday)

De: George Cukor. Com Judy Holliday, William Holden e Broderick Crawford. Comédia / Romance, EUA, 1950, 103 minutos.

"Impressionante a quantidade de coisas interessantes que se aprende lendo". Vamos combinar que a frase dita por Billie Dawn, personagem de Judy Holliday na comédia Nascida Ontem (Born Yesterday), hoje em dia soa quase óbvia, frente à tantas produções que já debateram o assunto. Sim, a educação é emancipadora, todos sabemos, e no caso da protagonista do divertido clássico de George Cukor, que completa 75 anos de lançamento em 2025, essa liberdade é (quase) literal. Já que a ficha dela cai justamente quando ela começa a se aprofundar em suas leituras. É com o estudo sobre os mais variados temas que a jovem perceberá, aos poucos, o quão absurda é a sua submissão ao tosco, mal educado e truculento Harry (Broderick Crawford) - um magnata do ferro velho, com quem ela estava por uma provável falta de autoestima.

Como se fosse a protagonista do recente Pobres Criaturas (2023), do Yorgos Lanthimos - mas com menos psicodelia e um discurso mais direto -, Billie tem uma nova chance de sair da bolha de opressão ao conhecer o jornalista Paul Verrall (William Holden), que vai ao encontro deles em Washington DC com a ideia de escrever uma matéria sobre os negócios (escusos) de Harry, que está na capital federal justamente para encontrar alguns lobistas. Só que o ricaço nega a entrevista com o repórter, mas se afeiçoa a ele. Resolvendo contratá-lo após um episódio em que o brutamontes acredita ter sido constrangido pela mulher, em um encontro com um congressista. Instruído a "educar" Billie para que ela tenha modos mais refinados nessas reuniões com figurões, Paul se aproxima dela e, bom não é preciso ser nenhum adivinho para saber que a ligação entre os dois não será apenas o de tutor e aluna.

 


Claro, estamos falando de uma obra de 1950 e é evidente que essa narrativa do homem que salva uma mulher para torná-la mais aceita socialmente soa ultrapassada. Mas há que se considerar o tempo em que o filme, inspirado na peça de teatro do escritor Garson Kanin, veio à público. Um tempo em que o machismo e o patriarcalismo costumavam relegar o papel da mulher a espaços sociais bastante restritos  e aqui não deixa de ser interessante observar como Billie sai da posição de esposa troféu improvisada de um burguês xucro que trata todas as pessoas, inclusive da sua equipe de assessores, com grosserias e aos berros, para se converter em uma mulher independente, capaz de tomar as próprias decisões de forma autônoma. Não por acaso, em um dos pontos altos da produção, Billie se recusa a assinar uma série de documentos comprometedores por finalmente compreender a natureza obscura daquela papelada (ela era sócia, afinal, de Harry).

Aliás, mais do que isso, como uma jovem meio que à frente do seu tempo e num apelo iminentemente feminista, é justamente Billie quem toma a iniciativa de (tentar) beijar Paul que, inicialmente se esquiva, mas que, mais adiante cai aos seus braços, conforme eles ampliam às visitas a museus, bibliotecas, teatros, memoriais e outros espaços públicos que apenas reforçam a conexão e a sintonia da dupla. A própria frase clássica de Thomas Jefferson, que mais adiante, num contexto de pós Segunda Guerra, poderia funcionar como libelo antifascista (Quando as pessoas temem o governo, isso é tirania; quando o governo teme as pessoas, isso é liberdade) surge como uma lembrança importante do que está em jogo ali, com Harry sendo o tirano simbólico e metafórico a oprimir Billie (que representa, numa alegoria mais do que livre, o povo). 

 

 

Alternando momentos comoventes, como aquele em que a protagonista narra à Paul sobre as cartas enviadas a seu pai, um homem justo e de caráter a quem ela admira (e com quem não conversava simplesmente pelas dificuldades de escrita); com outros engraçados, como no momento em que um Harry desesperado pergunta ao seu assessor se não há maneira de tornar Billie "burra outra vez", a obra de Cukor permanece essencialmente divertida, com seu texto ágil, situações comicamente inusitadas e mensagem valiosa sobre o poder do conhecimento ("é perigoso viver em um mundo de ignorantes" lembra alguém em certa altura e aí quando vê é negacionismo científico, apego à extrema direita e reacionarismo). Não por acaso, o filme figura em uma série de listas de melhores, como no caso dos 100 mais engraçados da história do American Film Institute (em um honroso 24º lugar). Vale resgatar!

Novidades em Streaming - Síndrome da Apatia (Quiet Life)

De: Alexandros Avranas. Com Grigoriy Dobrygin, Chulpan Khamatova, Miroslava Pashutina e Naomi Lamp. Drama, Grécia / Alemanha / Suécia / Estônia / França / Finlândia, 2025, 99 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor grego Alexandros Avranas sabe que seus filmes procuram examinar a barbárie e os horrores do mundo sempre de forma sutil, partindo de um microcosmo doméstico, com o grito abafado normalmente saindo pelas frestas. Ao espectador, assim como ocorre nas obras do compatriota Yorgos Lanthimos - de projetos estranhos e diversos como Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e Pobres Criaturas (2023) - cabe unir os pontos para compreender melhor aquilo que sempre parece estar uma camada abaixo. Foi assim com o impressionante Miss Violence (2013) - em que a violência sexual contra menores e o incesto emergem como parte da fratura de uma família traumatizada por um suicídio -, é assim também com Síndrome da Apatia (Quiet Life), produção que estreou na última semana na plataforma Reserva Imovision.

A trama é simples e, por mais excêntrica que pareça, é inspirada em eventos reais. Na história um casal de refugiados russos - Sergei (Grigoriy Dobrygin) e e Natalia (Chulpan Khamatova) -, que alega ter chegado à Suécia por medo de retaliações do Governo, tem o seu pedido de asilo político negado por falta de evidências dessa suposta violação. Após o ocorrido, uma das filhas, a jovem Katja (Miroslava Pashutina), simplesmente desmaia na rua. E, resumidamente, nunca mais acorda. Sendo diagnosticada, localmente, com a síndrome da resignação, uma espécie de curiosa condição psicológica que coloca crianças e adolescentes, geralmente filhos de imigrantes, em um estado letárgico, catatônico. Como se fosse um sono permanente, o que os impede de comer, andar ou falar - um quadro que pode durar semanas, meses ou anos e que seria uma resposta à situações de trauma e de adversidade.

 


O tema, diga-se de passagem já foi retratado no documentário em curta-metragem A Vida em Mim (2019), que chegou a ser indicado ao Oscar em sua categoria naquele ano. E que revela como centenas de crianças foram, misteriosamente, acometidas pela síndrome que segue tendo suas causas desconhecidas. Já na obra de Avranas, o que se vê é a luta do casal protagonista em meio a cubículos de hospital e outros ambientes opressores, não apenas para prosseguir após o ocorrido com Katja, mas também para obter o documento que ateste a autorização para residência. O que envolverá a participação da outra filha, a adolescente Alina (Naomi Lamp), que será encarregada de contar aos representantes da imigração a história de agressão que ela supostamente teria testemunhado contra o seu pai - um professor em seu País de origem , e que poderia contribuir para a obtenção do visto.

Sem muita brecha para outros mistérios - ainda que a produção se empenhe em conceder à narrativa a ideia geral de metáfora para traumas atuais que envolvem xenofobia, crises imigratórias, burocracias estatais, indiferença à dor do outro e outros temas políticos e sociais (tudo muito de passagem) -, o filme se esforça em evidenciar, talvez forçando um pouco a barra, o significado do silêncio frente às injustiças. Ainda que, como no caso dos repulsivos episódios recentes do nosso congresso brasileiro - com deputados de extrema direita colando esparadrapos em suas bocas, para denunciar uma ditadura existente somente na cabeça alucinada deles -, essas ideias soem totalmente deturpadas, é importante lembrar que não devemos nos calar, nem ficarmos "apáticos" frente ao sofrimento alheio. É aquela pulguinha que fica.

Nota: 7,0 

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Annahstasia (Tether)

"Talvez eu seja uma moralista / Uma anticapitalista / Que vende seus sonhos por grana / Pra comprar seda e veludo". Pesquisando um pouco sobre a história da Annahstasia eu achei curioso que, próxima dos 30 anos de idade, e com essa voz de veludo de Tracy Chapman moderna, ela estivesse lançando apenas o seu primeiro disco. Mas as coisas logo ficaram claras: assim que surgiu para o mundo ainda adolescente, ensaiando as primeiras canções, não demorou para que um grupo de empresários quisesse transformá-la meio que na marra na mais nova estrela da temporada. Uma daquelas cantoras de pop e R&B insípidas, que existem a rodo por aí, ideais para o consumo rápido - e para o esquecimento idem. Mas a artista tinha outros objetivos. Que parecem ficar evidentes nas letras bastante íntimas e quase explícitas, como no caso da ótima Silk and Velvet, que abre esse pequeno texto.

