sexta-feira, 29 de maio de 2020

Podcast do Picanha Cultural #5 - 15 Filmes Preferidos

15 Filmes Preferidos - cinco para cada integrante. Foi isto que o trio do Podcast do Picanha Cultural resolveu fazer nesta semana. Bem simples. Bem direto. Ou será que não? Em meio a discussões sobre o que são, de fato, os filmes preferidos - sim, porque não poderíamos simplesmente falar desse tema sem problematizar as diferenças entre nostalgia, relevância e qualidade artística (ou um combos disso tudo) -, Henrique, Bernardo e Tiago, entregam o seu Top 5 de obras fundamentais. Aqueles que são revisitados volta e meia. Que merecem ser vistos e revistos. Que nunca cansamos! De De Volta Para o Futuro à Magnólia, passando por Abril Despedaçado e Janela Indiscreta, deu um pouco de tudo: clássicos, filmes de heróis, comédia romântica, alternativos, nacionais e até, vá lá, "terror B dos anos 60". Bora embarcar conosco nessa viagem? Não esqueça de dizer para nós quais os cinco da vida de vocês. Compartilhem, divulguem, deem um jóinha na página do nosso podcast, que a gente fica felizão! E um bom fim de semana pra todos vocês, com muito filme bacana!


Foi um Disco que Passou em Minha Vida - Pinegrove (Marigold)

Lembro daquele filme cujo final mostra uma apresentação artística e um quadro cuja pintura eternizou um momento importante. Lembro das lágrimas da protagonista cujo sentimento era um misto de alegria e tristeza, um turbilhão de sentimentos conflitantes que, em uma época de impossibilidades, tornava tudo aquilo mais trágico e subversivo. Cada época com seus conflitos. Muito se conquistou para que pudéssemos amar livremente MAS... o efeito colateral, as muitas possibilidades, o acesso fácil e variado na palma da mão, acabou por transformar a conquista num jogo de perde/ganha. Até que ponto o excesso de amor próprio tão badalado e recomendado por especialistas é capaz de nos tornar tão frios, incapazes de enxergar o outro? Uma reação em cadeia que torna pessoas fraturadas em predadores vingativos, pródigos em causar no outro aquilo que sofreram?

Em outro filme, a personagem da atriz Gwyneth Paltrow é ensinada pela sua avó, desde criança, a fazer o sexo oposto sofrer. Avó cuja vida de abandono, loucura e ressentimento encontrou sua forma de “reparar” o dano sofrido no passado por alguém. O personagem de Ethan Hawke, em cena emblemática, registra sob forma (também) de uma pintura um raro momento onde a vida se faz surgir dentro de tanta frieza. É a Arte sempre presente de forma a eternizar pequenos milagres pois, como dizia o pensador, só viver não é suficiente. E existem obras que registram momentos, assim como citados acima: filmes, pinturas. Existem músicas que são como pinturas, retratos de um tempo, companheiros de jornada. E existe este disco que, lançado recentemente por uma jovem banda de Nova Jersey, ao qual retornei recentemente.


Desde criança sonhei com uma viagem, em conhecer aquele lugar que só existia nos sonhos. Um lugar de luz, som, cor, dança, delícias gastronômicas. Várias etapas se passaram até chegar o grande dia - foram muitos anos. Lembro do frio externo abaixo de zero, mas do calor no peito. Lembro de deitar na cama na primeira noite, colocar o fone de ouvido e ouvir Marigold. Tudo fazia sentido. Foi um período em que coisas incríveis brotavam do smartphone, os sons, as palavras, as imagens. Era muito raro tudo aquilo e, para coroar, veio a neve, minha Macondo particular, na sacada do hotel. Um sentimento forte de compartilhar felicidade em uma época que escrevi corações e nomes na neve. De novo, era o frio externo e o calor no peito. E a trilha sonora que embelezava tudo aquilo naquela felicidade melancólica.

A natureza nos dá alguns sinais. Assim como a neve derrete e o nome desaparece, tudo é passível de desmoronar de uma hora pra outra. Lembro do ansioso retorno. Lembro dos desafios, de quantas noites peguei aquela estrada em busca de um futuro. Lembro das raras palavras de carinho e apoio, e de quando tudo desmoronou. Era o calor externo e o gelo interior. Lembro daquela trilha sonora no carro que remeteu à lembrança de um período feliz e que, naquele momento, me rasgava o peito. Lembro de quando eu percebi que não restava outra alternativa a não ser desistir. Como diz aquele senhor naquela série para o personagem que está sofrendo e quer esquecer de um amor mal (existe isso?) sucedido: você deve ser a figura mais sem graça que existe. Eu daria qualquer coisa para ter meu coração partido novamente. O pior ainda está por vir: é quando você esquece dela, é quando você não dá mais a mínima.

Um único instante de amor justifica uma vida inteira, li em algum lugar.

É difícil ser original quando tanto já se falou sobre. É difícil ter que retornar para algo que criamos em nossa mente, que não sabemos se é verdadeiro ou não. Mas se a lembrança é unicamente nossa e tão clara, porque não considerá-la verdadeira? E se, depois de alguns meses, retornamos com receio àquela trilha sonora e percebemos, ao invés de dor, beleza? Não terá valido à pena? Em minha pintura mental a neve que derretia virava água e escorria pelos escombros, atingia o piso de concreto penetrando pelas frestas, servindo de nutriente até encontrar um solo fértil. Hoje floresceu. Na metáfora óbvia da flor nascendo no concreto brotou uma calêndula, e esta virou um quadro pregado na parede. Hoje me emociono quando revejo este filme, mas não é de tristeza: há orgulho e paz. Amadurecer requer coragem, destruição e reconstrução.

Há algo de belo na dor, e na trilha sonora que nos ajuda a florescer.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Cine Baú - O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter)

De: Charles Laughton. Com Robert Mitchum, Shelley Winters, Billy Chaplin e Sally Jane Bruce. Terror / Suspense, EUA, 1955, 93 minutos.

Crítica severa ao fanatismo religioso e aos "falsos profetas" que teimam em aparecer, o clássico O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter) - único filme do diretor Charles Laughton -, se mantém atual não apenas por conta de sua temática, mas também por permanecer como uma das mais perturbadoras e macabras experiências cinematográficas da história. Nesse sentido, é um filme que se mantém atual: tem um vilão ao mesmo cínico e assustador, uma narrativa de grande fluidez e um visual que mistura devaneio expressionista com conto de fadas de terror. Na trama, baseada em um conto de Davis Grubb, o pastor Harry Powell (Robert Mitchum) - um serial killer que mata viúvas ricas -, vai parar na prisão e descobre que o seu parceiro de cela, que está condenado à morte por um duplo assassinato, esconde um bom volume de dinheiro do lado de fora da cadeia. Quando o sujeito é solto ele resolve ir atrás da família do homem, mais especificamente de seus filhos, que sabem do "paradeiro" da grana.

Por "ir atrás" leia-se perturbar a viúva Willa (Shelley Winters) e seus filhos John (Billy Chaplin) e Pearl (Sally Jane Bruce), de todas as formas. Com um charme perverso, Harry, um sujeito tão monstruoso quanto enigmático, se aproximará de Willa, arrumando um matrimônio com ela, que será convertida em uma religiosa fervorosa, temente à Deus e arrependida de seus pecados. Ao mesmo tempo, esse excêntrico vilão que trafega no limite entre a benevolência forçada e a maldade galopante se esforçará para tentar se aproximar das crianças, arrancando delas o segredo sobre o local em que o dinheiro se encontra. Se por um lado a obra ataca a cegueira de uma esposa devota - incapaz de perceber as reais intenções de seu novo marido, mesmo quando ele se nega a manter relações sexuais com ela -, por outro, não faz concessões na denúncia da maldade humana, quando essa mesma esposa surge morta, embaixo da água, em uma sequência tão impactante quanto onírica.


Aliás, esse clima de sonho meio "torto", de alucinação esquizofrênica que permeia a película, merece destaque. Se por um lado o senso de humor difuso faz lembrar alguns dos recursos empregados por Alfred Hitchcock em seus suspenses (mesmo nos mais assombrosos), por outro a estética cheia de floreios bucólicos, de contrastes no uso da luz (e das sombras) e os closes oblíquos nos remetem imediatamente ao cinema alemão dos anos 20. E, nesse sentido, a sequência na corredeira do rio - com as crianças dentro do barco -, é pródiga no emprego da técnica, com sapos, teias de aranhas e plantas aquáticas contrastando com o delírio absurdo de uma perseguição violenta (e mortal) do protagonista, que vai atrás das duas crianças sem descanso, sufocando o espectador. E não é por acaso que a sequência em que Harry surge a cavalo no horizonte, cantarolando a sua música tenebrosa, enquanto as crianças tentam descansar em um estábulo no meio do nada, é de gelar qualquer espinha.

Utilizando ainda truques como imagens aéreas (uma inovação pra época), planos sequência e cortes secos, o filme ainda tratará o séquito de religiosos, caso da vizinha Icey Spoon (Evelyn Varden), em um coletivo difuso, conservador, que vê Willa como uma mulher desamparada apenas por não ter um marido. E, pior: tratando ainda o reverendo com toda a "reverência" (com o perdão do trocadilho), apenas por este ser alguém ligado à Igreja, ignorando seu comportamento cheio de contrastes, condição denunciada pelas tatuagens que mantém em suas mãos. Quando foi lançado, O Mensageiro do Diabo foi um fiasco de bilheteria. Já a crítica também detestou, assim como a Igreja, que não concordou com a forma com que os religiosos foram retratados (especialmente na cena final, em que a massa zumbificada avança pela cidade disposta a fazer justiça com as próprias mãos). Nos dias de hoje o clima é outro: a obra costuma figurar em diversas listas de melhores, como no caso do livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer e na relação de 100 Filmes Essencias da finada Revista Bravo! - numa honrosa 14ª posição. Não é pouco.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Novidades em Streaming - Kikee (Disco)

Eu particularmente gosto demais quando aparece um amigo nesse quadro - e é exatamente esse o caso do nosso grande parceiro Kikee, que acaba de lançar seu disco de estreia. Intitulado Transição, o álbum apresenta uma coleção de canções que são resultado de quase dois anos de pesquisas e experimentações da música pop, latina e eletrônica contemporânea. Nesse sentido, o trabalho registra a progressão de uma sonoridade acústica para outra com batidas mais movimentadas, cheias de cor e de energia. "É um disco com canções sobre autoconhecimento, conflitos internos e reflexões sobre as relações e a sociedade", comenta o artista, que também é o responsável por toda a produção do registro e dos videoclipes que acompanham o lançamento. Nas letras, uma jornada de aprendizado e aceitação que estabelecem um diálogo com a vida e com as questões da atualidade, em meio a um coletivo de canções tão atmosféricas quando primaveris. Quem quiser, pode começar por Monóxido, Vampiro Emocional e Jardim. Uma trinca musical matadora que eleva Kikee à categoria dos grandes compositores da atualidade.


