terça-feira, 30 de novembro de 2021

Novidades em Streaming - Annette (Annette)

De: Leos Carax. Com Adam Driver, Marion Cottilard e Simon Helberg. Drama / Fantasia / Musical, EUA q França, 2021, 140 minutos.

Quem acompanha o cinema provocativo, sensorial, hermético e, invariavelmente, metalinguístico, do diretor Leos Carax, dificilmente se surpreenderá com Annette (Annette) - a mais recente realização do francês, que está disponível na plataforma Mubi. O filme, afinal, é aquele tipo de experiência que, ao mesmo tempo que não entrega soluções assim tão fáceis, nos permite mergulhar em um sem fim de possibilidades no que diz respeito ao universo das artes. Não por acaso, a artificialidade quase teatral parece ter o formato metodológico ideal para a história de um casal que vive uma vida aparentemente perfeita, em uma Los Angeles fascinante e cosmopolita. Ele, um comediante de stand up que está em alta e que apela para piadas cínicas e autocomiserativas (papel de Adam Driver). Ela, uma cantora de ópera de renome internacional, que emociona as plateias em suas lotadas apresentações (papel de Marion Cottilard).

Em meio a realidades tão diametralmente opostas - ainda que bastante semelhantes no que diz respeito ao contexto de "fama" e do uso da música -, ambos se empenham em reafirmar o seu amor, especialmente diante de uma mídia sensacionalista que parece permanentemente sedenta por notícias suas. Alternando entre uma e outra apresentação, será possível conhecer um pouco da personalidade do casal. Tal qual um Bill Burr ou um Bo Burnham, Henry (Driver) leva ao limite a comédia íntima e perturbadora, capaz de fazer o público rir muito mais pelo desconforto do que necessariamente pela graça. Seus números, no limite entre o deboche e a arrogância, fazem graça com aquilo que está oculto - ou que dificilmente as pessoas teriam coragem de verbalizar. Sabe o Bo Burnham tirando sarro do comportamento padronizado das mulheres brancas no Instagram? Para Henry o absurdo está na necessidade quase forçada de fazer rir - promovendo uma espécie de íntima vingança de seu público ao avançar para algo que é quase o oposto disso.


Já Ann (Cottilard) parece ser realmente adorada pelo público - num tipo de contraste que provocará incômodo, ao mesmo tempo que nos deixará com a impressão de que algo grave poderá acontecer (especialmente pelo simbolismo imaterial da ópera que protagoniza). Abusando do surrealismo e do clima onírico - uma das marcas registradas de Carax -, o diretor utiliza também o elemento fantasioso na hora de trazer ao mundo a pequena Annette (Devyn McDowell), a inesperada filha do amoroso casal. O que resultará no estremecimento da relação, especialmente pela dificuldade de conciliar universos tão distintos, com a existência de um bebê. Em partes, trata-se de uma história muito mais palatável do que o experimental Holy Motors (2012), a excêntrica obra anterior de Carax. E que nos permite refletir sobre temas variados, como, maternidade, influência do showbizz, limites do humor, papel da mulher na sociedade, voyeurismo e outros.

Organizado como se fosse uma extensa peça musical, o filme utiliza ainda as suas canções de uma forma bastante orgânica, sem jamais tornar a jornada cansativa - e isso que estamos falando de uma obra de 2h20. O que significa decisões criativas inteligentes, com a inserção de músicas - e de melodias que se aproveitam da diegese (cortesia do coletivo Sparks) - em instantes bastante inesperados, como na sequência em que um grupo de fotógrafos cerca o casal, que os enfermeiros estão fazendo o parto de Annette, ou que a plateia está vaiando Henry. Nesse sentido, a obra também possui um curioso senso de humor - que é ampliado pelo caráter hiperbólico de seu desenho de produção, pelo figurino de tons exagerados e pelos toques visuais que ficam no limite entre o sombrio e o cômico. Com excelentes interpretações do elenco central - complementado por Simon Helberg (o eterno Howard de The Big Bang Theory) -, o filme dificilmente será lembrado no Oscar, especialmente pelo aspecto enigmático de sua narrativa. O que não apaga o brilho desta, que é uma das grandes estreias da Mubi até aqui, no ano.

Nota: 9,0


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Novidades em Streaming - All Hands On Deck (À L'Abordage)

De: Guillaume Brac. Com Eric Nantchouang, Salif Cissé, Asma Messaoudene, Édouard Sulpice e Ana Blagojevic. Comédia / Romance, França, 2020, 95 minutos.

Um filme leve, de tons primaveris e que não tem nenhuma vergonha de enfocar quais os nossos limites, na hora da "conquista amorosa". Assim é All Hands On Deck (À L'Abordage), comédia romântica meio torta, que está disponível na plataforma Mubi. À moda das obras ensolaradas do diretor Eric Rohmer, aqui temos um fiapo de história, que servirá de base para idas e vindas e encontros e desencontros entre jovens tão imaturos quanto apaixonados. Na trama, os amigos Félix (Eric Nantchouang) e Chérif (Salif Cissé) saem dos arredores de Paris em direção a uma cidade litorânea. O objetivo é fazer uma visita surpresa à Alma (Asma Messaoudene), que Félix conheceu uns dias antes em uma noite de festa. Para o rapaz, a ideia parece boa, mas será que esse comportamento impulsivo não vai assustar a moça? É desse pequeno impasse inicial, que começam a brotar alguns pequenos e divertidos instantes, já na arrancada.

Condição que é aumentada quando Félix e Chérif resolvem utilizar um aplicativo de compartilhamento de caronas para a sua "missão" - momento em que eles conhecem o jovem Edouard (Édouard Sulpice). Completo oposto da dupla, trata-se de um filhinho de mamãe introspectivo e de pouco traquejo social. Inevitavelmente o contraste que envolve personalidades tão distintas, renderá bons momentos enquanto o trio, aos trancos e barrancos, tenta se aproximar. É engraçadinho e pode parecer bobo. Mas as boas doses de cinismo compensam. E tudo começa a piorar quando Félix, de fato, encontra Alma, que não deixará de demonstrar a sua insatisfação com a chegada inesperada do jovem. Enrolando-o o tempo inteiro, ela o conduzirá até o limite da humilhação, enquanto ele tenta, de todas as formas (e sem muito sucesso), se aproximar dela.