 


Bater de frente teve seu ônus, mas também seu bônus, como parece ficar evidente na audição de Tether. Esse é um daqueles discos com alma, que pega o folk e o rock e converte-o em algo quase espiritual, meio místico. Uma experiência elevada de arte para além da música. Que se escava pelas profundezas de forma densa, ainda que tudo pareça muito simples, já que a grande maioria das canções são feitas com violão, percussão e pianos minimalistas e efeitos econômicos. A voz quente e densa de Annahstasia é daquelas que aconchega, mesmo quando os versos surgem rasgantes, como no caso da ótima Believer (E eu só quero brincar de faz de conta às vezes / Mas eu preciso que você acredite / Que estou tentando o meu melhor / Então não me descarte como todos os outros), que encerra o disco em um gospel de estilo angustiado, com melodias pouco óbvias. É disco pra colocar no repeat. E ir absorvendo aos poucos.

Nota: 8,5 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Cinema - Filhos (Vogter)

De: Gustav Möller. Com Sidse Babett Knudsen, Sebastian Bull Sarning e Dar Salim. Drama, Dinamarca / Suécia, 2024, 94 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

Existe um filme alternativo dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne chamado O Filho (2001) que, de forma muito resumida, conta a história de um carpinteiro enlutado, que resolve contratar justamente o assassino do próprio filho, em um programa de ressocialização de adolescentes que ele participa. É uma experiência áspera e complexa, mas que acena com esperança para um mundo em que a violência e o "olho por olho, dente por dente" parecem reger os códigos atuais da sociedade. E, enquanto assistia ao excelente Filhos (Vogter), projeto dinamarquês que está em cartaz nos cinemas, foi meio inevitável não pensar na obra dos Dardenne. Não apenas pelas semelhanças na história, mas também pelo estilo econômico, cheio de sutilezas e de silêncios que falam muito, adotado por Gustav Möller, que é diretor do ótimo Culpa (2018).

Na trama, Eva (Sidse Babett Knudsen) é uma agente carcerária que parece ter uma retidão moral incorrigível. Só pelos seus modos com os presos - sempre educada, preocupada em resolver problemas pequenos ou grandes (como as filas para o banho ou uma boa condução das aulas de matemática ou de ioga) - é possível perceber que ela é alguém que acredita, de fato, no potencial regenerativo do sistema. Especialmente quando o assunto são os criminosos que cumprem penas mais leves. Só que a coisa muda de figura quando ela nota a chegada de um misterioso preso a uma ala em que estão infratores envolvidos em crimes mais sérios. O que é justamente o caso de Mikkel (Sebastian Bull Sarning), que é acusado de ter assassinado um outro preso por motivos fúteis (como saberemos mais adiante). Há, tem também um outro detalhezinho importante, nada de mais: o jovem morto é o filho de Eva.

 


Claro que não é preciso ser nenhum gênio pra perceber que há caroço nesse angu. Quando Mikkel chega, Eva trata logo de mexer os pauzinhos para que ela seja deslocada justamente para a ala onde está o rapaz. Mesmo sendo alertado por Rami (Dar Salim), o chefe do departamento, dos riscos que ela corre no local. Os olhares demorados da agente, a sua paciência comovente em observá-lo à distância e a sua disposição em confrontá-lo nos assuntos mais minúsculos possíveis (como no momento em que ela lhe nega um maço de cigarros), acirrarão os ânimos e facilitarão a compreensão daquele contexto por parte do espectador. Especialmente para aqueles que já estão acostumados a esse tipo de gramática fílmica, de obras repletas de ambiguidades e de se soluções nunca óbvias. Com os próprios traumas e segredos do passado de Eva, servindo como um inesperado combustível jogado sobre o fogo.

De tensão crescente, o projeto é daqueles que vão escalando aos poucos - o que é reforçado por uma certa claustrofobia que rege o todo. Seja nos cubículos apertados ou nos corredores sufocantes, em que não há nenhuma janela, em que a luz mal se vê. Assim como no caso de Olivier, o protagonista de O Filho, que não parece muito bem saber o que fazer com o jovem, após contratá-lo - ainda que o espectro da vingança ronde sua mente meio que o tempo todo -, aqui temos também uma agente penitenciária que promove uma luta interna muito maior do que aquela contra um sistema supostamente injusto. Em certa altura, após uma confusão na cela de Mikkel, Rami argumenta com Eva, lembrando-a que ele permaneceu uma semana de castigo na solitária. O que mais pode ser feito, afinal? Talvez haja pessoas que "não possam ser salvas", lembra o mesmo Rami. A frase de múltiplos significados, é daquelas que bate forte. Ficando conosco quando os créditos sobem.

Nota: 8,5

 

Novidades em Streaming - Você é o Universo (Ти – Космос)

De: Pawlo Ostrikow. Com Volodymyr Kravchuk, Alexia Depicker e Leonid Popadko. Drama / Ficção Científica / Comédia, Ucrânia, 2024, 100 minutos.

Será que o ucraniano Você é o Universo (Ти – Космос) é uma ficção científica de tintas existencialistas sobre o fim do mundo e o apocalipse climático, ou apenas meio que uma indireta fílmica sobre a indisponibilidade das pessoas para a construção de laços mais sólidos em tempos tão fragmentadamente líquidos (com o perdão da mais óbvia e cansativa citação de Bauman)? Parte obra catastrofista em que o espaço é o limite, parte carrossel do Insta com reflexões supostamente profundas a respeito da ausência de responsabilidade afetiva na era digital, o filme do diretor Pawlo Ostrikow, que está disponível na Reserva Imovision, também tem a chance de não ser nada disso. Nem uma coisa nem outra. Apenas uma aventura, vai ver, sobre solidão na pós-modernidade, com um astronauta em sua nave nos confins do universo, servindo como a base para a fundamentação desse tipo de alegoria. Uma história que meio que sempre existiu, mas que gostamos de voltar a contar.

Na trama, Andriy (Volodymyr Kravchuk) é uma espécie de transportador de cargas espacial, que tem como trabalho levar resíduos nucleares radioativos para o fim do mundo do espaço - mais precisamente para o satélite de Júpiter, Calisto. Uma missão solitária que ele faz de forma permanente, com viagens de ida e volta de dois anos cada. Com toneladas de lixo a bordo. O resumo da ópera é de que, após 150 anos de uso desse tipo de energia, houve um acúmulo de radiação em instalações provisórias, que poderia comprometer a vida em nosso planeta (com tudo sendo explicado em uma bem humorada animação ainda no começo do filme). Bom, o caso é que, em certo ponto, uma das missões dá meio que errado e a Terra explode - sinceramente, admito que não entendi se uma coisa estava relacionada a outra. Impedido de retornar pro nosso mundinho, Andriy parece condenado a vagar pelo espaço. Enquanto tiver combustível. Ou enquanto tiver ânimo pra sobreviver.

 


Resignado, o protagonista revolve se entupir de comida - ele ainda tem estoque para alguns meses -, enquanto consome discos de vinil que, convenientemente, compõem uma decoração que lembra um mapa dos planetas em sua parede. Há também a necessidade de se desviar dos detritos da própria Terra, o que ele faz se "escondendo" atrás da Calisto. Para se distrair, ele mantém conversas nada empolgantes com o robô Maxim (Leonid Popadko) - uma mescla do Hal-9000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e o Gerty, o computador de bordo de uma das grandes e esnobadas obras do cinema alternativo, o ótimo Lunar (2009) -, que lhe conta umas piadas meio de tiozão do pavê só que pioradas. Na tela da nave, Andriy recebe instruções de engravatados xaropes, que estão insatisfeitos com os rumos da missão - aliás, essa transmissão é interrompida quando o sujeito, enfurecido, quebra o televisor.

Tudo vai mais ou menos nesse rumo até o dia em que ele recebe em seu computador de bordo, de forma inesperada, uma mensagem de uma jovem francesa de nome Catherine (Alexia Depicker), que alega estar em uma estação espacial perto de Saturno. Utilizando a mesma frequência e um tradutor, os dois iniciam uma conversa amistosa e mundana, nesse Tinder em que nenhum dos dois sabe exatamente como é o rosto do outro - o que envolverá instantes poéticos, como a tentativa de Andriy de recriar a face de Catherine usando um tipo de massa de modelar (a plasticina). A comunicação é meio complicada, já que o envio e a resposta levam mais de três horas pra ocorrer. Mas mesmo assim, Andriy decide ir ao encontro da sua nova amiga, em uma viagem de milhões de quilômetros de distância. Quem quer dá um jeito, já diria aquela publicação da Nozy. Sim, se a gente forçar um pouquinho a amizade também será possível encontrar, aqui e ali, metáforas sobre guerras (e não é demais lembrar que a própria Ucrânia segue em conflito), pandemias, isolamento, crises imigratórias e outros. Vai de cada um. E o resultado será tocante e comovente, nos fazendo pensar sobre a importância dos laços, das conexões e daquilo que nos faz, de fato, humanos.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Pulp (More)

Só o Pulp pra lançar um disco tão... Pulp em pleno 2025. E eu confesso que eu não estava preparado pra simplesmente gostar do álbum dos ingleses. Sabe aquele retorno que tu tá pronto pra achincalhar, meio que no modo "nem dei play já não gostei"? A minha energia tava meio que nessas até o momento de ouvir More a primeira vez. A segunda. A terceira. Nesse momento eu já tava cantando junto o refrão grudento de Grown Ups, uma canção longa e gloriosa sobre amadurecimento, cheia de citações culturais e uma poesia que faz a gente navegar diretamente praquele climinha brit pop 90 (Foi na noite que me deixaram sair de casa / Foi na noite em que peguei o ônibus sozinho / E a cidade deslizava pelas janelas / Como um filme que estava apenas começando). Vinte e quatro anos de passaram desde o último registro de Jarvis Cocker e companhia e, bem, eles soam como se estivessem nisso há décadas (e a real é que estão).