Lasquinha do Bernardo - Abrir o Coração é Um Saco

Pessoal, estamos com um novo quadro! Nele, o nosso parceiro Bernardo Siqueira - da Sonar Podcasts, que é a responsável por colocar o nosso podcast do Picanha Cultural no ar -, dá o seu pitaco. Ou, melhor dizendo, pra linguagem ficar de acordo com o Picanha: a sua Lasquinha! No espaço do Bernardo ele vai ter a liberdade de falar do que quiser e como quiser - e certamente falará com a propriedade de quem curte filmes, séries e música, assim como nós, com o diferencial de ser formado em Letras e atuar como professor. Seja bem-vindo Bernardo! A "lasquinha" será toda tua, para a hora que quiser descer no nosso prato! E, vocês, queridos leitores, espero que vocês gostem!
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Abrir o Coração é Um Saco
(Por: Bernardo Siqueira)

O texto encara um título amargo, mal humorado e até rebelde. Não é difícil nos encontrarmos nessa situação durante um período também ácido e doloroso. Mas, o que para muitos é uma tortura, para outros pode ser uma janela para novas descobertas: ficar em casa. E foi assim que aconteceu, entre um filme revisto e uma série repetida, descobri, literalmente, uma janela para um novo mundo. Em abril desse ano, a Netflix, famoso serviço de streaming audiovisual, lançou a animação The Midnight Gospel, criada pelo mesmo produtor de outra série animada e celebrada, A Hora da Aventura. O enredo é muito simples: Clancy, um produtor de podcast (aqui a explicação pelo meu interesse instantâneo), navega através de um simulador de realidades pelo universo, encontrando diversas personagens peculiares em situações igualmente peculiares e até mesmo desesperadoras como, por exemplo, um apocalipse zumbi ou um mundo submerso habitado por gatos marinheiros. O interesse de Clancy é singelo, entrevistar esses seres estranhos e discutir o que os move no seu percurso diário de sobrevivência.

Em cada episódio há uma conversa profunda que serve como base para vários questionamentos ao espectador, cada entrevistado tem uma crença, um ensinamento ou um conselho para ser dado ao protagonista, sobre amor, sobre morte, sobre perdão. Porém, há um episódio em especial, que vou guardar em segredo para não desanimar os mais ansiosos, no qual Clancy diz exatamente o título desse texto. Uma intensa e melancólica conversa entre o podcaster e sua mãe, que enfrenta uma situação de vulnerabilidade. O protagonista se vê de mãos atadas, pois existe a garantia do sofrimento e, ao mesmo tempo, a vontade inerente do ser humano de fugir da sua realidade. É quando sua mãe lhe diz que “as pessoas tentam evitar pensar no fato de que vão morrer e de que as pessoas que elas amam vão morrer e isso abre seu coração, ele se parte para abrir. Nossos corações ficam fechados porque nós os fechamos, nós tentamos nos proteger da dor. Lidar com a morte abre o coração.


O impacto desse diálogo em mim foi imediato e até bastante óbvio. Quantas pessoas desrespeitando o distanciamento social você já viu? Quantos amigos e parentes preferem colher desculpas na árvore da sua arrogância e ignorar a pandemia, bradando que tudo não passa de uma invenção midiática? É isso, senhoras e senhores, o medo da realidade mais cruel e certeira, a morte. Quando nos encontramos em situações-limite, somos um simulacro de Clancy, preferimos fugir ou entrar em um mundo alternativo, buscar culpados, criar um avatar, uma sombra do que somos, no lugar de uma solução simples, porém dolorosa: abrir nosso coração. C.S. Lewis, filósofo britânico, no livro A Abolição do Homem escreve que “um coração duro não é uma proteção infalível contra um miolo mole.” Posições negacionistas não vão nos proteger ou nos salvar.

A realidade, apesar de dura, é... real. É aqui que encontramos a satisfação e a dor. É o único lugar capaz de transformarmos um coração endurecido, partido pela perda, pelo isolamento, pela mentira, em algo bom, em amor, ou em solidariedade, que é um tipo de amor. Quem prefere ficar distante do óbvio em tempos difíceis presta um desserviço a si mesmo, envolvendo seus sentimentos em um sepulcro. Abrir o coração é um saco? É terrível, é um exercício contra nosso próprio ego e, cá entre nós, ninguém gosta de enfrentar o seu verdadeiro eu. Mas está ali, na palavra, mais uma vez, uma cura contra a nossa alienação pessoal. Sempre dói? Pergunta de Clancy a sua mãe e aqui dirigida a você, leitor. Respondo: não sei. Em mim, sempre dói.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Novidades no Now/VOD - Harriet (Harriet)

De: Kasi Lemmons. Com Cynthia Erivo, Janelle Monáe, Leslie Odom Jr., Joe Alwyn e Jennifer Nettles. Drama / Biografia, EUA, 2019, 125 minutos.

Histórias como a de Harriet Tubman são praticamente desconhecidas da maioria das pessoas, então há de se celebrar a existência de obras como Harriet (Harriet) - mesmo que haja um certo exagero nas tintas e uma solenidade que vai no limite da cafonice na condução da narrativa. Nesse sentido vale muito mais a intenção de jogar alguma luz aos eventos cinematográficos vividos pela protagonista - que é interpretada por Cynthia Erivo (em papel que lhe deu uma indicação ao Oscar) -, e que possuem grane relevância, quando analisados em perspectiva. A trama volta no tempo para o período que antecede a Guerra da Secessão norte-americana, que durou de 1861 a 1865. Eram tempos meio confusos em que o conflito entre norte e sul se ensaiava no mesmo compasso em que mais e mais escravos conseguiam a sua carta de alforria e mais e mais patrões ficavam desgostosos. Tudo isso antes de Lincoln e dos atos que emancipariam os negros norte americanos.

É nesse cenário que Harriet surge. Perto do ano de 1850 ela é impedida pelo seu senhorio de se casar - e de se ver oficialmente livre. Mesmo tendo documentos. Mesmo com um advogado a seu favor. E é contrariando todas as possibilidades que ela resolve fugir, saindo da fazenda localizada no Estado de Maryland, para 160 quilômetros adiante, suja, cansada, com fome, ser acolhida na Filadélfia, já na Pensilvânia. No meio do caminho ela confronta os seus antigos patrões - representados pela figura do mimadinho filhinho de papai Gideon (Joe Alwyn) e conta com o apoio de ajudantes que operam na clandestinidade. Na Filadélfia um novo mundo se abrirá, quando ela for recebida por Marie (Janelle Monáe) que, junto com William (Leslie Odom Jr.) recebem escravos fugitivos, abrigando-os em uma espécie de instituição de apoio. No local são alimentados, podem tomar banho e vestir roupas. São encaminhados a trabalhos. Enfim, são tratados como humanos. Como iguais.


Só que um ano depois disso, Harriet não está completamente feliz e decide voltar ao seu local de origem para resgatar o seu marido. Chegando lá, descobre que ele se casou com outra por acreditar que ela estivesse morta. Mesmo desiludida, a protagonista altera um pouco a sua missão: ajuda seus irmãos, sobrinhos, cunhados e amigos a atravessar a fronteira em jornada semelhante a que ela realizou. É nesse momento que se inicia uma das maiores operações de resgate de escravos daquele período. Somente Harriet teria contribuído para que dezenas de escravos fossem libertados dos maus tratos ocorridos em propriedades mais ao Sul. Outros tantas pessoas contribuíram nessas operações. Operações que deixaram a aristocracia e os extratos mais ricos da sociedade desgostosos: sem escravos que trabalhassem para eles, viram suas receitas (e suas propriedades) minguarem, como no caso de Gideon e de sua hipócrita mãe Eliza (Jennifer Nettles). Bom, estava desenhado o cenário de crise político e institucional que transformaria os Estados Unidos em um verdadeiro barril de pólvora. E ainda que esse bastidor não apareça de forma mais pungente no filme, a gente sabe: ele está lá.

Em tempos de cassação de direitos, de ódio, de preconceito e de intolerância como os que vivemos - com figuras como Trump e Bolsonaro no poder -, nunca é demais recordar a história, para que não tornemos a repeti-la. Não foi sem dor que Harriet alcançou algumas de suas pequenas vitórias. E é esse contexto que vai sendo descortinado na tela - um contexto em que capitães do mato não hesitam em auxiliar os proprietários de terras, ao passo em que música e religião se fundem em meio a sonhos difusos de liberdade entre os escravos negros. Há algo quase ritualístico na forma com que Harriet é retratada, como se ela fosse tão destemida quanto sagrada - e eu, sinceramente, não vejo problema nisso já que eu imagino que o contexto daquela época fosse ainda pior do que as imagens amenizadas e bem produzidas que assistimos. Aliás, sobre isso o filme dá um pequeno show na parte técnica: a fotografia parece sempre pronta a nos manter otimistas (com suas cores vivas, marcantes), ao passo que o desenho de produção e a trilha sonora são exemplares. Aliás, a música Stand Up, com sua letra cheia de significados, também recebeu uma nominação no último Oscar. Não ganhou. Mas que nos tocou fundo no coração, isso tocou.

Nota: 8,0

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Novidades no Now/VOD - Bons Meninos (Good Boys)

De: Gene Stupnitsky e Lee Eisenberg. Com Jacob Trembley, Brad Noon, Keith L. Williams, Will Forte e Millie Davis. Comédia / Aventura, EUA, 2019, 88 minutos.