É, ao cabo uma obra sobre amadurecimento, mas que nunca pesa a mão na abordagem das dores juvenis. Enquanto Félix se angustia em meio à expectativas completamente frustradas (e quem nunca manteve as esperanças, mesmo quando tudo parecia direcionar para o contrário?), Chérif faz amizade com a simpática Héléna (Ana Blagojevic), mãe de um bebê que se sente meio abandonada pelo marido. Situação que, de forma meio inesperada, mexe com o coração do carismático Chérif. E assim, o filme vai indo, pra lá e pra cá, em meio a corredeiras, paisagens naturais bucólicas e uma cadência típica do "filme de verão" por excelência. "Neste filme, com seu enredo simples, tentei pintar o retrato complexo de uma geração, e mostrar não a juventude - que não existe como tal - mas os jovens, focalizando os pontos de convergência e fricção dentro da mesma geração, o que une e o que separa", salientou o diretor Guillaume Brac, no material de divulgação disponibilizado pela Mubi.

É um contexto em que todos, de alguma forma, aprendem. De Edouard, que passa a ser mais independente, passando por Chérif, que luta para sair da condição de "amigão" (o sujeito da friendzone), até chegar à própria Alma que, por fim, reconhece as virtudes do sofrido Félix - ainda que isso não signifique necessariamente sucesso no campo amoroso. Há instantes realmente cômicos, como aquele em que Chérif tenta mentir para o seu chefe na hora de pedir folga, que se alternam com outros mais comoventes e nostálgicos, como na sequência em que Chérif entoa ao lado de Héléna uma versão de Aline, o clássico inesgotável do Christophe. Vencedor do Prêmio Fipresci da Mostra Panorama, do Festival de Berlim, é uma obra de ambientação naturalista que pode até não ser inesquecível, mas que se constitui em um agradável entretenimento.

Nota: 8,0

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Pitaquinho Musical - Adele (30)

Não chega a ser exatamente uma novidade: a dor de cotovelo costuma ser uma excelente matéria-prima para grandes canções - e ótimos discos. Só que o que Adele faz com 30, seu mais novo álbum, não é entregar seu coração em uma bandeja. É mais do que isso, já que ela esparrama suas vísceras para quem se aventurar pelas suas dolorosas e classudas composições. A britânica se separou do empresário Simon Konecki recentemente. E executa o seu ofício como forma de expiar as dores do divórcio. E talvez seja justamente por isso que o trabalho tenha gerado tanta identificação com o ouvinte, afinal de contas, quem nunca? Indo do R&B noventista (Cry Your Heart Out) ao neo-soul (Woman Like Me), com uma paradinha na nostalgia jazzística (My Little Love), a artista banha o registro de personalidade, sem que jamais transformar abusar da autoindulgência. Peça central do trabalho, To Be Loved é o verdadeiro grito de algo que parece entalado na goela, funcionando quase como um poema póstumo destinado ao filho Angelo (Já é hora de eu me enfrentar / Tudo que faço é sangrar em outra pessoa / Pintando paredes com todas as minhas lágrimas secretas / Enchendo quartos com todas as minhas esperanças e medos).


Novidades em Streaming - tick, tick... BOOM! (tick, tick... BOOM!)

De: Lin-Manuel Miranda. Com Andrew Garfield, Alexandra Shipp, Robin de Jesus, Vanessa Hudgens e Bradley Whitford. Drama / Musical, EUA, 2021, 121 minutos.

Vou ser sincero com vocês, como costumo ser nas minhas resenhas: não conhecia nada da vida do compositor e roteirista Jonathan Larson. O que não impediu o fato de eu me conectar profundamente com a sua história. tick, tick... BOOM! (tick, tick... BOOM!) é, ao cabo, um grande tributo ao seu legado. Um sujeito talentoso (e angustiado), que nos deixou precocemente - como tantos outros artistas, por sinal. E, mesmo com esse contexto tão melancólico, o diretor Lin-Manuel Miranda (em sua estreia), conseguiu converter a obra em uma ode ao otimismo e à persistência. Sobre nunca desistir de seus sonhos - esse tema tão batido e que parece papo de coach. Trata-se de um filme vibrante, emocionante, repleto de canções divertidamente existencialistas sobre o cotidiano, sobre o nada e tudo ao mesmo tempo. Como se fosse uma espécie de Elton John do teatro, Larson (vivido por Andrew Garfield) era capaz de pegar o tema mais prosaico, mais inesperado, e transformá-lo em uma linda e leve peça musical.

Compor pra ele não parecia ser problema. Que o diga, por exemplo, a descaradamente divertida sequência em que ele "inventa" Boho Days, em meio a uma reunião de amigos em seu minúsculo apartamento. Licenças poéticas à parte, é dessa paixão pelo improviso que brotam versos inesperados sobre gatos perdidos na escada de incêndio, pias sujas e alugueis vencidos. Que culminarão no mais grudento dos refrões - This is the life bo-bo bo bo bo, bo he miaaaaa. Só que o caso é que Larson está à beira dos trinta e, como muitos de sua geração (e talvez da nossa também) está se sentindo atrasado em relação a tudo. O contexto é o do começo dos anos 90. Enquanto exercita a sua criatividade e espera pelo reconhecimento, labuta diariamente como garçom em um pequeno restaurante do Soho. É uma vida modesta, monótona e repetitiva, especialmente para quem tem o sangue fervilhante de boas ideias, que sempre encontram algum tipo de barreira para que, de fato, aconteçam. 


A obra, no fim das contas, mescla as apresentações daquilo que se converteria, ao final, na peça da Broadway que dá título ao filme, enquanto narra as desventuras, as barreiras e, até, os eventuais bloqueios criativos. E é num desses que ele, efetivamente, se vê trancado. Em uma exibição pública para iniciantes - uma espécie de workshop com artistas e convidados - ele recebe uma dica do famoso Stephen Sondheim (Bradley Whitford): é preciso uma canção a mais, no meio da sua peça de ficção científica (que leva o nome de Superbia), que conecte os pontos, que junte uma coisa na outra. E o tempo - aquele mesmo que parece fazer um tick, tick permanente em seu cérebro - está correndo. E as coisas não estão acontecendo. Aliás, até estão: a vida, os fatos, o desenrolar de tudo. O namoro com a carinhosa namorada Susan (Alexandra Shipp), o trabalho que não paga o suficiente. As amizades, especialmente com o inseparável Michael (Robin de Jesus). Mas e aquela sensação de realizar aquilo que, verdadeiramente, apaixona?