 


Em entrevista, o vocalista afirmou que tudo começou com a enevoada The Hymn of the North, que começou a ser tocada nos shows desde que o grupo voltou aos palcos em 2023. Foi tudo rápido até que um novo trabalho fosse formatado e a real é que talvez houvesse bastante coisa acumulada nesses anos todos, porque More nunca faz feio como uma continuação meio que natural dos clássicos Different Class (1995), This Is Hardcore (1998) e We Love Life (2001) que eu, nas minhas madrugadas de Lado B na MTV, cresci ouvindo (e amando). Mesclando a possibilidade de dar uns passinhos animados nos inferninhos alternativos, mas sem deixar de lado as letras provocativas e cheias de ironias sobre temas sérios como fanatismo religioso (Slow Jam), ou mundanos como amores platônicos e perturbados (Tina) ou a importância de dizer um "eu te amo" (Got to Have Love), a banda constroi um disco que surpreende pela vitalidade. Aliás, Got to Have Love tem uma das melhores frases do trabalho: Sem amor você está apenas se masturbando dentro de outra pessoa. O homem sabe das coisas.

Nota: 8,5 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Centenas de Castores (Hundreds of Beavers)

De: Mike Cheslik. Com Ryland Brickson Cole Tews, Doug Mancheski, Olivia Graves e Wes Tank. Comédia / Aventura, EUA, 2024, 108 minutos.

Preciso ser honesto com vocês: fazia tempo que não assistia a um filme tão chapado, desvairado, maluco, demente e, acima de tudo, divertido, do que esse inesperado Centenas de Castores (Hundreds of Beavers), que está disponível para aluguel em plataformas como a da Amazon. Feita com orçamento baixíssimo (cerca de US$ 150 mil), a produção consegue um feito raro: fazer rir naturalmente, sem forçação de barra. O estilo anárquico e de curioso espírito formalista da obra de estreia do diretor Mike Cheslik, pode ser percebido já nos primeiros três minutos, quando, em uma sequência que une animação e musical - com uma canção de tintas folclóricas sendo vigorosamente entoada -, o protagonista, um produtor de sidra meio desastrado, é apresentado. Seu nome é Jean Kayak (Ryland Brickson Cole Tews) e ele acaba de perder todo o seu pomar de maçãs, após um acidente com os barris que reservavam a bebida alcoólica (que era bastante consumida por viajantes locais).

Quando a gente fala assim, parece tudo bastante correto e até eventualmente trágico. E, talvez na vida real meio que fosse. Mas aqui é tudo tão nonsense que, mesmo quando as coisas dão errado, o resultado é a gargalhada. Filmado todo em preto e branco, sem diálogos e com alguns intertítulos - alguns até com frases aleatórias que parecem saídas de um livro barato de empreendedorismo coach -, o filme adota um estilo cartunesco, com Jean sendo o sujeito que perde tudo e que parte em uma jornada solitária. Inicialmente, para tentar simplesmente matar sua fome - o que envolve tentativas frustradas de caçadas de coelhos, peixes e ovos enormes dispostos em ninhos sobre árvores altíssimas (com ele sendo meio que sempre derrotado num estilo Coiote e Papa Léguas) - e, mais adiante, para tentar conseguir um casamento com a charmosa filha (Olivia Graves) de um exigente comerciante local (Doug Mancheski).

 


Em uma produção do tipo, é importante não levar nada muito a sério. Os coelhos, por exemplo, são simplesmente seres humanos adultos, vestidos com as roupas alvas dos animais. Com dentes e orelhas enormes. O mesmo valendo para castores, lobos, guaxinins, cães e até cavalos. Todos se comportando como os bichos - mas também sendo meio humanos (como no instante em que um grupo de cachorros joga cartas madrugada adentro ou no momento em que uma dupla de coelhos senta a porrada no protagonista após as coisas saírem errado). Jean sofre nesse ambiente inóspito, essencialmente gelado, que parece saído de algum local ermo no Século XIX. Com as coisas mudando um pouco de figura quando ele é salvo, após um acidente, por um caçador andarilho (Wes Tank). É com ele que Jean aprenderá a arte das armadilhas. Que lhe possibilitará adotar maneiras criativas - com um toque pessoal, claro -, na hora de tentar aprisionar os animais. Para trocá-los com o comerciante.

A quantidade de piadas em cascata - bobas e hilárias - é parte do charme. É um filme de humor físico, de quedas, de tombos, de dentes despedaçados, de cabeças batidas, de dedos sangrando após serem mordidos por piranhas, de aves gigantes evacuando e outras bicando o rosto de Jean. De castores vilanescos construindo uma enorme arca e mastigando milhares de troncos de árvores. É um conjunto imprevisível e mesmo aquilo que poderia parecer um tipo de gag meio barata ou de mau gosto - como no momento em que Jean toma água do rio para, mais a frente descobrir um que um coelho urina vastamente corredeira acima -, ocorre de forma tão inesperada, que é quase impossível ficar alheio. Sim, talvez nem todo mundo simpatize com o clima absurdista e sem limites, que exige uma boa dose de suspensão de descrença. Mas quem se aventurar sem grandes expectativas nessa narrativa minimalista, frenética e repleta de efeitos especiais caseiros, feitos na raça, poderá se maravilhar com esse tipo de cinema nunca óbvio. E que usa suas referências - Chaplin e Monty Phyton, games noventistas e revistas em quadrinhos underground - com personalidade e criatividade infinitas.

Nota: 8,5

 

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Tesouros Cinéfilos - Os 12 Macacos (12 Monkeys)

De: Terry Gilliam. Com Bruce Willis, Madeleine Stowe, Brad Pitt e Christopher Plummer. Ficção Científica / Suspense, EUA, 1995, 129 minutos.

Existe uma cena de Os 12 Macacos (12 Monkeys) em que a psiquiatra Kathryn Railly (papel de Madeleine Stowe) detalha brevemente o Complexo de Cassandra. Em uma palestra e prestes a lançar um livro, a profissional explica a síndrome que envolve pessoas capazes de preverem com certa precisão desastres ou tragédias, em situações em que ninguém acredita nelas. O que permitiria diagnósticos de distúrbios psicológicos como esquizofrenia ou outros problemas de cunho emocional. Em alguma medida, a lenda grega de Cassandra - uma figura amaldiçoada para que suas previsões nunca fossem aceitas -, reaparece em diversos momentos do filme de Terry Gilliam, do clássico Brazil, O Filme (1985). Especialmente após o protagonista James Cole (Bruce Willis) ser enviado ao passado, com o objetivo de impedir um grupo subversivo de liberar um microrganismo mortal, que praticamente dizimaria a humanidade.

O ano é 2035 e cinco bilhões de pessoas morreram entre o final de 1996 e o começo de 1997, após o surgimento de um vírus fatal, que pode ter sido desenvolvido pelos próprios seres humanos. Os poucos sobreviventes resistem em uma vida desgraçada no subsolo, estando entre eles James, que está preso sabe-se lá por qual motivo, mas que tem uma chance para reduzir a sua pena e até conseguir um indulto: participar de uma espécie de programa experimental que envolve uma viagem no tempo, para o começo dos anos 90, na intenção de interceptar o coletivo conhecido como 12 Macacos, que estaria por trás da criação do vírus. A intenção com essa volta ao passado é obter as informações necessárias para uma possível cura. E, claro, que nem tudo será assim tão simples, já que James surge como uma figura atormentada por sonhos traumáticos, tendo ainda de lidar com o excêntrico Jeffrey Goines (Brad Pitt), um sujeito mentalmente instável, que parece em uma cruzada ambientalista e contra o capitalismo.