Em uma cena decisiva de Bons Meninos (Good Boys), Thor (Brad Noon), desafia os seus amigos, todos na faixa dos 12 anos, durante uma festa: vai tomar quatro goles de cerveja. QUATRO! De uma só vez. Com isso vai tentar superar um apelido desagradável que o acompanha já há algum tempo, ao mesmo tempo em que tentará se tornar, momentaneamente, o "fodão". É esse tipo de instante meio bobo, quase caricato, que transforma a obra dos diretores estreantes Gene Stupnitsky e Lee Eisenberg em uma grata e divertida surpresa entre os filmes sobre (e para) pré-adolescentes. É na capacidade de saber rir de si mesmo, de não se levar tão a sério, que a obra nos ganha. Pra um adulto podem parecer estúpidos os quatro goles de cerveja. Mas e no universo cheio de inseguranças e de incertezas da juventude? Quem nunca passou por alguma situação na adolescência, em que precisava se autoafirmar para os demais, mesmo fazendo algo a contragosto?

Tudo bem, a gente sabe que filmes com esse tema não chegam a ser exatamente uma novidade - há por aí uma verdadeira coleção de obras sobre amadurecimento, sobre a inocência sendo deixada para trás em nome de uma transição para a vida adulta meio na marra, meio na força. Mas Bons Meninos é de uma leveza arrebatadora, que vai nos ganhando a cada piada inesperada, que mistura ainda doses cavalares de graça e nostalgia. E o elenco, com todo o seu carisma, também é culpado por isso. Jacob Trembley (visto nos imperdíveis O Quarto de Jack e Extraordinário) é Max, garoto que nutre uma paixão por Brixlee (Millie Davis) e que, ao lado do já citado Thor e de Lucas (Keith L. Williams) resolvem matar aula com a intenção de tentar consertar um drone quebrado que estava sendo usado para espionar a vizinhança e, bom... tudo acaba dando errado e é o motivo para que o trio enfrente uma série de desventuras, que envolverão de traficantes de drogas a policiais à paisana.


Como diferencial, o filme confere importância a todas as etapas vividas pelos jovens da faixa dos doze anos - como a da descoberta da sexualidade -, ao mesmo tempo em que, aqui e ali, discute temas como uso de drogas, separação, bullying e respeito às diferenças. Não há exatamente um assunto definido que sirva de fio condutor: conforme o dias dos meninos avança e eles parecem distantes do seu objetivo, a amizade entre eles se fortalece, ao mesmo tempo em que percebem aos poucos que uma etapa de suas vidas pode estar finalmente chegando ao fim. E isto porque, é nesse momento da vida que as diferenças de personalidade e as escolhas individuais começam finalmente a aparecer. Max, por exemplo, é aquele guri romântico, com perfil namorador. Já Thor sonha em ser cantor, mas, inicialmente, luta contra essa ideia (como admitir que gosta das artes?) Lucas, por fim, tem um senso de justiça muito grande, ao mesmo tempo em que enfrenta a dura realidade da separação de seus pais.

E mesmo temas mais "tabu" como fetiches sexuais e a prática da masturbação são tratados de forma mais desencanada e com senso de humor, como na parte em que o pai de Max percebe o que ele estava prestes a fazer dentro de seu quarto. Sobre o humor, ele é muito bem explorado na obra. De forma quase surpreendente. A trilha sonora subindo em certos instantes brinca com a "solenidade" daquilo que não é tão tão solene - como na cena dos quatro goles -, ao passo que ações como atravessar uma rodovia de carros movimentados se transforma em um dos maiores desafios do trio central. É tenso. É engraçado. É debochado. Assim como é debochada aquela parte em que um homem pergunta aos meninos se ele "parece um pedófilo", sendo que ele é o estereótipo desenhado de um perturbado sexual. O mesmo valendo para o segmento em que Thor argumenta com Lucas sobre ser o seu "melhor amigo". Inocente sem ser boboca, cheio de mensagens sem ser enfadonho, Bons Meninos é filme que faz bem em tempos de pandemia, nos fazendo rir e também chorar. Nesse caso, um choro bom.

Nota: 8,5

Podcast do Picanha Cultural #4 - Guilty Pleasures Musicais

Guilty pleasures - ou, "prazeres proibidos". Na música todos nós temos (ou tivemos) os nossos. Aquele artista ou banda que a gente escutou desavergonhadamente, mas de preferência escondido. De Reação em Cadeia à Taylor Swift, passando por Capital Inicial e Miley Cyrus, embarque conosco nesse episódio e se sinta à vontade para revelar para nós, do fundo do seu coração, quais são os segredos reservados apenas à sua playlist preferida. Em meio a galinhagem suscitada pelo tema, resta ainda a oportunidade para uma reflexão: num universo em que a música é tão plural, diversa e democrática, ainda há espaço para considerar este ou aquele artista um guilty pleasure? Há motivo para ter vergonha de gostar de determinado artista? Bom, deixem de lado as opiniões alheias e não tenham constrangimento em admitir: Mila, do Netinho, é uma grande música. Ou não?


quarta-feira, 20 de maio de 2020

Tesouros Cinéfilos - Marcas da Violência (A History of Violence)

De: David Cronenberg. Com Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris e William Hurt. Drama / Suspense / Policial, EUA / Alemanha, 2005, 96 minutos.

Já dizia o Dalai Lama que "a violência não é um sinal de força, a violência é um sinal de desespero e fraqueza". Bom, de alguma forma a frase dita pelo líder espiritual tibetato dialoga diretamente com esta pequena joia moderna dirigida por David Cronenberg (A Mosca, Gêmeos: Mórbida Semelhança). Uma obra que se mostra muito menos interessada em discutir a origem - ou a natureza -, do comportamento violento, mas sobre como ele poderá acompanhar o homem comum em sua tentativa diária de apenas existir. Tudo começa quando Tom Stall (Viggo Mortensen) - um sujeito tranquilo de uma cidade do interior - vê a sua rotina virar de ponta cabeça quando ele impede um assalto no restaurante que gerencia. Mais do que isso: antecipando o perigo mata os criminosos com grande habilidade, salvando não apenas os empregados do estabelecimento, mas também os clientes que ali estão. O que o faz ser alçado, instantaneamente, a herói nacional.

Tom é casado e mantém uma relação amorosa e de carinho com a esposa Edie (Maria Bello). Tem dois filhos, em um ambiente doméstico harmonioso - o que nos é mostrado já nos primeiros minutos de Marcas da Violência (A History of Violence). E, tentará, a despeito da pressão midiática e do apoio da população local (e até do xerife), retornar à normalidade. Mas como retornar à normalidade, quando você "se torna" um assassino? A situação piora quando surge na vida da família um certo Carl Fogarty (Ed Harris, sempre ótimo), que garante conhecer Tom. Aliás, garante conhecer não como Tom e sim como uma outra versão que responde pelo nome de Joey: um mafioso que teria lhe deixado desfigurado no passado. E é quando surgem as dúvidas para o espectador, que o filme ganha força: estará Fogarty falando a verdade? Quais os segredos do passado, que envolvem Tom? E como fica a família, que passa a ter a sua rotina modificada, invadida pela presença perturbadora daqueles sujeitos?


Trata-se de um bom suspense, mas que pretende, aparentemente, propor uma discussão maior: podemos mudar aquilo que somos em nossa essência? Podemos nos tornar pessoas afáveis e cordiais, deixando para trás um comportamento oposto a esse? Fogarty vem a procura de Tom para encontrar um criminoso com quem ele tem contas a acertar relativas ao passado. Encontra um "homem de bem", casado a vinte anos, respeitado na comunidade, temente à Deus. Isso é possível? Não há respostas prontas para o exercício que propõe Cronenberg - que coloca o protagonista na parede, transformando o espectador no próprio "tribunal improvisado". E a interpretação de Mortensen, sempre com uma fala mansa e olhar doce, torna esse exercício ainda mais interessante. Melhor: repare a expressão ao mesmo tempo de susto e de asco com que ele dispara o revólver na cena em seu restaurante. Ele não queria fazer aquilo, certamente. Ou não? Está na natureza dele este comportamento impulsivo? É possível escapar daquilo que ele talvez seja em sua essência?

Eu nunca sei dizer se um filme que propõe muitas perguntas sem respondê-las é bom, mas o caso é que Cronenberg faz isso com grande habilidade, mantendo o nosso interesse o tempo inteiro. A gente fica cheio de dúvidas sobre o que pensar. O mundo é violento, afinal, mas como devemos (re)agir a ele? É o tipo de narrativa que me faz lembrar outro ótimo filme, no caso O Pagamento Final (1993), do diretor Brian De Palma. Naquela obra, Al Pacino é o gângster Carlito, que sai da prisão disposto a ser um novo homem, que pretende deixar pra trás a vida de crimes. Não demora mais do que um dia fora da cadeia para que ele mergulhe em uma espiral de violência que, também relacionada ao seu passado, tornará praticamente impossível andar na linha. A violência, afinal, irá ao seu encontro. Assim como foi ao encontro de Tom. Ambos, Tom e Carlito, tiveram de enfrentar essa realidade de frente. Como a história acaba para cada um deles? Bom, só será possível saber assistindo aos filmes.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Novidades em Streaming - Perfume Genius (Disco)

Vamos combinar que, a despeito da pandemia (ou talvez até mesmo por causa dela), o ano musical tem sido espetacular. A cada semana faço uma brincadeira nos histories do meu Instagram pessoal, citando aquele que considero o "Disco do Ano" naquele momento. Só que volta e meia aparece um novo candidato a ser o melhor álbum de 2020 e o dessa semana é o do Perfume Genius, que leva o sugestivo nome de Set My Heart on Fire Immediately. Quinto registro da banda - o nome por trás dela é o do artista Mike Hadreas -, o trabalho parece condensar o que de melhor o Perfume Genius sabe fazer: músicas climáticas, que se alternam entre momentos grandiosos, soturnos, delicados e alegres em igual medida. É possível, por exemplo, se aprofundar em divagações contemplativas, como na sublime Moonbend, para no instante seguinte se divertir com o balanço curvilíneo de On The Floor. Trata-se de um álbum que cresce a cada audição, feito pra ser degustado com calma, sem pressa, que vai se desnudando (e nos surpreendendo) aos poucos, conforme se alternam os instantes mais econômicos, com outros mais expansivos. Comece escutando Without You. E depois vá pra Your Body Changes Everything. Não haverá arrependimentos.