Nesse sentido, o filme é uma espécie de prodígio da montagem, mesclando o transcorrer da vida atribulada de tentativa e erro em "tempo real", com instantes em que Larson aparece já no palco, em uma apresentação de sua peça. Como forma de dar contexto, a obra alterna justamente as incertezas e anseios da juventude - da vontade de querer sempre mais sem, necessariamente, saber como alcançar esse objetivo -, com doloridos momentos de perdas pessoais (com a explosão de casos de HIV entre os jovens, surgindo como uma espécie de condenação). Com ótimas (e carinhosas) interpretações do elenco, o filme corre por fora pra obter uma vaga entre os finalistas de categorias como Ator (Garfield), Roteiro Adaptado e Edição, no Oscar. Independentemente disso trata-se de uma joia, uma experiência vigorosa e que ainda tem como grandes trunfos canções maravilhosas, como a inaugural 30/90 e a saborosa No More

Nota: 8,5


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Cinema - Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen)

De: Stephen Chbosky. Com Ben Platt, Kaitlyn Dever, Amy Adams, Juliane Moore, Danny Pino e Colton Ryan. Drama / Musical, EUA, 2021, 138 minutos.

Quase duas horas e vinte que não voltam mais. É, pessoal, quem gosta de cinema, invariavelmente passará por isso. Mas o fato é que eu não consegui me conectar, praticamente em momento algum, com o musical Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen), uma das estreias da semana nos cinemas do País. E aqui, vale mencionar, que ser um musical não é necessariamente um problema. Um dos meus filmes preferidos da vida - o clássico Cantando na Chuva (1952) - é desse gênero que mistura teatralidade que se mescla com canções coreografadas. Só que obras do tipo só parecem funcionar se, efetivamente, nos importarmos com aqueles que estamos acompanhando. É preciso que haja algum laço. Algum acordo tácito. E, aqui, a gente fica meio naquele clima de "tanto faz como tanto fez". As intenções são boas - há importantes discussões sobre distúrbios psicológicos -, o arco narrativo central é interessante, mas lá pelas tantas a gente não vê a hora de que acabe. E o troço se arraaaaasta.

Aliás, eu não sei bem se é proposital, mas fico meio sem entender esse inchaço sofrido por algumas produções que, claramente, poderiam ter uns 40 minutos a menos. No caso do filme de Stephen Chbosky - diretor do queridinho alternativo As Vantagens de Ser Invisível (2012) e do tocante Extraordinário (2017) -, o terço final atinge quase o nível de tortura. Chega naquele ponto em que a gente já compreendeu o que aconteceu, não concordou com quase nada que tá rolando e tá achando um tanto esquisito o comportamento de quase uma dúzia de personagens envolvidos na história. A trama, diga-se, parte de um grande mal entendido, que se converte em uma inesperada oportunidade para o protagonista Evan Hansen (Ben Platt), que se aproveita do suicídio de um colega de classe, passando a fingir para todos ao redor que eles possuíam uma grande amizade/romance.

A grande sacada envolve uma carta que Evan havia escrito pra si próprio, a pedido de seu terapeuta - como parte do tratamento para o transtorno social. Só que antes de Connor (Colton Ryan) tirar a própria vida, ele roubou a carta das mãos de Evan, já que ela possuía um importante segredo envolvendo a irmã de Connor, Zoe (Kaitlyn Dever), por quem o jovem nutria uma secreta paixão. Sim, estamos diante do combo "gurizinho de olhar tristonho e com dificuldades de interagir socialmente, que se apaixona, não consegue lidar e sofre muito". E canta. Canta pra caramba. Fazendo cara de choro. E mantendo uma mentira que faz com que ele se aproxime dos pais de Connor (e da própria Zoe) Cynthia (Amy Adams) e Larry (Danny Pino), que acreditam que a proximidade entre Evan e o falecido filho possa revelar outros segredos deixados para trás pelo taciturno menino. Aliás, aqui um parêntese: Amy Adams, tá na hora de você ter uma conversa séria com o seu empresário já que Era Uma Vez Um Sonho (2020), A Mulher na Janela (2021) e agora essa "joia" aqui é pra acabar com qualquer carreira.

Em alguns fóruns, vi que a galera fala em "elenco carismático". Mas onde? A única figura que consegui nutrir algum tipo de simpatia foi a esforçada mãe de Evan, Heidi, interpretada por Juliane Moore com a sua habitual competência (e talvez até pinte uma nominação ao Oscar por isso). No mais, em meio a canções um tanto arrastadas - ainda que cheias de significados e simbolismos -, a trama ainda deixa uns furos, como no caso da completa falta de informação em um universo povoado pelas redes sociais. Ou pior, aquela cena em que uma grande revelação online é publicada no Insta e todos os celulares bipam ao mesmo tempo, num travelling inesperado, enquanto todas as pessoas recebem, em choque, alguma informação que não era aguardada. Tudo bem, é um filme, uma obra de arte, com licenças poéticas, mas não precisamos forçar tanto a barra. Em tempo, a canção The Anonymous Ones é absolutamente saborosa - aliás, a sequência em que ela é apresentada também é ótima -, e acrescenta alguns pontos ao filme. Aliás, a música provavelmente receberá indicação ao carecão dourado. Funcionará como uma espécie de prêmio de consolação, inegavelmente.

Nota: 3,5

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Pérolas da Netflix - Oitava Série (Eighth Grade)

De: Bo Burnham. Com Elsie Fisher, Luke Prael, Josh Hamilton, Fred Hechinger e Emily Robinson. Comédia dramática, EUA, 2019, 94 minutos.