 


Como não poderia deixar de ser, James é tratado como uma espécie de doidinho de bairro do chapéu de alumínio, assim que chega, meio que por engano, ao ano de 1990. É em um sanatório, onde é atendido pela psiquiatra Kathryn, que ele conhece Jeffrey. À ela e a uma junta de médicos, ele tenta, em vão, explicar os riscos que a humanidade corre. Acaba preso em uma solitária, onde, após idas e vindas no tempo é enviado não apenas ao ano correto (no caso, 1996), mas também para o contexto da Primeira Guerra Mundial, o que conectará alguns pontos entre a doutora e seu paciente. Que se reaproximarão após o segundo "sequestrar" a primeira para tentar colocar em prática uma tentativa meio que desesperada de Cole de ir até a Filadélfia, para tentar encontrar o grupo revolucionário, que estaria empenhado em roubar material de laboratório do pai de Goines, o doutor Leland (Christopher Plummer), um respeitado virologista que estaria consolidando o plano macabro de aniquilação da humanidade.

Sim, parece tudo meio confuso e, na real, é. A ideia parece fazer com que o espectador fique, de fato, meio perdido, tanto é que, lá pelas tantas, com o retorno recorrente dos sonhos e tantas idades e vindas, o protagonista passa a achar que, de fato, está apenas alucinando. Hábil nessa construção noventista de uma trama de medo e paranoia, bem ao estilo das obras que se popularizariam na metade final daquela década - casos de Matrix (1999), Clube da Luta (1999) e outras -, Gilliam explora a incerteza frente ao novo milênio que se avizinha, com suas novidades tecnológicas, medos biológicos, guerras e temores políticos em uma trama de conspiração, estranheza e clandestinidade. O que é reforçado pela trilha sonora excentricamente circense, pela fotografia de paleta permanentemente acinzentada que contrasta com cores mais berrantes e pelos conflitos que antecipariam as crises climáticas tão faladas nos dias de hoje. Bomba atômica, superpopulação, poluição, guerras, pandemias. O mundo parecia outro em 1995. Menos nos seus temas centrais, como comprova essa experiência cheia de vigor, curiosa e melancólica, inspirada no clássico curta La Jetéé, de Chris Marker.

 

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Oh, Canadá (Oh, Canada)

De: Paul Schrader. Com Richard Gere, Uma Thurman, Jacob Elordi, Michael Imperioli e Victoria Hill. Drama, EUA, 2024, 91 minutos.

"Quando não há futuro tudo o que resta é o passado. E se o passado é uma mentira, principalmente para as pessoas próximas, você não pode existir, exceto como um personagem fictício". É claramente um enorme peso na consciência aquele que Leonard Fife (Richard Gere), o protagonista de Oh, Canadá (Oh, Canada), carrega. Cheia de sutilezas, essa é uma obra do diretor Paul Schrader que, em alguma medida, repete o tema do arrependimento e de tentativa de reparação de danos - assim como no seu magistral trabalho anterior, o meio que inexplicavelmente esnobado Jardim dos Desejos (2022). Se no filme estrelado por Joel Edgerton temos um nazista empenhado em se redimir em uma vida pacata como floricultor, aqui temos um documentarista diagnosticado com um câncer terminal que resolve, em seus instantes derradeiros, revelar toda a verdade de uma vida dupla repleta de decisões moralmente questionáveis.

Frente aos seus pares, Leo, como era carinhosamente chamado, sempre pareceu aquele sujeito ético, que utilizava a sua arte como veículo de denúncia. Não por acaso, seus potentes filmes políticos ganhariam tração e seriam admirados, especialmente pelo público progressista do Canadá (onde ele se estabeleceu). E não apenas isso: na juventude, teria se rebelado contra o governo estadunidense e não apenas fugido de uma possível convocação para a Guerra do Vietnã, mas também permanecendo uma temporada em Cuba, o que teria contribuído para a sua formação ideológica. Um combo de acontecimentos digno de uma retrospectiva e é mais ou menos isso que dois de seus ex-alunos, Malcolm (Michael Imperioli) e Diana (Victoria Hill) propõem: um documentário sobre a sua irrepreensível existência. Algo que honre seu legado.

 


Só que tem um pequeno problema: muitos dos fatos pelos quais Leo é admirado, talvez não passem de mentiras. Conforme a narrativa se descortina, entenderemos como o protagonista simplesmente abandonou a sua primeira mulher, que estava grávida e com um filho pequeno (que funciona como um narrador improvisado), para, em segredo, tentar seguir o sonho de ser escritor, saindo do Sul conservador para o Norte do País. No caminho, além de roubar dinheiro que seria usado para a compra de uma casa e de jamais ter sequer chegado perto da terra de Fidel Castro, uma trilha enorme de casos extraconjugais, de adultérios e de mulheres seduzidas (inclusive alunas). O primeiro filho, ignorado por 30 anos, jamais seria reconhecido. Egoísta e narcisista, Leo teria vivido apenas para satisfazer seu ego hedonista. Encontrando em seus documentários de temas complexos como os horrores da guerra e do uso do Agente Laranja, ou sobre violência contra animais das regiões polares, o terreno fértil para uma carreira respeitosa e premiada.

Inteligente e levemente ousada, a obra burla os limites entre ficção e realidade, levando o espectador à um cenário de dúvidas sobre aquilo que se assiste. Com uma série de trucagens, Schrader mescla fotografias em preto e branco e flashbacks onde um Leo já veterano aparece, para, aparentemente, ampliar a sensação de desconfiança à respeito da veracidade dos acontecimentos. Emma (Uma Thurman), a atual esposa de Leo, uma mulher muito mais jovem, que também foi sua aluna, suplica para que a produção do filme sobre sua vida pare: "ele está misturando memórias, filmes, fantasias e histórias dos outros", argumenta, enquanto a enfermeira lhe aplica uma dose de fentanil. Essa incerteza entre o concreto e o abstrato, entre verdade e ficção é o que torna a experiência instigante ainda que, talvez, propositalmente confusa, em certos momentos. "Devo parecer um esquizofrênico" divaga em certa altura o protagonista, num autoexame de sua mente perturbada. Para o espectador nunca há certeza. E é nessa ambiguidade que reside a beleza, afinal, ninguém é tão virtuoso o tempo inteiro. Tão perfeito. E nem tão errático.

Nota: 7,0

 

Pitaquinho Musical - Negra Li (O Silêncio Que Grita)

Basta uma passada de olhos não apenas na imagem de capa, mas também no título do novo disco da rapper Negra Li, para que saibamos: esse é mais um registro que busca dar voz a quem, muitas vezes, é silenciado. Aliás, esse costuma ser também parte do papel de artistas do gênero: o de ecoar vozes vulneráveis, marginalizadas, especialmente nesse caso o de mulheres pretas, pobres, de periferia. Em entrevistas, a própria paulistana afirmou que precisou se reinventar - o que explicaria certa demora para que O Silêncio Que Grita encontrasse a luz, chegando sete anos após o ótimo Raízes, o nosso 17º colocado na relação de melhores de 2018. "Nesse movimento de buscar a minha essência, quis me aproximar ainda mais da minha identidade preta", revelou em entrevista à Veja São Paulo, a respeito dessa reconexão com aquilo que, de fato, era importante.

 


O resultado é um conjunto de músicas de temas diversos e cheios de potência sobre racismo e violência policial (Olha o Menino 2.0); hipocrisia e vidas de faz de conta (Fake); estupro, aborto e outros tipos de agressões sexuais (Uma Menina) e trabalho e direito ao lazer (Sambando). Claro que, para além das complexidades que envolvem os inescapáveis assuntos políticos e sociais, o álbum também abre espaço para a celebração, como no caso de Abençoada, um afrobeat saboroso a respeito do poder da fé e da superação ou mesmo Amor Preto, essa com a participação da Liniker, e que também é embalada por ritmos africanos. Aliás, curioso notar como a segunda metade do registro é justamente aquela de tintas mais festivas, como no caso, por exemplo, de África, um reggae ondulante, de refrão pegajoso e cheio de referências culturais e de orgulho racial, que fecha com perfeição um dos grandes discos nacionais lançados nesse ano.

Nota: 9,0 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Tóxico (Akiplėša)

De: Saulė Bliuvaitė. Com Vesta Matulytė, Ieva Rupeikaitė e Giedrius Savickas. Drama, Lituânia, 2024, 99 minutos.

Está lá no dicionário: tóxico é tudo aquilo que produz efeitos nocivos no organismo. E, nesse sentido, é preciso saudar a escolha do título do longa de estreia da diretora Saulė Bliuvaitė, que acaba de estrear na Mubi. Existe uma cena perturbadora no filme, em que a jovem Kristina (Ieva Rupeikaitė) pesquisa na internet sobre ovos de tênia. Tênia, aquela da solitária. Eu, do alto da minha ingenuidade, cheguei a achar que a busca na web envolvia algum trabalho de aula, para alguma matéria de Biologia. É só mais tarde, quando um amigo da adolescente lhe entrega o que seriam pílulas com ovos do parasita - adquiridas, como não poderia deixar de ser, na darkweb -, que compreendo o propósito daquilo. Para tentar uma vida melhor, Kristina, do alto dos seus 13 anos, esté empenhada em uma futura carreira de modelo. Um ambiente de sonho e de muitas exigências. Inclusive tóxicas, de agressão ao próprio corpo.