Pérolas da Netflix - Almacenados (Warehoused)

De: Jack Zagha Kababie. Com José Carlos Ruiz e Hoze Meléndez. Comédia / Drama, México, 2015, 91 minutos.

Você já viu essa cena em alguma empresa - ou até na empresa em que você trabalha: num lado o "colaborador" mais antigo, dedicado quase que exclusivamente à firma que, em muitos casos, é a sua razão de viver, quase como uma extensão de sua própria casa. Trata-se daquele senhor que está há mais de 30 anos na organização, que respeita os patrões, os processos e toda aquela rotina de uma forma quase elegíaca. Um símbolo de excelência que acredita que o caráter e as virtudes do homem estão diretamente relacionadas ao seu labor, ao seu suor. De outro lado o descompromissado funcionário mais jovem, frequentemente de fones de ouvido, descuidado, despojado. Aquele tipo de millenial desatento que sabe que que o ambiente corporativo serve apenas para proporcionar o seu ganha pão e que se houver algo melhor ou mais atrativo ali adiante, não hesitará em "pular fora". É aquela pessoa que é também mais consciente sobre os seus direitos - mais até do que dos deveres. Que questiona equívocos ou os excessos burocráticos, ultrapassados, sem medos, sem rodeios.

É nesse universo de contrastes sobre a percepção do trabalho que reside a força dessa verdadeira joia mexicana perdida na Netflix, que responde pelo título de Almacenados (Warehoused). O jovem em questão é Nin (Hoze Meléndez), um rapaz de cerca de 20 anos que atravessa a periferia da Cidade do México para chegar até o depósito de uma empresa que fabrica hastes e mastros - mas que recebe apenas o segundo tipo de produto -, para o seu primeiro dia de trabalho. No local, Nin é recebido pelo sexagenário Sr. Lino (José Carlos Ruiz), que está há cinco dias de aposentar. Só que antes de pendurar oficialmente as chuteiras - após 39 anos dedicados à empresa - , Lino deverá repassar todos os procedimentos para o novo encarregado, que envolvem receber os caminhões que chegam com a mercadoria, anotar as entradas, processar as saídas, anteder telefone e garantir a manutenção e a limpeza do local. Um trabalho não muito movimentado e bastante analógico: nunca se sabe quando pode chegar um caminhão. Pode chegar a qualquer momento. Ou mesmo não chegar.


Então o trabalho deles é esperar. Pacientemente. Como se fossem personagens de alguma peça de Samuel Becket ou os soldados isolados (e entediados) do livro O Deserto dos Tártaros do escritor Dino Buzatti. E, assim, o que eles farão será conversar. E será por meio dos imperdíveis diálogos que as diferenças surgirão. E que as pequenas quebras de lógica serão estabelecidas. Metódico, o Sr. Lino está acostumado a, diariamente, passar o ponto às 6h53, a fazer o seu lanche às 10h e a permanecer sentado para abrir o depósito, assim que escutar o barulho do caminhão da empresa fresteando a rua. Orgulhoso, fala de clientes famosos, inclusive dos Estados Unidos, que são compradores. Um universo de satisfação a despeito do baixo salário, da monotonia e do absurdo do comportamento repetitivo, de poucas novidades. É mais ou menos como o operário visto em Tempos Modernos, mas com uma ânsia menor em apertar parafusos, mas grande no ideal simbólico de "vestir a camisa".

Nesse sentido, não é por acaso que o telefone do depósito ainda é a disco. E a máquina de registro de ponto parece saída de algum filme dos anos 40. Há teias de aranha espalhadas pelo ambiente, vidros quebrados. O tipo de galpão meio deteriorado, acinzentado, que todos nós já vimos. O ambiental em si, ultrapassado, corroído, representa uma ideia antiga de trabalho, analógica, nada moderna. Nin chega trazendo um sopro de frescor. Sugerindo inovações que parecem saídas de algum caderno subversivo de contestação. Entre elas, pergunta ao Sr. Lino se não pode passar o cartão ponto para colocar o jaleco da empresa DEPOIS de iniciar o trabalho. E resolve trazer a sua própria cadeira, já que a empresa não lhe oferece uma. Aqui e ali esses comportamentos serão discutidos, funcionando o microcosmo daqueles dois sujeitos como uma idealização daquilo que se vê, inclusive, em modernos corredores de empresas, onde empregados antigos se defrontam com novos, onde ideais obsoletos vão dando lugar a noções mais oxigenadas. E isso não significa renegar trajetórias, e sim, respeitar o tempo de cada um. Hábil, Almacenados reservará surpresas para o terço final, fazendo com que esses dois sujeitos encontrem motivações maiores naquilo que executam. E a espera, valerá a pena.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Livro do Mês - Todos os Belos Cavalos (Cormac McCarthy)

Capítulo inaugural da Trilogia da Fronteira, Todos os Belos Cavalos, do escritor norte americano Cormac McCarthy - lançado pela editora Alfaguara -, é obra sobre rupturas. Sobre amadurecimento. Sobre deixar o passado para trás ou, até mesmo, mergulhar nesse mesmo passado, antes que aquilo que vemos no horizonte oficialmente chegue. É livro de contrastes que coloca frente a frente tradição e modernidade, juventude e experiência, lançando um olhar tão bruto quanto carinhoso a seus personagens que, apegados de forma umbilical a algumas convenções, parecem presos a um estilo de vida alterado por aquilo que se conhece por "civilização". O protagonista é um jovem de nome John Grady Cole, um adolescente de 16 anos que acaba de perder o pai, e que se vê privado da vida de fazendeiro texano que teria quando a mãe, uma respeitada artista de teatro, anuncia que pretende vender a propriedade que já está há várias gerações com a família. A trama se passa nos anos 40, é bom mencionar.

Contrariado, John Grady decide fazer, nestas circunstâncias, o que qualquer adolescente de 16 anos faria: pega seu cavalo, monta nele, chama seu amigo Lacey Rawlings para lhe acompanhar e resolve empreender uma jornada meio sem rumo, sem destino definido, em direção ao México. Cruzando pradarias, seus choupos, ravinas, mesetas, planícies e riachos, em meio a natureza selvagem, árida e pedregosa, apenas com os seus animais, um pouco de dinheiro e alguns mantimentos. No caminho, o indefinido. A busca por algo que seja palpável em um contexto em que as responsabilidades gritam e a infância (e a inocência) pareçam efetivamente próximas do fim. No caminho encontrarão um terceiro jovem, de nome Blevins, tão cheio de segredos quanto os dois protagonistas. Ou com mais segredos que os protagonistas, como descobriremos mais adiante. Em meio a cordilheiras e pastos verdejantes, o sentimento de solidão e de busca que invade, que grita.


Todos os Belos Cavalos foi é o quinto dos nove romances escritos até o momento por McCarthy - o segundo que leio, depois de A Estrada (2007). Lançado em 1992, trata-se de uma leitura nem sempre fácil, mas que transborda toda a melancolia daquele cenário inóspito em suas páginas. McCarthy se apropria como poucos da geografia do local que descreve, não sendo difícil imaginar cada rochedo ultrapassado em meio ao frio da noite ou as trilhas que bordejam rios e que lhes conduzirão a fazendas isoladas, propriedades perdidas (quase) no meio do nada. Em uma delas, avançando pela fronteira mexicana, Lacey e John conseguirão trabalho, após uma perseguição envolvendo Blevins. No lugar capitaneado pelo hacendado Don Hector domarão cavalos, trabalharão pela comida. E John se apaixonará pela filha do patrão, Alejandra. Um amor que, de alguma forma, se mostrará proibido e que terá uma série de nuances (inclusive políticas), como revelará mais tarde a tia-avó da jovem.

Nesse sentido, será mais adiante que Lacey e John se depararão com a violência do mundo, que lhes vinha fresteando na natureza selvagem, na companhia inesperada. O mundo de liberdade tem seu preço afinal e, muitas vezes, estaremos sujeitos a fatores externos que fogem do nosso controle. [ALERTA DE SPOILER] A dupla, por exemplo, acabará presa. Por um crime que talvez não tenha cometido. E de que forma sobreviver nesse contexto em que a brutalidade parece irromper a cada olhar? Hábil em sua narrativa, McCarthy torna as palavras tão ásperas quanto a narrativa em si - "[...] ficou parado sobre o cavalo um instante e olhou a planície para o norte onde o gado já começava a aparecer surgindo lentamente na pálida paisagem e mugindo baixinho para os cavalos e a ideia de que seu pai estava morto naquele país e ficou parado no cavalo nu sob a chuva e chorou" -, forçando o leitor para a quebra de lógica da falta rude de vírgulas. Algo que não é repetido para a transposição para o cinema, que resultou em uma obra mais "leve" dirigida por Billy Bob Thornton e que recebeu o nome em português de Espírito Selvagem (2000). Já o livro segue grandioso, assim como suponho ser as mais famosas obras do autor, casos de Meridiano de Sangue (1985) e Onde os Velhos Não Tem Vez (2005). Serão futuras leituras, certamente.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Podcast do Picanha Cultural #3 - Antigamente a Tradução de Títulos de Filmes Era Melhor?