Vamos combinar que a oitava é a série mais desgracenta do colégio. É quando atingimos aquele ponto em que a gente já não sabe mais se ainda é criança ou se já tá começando a ser adulto. Todos nós já passamos por essa experiência ali pelos 12 ou 13 anos. É um período em que uma espécie de amadurecimento meio forçado costuma bater na porta, na mesma proporção de nossas inseguranças, medos, ansiedades. É um momento em que, honestamente, ficamos meio perdidos entre as brincadeiras infantiloides de outrora e o despertar de outras vontades - que mais tarde se converterão em uma série de novas  "primeiras vezes". E creio que poucos filmes, até hoje, tenham conseguido captar tão bem esta realidade, quanto o ótimo Oitava Série (Eighth Grade) - uma pequena joia disponível na Netflix e que foi dirigida pelo sempre ótimo comediante de stand up Bo Burnham (aliás, o que me fez ser atraído para o projeto).

Esse é o coming of age por excelência. Aquela obra que mostra que vai ser difícil, vai dar vontade de jogar tudo pro alto, mas que será possível superar. É quase como se o filme te pegasse pelo braço e te dissesse "não dá bola pra todo esse caos, que lá no final você vai rir disso tudo". Eu, por exemplo, era uma verdadeira tragédia às portas do Ensino Médio. Gordo, alto, de óculos, até era aquele sujeito mais ou menos boa praça, mas nada popular. Com as meninas, um desastre. Inseguro. Mas todas essas dores, parece bobagem, fortaleceram. Formaram, de alguma maneira, o meu caráter. Compuseram a minha personalidade. Fizeram enfrentar as dores da vida, fossem elas amores mal resolvidos ou um chefão de fase impossível de ser transposto no videogame. E Oitava Série vai nas entranhas disso ao nos apresentar a sua carismática protagonista Kayla (Elsie Fischer).

Kayla é a garotinha quieta, cheia de espinhas na cara, levemente acima do peso e bastante tímida. Uma jovem de doze, treze anos, como muitas. Em sua rotina, visitas infinitas às redes sociais e a atualização de um canal de Youtube com dicas sobre comportamento, vistas por praticamente zero pessoas. Aliás, nas suas dicas online - muito pertinentes, por sinal - costuma aparecer a jovem destemida e "corajosa" que ela não costuma ser. Retraída, fica praticamente paralisada quando se vê diante do jovem Aiden (Luke Prael), com quem mal consegue conversar. E fica ainda mais embasbacada quando recebe um convite para um banho de piscina da popularíssima Kennedy (Catherine Oliviere). Em meio a uma ou outra conquista em sua bolha social, ela vai adquirindo mais confiança. Amplia as amizades com adolescentes mais velhos, em uma espécie de programa estudantil que promove esse tipo de intercâmbio. Sofre, chora, chora mais um pouco e sofre. E briga com o pai. E é lacônica. E se depara com abusos. Inesperados. Outras dores. Algumas bem mais difíceis e lidar.

A naturalidade com que Burnham conduz a narrativa é não menos do que envolvente. É uma obra vibrante, mas que também nos faz refletir sobre relacionamentos familiares, conflitos de gerações, usos da tecnologia e importância das boas amizades. Intercalando ótimas piadas com instantes mais reflexivos, o diretor compõe um verdadeiro painel dessa garotada classe média da escola particular que ainda não tem nenhuma noção do mundo, se comporta como se tivesse, mas que, no fim das contas, provavelmente tá com a autoestima muito baixa para revelar quais são os seus problemas reais, no mundinho que os rodeia. A trilha sonora - especialmente as peças instrumentais caudalosas de Anna Meredith - é ótima. Os diálogos são surpreendentes e cômicos ("mãe, quem ainda usa o Facebook?"). As tomadas de câmera curiosas contribuem para que haja um certo estranhamento divertido (alguém mascando um chiclete ou uma foto despretensiosamente preparada para o Instagram). É tudo muito legal nessa comédia dramática independente que merece ser descoberta. Podem ir na fé.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Lamb (Dýrið)

De: Valdimar Jóhansson. Com Noomi Rapace, Hilmir Snær Guðnason e Björn Hlynur Haraldsson. Drama / Suspense, Islândia / Suécia / Polônia, 2021, 108 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS]

Obra atmosférica, silenciosa, contemplativa e com um pé no realismo mágico. Assim é o ótimo Lamb (Dýrið), filme islandês exibido na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e que marca a estreia do diretor Valdimar Jóhansson. Na trama somos levados a uma fazenda isolada, erma, local em que o casal Maria (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) cria carneiros. Em meio ao manejo rotineiro da vida agrícola - levar pastagens para os animais, auxiliar as ovelhas prenhas na hora do parto, arar a terra com o uso do maquinário - um ambiente de calmaria, de quase ausência de qualquer barulho. O sossego só é quebrado por algo que parece inquietar os bichos, que se mostram agitados, receosos. O que seria? Leva quase dez minutos para que ouçamos as vozes de Maria e Ingvar. Há um diálogo aleatório sobre a novidade vista na matéria do jornal e que envolve a possibilidade de viagens no tempo. "Adoraria viajar para o passado", sinaliza Maria.

De alguma maneira é possível afirmar que Lamb ocorre sem nenhuma pressa. As informações nos são entregues em pequenas pílulas. Sempre sutis. Amparadas por algum olhar, ou alguma outra pequena inflexão gestual, de corpo. Cabe a nós tentar juntar os pontos. O casal vive sozinho o seu dia a dia, mas parece haver algum tipo de ferida mal cicatrizada entre eles - a despeito de terem, ao menos de forma aparente, uma boa relação. Em certo dia são surpreendidos por um misterioso bebê recém-nascido - um cordeiro meio humano, meio animal. Mesmo sem compreender muito bem a natureza do acontecimento, Maria e Ingvar resolvem adotar o "bebê", passando a tratá-lo como filha. Ao espectador não há muito espaço para questionamentos, já que o estranhamento vai dando, aos poucos, lugar à normalidade. A vida, afinal, precisa seguir. Só que há um problema: a persistência da mãe biológica da pequena Ada (esse é o nome dado), em se aproximar da filha. O que faz com que Maria tome uma atitude extrema.