Drama tenso e pungente, que quase vai ao limite do terror Tóxico (Akiplėša), o vencedor do Leopoardo de Ouro, em Locarno, é, curiosamente, mais um filme a abordar esse desejo íntimo de fama e de sucesso, que permita à meninas nascidas em ambientes pobres ou vulneráveis, um futuro mais promissor. Assim como no recente e perturbador Diamante Bruto (2024) - sobre uma jovem adulta determinada a emplacar a sua presença em um reality show de gosto duvidoso, apenas para aumentar o número de seguidores no Instagram, que lhe permitam uma maior conversão em vendas ou melhores publis -, aqui também as garotas parecem iludidas por adultos cheios de promessas, o que envolve um comportamento abnegado e totalmente distante do que seria a existência de meninas que mal entraram na puberdade. Nesse sentido, não deixa de ser curioso ver Kristina alternando sequências em que surge (supostamente) confiante, de maiô e salto alto, com outras em que, ainda como uma criança, penteia os cabelos de uma Barbie.

 


Esse limite entre a infantilidade e a maturidade obrigatoriamente antecipada também gera no espectador um sentimento meio que de repulsa. Saber que um ambiente tão misógino e de tanta cobrança como o das supermodelos siga sendo alvo para muitas meninas - algumas delas, inclusive, estimuladas por pais narcisistas - é algo que é parte do incômodo. O que torna a experiência bastante efetiva. Mas para além deste ser um projeto sobre os bastidores de agências de modelos ou de desfiles improvisados em cenários modestos, esta também é uma obra sobre amizade. E sobre crescer nesse mundo brutalizado. No começo do filme, vemos um vestiário feminino desses típicos de escolinha de natação, em que Marija (Vesta Matulytė) sofre bullying. Mais alta que as demais, meio desajeitada e antissocial - o que é reforçado por uma deficiência na perna, o que lhe impede de caminhar sem mancar -, ela é uma espécie de novidade no vilarejo em que a trama se passa. Sofre agressões gerais. Até roubada é.

Mas quando começa a frequentar a mesma escola para modelos de Kristina - uma das bullyers -, uma amizade meio que inesperada tem início. Ambas passam a fazer tudo que meio que juntas. E a conviver nesse contexto estranho que lhes leva a passarelas tortas, a amizades cheias de más intenções e a professoras que não hesitam em afirmar que elas só serão escolhidas se mantiverem as suas medidas abaixo de um certo padrão. Não são poucas as vezes que a fita métrica é estendida, para dar a volta nas magricelas cinturas das adolescentes. No desespero em não perder uma das vagas, Kristina apela para os ovos de tênia. A real é que tudo é tóxico naquele contexto. Os ovos, por óbvio; uma vida pobre e de pouca esperança - por mais que pais e avós pareçam empenhados em possibilitar os sonhos juvenis -, e os próprios bastidores dessas agências. O tóxico aqui é literal, mas também alegórico. É concreto e abstrato. E é meio difícil não sair de estômago embrulhado.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Moon (Mond)

De: Kurdwin Ayub. Com Florentina Holzinger, Celina Sarhan, Andria Tayeh e Nagham Abu Baker. Drama, Áustria, 2024, 93 minutos.

Existe uma pequena cena em Moon (Mond) que, fosse esse um outro filme qualquer, e talvez passasse meio batida. Nela, a protagonista Sarah (Florentina Holzinger), uma lutadora de artes marciais aposentada, que leva uma vida sem grandes emoções como professora em uma academia de Viena, na Áustria, ouve atentamente as instruções de seu novo contratante. "O nosso contrato é de confidencialidade. Sem fotos, sem redes sociais. É um procedimento normal, regular, de privacidade, que fazemos com todos os nossos empregados. Espero não ser um inconveniente". Para ela parece ok até porque, pelo visto, ela vai ganhar uma grana boa como personal trainer de três jovens de uma família abastada da Jordânia. Ao menos é o que atestam as ótimas condições em que ela está instalada, em um hotel luxuosíssimo de ampla piscina, que contrasta com o cenário arenoso do País do Oriente Médio.

Tanto na entrevista como na chegada à casa em si, Sarah é recebida pelo afável irmão mais velho das garotas - seu nome é Abdul (Omar Almajali). Nas conversas, a ideia de ensinar as artes marciais para as meninas, por ser algo que está na moda (é trendy), sendo o MMA muito popular na Jordânia. E por mais que os amigos de Sarah tirem uma com a sua cara, especialmente no que diz respeito às diferenças culturais entre os dois países - "você vai usar um hijab?", questiona um deles -, ela jamais imagina estar adentrando um ambiente de absoluta opressão e de patriarcalismo atordoante. As condições de vida são refinadíssimas em uma mansão suntuosa. Mas essa aparência de elegância vai só até ali. Impedidas de sair de casa sem um dos seguranças, as jovens também não podem usar as redes sociais, se relacionar, ir para uma boate dançar. Enfim, viver. 

 


E, no começo, Sarah acha estranho o comportamento reticente e quase infantilizado das jovens durante os treinos. Meia dúzia de movimentos e elas se mostram cansadas, enfastiadas, com pouca vontade. Talvez na cabeça da protagonista, isso seja apenas algo típico da idade. Adolescentes não estão muito a fim dessa ou de qualquer outra programação. Mas os dias parecem evoluir apenas para trás. Quando Sarah resolve investigar por conta própria o que pode estar acontecendo nos cômodos daquela casa - uma decisão complicada, dado o clima silenciosamente beligerante de tudo (sem esquecer da confidencialidade) -, ela faz descobertas surpreendentes. Antes disso, ela se empenha em interagir de outras formas com as meninas, como na excêntrica cena em que Fatima (Celina Sarhan) a utiliza como uma "boneca", penteando seus cabelos grosseiramente. O que gera um pequeno e quase inexplicável conflito, que funciona como uma metáfora estranha pra esse contexto de confinamento.

Sem muita pressa em fortalecer seu ponto, a diretora Kurdwin Ayub converte a experiência em um thriller vagaroso, em que pequenos acontecimentos dizem muito mais do que momentos maiores (por mais que haja um, em específico, bem impactante). Em certo ponto, Nour (Andria Tayeh) furta o celular da professora, sem que ela possa retomá-lo imediatamente. Quando ela obtém o aparelho de volta, ela entende o risco enfrentado pelas meninas. Bem como seu papel quase alegórico de mulher forte - em um esporte de alto grau de intensidade -, para confrontar aquele ambiente misógino, em um País que, por mais que tenha avanços sociais, culturais e políticos, ainda parece delegar às mulheres um papel restrito à vida doméstica. Naturalista e cheia de sutilezas, mas também inquietante e potente, esta é uma obra repleta de significados e de reflexões a respeito de temas como vigilância, liberdade, relações de poder e (des)igualdade entre gêneros. Tá na Mubi e vale espiar.

Nota: 8,0

 

Cinema - A História de Souleymane (L'histoire de Souleymane)

De: Boris Lojkine. Com Abou Sangare, Nina Meurisse e Mamadou Barry. Drama, França, 2024, 93 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS] 

"Qual é a sua história? A sua história de verdade?". É quase no momento final de A História de Souleymane (L'histoire de Souleymane), que o protagonista do premiado filme de Boris Lojkine é instigado por uma agente que dá assistência a refugiados para que ele pare de mentir. E seja honesto com aquilo que está passando, está vivendo. E desafio qualquer espectador que assiste a essa pequena joia do cinema alternativo a não se debulhar em lágrimas naquele instante. Segurando o choro - e com a cabeça baixa, claramente envergonhado de tudo (da violência que sofre em um País estrangeiro, das dificuldades em ser reconhecido como cidadão, do trabalho precarizado que lhe fornece o mínimo), Souleymane (Abou Sangare, em performance impressionante) desaba. "Minha mãe me deu a vida. E eu só queria poder devolver a ela alguma dignidade", explica o rapaz em frente a consternada funcionária.

Vamos combinar que em tempos de perseguição à imigrantes, de xenofobia, de ódio e de intolerância, uma produção como esta parece se tornar ainda mais impactante. Ainda mais potente. Por menor que seja o microcosmo apresentado. Souleymane é um imigrante da Guiné, uma das tantas colônias francesas. Ele está em Paris para tentar uma vida melhor para a sua família. Sua mãe acabou saindo de casa após problemas psicológicos. O rapaz queria fazer algo que lhe permitisse alguma dignidade. Algo que lhe fizesse bem, como descobrimos no momento decisivo do filme. Em Paris ele tenta a vida como entregador de comida para uma plataforma estilo IFood. Vai pra lá e pra cá de bicicleta, sujeito a todos os tipos de situações complicadas, entrecortando as ruas, evitando (ou não) possíveis acidentes com os carros e seus motoristas desatentos. Tendo de confrontar ainda clientes mal humorados ou mal educados mesmo. Insensíveis. E mesmo gerentes de restaurantes atrapalhados.