Os títulos dos filmes de antigamente, traduzidos para o português, eram melhores? Mais poéticos? Simplesmente mais bonitos? Foi com esta ideia que resolvemos tornar o nosso terceiro episódio (quarto, com o piloto) do Podcast Picanha Cultural um pouco mais "leve". Nesse caso, eu e os parceiros Bernardo Siqueira e Henrique Oliveira resolvemos viajar. Filosofar. Se hoje em dia a intenção parece chamar a atenção com palavras chave de fácil identificação - nosso ponto de partida foi o mais recente filme da Pixar Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (que no original se chama Onward) -, antigamente os tradutores apostavam quase no existencialismo de títulos como Assim Caminha a Humanidade, o inesquecível Giant, no original. Estamos viajando? Bom, então embarquem conosco neste, que talvez tenha sido um dos mais divertidos e curiosos episódios lançados até então!


quarta-feira, 13 de maio de 2020

Grandes Cenas do Cinema - A Vida de Brian (Life Of Brian)

Cena: um grupo de fanáticos religiosos passa a perseguir o "Messias"

Sim, a gente sabe que, no conjunto da obra, Em Busca do Cálice Sagrado (1975) segue imbatível como o melhor filme dos britânicos do Monty Phyton. Mas A Vida de Brian (Life Of Brian) possui pelo menos uma sequência que permanece como uma das mais divertidas (e acidamente críticas) concebidas pelo coletivo: aquela em que, quase no terço final, Brian (Graham Chapman) precisa lidar com um grupo de fanáticos religiosos que acredita, com todas as suas forças, que ele é o Messias encarnado. E essa cena é especialmente engraçada (e trágica) porque ela faz um duro questionamento não a religião em si, mas ao absurdo do extremismo cego, representado por um grupo de pessoas que, se comportando quase como zumbis, passa a adorar aquele sujeito sem nem compreender muito bem o por quê. Isto é comprovado, por exemplo, quando Brian deixa pelo caminho objetos pessoais como uma moringa, ou a sua sandália, e que passam a ser imediatamente tratados como artefatos de grande valor simbólico, quase divinos.

Mas o melhor é como as coisas se encaminham dentro da história para chegar nesse ponto: Brian na verdade estava fugindo de integrantes do exército romano, após se aliar a um grupo de revolucionários que questiona os métodos do Estado. Só que, em meio a fuga, o sujeito se vê numa espécie de parada em que diversos profetas se empenham em doutrinar a população. Fingindo estar ali no meio com este mesmo propósito, ele consegue driblar os militares ao mesmo tempo em que diz alguma frase boba de autoajuda que ganha a atenção de meia dúzia de gatos pingados. Não demora para que suas palavras ecoem na multidão, que passa a lhe perseguir até o deserto, onde ocorrerão os "milagres" que, na realidade, não passam de interpretações livres da realidade. É o caso por exemplo, do instante em que Brian indica a existência de uma árvore frutífera que poderá servir de alimento para o bando faminto. Todos, claro, ficam assombrados com a habilidade do Messias.


Mas o melhor vem a seguir: salvo por Judith (Sue Jones-Davis), Brian vai pra casa, transa com ela e amanhece o dia abrindo a janela pelado mesmo, para receber os raios de sol. E qual não é a sua surpresa ao se deparar com o grupo de fanáticos que se multiplicou ainda mais, desejando com todas as forças ouvir os ensinamentos de Brian? A sequência é absurdamente hilária porque cada frase dita pelo Messias "improvisado" é respondida em uníssono pela população, num improvável e cômico jogral. Tudo melhora quando surge a mãe de Brian (Terry Jones), uma judia ortodoxa que está claramente insatisfeita com a descoberta da sexualidade do filho, ao passo que tem de lidar, da janela, com a turba de seguidores do filho. E a despeito do caráter divertido desse instante (o melhor da película), ele ainda carrega uma importante lição de moral: a de que as pessoas não devem seguir de forma inquestionável algum ídolo ou ideia, devendo preservar a liberdade e a individualidade de pensamento. "You are all individuals", afinal.

Óbvio que, quando foi lançado, A Vida de Brian incomodou os religiosos que, claro, viram no filme uma dura crítica ao pensamento dogmático - por mais que haja até mesmo certo respeito à religiosidade como um todo (basta ver o que acontece na primeira cena do filme, quando Jesus Cristo aparece "de verdade"). A crítica, afinal, como já dissemos, parece muito mais endereçada às igrejas e a forma como tomam para si a religião, alienando a população e subvertendo a sua lógica de pensamento. Sobre a película, é claro que este é apenas um dos tantos momentos divertidos, merecendo destaque ainda a cena final, em que os bandidos crucificados cantam a singela Always Look On The Bright Side, subvertendo qualquer lógica narrativa já que, uma música feliz, em meio a um cenário desolador, não faz nenhum sentido. Mas a ideia não é fazer sentido. E era isso que tornava os Phytons tão imprevisivelmente engraçados o que fez com que, não por acaso, eles influenciassem toda uma geração de humoristas dos anos 80 e 90. Aliás, seguem influenciando até hoje.

Cine Baú - Assim Caminha a Humanidade (Giant)

De: George Stevens. Com Elizabeth Taylor, Rock Hudson, James Dean e Mercedes McCambridge. Drama / Faroeste, EUA, 1956, 201 minutos.

Existe uma cena quase ao final de Assim Caminha a Humanidade (Giant) que, em partes, resume toda a discussão proposta por esse clássico do diretor George Stevens (Os Brutos Também Amam). Nela, Jordan Benedict (personagem de Dennis Hopper) desafia o seu pai, o conservador criador de gado Bick Benedict (Rock Hudson), fazendo-o encarar a dura realidade de que ele não passa de um sujeito racista e preconceituoso - aliás, algo que já estava claro para os espectadores, em quase três horas e meia de projeção. Bick, afinal, é aquele texano à moda antiga: um sujeito da "família de bem", temente à Deus e apegado as coisas materiais, que jamais percebe a América de contrastes em que está inserido. Ou talvez finja não perceber. Naquela altura do campeonato, Bick tem dificuldade de aceitar o fato de que o seu filho tão amado casou com uma mexicana. Pior ainda: ele não pretende seguir carreira como fazendeiro, abrindo mão dos mais de 500 mil hectares de áreas de terras e dos animais, optando pela medicina como profissão.

Quando foi lançado, o filme baseado na obra da escritora Edna Farber imediatamente se tornou um líbelo não apenas da importância do debate sobre discriminação racial, mas também de outros temas como o papel da mulher na sociedade (e na vida pública) e de como o poder corrompe o homem. Como análise um pouco mais ampla, o microcosmo da família Benedict - em cena são transcorridas três gerações, que terminam com filhos e o nascimento dos netos -, não deixa de ser um recorte para a própria consolidação dos padrões e valores estabelecidos pela sociedade americana até os dias de hoje. Um País, por sinal, cheio de contrastes, reflexo de uma economia e de um sistema político desajustado, que era capaz de tornar um homem milionário da noite para o dia - o que vemos personificado na figura complexa vivida por James Dean -, ao passo que os imigrantes e os empregados da fazenda conviverão com a pobreza extrema e com a vulnerabilidade social praticamente o tempo todo.


Aliás, nesse sentido, aparentemente pouco coisa mudou da época em que o Texas se consolidou como um Estado rico e forte, cheio de grandes empresas petrolíferas e, futuramente, de tecnologia, com o dinheiro concentrado na mão de poucos e a pobreza na mão de muitos. E quando Leslie (Elizabeth Taylor) sai do leste para chegar à propriedade de Bick casada com este, não demora para que ela perceba essas discrepâncias. O patrão mal cumprimenta seus empregados - "nós não falamos com essa gente", argumenta ele em certa altura. Pior: os mantém na mais completa miséria em um pequeno povoado em que o alimento mal dá que chega e a assistência médica inexiste. Será em um passeio pela ampla propriedade com Jett Rink (o já citado James Dean, em seu último filme) - inicialmente um empregado de Bick -, que fará a ficha de Leslie cair. Ela não deixará de amar o seu marido, apesar dos pesares e de seu comportamento antiquado (estilo Bancada do Boi, votante do "mito"). Mas procurará, aqui e ali, tornar a convivência um pouco melhor, auxiliando os trabalhadores da propriedade no básico, aproximando-se deles e não tratando-os como diferentes apenas por serem pobres.

No fim das contas Assim Caminha a Humanidade também foi uma obra em que se sobressaíram os conflitos geracionais, com os filhos dos filhos não ficando mais presos àquele esquema proposto por seus pais, tendo vontades próprias e, até mesmo, acenando para agendas mais "progressistas" (como já mencionado no caso do médico interpretado por Hopper). E é por isso que a obra-prima se mantém tão relevante, a despeito do climão novelesco e de algumas sequências meio datadas (como é o caso daquela da festa ao ar livre que, a meu ver, é de uma breguice sem tamanho). Indicada em dez categorias no Oscar - Stevens faturou a estatueta como Diretor -, a película é figurinha fácil em listas de melhores, como é o caso da dos 100 filmes estadunidenses, elaborada pelo American Film Institute (AFI) - ficou em 82º lugar. Em livros como o dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, a obra também tem lugar cativo, permanecendo nos corações dos cinéfilos como uma saga familiar épica, cheia de grandes discussões e de uma série de momentos inesquecíveis.


terça-feira, 12 de maio de 2020

Novidades no Now/VOD - O Caso de Richard Jewell (Richard Jewell)

De: Clint Eastwood. Com Paul Walter Hauser, Kathy Bates, Sam Rockwell, Olivia Wilde e Jon Hamm. Drama / Policial, EUA, 2019, 131 minutos.

Vou confessar a vocês: acho que o fato de saber pouco sobre O Caso de Richard Jewell (Richard Jewell) tornou a minha experiência com o filme melhor do que se soubesse de todos os pormenores envolvendo o acontecido. Assim, se vocês não se lembram muito bem dos detalhes, ou mesmo nunca ouviram falar do episódio real do atentado à bomba ocorrido em Atlanta, algumas semanas antes dos Jogos Olímpicos de 1996, melhor! O que o filme de Clint Eastwood - o melhor desde Gran Torino (2008) - faz, é retornar para aqueles dias, nos apresentando ao Richard Jewell do título. Vivido por Paul Walter Hauser, Jewell é um segurança que mora com a mãe, sonha em ser um respeitado policial e tem em seu histórico alguns episódios de abuso de autoridade, que depõem contra ele. Quando o atentado à bomba em Atlanta acontece, ele se torna o principal suspeito do caso - não apenas por ter sido a pessoa à identificar o artefato, mas por ser uma figura excêntrica, o tipo de incel inseguro que, querendo chamar a atenção para si, poderia ter perpetrado o ato.