Sim, parece tudo meio esquisito nessa mescla de história surrealista e onírica, que busca estabelecer ainda algum tipo de diálogo com a mitologia nórdica - e aqui me escapa esse tipo de conhecimento mais aprofundado. Colocando frente a frente o homem e a natureza, a obra ainda discute as ambições e como estas podem significar a ruína quando decidimos nos apropriar daquilo que, não necessariamente, nos "pertence". Utilizando os cenários inóspitos - reforçados pela fotografia de tons "gelados" meio esmaecida - como forma de gerar algum tipo de opressão, a obra nos passa a impressão de que algo muito grave pode estar para acontecer a qualquer momento - especialmente quando entra na vida do casal o irmão de Ingvar, um certo Pétur (Björn Hlynur Haraldsson). Há uma tensão reforçada pelos persistentes closes nas expressões de seus protagonistas e mesmo dos animais. A ambientação é nebulosa, indefinida - como se estivéssemos no cenário de Sobre os Ossos dos Mortos da Olga Tokarczuk, em uma narrativa tão fantástica quanto aquela, diga-se.

E, nesse sentido, é possível afirmar que talvez Lamb não seja para todos os paladares. É uma obra lenta, que não entrega facilmente aquilo que propõe. E que ainda devasta o espectador com as surpresas reservadas para o terço final, quando temas como superação do luto, preservação da memória e violência são apresentados de forma pouco convencional e sem muitas concessões. É a típica obra, por sinal, da A24 - produtora da experiências cinematográficas ousadas, nunca fáceis, mas que invariavelmente possibilitam as mais variadas interpretações. Eu, particularmente, gosto desses filmes mais experimentais, que apostam no inusitado como matéria-prima. E, aqui, vale lembrar aquela máxima de que não é necessário compreender TUDO quando assistimos a um filme. Há algumas ocasiões em que é muito mais o "sentir" do que o entender. Justamente o que ocorre com essa joia do cinema independente.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Novidades em Streaming - Identidade (Passing)

De: Rebecca Hall. Com Tessa Thompsom, Ruth Negga, Alexander Skargard, Andre Holland e Bill Camp. Drama, EUA / Reino Unido, 2021, 98 minutos.

Baseado no livro de Nella Larsen, Identidade (Passing) é mais um caso de uma ótima ideia que, talvez, não tenha sido tão bem explorada assim. E, aqui, está falando um sujeito que gosta de obras herméticas, que não tragam soluções tão fáceis e que deixem muitas das suas ideias nas entrelinhas, no campo sugestivo. Só que não podemos confundir complexidade com confusão. E devo admitir que o desenrolar meio truncado do filme de estreia da atriz Rebecca Hall pode ter prejudicado uma parte da experiência. Ao menos de forma aparente, a tentativa de discutir racismo, hipocrisia da sociedade e relacionamento gay num mesmo combo e, ainda, de forma bastante sutil, fez com que nenhum dos temas pudesse ter a profundidade necessária para que, como espectadores, nos engajássemos mais. E isso em um projeto tecnicamente soberbo, com ótima fotografia em preto e branco empalidecida, riquíssimo desenho de produção e figurinos bastante elegantes.

A trama volta 100 anos no tempo para nos apresentar a Irene Redfield (Tessa Thompson), uma dona de casa negra casada com um médico (Andre Holland), que ocupa seus dias em atividades cotidianas - como ir as compras - e a atuação em uma espécie de organização que visa o bem-estar da comunidade afro (um tipo de centro de cultura, com música, dança e outros). Em certo dia de calor escaldante, ela vai a uma cafeteria luxuosa em outro canto da cidade para se refrescar, quando se deparar com uma mulher branca e loira, com jeito de rica, que não para de encará-la. São instantes de agonia em que ela acredita que será repreendida por estar em um local frequentado por brancos de classe alta (e não esqueçamos que a política norte-americana da época era de enorme segregação racial). Quando a mulher se aproxima de Irene ela percebe, embasbacada, que se trata da antiga amiga Clare (Ruth Negga), uma negra de pele clara, assim como a da protagonista, que, agora, vive uma vida dupla em que se passa por caucasiana.

Irene fica absolutamente chocada com a revelação a respeito da nova "identidade" da amiga de infância, que é casada com banqueiro extremamente racista (papel de Alexander Skargard). O que não impedirá o fato de ambas se reaproximarem, meio aos trancos e barrancos, participando de eventos sociais e outras atividades. E será justamente por meio dessa aproximação, que perceberemos que as fissuras entre ambas não tem a ver apenas com a forma com que as duas vivem - em meio a relacionamentos de fachada e construções sociais frágeis. Há também algo maior, relacionado ao passado e que parece sempre pronto à vir a tona. Sendo aqui, a meu ver, o grande problema da construção narrativa: não bastasse a edição completamente desleixada há algo bastante frustrante na ideia de que algo poderá acontecer a qualquer momento - mas nunca acontece. É uma espécie de "não ocorrência", em que os instantes são entrecortados, mas nunca com a força necessária para que criemos algum vínculo maior com o roteiro.

Como exemplo, é possível citar a persistência de Irene em fazer com que Clare e seu marido saiam juntos, dancem se divirtam. São momentos em que a gente pensa "agora o bicho vai pegar, talvez ocorra alguma traição, ou a coisa saia do prumo de alguma forma", para, no corte seguinte, nos depararmos com outra janta, outro evento em que a lógica dos fatos já é completamente outra. Isso não impede, claro, que a trama flua com elegância, numa narrativa mais vagarosa e menos convencional que o normal, com a aposta em olhares, em silêncios e outras formas de comunicar. Só que a sutileza pela sutileza pode chegar a um ponto que mais nos confunda do que nos faça inferir algo. Havia algo a mais na relação das protagonistas? E sobre as vidas delas, eram tão diferentes assim? E se o marido de Clare descobrisse seu segredo? Houve alguma traição? E a "surpresa" do final... o que de fato aconteceu? No fim das contas há tantas perguntas sem respostas, tantas dúvidas no ar, que fica a impressão de que necessitaríamos de algo mais palpável em meio a tantos subtextos. Não é ruim: é bonito, tem potencial pra boas discussões, mas parece que gera o sentimento de que faltou algo. Pode ter sido apenas um sentimento meu. Vocês que me digam.