 


No transcorrer da obra a gente vai percebendo que Souleymane é um sujeito que, juridicamente, está ilegal na capital francesa. Pra conseguir os documentos ele tem de pagar uma grana forte em uma espécie de mercado paralelo com pessoas que ele não sabe bem se pode, de fato, confiar - imigrantes como ele, que estão há mais tempo por lá. Para trabalhar, precisa pedir emprestado o nome de uma outra pessoa - um empregado de uma loja local -, para poder operar por baixo dos panos. Há um instante em que ele leva um pacote de comida para um grupo de policiais, que ocupa uma rua escurecida. O medo parece ser iminente - e a gente torce para que ele consiga escapar dali sem nenhuma violência física ou psicológica. Ou qualquer trauma a mais em sua vida. Com o dinheiro em mãos. É tudo tenso e urgente em uma bicicleta que simplesmente não para, com a câmera colada a ela. Em alguns momentos até parece que estamos em um documentário sobre trabalhadores precarizados vulneráveis.

Os poucos momentos de sossego do protagonista envolvem encontros fortuitos e esporádicos com outros refugiados que circulam alucinadamente pela cidade, também em suas bicicletas. É com eles que ele conversa amenidades, pequenas bobagens, assuntos futebolísticos, ou a respeito de clientes gostosas que passaram por eles durante o dia. São pessoas, como quaisquer outras, com virtudes, defeitos, medos e sonhos. A ideia de conseguir se estabelecer na França envolve um plano de fuga da Guiné, por supostas perseguições políticas. O interlocutor que atende os imigrantes junto a assistência social, garante que o relatório fictício pode dar bom resultado. Só que as coisas são mais complexas do que aparentam. Mais cruas, doloridas e verdadeiras. Souleymane quer a proteção do governo francês para que tenha o mínimo. Para poder trabalhar. Deixa pra trás sua família, o amor da sua vida, para sobreviver em pátria estrangeira, que não a sua. Longe de casa, de tudo. O ápice do filme nem seria necessário para que nos compadecêssemos. Mas ele serve como a cereja do bolo de uma experiência dolorida, desalentadora, mas que preserva uma pontinha de esperança.

Nota: 8,5 

 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Cinema - Cloud: Nuvem de Vingança (Cloud)

De: Kiyoshi Kurosawa.Com Masaki Suda, Daiken Okudaira, Masataka Kubota e Kotone Furukawa. Suspense / Drama / Ação, Japão, 2024, 124 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Kiyoshi Kurosawa sabe que seus filmes podem até ter um caráter mais experimental, ainda que, em muitos casos, sejam apenas um veículo para o exame de questões um tanto mundanas. Em clássicos cult como Pulse (2001), uma história de terror abstrato, com assombrações que aparecem e somem por meio de um computador depois que um suicídio acontece, parece haver apenas uma análise desse mal estar proveniente do uso da tecnologia que, verdade seja dita, apenas escalaria nas décadas seguintes. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que projetos como o recente Cloud: Nuvem de Vingança (Cloud) bebam na mesma fonte temática. Aqui, o aparato tecnológico já evoluiu. Até chegar onde estamos atualmente: em uma sociedade adoentada, individualista, niilista e violenta, com o ambiente online sendo apenas o meio para a exacerbação do ódio.

Na trama, Ryosuke Yoshii (Masaki Suda) é um tipo de picareta que adquire produtos no mercado paralelo - em muitos casos itens falsos, como bolsas; ou de colecionador, como bonecas da cultura pop -, para revendê-los na internet. Na primeira cena da obra, ele está barganhando com um casal de idosos a compra de aparelhos terapêuticos supostamente milagrosos (uma mercadoria que parece ter sido roubada). Após levar pra casa - seu depósito improvisado - 30 desses equipamentos por três mil ienes cada, ele os revende pela bagatela de 200 mil ienes online. Um dinheiro fácil e que chega até ele com muito mais velocidade do que aquele que ele obtém como um modesto empregado da indústria têxtil. Tanto é que, por mais que seu chefe insista na ideia de promovê-lo para que ele permaneça no local (ele parece ter o perfil ideal para chefiar), ele se recusa. Pede as contas. E passa a investir ainda mais fortemente no comércio online.

 


E, bom, como não poderia deixar de ser, não demora para que os negócios, que parecem estar indo de vento em popa - com direito até mesmo a compra de uma casa mais espaçosa (e afastada) para uma melhor organização logística, a sombra de tudo - desandem. Especialmente após um grupo de pessoas que se sente lesada, formar uma espécie de milícia digital com o objetivo de fazer com que Yoshii, que mantém nas suas redes o nome falso de Ratel, seja devidamente punido. Em linhas gerais, o que Kurosawa pretende evidenciar nessa escalada de violência que parece meio inevitável é que, nesse ecossistema moderno em que todo o mundo se acha mais esperto que o outro (em tempos de Tigrinho, de jogos digitais e de promessas de grana fácil), não há mocinhos. Movendo-se pelas sombras, pelas bordas, o protagonista sente a ameaça chegar não se sabe exatamente de onde. Mas ela está prometida. Na janela quebrada, na sensação de ser observado ou em um simples arame esticado na rua.

Hábil nessa construção das sensações como parte da experiência - a gente sabe o tempo todo que as coisas podem ficar ruins, seja pelo uso das sombras ou da fotografia que parece mais escurecida do que o normal -, o realizador converte o filme em um espetáculo selvagem no terço final, com uma perseguição digna dos melhores filmes de ação. Em tese pode parecer uma solução meio óbvia e que acaba contrastando com a ambientação mais sofisticada, de pesadelo onírico da hora inicial. Mas parece ser o ideal para evidenciar o fato de que ninguém está livre do ódio online (especialmente quando ele deixa de ser um mero xingamento em uma rede social). Os tempos de hoje são brutos. Preconceito, intolerância, extremismo, autoritarismo, vigilância, medo. Pulse parecia apenas um ensaio sobrenatural do tipo de tensão que seria mostrado em Cloud. E quando a ficha cai a respeito do absurdo de tudo aquilo - com pessoas desumanizadas e reduzidas a nada -, não há choro que resolva.

Nota: 8,0 

 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - tUnE-yArDs (Better Dreaming)

Talvez um pouquinho menos agitado como no anterior sketchy. (2021), mas ainda o Tune-Yards que conhecemos bem. Aliás, taí uma banda que faz o seu trabalho direitinho e, em muitos casos, acaba passando meio fora do radar. Bom, pra quem não conhece, a banda capitaneada por Merril Garbus faz uma mistura saborosíssima de folk psicodélico e pop experimental, com influências de afrobeat, hip hop e eletrônica - tudo isso servindo de base para letras políticas, eventualmente alegóricas, em que os temas mais íntimos, mais mundanos, servem como metáfora para questões mais amplas. O que pode ser comprovado em canções, como o ótimo single Limelight, que integra o recém lançado sexto álbum (e talvez o melhor da carreira) Better Dreaming.

 


Em Limelight, a letra ambígua (O bebê está bem, as crianças estão bem) conduz o ouvinte em meio a uma sonoridade sessentista, funky e quente, com batidas hipnóticas, vocais em loop e percussão pontuada por barulhinhos bem encaixados. Aliás, esse contraste entre as melodias festivas e o estilo primaveril frente aos versos potentes é uma marca registrada. "Esta (Limelight) quase não entrou no álbum porque parecia banal, especialmente considerando vários genocídios em todo o mundo e o impacto particular nas crianças", citou a artista no material de divulgação, comentando ainda a resposta positiva do público para que ela fosse inclusa no disco. Há uma série de outros momentos de brilho no registro, como nos casos da Heartbreak e na sofisticadíssima Get Through, forte candidata a ser uma das músicas do ano. Provavelmente Better Dreaming passará batido nas listas de final de ano. Mas faça um favor a você mesmo: não o ignore.

Nota: 9,0 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Magic Farm

De: Amalia Ulman. Com Chloé Sevigny, Alex Wolff, Valeria Lois e Camila Del Campo. Comédia, Argentina / EUA / Reino Unido, 2025, 93 minutos.

Vamos combinar que Magic Farm consegue um feito raro: ser um filme nonsense sem nenhum tipo de apego à realidade. Sim, em linhas gerais o cinema excêntrico e que vai no limite do absurdo talvez não necessite de verossimilhança. Mas o caso é que acaba sendo totalmente incoerente assistir à uma equipe de filmagem tão ignorante acerca de seu próprio papel frente ao que pretendem retratar em vídeo. Ok, a ideia central talvez esteja justamente em evidenciar o quão alienado e despreparado é aquele coletivo - que acaba no interior da Argentina após uma confusão envolvendo o nome da cidade que eles procuram (San Cristóbal que, ao que tudo indica, se repete em todo e em qualquer País latino). Só que essa falta de organização travestida de preconceito colonialista vai escalando até o ponto da irritação, conforme a obra da diretora Amalia Ulman avança. 