E por mais que a história de Richard Jewell seja bem conhecida nos Estados Unidos, o que torna o filme uma experiência divertida e (quase) perturbadora é o mergulho na vida do protagonista - e aqui, cabem todos os elogios à Hauser pela ambiguidade de sua caracterização. Jewell teria toda a pinta de ser, de fato, o autor do atentado. Inseguro, antissocial, morando com a mãe aos trinta e muitos anos. Tendo dificuldade em se manter em empregos e ainda sofrendo bullying por ser acima do peso, ele teria o perfil ideal para a raiva do mundo, para o ódio e para a misoginia. Mas será mesmo? Seu único amigo e ex-patrão (Sam Rockwell) se torna também seu advogado, o que rende ótimas cenas, como aquela em que este pergunta à Jewell se ele já participou da reuniões da Ku Klux Klan, se é integrante de milícias, de grupos de ódio, se é conservador religioso ou de outros coletivos que costumam formar o combo padrão do anarquista moderno.


Os modos pouco expansivos do sujeito, a voz tímida, o amor incondicional à mãe (Kathy Bates, em papel que lhe deu nominação ao Oscar - um exagero, diga-se), a falta de trato na hora de enquadrar adolescentes em pátios de colégios, nos deixa em dúvidas o tempo todo sobre Jewell. Há horas, como no instante em que ele mostra ao advogado a sua coleção de armas (que seriam apenas para a caça), que a gente pensa "é ele". Em outros, como no esforço quase ingênuo de auxiliar o FBI nas investigações, ele parece se afastar do estereótipo "bandido silencioso pronto pra iniciar uma chacina". Aliás, o FBI tem na figura de Tom Shaw (Jon Hamm, no piloto automático) seu principal investigador. E, confesso, em alguns momentos me perturbou a forma quase amadora e até persistente, com que os detetives encararam o caso - como se Jewell precisasse à todo custo, ser o "bode expiatório" deles, um terrorista que precisava ser liquidado e que estaria pronto à fazer mais maldades.

Mas tão mal retratados quanto os investigadores, esteve a jornalista vivida por Olivia Wilde que, se existiu na vida real, só nos resta lamentar, especialmente pelo mal que faz a classe. Na ânsia por uma história bombástica, não apenas forçou a barra para colocar a história de Richard Jewell na capa de um jornal de Atlanta, como ainda o fez em troca de sexo. E, aqui, a meu ver, ocorre muitas vezes o problema de alguns filmes de Eastwood: o maniqueísmo. E é por isso que saudei tanto a ambiguidade bem-vinda nesta obra, que retira um pouco aquele clima de "o mau ser mau e o bom ser bom o tempo todo". No mais os filmes do diretor costumam ser fáceis de apreciar, mesmo diante da complexidade de certos temas. Há bastante linearidade, um linguajar claro e objetivo e às vezes até alguma redundância (aos 90 anos Clint já sabe que nem sempre são preciso palavras quando a imagem seria mais do que suficiente, mas prefere usar igual o recurso pra que nada se perca). Conduzido com senso de humor e otimismo, o filme ainda presta uma justa homenagem aos heróis involuntários. Algo que nem o marasmo do terço final da obra e seu diálogo ostensivo com o público mais conservador, chega a comprometer.

Nota: 8,0

segunda-feira, 11 de maio de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Excêntrica Família de Antônia (Holanda)

De: Marleen Gorris. Com Willeke Van Ammelroy, Els Dottermans, Jan Decleir e Flip Filz. Drama, Holanda / Bélgica / Ingleterra, 1995, 102 minutos.

Vida e morte. Riso e choro. Luz e trevas. Sonho e realidade. Abstração e materialidade. Um filme como A Excêntrica Família de Antônia (Antonia), de Marleen Gorris, nos permite uma série de inferências sobre essas palavras tão antagônicas quanto presentes em nossas existências. Mas não de forma filosófica ou excessivamente profunda e, sim, com uma fluidez vibrante, percebida nos gestos das personagens, nos modos de cada um, nos comportamentos - a começar pelos da própria Antônia (Willeke Van Ammelroy) do título. Trata-se de uma obra de grande sensibilidade, com um lirismo poético que salta aos olhos não apenas nas paisagens magníficas - algumas quase se assemelham a amplos paineis impressionistas, sempre com um comovente bucolismo "acinzentado" -, mas também em sua narrativa que dá tempo ao tempo, que descortina os acontecimentos sem pressa, conforme nos afeiçoamos das figuras que acompanhamos.

É uma história que atravessa três gerações de mulheres empoderadas - aliás, que vão se reconhecendo cada vez mais assim, conforme o tempo passa -, e que ocorre toda ela em uma pequena comunidade rural da Holanda, com todo seu provincianismo e costumes conservadores. Antônia está retornando para o local para o funeral de sua avó, 20 anos após ter saído dali. Ela vem com sua jovem filha Danielle (Els Dottermans) e já em algumas das primeiras sequências a gente percebe que a protagonista não vai se alinhar aos modos de vida ultrapassados daquele povoado. Como exemplo, quando o fazendeiro Bas (Jan Decleir) se interessa romanticamente por Antônia, ele argumenta que os filhos dele "necessitam de uma mãe" ouvindo como resposta "só que eu não necessito dos seus filhos". A resposta NA LATA pode parecer grosseira num primeiro momento, mas ela serve para estabelecer um tipo e paradigma que subverte as convenções e os padrões estabelecidos naquele local: o de que as coisas não são lógicas e que não acontecerão apenas porque tem que acontecer.


Isso não quer dizer que Antônia vá descartar qualquer tipo de relação com Bas - que se mostra, conforme o filme avança, em um sujeito amável e confiável. Antônia apenas não quer que alguém (nesse caso, um homem), determine o que ela irá fazer da vida dela dali pra frente. Ela é uma viúva e argumenta que também não precisa de um marido. Mas é uma jovem mulher, bonita, que tem desejos, anseios e objetivos, que serão demonstrados aos poucos, conforme o descortinar da película. Essa passagem de Antônia com Bas a meu ver resume uma das marcas desse belo filme que viria a ganhar o Oscar na categoria Língua Estrangeira na edição de 1996: a da capacidade de discutir os seus "assuntos", sem transformar a obra em um panfleto escancarado na cara de todo mundo. Distante daquela comunidade que parece ter um papel bem definido para as mulheres (a cena inicial, em uma espécie de bar, dá conta disso), Antônia pode ter alterado sua percepção do mundo. E, as poucos, começa a espalhar essas ideias pelo povoado, sempre com gentileza, com um sorriso no rosto, com empatia.

Não é por acaso que as pessoas que se aproximam dela são aquelas que convivem à margem da sociedade. E aquelas que passam a questionar a sua existência no lugar, ainda que indiretamente, representam instituições consolidadas como a Igreja e o Estado (encarnado num militar fascistoide que não hesita em atacar os habitantes e a estuprar mulheres e crianças, inclusive a própria irmã). Quando Danielle resolve que quer ser mãe, mas sem a existência de um marido, Antônia apoiará a filha. Assim como encarará com naturalidade as descobertas da mesma sobre sua sexualidade. Já a neta se apresentará como um prodígio intelectual e, como lidar com toda essa ânsia por conhecimento, em um mundo que nem sempre possibilita às mulheres este posto? São questões que vão surgindo na tela, que se mostram como desafios de temporalidade, em um universo em que a beleza e a graça se coloca como um contraponto à boçalidade e à rudeza. Mas não haverá limites na generosidade de Antônia, que fará de tudo para acolher aqueles que chegarem até ela.


Nesse sentido dá pra compreender de onde Jean Pierre Jeunet deve ter tirado uma de suas maiores inspirações para o clássico moderno O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001). Ainda que o filme não seja tão colorido como o francês há um forte flerte com o caráter onírico, quase de sonho (especialmente na forma como Danielle percebe alguns acontecimentos) e também um otimismo latente - representado de forma máxima pela sequência em que quase todo o elenco surge transando ao mesmo tempo (afinal de contas, sexo é estado de êxtase, não?). A excentricidade de suas figuras - um filósofo pessimista, a neta superdotada, uma mulher que uiva em noite de lua cheia, a idosa caduca, o padre que questiona os dogmas, a amiga que ama ter filhos -, também forma um coletivo de figuras que nos remetes às personagens de Jeunet, eventualmente surpreendidas pelo absurdo, mas sempre persistindo diante das adversidades. Filme que rende na mesa de debates pela amplitude e pela ambiguidade de seus temas, A Excêntrica Família de Antônia está completando 25 anos de seu lançamento agora em setembro. E segue como um dos mais inesquecíveis representantes do cinema holandês. Vale conhecer. Ou revisitar.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Podcast do Picanha Cultural #2 - Discos Nacionais que Valem Ser Ouvidos

O terceiro episódio do nosso Podcast do Picanha Cultural está no ar e desse vez o papo é, exclusivamente, música. O Henrique, o Bernardo e eu resolvemos indicar alguns discos nacionais que merecem a atenção e que estão em nossos corações pelos mais variados motivos. Tem álbum político (Violins), regionalista (Marcelo Jeneci), emo/romântico (Fresno), roqueiro (Selvagens à Procura de Lei), sendo a nossa intenção fugir um pouquinho do óbvio nesse debate. Não se tratam dos álbuns de nossas vidas e sim da indicação de alguns registros que podem ter passado despercebido por quem gosta de boa música! E, esperamos que vocês estejam gostando do nosso Podcast. Comentem, compartilhem, deixem o like, enfim, "conversem" com a gente. Pra nós, tem sido demais! Detalhe: a partir de hoje o novo episódio vai ao ar sempre às sexta-feiras. E quem quiser curtir as músicas citadas nesse episódio pode procurar a playlist Picanha Cultural - Brasil Essencial no Spotify. Bom programa!


quinta-feira, 7 de maio de 2020

Grandes Cenas do Cinema - Em Busca do Ouro (The Gold Rush)

Cena: a famosa sequência da "dança dos pãezinhos".


Em Busca do Ouro (The Gold Rush) é mais um filme de Charles Chaplin que conta com uma verdadeira coleção de sequências inesquecíveis. Da cena inicial em que milhares de figurantes caminham junto a uma montanha gelada - um triunfo para um filme gravado a quase 100 anos atrás -, até o divertido ato final em que o famoso vagabundo e seu amigo Big Jim (Mack Swaim) lutam para sobreviver em um casebre que foi levado à beira de um precipício após uma tempestade, não são poucos os instantes em que drama e humor se misturam para ficar eternizados na mente dos cinéfilos. E talvez a cena que melhor resuma esse espírito seja aquela em que Chaplin faz um número improvisado na noite de Ano Novo, utilizando apenas pães e garfos. Nela, é feita uma espécie de "dança" com os pães, com o objetivo de impressionar um grupo de convidadas - entre elas o interesse romântico, vivido pela atriz Georgia Hale.