Nota: 6,0

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Na Espera - Licorice Pizza (Filme)

Vamos combinar que a mistura de Paul Thomas Anderson, um roteiro bastante original, uma trilha sonora vibrante e um elenco carismático, dificilmente dará errado. Pode anotar aí: vêm indicações ao Oscar com toda a certeza! O trailer de Licorice Pizza - nova obra do diretor de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e outros clássicos modernos -, até não entrega muita coisa, que não seja a boa e velha obra sobre amadurecimento. A deliciosa canção Life On Mars?, do David Bowie, dita o tom retrô setentista, pro filme que tem aquela cara de comédia romântica inusitada, cheia de instantes imprevisíveis. Estrelado por Bradley Cooper, Cooper Hoffman (filho de Philip Seymour), Ben Stiller, Sean Penn, Maya Rudolph, John C. Reilly e ainda Alana Haim (integrante das nossas queridas do grupo Haim), o filme estreia no Brasil no dia 25 de dezembro e deverá ser lembrado em categorias, como, Filme, Diretor e Roteiro Original, além de Ator Coadjuvante, com Cooper sendo, inclusive, um dos favoritos ao Oscar. Estamos Na Espera!

Tesouros Cinéfilos - Titane (Titane)

De: Julia Ducournau. Com Agathe Rousselle e Vincent Lindon. Drama / Ficção científica, Bélgica / França, 2021, 108 minutos.

Tema complexo e que costuma despertar um sem fim de teses, de artigos e de trabalhos acadêmicos, o pós-humanismo dá conta de um novo modelo de subjetividade, capaz de integrar o sujeito às tecnologias disponíveis. Como nos filmes de ficção científica, esse imaginário costuma transcender o humano para além dos limites físicos (e carnais), fazendo com que este transponha as barreira entre o natural e o artificial, entre o orgânico e o maquínico. Alterações genéticas, clonagem, mutações e outras técnicas sofisticadas transformam o homem, de acordo com certas correntes de estudos, em verdadeiras máquinas híbridas com eventuais capacidades ampliadas. Sabe aquele ciborgue meio homem meio robô que vemos nos filmes? Digamos que o pós-humanismo divague sobre estas ideias - possibilitando um novo tipo de existência a esta forma tecnologizada. Mas quais os limites éticos de tudo isso?

Sim, é complicado e eu adoraria ter a capacidade (e a disponibilidade de tempo) pra escrever um trabalho científico sobre Titane (Titane), estabelecendo um paralelo entre os conceitos de pós-humanidade e aquilo que vemos na obra. E, antes de mais nada, eu preciso dizer que filmes que ousam quebrar a lógica, que saiam do lugar-comum ou que representem algum tipo de desafio para o espectador, me causam verdadeira fascinação. E é exatamente este o caso da obra da diretora Julia Ducournau - que, não por acaso, faturou a Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano (e deverá ser uma das indicadas ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira). É uma obra que gera desconforto, que nos deixa inquietos. E que possui uma ampla possibilidade de interpretações. Como se fosse um Leos Caraux ainda mais porra louca, Ducournau transforma seu trabalho em uma experiência sensorial. Complexa. Curiosa. Excêntrica. Sexy. Mas suja. Vigorosa. E robusta. Ninguém sairá sem sentir uma ponta de incômodo da sessão de Titane. E essa também é uma das belezas da arte. Provocar. Questionar.

E eu confesso a vocês que li pouquíssimo sobre a obra antes de assisti-la. Possuía quase nada de informações. E isto serviu para que eu fosse ainda mais surpreendido. Pra que ficasse paralisado. Os primeiros trinta minutos já são de tirar o fôlego, momento em que somos apresentados à protagonista Adrien (Agathe Rousselle) que, na juventude, sofreu um doloroso acidente de carro que lhe deixou com um "efeito colateral" irreversível: manter uma placa de titânio no crânio. Como adulta, ela ganha a vida como dançarina em uma espécie exótica de showroom de carros - local frequentado por marmanjos de quarenta e poucos anos, que descarregam suas prováveis frustrações sexuais (ou suas taras mesmo), assistindo apresentações generalistas de mulheres seminuas, com decotes generosos, em meio a carros tunados (uma espécie de simbiose que, vá lá, talvez exagerando nas interpretações, dê conta do componente pós-humano, que também parece fazer parte deste tipo inusitado de relação, uma vez que "transar com o carro" talvez já não soe assim tão metafórico pra alguns).

Sem aliviar na violência gráfica, bastante estilizada - a paleta de cores é quente, vibrante -, Adrien é uma figura em fuga, que não hesita em levar a cabo a autodefesa como modus operandi (em um universo de machistas abusadores é algo que faz sentido, e que talvez possa ter a ver também com o caráter "biônico" de sua biologia). Aqui, vale lembrar vocês que me leem: tudo no campo das possibilidades de interpretação, já que nada é claro. Não há evidências de nada. As pontas são abertas. Assim como as metáforas sobre maternidade, aceitação, conceito de família, heteronormatividade, pós-modernidade, tecnologia e transcendência. E até (pasmem), a força do amor. Todos esses assuntos ampliados após a descoberta de uma gravidez inesperada e da aproximação com um perturbado pai de família (papel do ótimo Vincent Lindon) devastado pela precoce morte do filho (durante um incêndio). É uma obra enigmática, de difícil digestão e, talvez por tudo isso, altamente poderosa.

As noções sobre pós-humanismo foram extraídas do artigo: https://bit.ly/3D1TcJI

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Novidades em Streaming - Shiva Baby (Shiva Baby)

De Emma Seligman. Com Rachel Sennott, Polly Draper, Dianna Agron, Molly Gordon e Danny Deferrari. Drama / Comédia, EUA, 2020, 78 minutos.

Integrante do subgênero "reunião de família em que segredos e ressentimentos parecem prontos para vir à tona", Shiva Baby (Shiva Baby) é aquele tipo de produção pequena, econômica, mas extremamente eficiente. Aliás, é mais uma daquelas que prova não serem necessárias grandes estripulias para que se tenha um bom filme. A obra disponível na plataforma Mubi e dirigida pela estreante Emma Seligman - que anteriormente havia feito um premiado curta com a mesma temática -, se passa durante 24 horas do primeiro dia do shivá, que é aquele período de sete dias de luto que a comunidade judaica mantém quando morre alguém próximo. É nesse contexto que se desenrolará um encontro social após o enterro - aquele tipo de reunião em que parentes comiserativos conversam amenidades, enquanto, ao menos nesse caso, chafurdam em mesquinharias.