E preciso dizer que quando li a sinopse fiquei bastante animado com o que parecia ser uma produção que satirizava a exploração da mídia e esse ideal bastante contemporâneo da viralização a qualquer preço. Quando chegam à San Cristóbal, o grupo liderado por Edna (Chloé Sevigny), que realiza uma série sobre subculturas diferentonas ao redor do mundo, está atrás de um músico que se veste com orelhas de coelho e que responde pelo nome bastante sugestivo de Super Carlitos. Sim, isso mesmo. Só que, como dito, eles dão com os burros na água justamente por não terem se estabelecido no local correto. E pra não desperdiçar a pauta (ou algo do tipo) e as diárias já contratadas na improvisada pousada capitaneada por um carismático recepcionista (Guillermo Jacubowicz), eles resolvem percorrer o vilarejo atrás de alguma boa história que possa render pra série.

 


Tudo parece promissor quando a obra inicia, com um estilo de filmagem pouco óbvio do ponto de vista estético e com o uso de cores berrantes, que contrastam com a melancolia provinciana e letárgica dessa pequena comunidade rural argentina. Só que o poderia ser a deixa óbvia para uma série de comentários bem humorados sobre diferenças culturais entre nova iorquinos bem nascidos em contraste com interioranos raiz, logo apela para a obviedade galopante sobre o excesso de cachorros da região, a ausência de uma infraestrutura mais adequada para atender os caprichos daqueles sujeitos ou o uso de roupas excessivamente de grife em estradas de chão poeirentas. Edna está acompanhada de uma equipe de produtores estúpida e mesquinha (pra não dizer escrota), que bate cabeça, enquanto se aproxima de forma entortada dos habitantes locais - como no caso de Popa (Valeria Lois) e sua filha Manchi (Camila Del Campo), que deixa o produtor Jeff (Alex Wolff) caidinho de paixão (ao menos até a hora de eles irem para os "finalmentes").

Além de Jeff, a própria Amalia no papel de Elena funciona como a intérprete do grupo, mediando as conversas entre os nativos e a equipe, o que auxiliará na fabricação de um documentário forjado a respeito de um novo culto religioso, com pessoas que utilizam um adereço bastante peculiar sobre a cabeça. Que a pior equipe de produção do planeta não perceba onde verdadeiramente estava a pauta - os moradores da região sofrendo permanentemente com a pulverização de agrotóxicos, inclusive espalhados por aviões (o que resulta em pessoas com deformações, deficiências e outros problemas), é só a cereja do bolo desse ambiente de alienação que povoa as redes sociais na atualidade (com sua presunção torpe, falta de criatividade e ignorância sobre tudo que não está em volta do próprio umbigo). Essa acaba por ser a parte mais efetiva ao final. O que não salva a experiência do mero escapismo tolo e tedioso, que nunca aprofunda as suas questões.

Nota: 5,0

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Apocalipse nos Trópicos

De: Petra Costa. Com Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcante, Lula e Jair Bolsonato. Documentário / Drama, Brasil / EUA / Dinamarca, 2025, 109 minutos.

Em uma das tantas cenas impactantes de Apocalipse nos Trópicos estamos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Após as "velhinhas de Bíblia na mão" invadirem e destruírem a sede dos três poderes, um grupo é filmado no interior do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) ajoelhado, mãos em concha, rezando. Em meio aos escombros, à fumaça e ao caos completo reforçado pela câmera trepidante, o que se vê parece uma cena saída de uma distopia estranha sobre uma seita fundamentalista que toma o poder. Zumbificadas, alienadas em sua forma mais extrema, aquelas pessoas entoam cânticos e clamam a Deus - ao seu Deus, aquele que elas idealizam - por algum tipo de salvação. Ao cabo, a guerra não é entre esquerda ou direita - ou sobre qualquer outro campo do espectro democrático. A batalha é do bem contra o mal. Ou ao menos é essa a ideia que vem sendo vendida pelos setores mais reacionários da Igreja Evangélica. E que tem sido replicado junto a uma população de crentes que mais do que quintuplicou nas últimas décadas.

E é partindo disso que a documentarista Petra Costa - do igualmente imperdível Democracia em Vertigem (2019) - traça um panorama  de como a influência dos evangélicos têm sido determinante para as decisões políticas de nosso País nos anos recentes, com o aumento considerável de integrantes da chamada Bancada da Bíblia, no Congresso; a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (um ungido do Senhor, uma espécie de escolhido por Deus para livrar a população de todo o mal, ao menos de acordo com esses profetas da modernidade) e até a indicação de um integrante do STF que receberia a sugestiva alcunha de "terrivelmente evangélico", no caso André Mendonça. Um conjunto de ações que teve (e tem) como objetivo barrar qualquer avanço do espectro progressista - seja em questões sociais, trabalhistas ou de costumes -, mas combater também o mais famoso fantasma dos delírios da extrema direita: o do comunismo. E que tantas pessoas - muitas delas trabalhadoras, periféricas, vulneráveis -embarquem nessa jornada delirante de fanatismo, é algo que entristece. Ainda que não surpreenda.

 


Centrando a narrativa na figura do pastor Silas Malafaia, a quem Petra acompanha de perto - com direito a entrevistas em sua casa, carro ou jatinho particular (uma ninharia de R$ 1,4 milhões, que a mídia insiste em dizer que custa muito mais, o que seria uma injustiça de acordo com o líder evangélico) - a cineasta constrói um painel sobre como esse grande espectro político tem no pânico moral - com seus banheiros povoados por trans e abortistas depravadas, além de kits gays e mamadeiras de piroca sendo fartamente distribuídos pela esquerda às crianças nas escolas, contagiando-as com suas ideologias dissonantes - uma de suas grandes forças. Em certa altura da produção uma mulher de origem humilde é questionada sobre em quem votaria nas eleições de 2022. "Eu até acho que o Lula tem coisas boas, mas não posso votar nele por causa da minha crença", pondera. Já a sua filha parece revelar um voto envergonhado em Lula. "Ainda que eu não goste dessa história de banheiro unissex", verbaliza. Sim, o impacto é inegável. E decisivo para o voto.

Com uma grande riqueza de imagens de arquivo - algumas já conhecidas, outras inéditas - a realizadora explica ainda como a ascensão evangélica se deu também por influência de líderes carismáticos dos Estados Unidos, que desde o governo Reagan e o ambiente da Guerra Fria já estabelecia esse campo de batalha de nós contra eles como um ideal de colonialismo teológico, que tinha também como objetivo central desmobilizar a Teologia da Libertação, que surgiria na América Latina como uma resposta da Igreja Católica com o objetivo de interpretar os ensinamentos de Jesus à luz da justiça social, e que seria oposta à opressão. O contrário do que prevê um ideal pautado por Deus e o Diabo em sua acepção mais simples do ponto de vista maniqueísta, que utiliza a fé como fachada para um laboratório brutal de capitalismo tardio. E não é por acaso que, para além do filme, as tais igrejas church, com seus legendários, coachs do abstrato, jogos de azar e individualismo atroz parecem o incubatório perfeito para a extrema direita vigente nos nossos tempos.

 

 

Em alguma medida o filme de Petra, dividido em seis partes com nomes bíblicos sugestivos - Deus nos Tempos do Cólera, Domínio, Gênesis - é ao mesmo tempo melancólico e preocupante, mas também esperançoso e iluminado. E confesso que me comovi ao reassistir as cenas da vitória de Lula em 2022, sob a desconfiança de todos e a crença cega, inclusive de Malafaia, de que sem a ajuda da Igreja Evangélica, que representa atualmente cerca de 30% da população atual, ele não venceria. E isso depois de todo o descalabro da pandemia, com mais de 700 mil mortes - muitas delas ocorridas por atraso na compra das vacinas (o que é lembrado na produção como mais um efeito colateral danoso desse segmento que, ao invés de acreditar na ciência, optava por delírios que envolviam greves de fome, orações e outros subterfúgios sem nenhum efeito do ponto de vista prático). Talvez para alguns espectadores, a obra não represente nenhuma grande novidade no espírito dos tempos atuais - de um Brasil que, por muito pouco, não descambou para uma versão piorada do impressionante Divino Amor (2019), filme de Gabriel Mascaro. Mas há perigos que não podem ser esquecidos. Ou ignorados. E isso Petra faz muito bem - ainda que seja importante mencionar o fato de a obra se empenhar em evidenciar o fato de haver um outro lado, quase desconhecido, de líderes evangélicos que abominam os métodos de Malafaia e sua gangue. Ainda assim, já diria Brecht, "o fascismo é uma cadela sempre no cio". E essa cadela receberá, muito provavelmente, a bênção de algum pastor. Sempre perto da urna mais próxima.

Nota: 9,0 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Super Happy Forever

De: Kohel Igarashi. Com Hiroki Sano, Nairu Yamamoto, Yoshinori Miyata e Hoang Nh Quynh. Romance / Drama, Japão / França, 2024, 94 minutos.