E acho que o que mais comove nessa sequência é o fato de toda ela não passar de fruto da imaginação do nosso adorável protagonista. Apaixonado por Georgia - na realidade uma garota de programa que trabalha em um bordel local e que ele conhece meio que por acaso -, Chaplin convida ela e suas amigas para um pomposo jantar na virada de ano. Na cena, ele se empenha em preparar uma mesa bonita ao mesmo tempo em que se ocupa em escaldar um belo frango assado que está no forno (é um tempo de "bonança improvisada", após ele fazer amizade com um sujeito amável, que mora perto das redondezas e que lhe deixa como guardião da casa, enquanto sai para o garimpo). As meninas, claro, não aparecem: o que iriam querer, afinal, com um pobretão que não tem nem um sapato para usar? Pior, debocham dele. Riem da cara dele. Mas em sua imaginação tudo sai a contento: e a dança dos pãezinhos integra esse cenário melancólico e divertido em igual medida.


É claro que, mais tarde, tudo dará certo: Big Jim encontrará uma boa quantidade de ouro e, por conta da lealdade do amigo, dividirá as riquezas com o seu amigo. E Georgia encontrará a sua redenção em mais um momento inesquecível quando, no último segundo do filme, defende o vagabundo de uma perseguição policial em um luxuoso barco (ela acredita que ele pudesse estar ali, clandestinamente). É o final feliz que todos desejávamos, após a dura trajetória do personagem durante o filme Trajetória essa que inclui mais uma sequência até hoje lembrada: aquela em que Chaplin cozinha o próprio calçado para servir a ele e a Big Jim, logo no começo do filme. Uma tempestade os isola, os deixando com fome, frio, solitários e ainda tendo de lidar com o vilão Black Larsen (Tom Murray). A cena do sapato, diz a história, é baseada em eventos reais ocorridos na Corrida do Ouro verdadeira (no final do Século XIX em Sierra Nevada). Sobre as botas consumidas por Big Jim e Chaplin? Eram feitas de alcaçuz por um confeiteiro especialmente contratado para a tarefa.

E foi essa capacidade de rir da própria desgraça e do absurdo das condições de pobreza da época, que tornam Em Busca do Ouro tão atemporal. A gente ri e se comove como em outras comédias de nossos tempos. Era o filme preferido do próprio Chaplin, que sempre desejou ser lembrado por ele, sendo a obra em que ele mais investiu em efeitos especiais (como na cena em que ele se "transforma" em um frango gigante) e em grandes locações (como as já citadas no começo desse texto). Não é por acaso que a obra até hoje, aparece em qualquer lista de melhores de todos os tempos, caso da relação dos 100 melhores filmes de todos os tempos do American Film Institute (AFI) - em 58º lugar na lista atualizada. Em livros como o dos  1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer a película também aparece em lugar de destaque. E nos corações de quem aprecia o bom cinema, a obra-prima está eternizada, seja pela sua envolvente narrativa (dinâmica, leve, ágil), seja por inesquecíveis sequências, como a da "dança dos pãezinhos".

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Cine Baú - A Doce Vida (La Dolce Vita)

De: Federico Fellini. Com Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Yvonne Furneaux e Anouk Aimée. Comédia / Drama, França / Italia, 1960, 174 minutos.

Poucas vezes o hedonismo, a futilidade, o vazio existencial e até mesmo a estupidez da aristocracia foi tão bem retratada como no clássico A Doce Vida (La Dolce Vita), de Federico Fellini. Trata-se de um filme com uma lógica toda particular de funcionamento e que tem na figura do jornalista Marcello Rubini (Marcello Mastroiani), o seu fio condutor. Surgindo em cena como uma espécie de alter ego do próprio diretor - Fellini foi jornalista no começo da carreira -, Rubini trafega de festa em festa, de episódio em episódio, chafurdando em meio ao histrionismo da burguesia, sempre pronta a celebrar por qualquer motivo, mas incapaz de refletir a respeito do absurdo de suas realidades ocas. Sim, a vida é boa, fervilhante, engraçada e abundante para quem pode consumir o que quiser, do bom e do melhor - de comida a bebida, passando por atividades culturais e eventos movimentados. Para quem tem suas vidas vigiadas por colunistas sociais, ávidos por qualquer movimento que possa agitar as páginas dos periódicos. Um universo profano, iconoclasta cheio de prazeres fúteis e de pessoas comuns aos pés de famosos e de celebridades.

Mas Rubini não parece muito preocupado com isso. Tanto que, por causa de sua profissão, mantém um certo distanciamento da frustrada namorada Emma (Yvonne Furneaux) - que parece existir apenas para atender os caprichos do amado, em um relacionamento claramente fadado a fracasso. São vidas muito diferentes, universos muito diferentes. Visto do ponto de vista do "copo cheio", A Doce Vida também pode funcionar como uma celebração à vida, seus pequenos (e grandes prazeres), uma taça de vinho, uma obra de arte, os encontros aleatórios. É o que acontece, por exemplo, em uma das primeiras sequências, quando Rubini sai do bordel que leva o nome de Chá Chá - uma espelunca em que espetáculos de vaudeville se alternam como exibições eróticas - com sua amiga Maddalena (Anouk Aimée). O destino é incerto. No caminho, param junto a um prostíbulo decadente e recolhem uma prostituta. Dão algumas voltas pela cidade, retornam, tomam café. Marcello e Maddalena se beijam. O dia amanhece. Uma coisa se emenda na outra.


O cinéfilo meio desavisado - ou talvez não iniciado em Fellini -, talvez ache meio estranho esse formato em que nada e tudo acontece ao mesmo tempo, em três horas de duração de película. Assim que ocorre um corte, que o dia muda, as personagens são completamente outras. Pessoas que nunca "vimos" antes, que vão surgindo na vida de Rubini, como espectros de uma mesma existência, que vai no limite entre a vida glamourosa e a marginal. Rubini é, também, uma personagem daquele universo: uma figura da noite que trafega por locais luxuosos, enquanto mora num apartamentinho mixuruca (ele é jornalista, não nos esqueçamos). Sonha com uma vida que, muito provavelmente, só existe nas linhas que resultam do dedilhado em sua máquina de escrever. Encontros casuais, idas e vindas que pouco significam em sua vida. Mas que, ao mesmo tempo, preenchem sua existência de significado, numa espécie de paradoxo difícil de definir.

Como exemplo disso temos a clássica cena em que Anita Ekberg aparece. Quando surge - uma atriz sueca de sucesso, voluptuosa e ao mesmo tempo elegante -, é recebida com pizza já no aeroporto. Mais tarde, durante uma excêntrica festa com muita cor e música, a atriz (seu nome e Sylvia), se indisporá com se marido e fugirá do local. Naquela madrugada, ao lado de Rubini procurarão leite para fornecer a um gato de rua (!), se banharão na Fontana Di Trevi, flertarão, sem nunca concretizar nada. Marcello apanhará do marido de Sylvia já no alvorecer, quando ambos estão retornando da noitada maluca. Sylvia sumirá. No outro dia, outros eventos, outras festas, outros acontecimentos. Outras pessoas. Sempre perseguidas pelos repórteres fotográficos - ávidos por imagens chocantes, impactantes. Aliás, história boa, o termo paparazzi surgiu nesse filme - era o nome do braço direito de Rubini (personagem vivido por Walter Santesso).


Para quem já está ambientado a linguagem felliniana, o filme definitivamente é um prato cheio. Intercalando imagens oníricas, quase fantasiosas (como as que envolvem as apresentações de teatro ao mesmo cheias de energia e de sofisticação), com outras mais trágicas (não é apenas o desolamento que abate as classes mais altas, há também a morte), a película também se "vende" como uma forte crítica ao fanatismo religioso e ao conservadorismo das "famílias de bem", havendo pelo menos duas sequências em que o assunto aparece, ainda que indiretamente. Nesse sentido, A Doce Vida se apresenta quase um divisor de águas: fica para trás o cinema levemente mais social de obras como A Estrada da Vida (1954) e Noites de Cabíria (1957) para investir em obras mais fantasiosas, cheias de devaneios circenses e de personagens característicos, que parecem saídos de delirantes sonhos palpáveis - casos de Amarcord (1973) e E La Nave Va (1983). Claro, a crítica social não esmoreceu. Ela só mudou de ângulo com o arrefecimento do neorrealismo italiano. Esnobado pelo Oscar, o filme alcançou a consagração máxima com a Palma de Ouro No Festival de Cannes, sendo figurinha fácil em qualquer lista de melhores da história. Com 60 anos de idade, A Doce Vida envelheceu bem. E segue sendo cinema de primeira.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Podcast do Picanha Cultural #1 - Filmes e Documentários Para Entender o Brasil

Excepcionalmente nesta terça-feira está no ar o nosso segundo episódio do Podcast Picanha Cultural, com o tema Filmes e Documentários Para Entender o Brasil Atual. Motivados pelos recentes eventos políticos ocorridos em nosso País, em especial a demissão do ex-ministro Sérgio Moro, resolvemos fazer um pequeno recorte da produção cinematográfica nacional que, de alguma forma, estabelece diálogo com todo esse amontoado de chorume que tem sido a tônica da politica do País. De Tropa de Elite à Bacurau, passando por Democracia em Vertigem, Aquarius e Divino Amor, a produção audiovisual do Brasil tem sido pródiga em tentar desvendar todo o absurdo que está por trás do comportamento de nossos governantes. A vida imita a arte afinal. Ou será o contrário? Nesse segundo episódio, Bernardo Siqueira, Henrique Oliveira e este que vos fala se empenham em (tentar) compreender essas relações. Vale clicar e conferir! Ah, os próximos episódios passam, a partir de agora, a ir ao ar sempre às sextas-feiras, iniciando já nesta semana. E não esqueçam de nos dar um "curtir" na sua plataforma de streaming preferida.


Novidades no Now/VOD - Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Onward)

De: Dan Scanlon. Com Chris Pratt, Tom Holland, Octavia Spencer e Julia Louis-Dreyfuss. Comédia / Aventura / Fantasia, EUA, 2020, 102 minutos.