Na realidade pouco importa, de fato, quem morreu. Aliás, esta é uma das tantas piadas feitas a partir do excesso de zelo do povo judeu, em meio às conservadoras convenções que regem o luto: ao chegar no shivá, a protagonista Danielle (Rachel Sennott) não esconderá o desgosto ao encontrar seus familiares, especialmente sua afetada mãe Debbie (Polly Draper). É para ela que perguntará insistentemente sobre quem teria morrido - no caso, alguma prima da vó ou algo do tipo (o que denunciará essa predileção por cerimônias ritualísticas do gênero). Com uma vida dupla, Danielle é universitária que mente para sua família sobre ter um trabalho como babá de uma família (enquanto é mantida pela sua própria). Mas, na realidade, se prostitui, tendo suas contas pagas por sugar daddies aleatórios - caso de Max (Danny Deferrari) que, não bastasse ser casado, ainda tem uma filha.

Aliás, se esconder esse amontoado de segredos de sua família já seria um problema, Danielle ainda encontra Max no shivá - ele está acompanhado de sua bela esposa Kim (Dianna Agron) e de sua filha bebê. O que faz com que tenha início uma espécie de pequeno jogo de "gato e rato" entre os dois, em que ambos parecem prontos a revelar o segredo do outro (e as trocas de olhares acusatórios entre ambos são não menos do que ótimas). Em meio a tias e vizinhas idosas curiosas sobre os "namoradinhos", Danielle encontra a parente distante Maya (Molly Gordon) - e a aparente frieza e distanciamento entre as duas é quebrada quando percebemos que a relação das garotas é mais profunda do que sugere as poucas trocas de palavras. É tudo ao mesmo tempo tenso e divertido, com uma ótima fluência - sensação ampliada pela metragem do filme, que não alcança os 80 minutos.

Teatral, a obra se vale de seus engenhosos e criativos diálogos para discutir temas variados, como, empoderamento feminino, relações de trabalho modernas, sexualidade e hipocrisia da sociedade. Se passando praticamente toda no mesmo ambiente, a trama reforça o aspecto claustrofóbico decorrido do clima de confinamento - e não é por acaso que, em uma sequência, Danielle se sente tão à vontade pelo simples fato de ir ao banheiro. Com uma hipnótica trilha sonora - cheia de notas claudicantes, trôpegas - e bom uso das rimas visuais (há uma sequência em que as pessoas surgem se alimentando de forma animalesca, como forma de evidenciar um ímpeto quase canibalesco de comportamento), Shiva Baby é uma obra enxuta, rápida e feita sob medida para quem aprecia filmes como o clássico O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, ou Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski. Ainda que este mantenha a esperança mais em alta - mas sem abrir mão da vergonha alheia como matéria-prima.

Nota: 8,0

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Pérolas da Netflix - Layla M. (Layla M.)

De: Mijke de Jong. Com Nora el Koussour e Ilias Addab. Drama, Holanda / Alemanha / Bélgica / Jordânia, 2016, 98 minutos.

A mistura de fanatismo religioso, apelo político e militarismo pode ser, como vocês sabem, explosiva. Aliás, em alguns casos, literalmente. E, de alguma forma, é exatamente este o tipo de impacto provocado pelo duro e melancólico Layla M. (Layla M.), uma joia "perdida" na Netflix e que foi a obra enviada pela Holanda para o Oscar de 2018. Na trama somos apresentados à jovem marroquina Layla M. (Nora el Koussour) que, a despeito da personalidade extrovertida, mantém um contato bastante próximo com grupos islâmicos radicalizados que atuam em Amsterdam com o objetivo de confrontar a xenofobia e as diversas medidas anti-muçulmanas de seu País de adoção. Aliás, é já na primeira sequência do filme dirigido por Mijke de Jong que percebemos uma espécie de sensação de "não pertencimento" da protagonista: ela é expulsa de um jogo de futebol em meio a uma discussão em que se sobressaem o preconceito e a misoginia.

Insatisfeita com o comportamento intolerante de seus colegas - e da sociedade como um todo -, ela se converte em uma ardorosa seguidora de Alá, do Alcorão e de tudo aquilo que se serve como base para a religião muçulmana. Mais do que isso, por meio de vídeos no Youtube, passa a flertar com canais que se valem do extremismo como argumento. Embebida pelo discurso de confronto - que evolui, aliás, para um contexto que se assemelha aos efeitos gerados nos usuários de drogas -, a jovem não estabelece limites em sua rotina, se tornando ainda mais intolerante do que os intolerantes. E tudo piora, para desespero dos pais, quando Layla se aproxima de um grupo jihadista. Aliás, é nesse coletivo que ela conhece o marido Abdel (Ilias Addab), indo morar no Oriente Médio. E, bom, não é preciso ser nenhum gênio para saber que Layla enfrentará dificuldades ainda maiores no local, se deparando com restrições, machismo e (muita) violência.

Em algum sentido, a temática semelhante da obra faz lembrar bastante o doloroso O Jovem Ahmed (2020) dos Irmãos Dardenne - obra que evidencia o potencial altamente destrutivo do fanatismo religioso, especialmente quando ele é apresentado como um caminho para as pessoas emocionalmente fragilizadas ou inseguras. Esse contexto, de forma bastante comum, costuma seduzir os jovens que, então, passam a se sentir empoderados, de uma maneira quase cega. É um tipo de comportamento, aliás, que vai para além do campo religioso, chegando à política - e basta pensar em "buracos" digitais como o movimento de extrema direita norte-americano QAnon, que se vale de teorias conspiratórias e outros métodos beligerantes como forma de, supostamente, denunciar uma guerra cultural em curso. No caso de Layla, tudo aquilo que coloca em xeque as suas crenças será motivo para uma reação mais extrema. E, nesse sentido, não deixa de ser comovente a sequência em que a melhor amiga da protagonista tenta demovê-la da loucura em que ela parece disposta a mergulhar.