Existe uma cena bem no comecinho de Super Happy Forever e que envolve uma placa fixada em um hotel. O cartaz em questão avisa que a hospedagem fechará dali a um mês. Só que, nesse ponto, já fica claro pro espectador que essa ideia de encerramento, de conclusão - de ciclos, de etapas, de relacionamentos -, não é apenas simbólico. Há algo no marasmo meio acinzentado daquela praia não muito acolhedora que grita uma certa melancolia do fim. A pandemia passou, mas as pessoas ainda estão de máscara. Espaços estão encerrando atividades, por falta de público será? Ou porque no mundo a vida é meio que feita disso mesmo? De transformações, de mudanças, de memórias que ficam enquanto novas se criam? Sim, pode parecer excessivamente filosófico para uma resenha sobre uma obra alternativa e agridoce do cinema japonês, mas o caso é que esses pontos começam a se conectar sem muita demora.

Sano (Hiroki Sano) está de luto. Mas, mesmo assim, resolve acompanhar o melhor amigo Miyata (Yoshinori Miyata) em uma viagem justamente para o resort de luxo em que conheceu, cinco anos atrás, a sua falecida esposa Nagi (Nairu Yamamoto). Sano está naquele estágio meio ranzinza, meio melancólico, de quem viveu uma perda que pesa uma tonelada nos ombros, enquanto percorre a orla em uma investigação particular - como se buscasse algum objeto, algum fragmento de algo que pudesse lhe remeter àqueles dias vividos cinco anos atrás. O que envolve o mesmo quarto de hotel, a mesma vista, o mesmo restaurante que, agora, jaz solitário, com as portas cerradas. Na caminhada pela praia, o rapaz tem a impressão de ver o boné perdido de sua amada, nunca mais encontrado. A negativa a respeito só lhe enfurece mais. Uma ligação esquisita faz com que ele arremesse o celular no mar.

 


Já Miyata tá ali pra uma espécie de seminário de autoajuda - com palestras de nomes sugestivos como Super Happy Forever, que não fariam feio na cartilha do mais novo coach abstrato a tentar enganar um grupo de seguidores incautos. Aliás, o tipo de coisa que enoja ainda mais Sano, que não consegue não responder de forma ríspida, um tanto debochada, quando o amigo convida duas outras cursistas para sentarem a sua mesa. Não demora para que o papo derive para as coincidências do mundo ou os problemas de uma sociedade tão materialista. Tudo parece meio vazio pro protagonista atormentado. Que não consegue não ser mais do que honesto ao falar sobre a relação que não existe mais: "Nagi não era feliz. Eu era muito covarde e egoísta". O tipo de franqueza que faz com que fique evidente também um certo remorso. Que avança para a alegoria no fato de Nagi ter simplesmente morrido dormindo, mesmo sendo alguém tão jovem. Uma morte simbólica e real em igual medida - como muitas vezes ocorre para casais que se formam para, mais tarde, com o desaparecimento do encanto inicial, se desfazerem.

Na segunda metade a trama recua para 2018, justamente para o dia em que Nagi e Sano se conhecem. Com a ação centrada na jovem, não demora para que compreendamos o encanto do protagonista. Nagi fica chateada por um encontro com uma amiga que lhe dá um bolo - mas aceita percorrer a cidade com Sano e Miyata para um almoço, seguido de um passeio, uma conversa prazerosa e uma ida a uma danceteria. Quase aquele ideal juvenil de primeiros encontros em que tudo o que temos de fazer é sermos felizes, viver o momento. Ao cabo tudo é muito simples, ainda que a narrativa seja pontuada por instantes singelos, como aqueles em que Nagi auxilia a vietnamita An (Hoang Nh Quynh), que deixa seu almoço cair no chão. An terá papel importante mais tarde, especialmente após as duas fazerem amizade, o que será marcado ainda pela onipresença da canção Beyond the Sea, de Bobby Darin. O sentimento ao final será ambíguo, já que a felicidade pode ter outro significado.

Nota: 8,0

 

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - Luedji Luna (Um Mar Pra Cada Um,)

Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre Um Mar Pra Cada Um, o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo já que já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro.

 


Para a artista, o processo de fazer música não requer pressa. O mesmo valendo para o seu consumo, já que esse é o tipo de trabalho que, naturalmente, cresce a cada nova audição. Evidentemente que, assim como ocorreu com o fenomenal Bom Mesmo É Estar Debaixo da Água - o nosso preferido na lista de melhores de 2020 -, a mescla de neosoul, jazz, R&B e ritmos africanos - segue central no projeto. Por mais romanticamente torto que sua poesia soe. "Eu tô indo pra um lugar muito menos superficial que esse, que é essa paisagem. Tô indo pra um lugar mais profundo. Eu tô investigando o mar invisível. Eu tô investigando o mar abissal", revelou na mesma entrevista. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Cinema - Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio)

De: Maura Delpero. Com Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico, Tommaso Ragno e Rachele Potrich. Drama, Itália / França / Bélgica, 2024, 119 minutos.

Guerras, fanatismo religioso, patriarcado, autoritarismo. Vamos combinar que essa trinca pode até parecer um resumo do mundo em 2025, mas não. No caso de Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio), filme da diretora Maura Delpero que estreia nesta semana nos cinemas, trata-se apenas da Itália nos anos 40. O cenário é uma remota (e gelada) aldeia nas montanhas onde uma numerosa família se ocupa de atividades cotidianas típicas do meio rural - tirar leite das vacas, juntar lenha, buscar água no poço. É aquela rotina que até hoje vemos em pequenas comunidades do campo, que possuem sua própria lógica de funcionamento, enquanto lá fora, à uma certa distância, o mundo acontece. Só que tem vezes que esse universo meio paralelo encontra uma brecha que perturba aquele dia a dia ordinário - e que, aqui, é representado pela chegada inesperada de Pietro (Giuseppe De Domenico), um jovem e taciturno soldado, que está em fuga da guerra.

Da forma como a narrativa é construída, em estilo fragmentado - os silêncios são inúmeros, bem como os longos planos em que a ação ocorre ao fundo, de forma quase abstrata, enquanto a neve oprime - caberá ao espectador ir meio que montando o quebra-cabeças daquilo que se acompanha. Ao chegar no local, Pietro é saudado pela família de Cesare (Tommaso Ragno), um sisudo professor local, por ter salvo Attilio (Santiago Fondevila), carregando-os nos ombros diretamente do front. O ato heroico ganha tração no povoado - para muitos uma atitude digna. Já para outros, parece haver certa vergonha no ato de desertar. "Talvez se todos fossem covardes não haveria mais guerra" comenta alguém em certa altura. Para a jovem Lucia (Martina Scrinzi), uma das filhas de Cesare, há um outro interesse, que pode ser percebido em seus olhares claudicantes: ela se apaixona por Pietro.

 


Em linhas gerais essa poderia ser uma história mais ou menos simples sobre o amor nos tempos de guerra - e sobre como tudo pode ser mais complexo do que, de fato, é, em tempos brutos. Mas o filme de Delpero, que é inspirado nas memórias da juventude da realizadora, guarda um espaço interessante para, de forma sofisticada e sutil, discutir uma série de temas que seguem mais do que relevantes nos dias atuais. Irmã de Lucia, a adolescente Ada (Rachele Potrich) claramente sofre por jamais poder verbalizar o seu amor pela amiga Virginia (Carlotta Gamba) - o que seria um escândalo em um espaço tão conservador e misógino em que as expectativas sobre as mulheres recaem apenas em um projeto: o de servirem de depósito de filhos para os seus maridos (sim, duro, mas real). A própria Ada, assim que conclui seus estudos, ouve de Cesare uma sentença dita com um naturalismo sufocante: "sua trajetória escolar termina aqui". Isso depois de ter sido aprovada em disciplinas, como, Economia Doméstica.

A própria Adele (Roberta Rovelli), esposa de Cesare, sequer tem tempo de ser efetivamente consolada quando um de seus filhos simplesmente morre. Já há mais um na barriga - o décimo, que deve nascer em breve. E por mais respeitado que Cesare possa ser por seus pares a sua incorrigível rigidez se apresenta como uma de suas tantas falhas, como no caso do episódio da aquisição dos discos de Vivaldi (e as quatro estações que fluem de forma inexorável soam apenas trágicas quando percebemos que as mulheres não têm nenhum poder de decisão sobre questões financeiras). Triste, gélido, surpreendente (especialmente no terço final) e contemplativo, esse é aquele tipo de projeto que nem sempre é fácil. Há uma ambientação vagarosa, de trilha sonora mínima e uma dinâmica de filmagem pouco convencional e de quadros demorados. Mas o que fica dessa obra que foi a enviada da Itália ao Oscar desse ano, são as mensagens das entrelinhas, como no momento em que Ada revela à sua irmã Flavia (Anna Thaler), os motivos pelos quais gostaria de ser padre. "Para poder aplicar penitências?", pergunta a pequena. "Não. Para poder ser ouvida sem ser interrompida". Uma das tantas lições.

Nota: 8,0