Vamos combinar que a Pixar, mesmo quando faz um filme que não seja assim tão bom, vale a pena assistir. E ao acompanhar Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Onward), fiquei com a impressão que a animação vai agradar muito mais aos pequenos do que aos adultos - especialmente as crianças que estão familiarizadas com o universo dos RPGs ou dos jogos de tabuleiro e videogame no estilo Dungeons & Dragons ou Shadow Of Colossus. A trama nos apresenta a um mundo encantado cheio de elfos, ogros, trolls e fadas. Mas é um mundo que está mudando. Com os avanços tecnológicos, já não se faz mais necessário recorrer a algum tipo de magia para a obtenção de luz, por exemplo. Ou do fogo. Basta acionar um disjuntor. Ligar uma lâmpada. Acender a boca de um fogão. Voilá. Os seres mágicos que povoam esse universo seguem existindo, claro, mas agora em um contexto em que a "mágica" em si está aposentada: relegada aos livros de histórias ou às memórias dos anciãos, ressurgem apenas entre figuras nostálgicas, que têm alguma dificuldade em lidar com as transformações do mundo.

Uma dessas figuras é Barley (Chris Pratt). Destemido e expansivo é o completo oposto de seu irmão Ian (Tom Holland) - um sujeito introspectivo, que tem tanta dificuldade em se expressar (e se enturmar), que sequer consegue reunir alguns amigos para celebrar o seu aniversário. Mas o que ele queria MESMO era poder ter alguma chance de reencontrar, sabe-se lá como, o seu pai, que morreu quando ele ainda era um bebê. É claro que não teríamos um filme se essa ideia quase absurda não fosse colocada, de alguma forma, em prática. E ela começa a tomar forma no dia do aniversário de Ian, quando este recebe um misterioso presente de seu pai, entregue por sua mãe e que estava reservado para esta ocasião: um tipo de artefato mágico (algo como um cetro) que possibilitará realizar uma série de feitiços. O maior deles: conseguir "reconstruir" a imagem de seu pai durante um único dia. Só que a bruxaria não dá muito certo e a única coisa que reaparece são as pernas. Sim, parece meio estranho, mas para obter o restante do corpo, eles terão que, claro, encarar uma grande aventura em busca de uma pedra preciosa que possibilitará a consolidação da magia.


Trata-se, no fim das contas, da já tradicional "jornada da descoberta", que envolverá esses dois irmãos que rumam para o desconhecido, sem ter certeza se conseguirão alcançar esse objetivo. Aliás, um objetivo que, sim, é importante, mas que servirá muito mais para que Ian e Barley se aproximem, ainda que de uma forma meio "torta", o que ressignificará a relação de ambos, fazendo surgir uma amizade entre irmãos que parecia andar meio adormecida. Aliás, acontece com muitos irmãos (comigo também é assim): ser o completo oposto um do outro. Em aparência, em personalidade, em comportamento, em expectativas quanto a vida. Ser meio distantes, também - apesar de morar na mesma cidade. Mas isso não quer dizer que não haja vínculos. Que não se tenha uma memória juntos. Que não tenha havido a transformação de um pelo outro enquanto se crescia, se brincava e se brigava (claro). É um filme sobre a busca de um "pai" que não existe mais? Talvez. Mas será uma obra sobre dois irmãos que, ao final, se reconectam.

E, essa jornada, claro, não vai ser menos do que divertida. No meio do caminho eles encontram a excêntrica Manticore (Otavia Spencer), que lhes pretende ajudar, passam por tenebrosos desafios - um dos mais legais (e tensos) aquele que envolve ultrapassar um desfiladeiro -, e descobrem, metaforicamente, que tudo aquilo que procuravam podia estar no mesmo lugar. Há boas piadas (o fato de o cetro ter "farpas" por que não foi lixado é ótima e o que dizer da macabra taverna que se transformou em uma casa para festas infantis?) e, claro, instantes de pura comoção, como já é uma tradição nas obras do estúdio (a sequência da reavaliação de uma lista de coisas a fazer com o pai é uma jóia). "Você tem que se arriscar na vida para ter uma aventura", lembra algum dos personagens em certa altura da projeção. Parece um clichezinho meio batido, mas nas películas da Pixar a gente aguenta até os mais gritantes chavões. Por que o que vale, no fim das contas, são as lições. E estas certamente ficam, assim que os créditos sobem.

Nota: 8,0

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Pérolas da Netflix - Milagre na Cela 7 (7. Koğuştaki Mucize)

De: Mehmet Ada Öztekin. Com Aras Bulut Iynemli, Hayal Köseoglu, Celine Toyon, Deniz Baysal e Ilker Aksum. Drama, Turquia, 2019, 132 minutos.

Vamos combinar uma coisa: se você está ansioso, deprimido ou fragilizado pela quarentena, não assista Milagre na Cela 7 (7. Koğuştaki Mucize). Ao menos não agora. Esse filme pode esperar um pouco, porque o troço é PESADO. Você vai chorar, considerar o mundo injusto, vai querer abraçar as pessoas. E você não pode fazer nada disso, né, estamos no meio de uma pandemia. Mistura de Uma Lição de Amor (2002), com A Espera de Um Milagre (1999), a trama nos apresenta a um homem com deficiência intelectual - seu nome é Memo (Aras Bulut Iynemli) -, que vive com filha Ova (Hayal Köseoglu) e com a avó Fatma (Celine Toyon) em um vilarejo da Turquia militarizada dos anos 90. Apesar de toda a dificuldade - Memo é adulto, se comporta como se fosse uma criança de sete anos -, tem um relacionamento bastante amoroso com a filha, auxiliando ainda a avó em serviços como o pastoreio de ovelhas e a comercialização de maçãs do amor em eventos locais.

Em um certo dia uma fatalidade envolvendo a filha de um militar fará com Memo seja acusado, injustamente, de ter assassinado a menina. Incapaz de compreender a natureza daquilo que lhe está sendo imposto, o homem será enviado pra uma prisão: apanhará muito. A toda a hora. Dolorosamente. E será condenado à forca. É especialmente no começo do filme que ocorrem algumas das sequências mais comoventes, quando Memo apanha da polícia, dos carcereiros, do regime e dos outros presos por ter estampada na sua testa a inscrição "assassino de criança". Mas os dias passarão e os demais presos perceberão, aos poucos, que Memo é um pouco "diferente" dos criminosos comuns. Ele não parece ser uma pessoa inequivocamente maldosa: ao contrário, aprecia a natureza, se empolga com as coisas simples - como uma música tocada -, tem sensibilidade e se mostra disposto a fazer amizades. Não é um psicopata. E essa sensação se amplia quando surge a possibilidade de haver um álibi: uma testemunha que pode ter presenciado o que realmente aconteceu no fatídico dia.


O filme tem feito sucesso na Netflix porque ele tem uma estratégia bem conduzida de nos levar permanentemente às lágrimas. Memo se comporta como se fosse o "Tonho da Lua". E o carisma de Iynemli faz com que, em cinco minutos, já estejamos afeiçoados por ele, por suas expressões faciais, por seu sorriso ingênuo, por seus trejeitos. É uma baita interpretação, que não seria suficiente se não houvesse química com Ova. E há: a gente deseja com todas as forças que eles consigam ficar juntos ao final. Que a justiça seja feita de alguma forma. Que o milagre se concretize. Hábil em apresentar os militares como figuras ambíguas (eles não são maldosos o tempo todo, sempre haverá aqueles que podem estar dispostos a quebrar a corrente de injustiças sociais, o que rompe com o maniqueísmo), o filme ainda tem méritos por humanizar os presos (a cena em que cada detento conta qual é a sua "doença" para Ova é uma joia) e por apresentar uma professora como contraponto ao belicismo permanente dos militares. Aliás, algo que não surpreende, já que o conhecimento, a educação e o estudo são, muitas vezes, a corrente oposta da beligerância e da violência.

Sem vergonha alguma de utilizar a trilha sonora - que sobe nos momentos mais tensos ou emocionantes -, ou mesmo a câmera lenta como recursos técnicos que levam a narrativa a manipular as nossas emoções, o filme ainda estabelece, em suas frestas, um importante debate sobre a pena de morte e sobre o absurdo do linchamento imediato que resulta em julgamentos injustos. E, melhor: o filme ainda faz uma ponte entre o seu início e o seu final, com uma grande revelação que envolve a redenção de certo personagem. É tudo redondinho pra fazer você sair fungando da sessão, por mais que a obra se estenda um pouco mais do que o necessário - um ou outro corte em algumas cenas, poderia ter reduzido a película em uma meia hora. Mas nada que comprometa a história, que é cheia de sequências belas e melancólicas, como aquela em que Memo não entende o significado da expressão "amor à primeira vista" - tipo de abstração inalcançável para crianças de sete anos. Nessa hora, já estamos apaixonados pela narrativa, pelos personagens, pela história. À primeira vista.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Podcast do Picanha Cultural - Episódio Piloto

A gente não sabe nem por onde começar a expressar a nossa alegria por apresentar este novo projeto pra vocês, mas vamos lá: a partir de hoje passamos a ter, semanalmente, um Podcast do Picanha Cultural. Viabilizado pelos nossos parceiros da Sonar Podcasts - e aqui queremos deixar um grande abraço ao nosso "mecenas" Bernardo Siqueira, que nos possibilita concretizar essa ideia -, cada episódio nos possibilitará fazer aquilo que mais gostamos: falar de música e cinema numa boa, sugerindo filmes, discos e qualquer outra coisa que nos der na telha, sempre com a responsabilidade de entregar um conteúdo de qualidade para quem nos ouve. Neste primeiro episódio a gente fez dois Top 5 destacando filmes e discos lançados neste primeiro quadrimestre e que valem ser conferidos. O papo com o Henrique Oliveira e com o próprio Bernardo rendeu, como vocês perceberão. Já há mais dois episódios gravados que, em breve, serão disponibilizados - um sobre filmes nacionais que dizem muito sobre os tempos que vivemos e outro com dicas de filmes e séries disponíveis nos serviços de streaming, para curtir durante a quarentena. Bom, a gente torce para que vocês curtam, ouçam, divulguem, opinem. A ideia é fazer sempre um bate-papo leve, que possa também ser útil! Bora clicar?