E, para os pais e os demais familiares é ainda pior: tentando levar uma vida razoavelmente normal na capital da Holanda, a despeito da desconfiança (e da perseguição) que paira sobre o povo árabe - justamente por causa da existências de células fanáticas do jihadismo que, nunca é demais dizer, não representam os preceitos reais dos muçulmanos (o problema, reforço, está no extremismo) - precisam confrontar as naturais dificuldades decorrentes da xenofobia e a espiral obsessiva da filha. E toda a construção se dá a partir da adoção de uma estética áspera, com cores pálidas e tomadas de câmera claudicantes e próximas dos rostos dos personagens, o que amplia a sensação de entorpecimento. É uma obra forte que conta com ótimas interpretações de todo o elenco e que ainda reserva uma curiosa reviravolta para o instante final. O clima é de denúncia, mas até certo ponto nos perguntamos onde está o certo e o errado, em um mundo tão intolerante e tão cheio de ódio. Filmaço.

Na Espera - King Richard: Criando Campeãs (Filme)

Vamos combinar que já não é mais segredo para ninguém o fato de que, muito provavelmente, Will Smith vá ganhar seu primeiro Oscar pelo drama King Richard: Criando Campeãs (King Richard). Baseada em eventos reais, a trama resgata a história de Richard Williams, um sujeito simples de Compton, Califórnia, que, a despeito de não ter nenhuma experiência como treinador de tênis, foi o responsável por dar aulas do esporte para as filhas Venus e Serena. E, bom, onde isso foi dar vocês já sabem. O trailer tem a maior pinta daqueles filmes noventistas, prontos pra agradar a toda a família e recheado por mensagens edificantes e de combate ao preconceito racial. Na bolsa de apostas, a obra dirigida por Reinaldo Marcus Green deverá abocanhar nominações em outras categorias, como, Filme, Roteiro Original e Edição. A estreia está prevista para o dia 02 de dezembro e nós aqui no Picanha já estamos Na Espera!

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Tesouros Cinéfilos - A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen)

De Florian Henckel von Donnersmarck. Com Sebastian Koch, Ulrich Mühe e Martina Gedeck. Drama, Alemanha, 2006, 138 minutos.

Vencedor do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira em 2007, o alemão A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) é uma obra sobre a verdadeira fixação dos governos ditatoriais em controlar a vida do cidadão comum. Na trama voltamos no tempo, mais precisamente para a Alemanha Oriental, no ano de 1984. É nessa Berlim separada por um muro que a Stasi - órgão ligado ao Ministério da Segurança da República Democrática Alemã (RDA) -, monitora potenciais candidatos à subversão. É o caso do dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch) que, pelo simples fato de ser um sujeito ligado às artes, se torna automaticamente um "merecedor" de uma maior vigilância. Por mais que, aparentemente, eles esteja plenamente alinhado ao Estado Socialista - e não deixa de ser excentricamente apavorante a sequência em que o capitão Gerd Weisler (Ulrich Mühe) decide inspecionar a vida de Dreyman, após assistir a uma de suas peças, cheias de simbolismos e de eventuais alegorias.

Só que após instalar um amplo sistema de grampos no apartamento do artista, passando a acompanhar seus movimentos, Wiesler vai se tornando cada vez mais fascinado pela vida do intelectual - uma espécie de bon vivant que aproveita a vida, a despeito do cerceamento das liberdades, em meio a festas, conversas aleatórias sobre artes (e política) e muito sexo com a sua linda companheira Christa-Maria (Martina Gedeck). Sobre a suposta insubordinação ao Partido não aparece muita coisa. Ao menos até uma certa altura, quando o amigo diretor de teatro Albert Jerska (Volkmar Kleinert) se suicida. O que desperta a curiosidade de Dreyman a respeito da completa ausência de informações divulgadas pelo Ministério da Defesa a respeito de pessoas que tiram a própria vida. E a situação piora ainda mais quando Christa é abusada sexualmente pelo repugnante Ministro da Cultura Hempf (Thomas Thieme), forçando a barra para que Weisler encontre qualquer pista que possa incriminar Dreyman.



Sim, é um pouquinho complexo. E dolorido. Especialmente quando vemos escancarada a sanha punitivista de um Estado que é incapaz de lidar com "adversários" políticos, enxergando inimigos em tudo quando é canto. E, nesse sentido, não pode haver sequência mais constrangedora do que aquela que envolve um grupo de acadêmicos da própria Stasi, em que uma simples piada se torna a desculpa para um tipo de assédio não menos do que revoltante. Aliás, uma piada, um livro, uma peça de teatro, uma música, uma pintura... tudo que subverta a lógica quadrada, cafona desses líderes que só sabem conversar na linguagem das armas, da violência, do cerceamento e do lugar-comum passa a incomodar os representantes do Estado. O simples ato de transar, de fazer sexo, é motivo de assombro - e não é por acaso que aquele grupo de sujeitos suarentos (e nojentos) se vê fascinado pela entrega de Christa à Dreyman. Ele, afinal, sabe tratar a sua mulher. Sem ser misógino. E, sem necessariamente, precisar recorrer a estupros ou a prostituas para a eventual satisfação de parte de suas vidas completamente ocas.

E por mais pessimista que a obra seja ela mantém a esperança na humanidade ao converter Weisler em um sujeito que passa a confrontar o sistema ao qual ele está ligado. A cada dia em que ardorosamente monitora Dreyman, ele vai se encantando por uma existência outra, que subverta a lógica bélica daquele modelo. Nesse sentido não deixa de haver algum tipo de otimismo em tanto desalento - uma sensação que é ampliada pela paleta de cores em tons pasteis, que somam aos figurinos monocromáticos que servem para evidenciar a falta de "vida" vista no período (com a queda do muro, com pequenos contrastes e com uma iluminação mais viva, contribuindo, mais tarde, para mostrar o oposto disso). Por fim cabe dizer que, por mais que estejamos falando de um filme sobre a Alemanha Oriental, nunca é demais estarmos atentos àquilo que acontece no nosso País, para que evitemos qualquer arroubo ditatorial ou totalitário que possa representar algum tipo de repressão. Afinal, ninguém quer ter as suas vidas monitoradas por sujeitos retrógrados, mal resolvidos sexualmente, e absurdamente misantropos.