segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Novidades em Streaming - Instinto Materno (Mother's Instinct)

De: Benoît Delhomme. Com Anne Hathaway, Jessica Chastain e Anders Danielsen Lie. Drama / Suspense, EUA, 2024, 94 minutos.

Duas vizinhas (e amigas) traumatizadas por um evento trágico que modifica suas vidas para sempre. De quebra, essas duas mulheres são vividas por Anne Hathaway e Jessica Chastain. Em uma obra que se passa em uma pequena cidade dos Estados Unidos nos anos 60 - com suas cercas alvas, jardins impecáveis e rotinas perfeitas, só possíveis dentro do mais sublime sonho americano. Alguns setores da crítica se apressaram em apontar Instinto Materno (Mother's Instinct) como uma mistura de Alfred Hitchcock com Douglas Sirk. Sim, vamos combinar que são muitos os atrativos da estreia do diretor de fotografia Benoît Delhomme na direção - especialmente pra quem é apaixonado por esse tipo de narrativa que nos joga para esse espaço idílico e suburbano, onde por baixo da aparência impecável das roupas, dos cabelos e dos sapatos há uma série de segredos prontos para serem revelados.

Só que devo admitir que o sentimento na conclusão foi um tanto ambíguo. Particularmente eu tendo a gostar muito desse tipo de trama doméstica que soa exagerada, quase caricatural em alguns momentos - desde que mantido o equilíbrio entre suspense e drama. Ao mesmo tempo, gosto das alegorias óbvias que mais parecem acenos para os estudantes de cinema iniciantes, que se deleitarão, por exemplo, com o fato de as roupas de Céline (Hathaway) ganharem tons mais escuros após a morte do filho - uma forma de tornar o luto ainda mais evidente do que já é. Só que em igual medida, na reta final, pareceu tudo tão conveniente e sem maiores surpresas, que fiquei meio frustrado. Ao cabo, não há muito espaço para as ambiguidades. Para as incertezas. As coisas são apenas como são e as mulheres ali envolvidas estarão fadadas a uma disputa particular que, de quebra, arremessa para longe qualquer traço de união feminina.


 

Aliás, nesse sentido, fosse esse um filme lançado algumas décadas atrás e talvez a história funcionasse melhor. Mas quando acompanhamos Alice (Chastain) em mais da metade do tempo da projeção achando que Céline está enlouquecendo, ou simplesmente querendo puni-la de alguma forma pelo ocorrido com o filho, a coisa toda passa a ser apenas uma paranoia monotemática sobre o vazio que se espalha para o entorno. Há, por exemplo, os dois maridos e mal sabemos sobre eles para além do fato de serem dois sujeitos que passam o dia inteiro fora a trabalho, sendo os provedores abnegados, em uma tentativa de sobrevivência meio às escondidas. Claro que o marido de Céline, Damian (Josh Charles), também sofre, mas não vai muito além dos cigarros fumados em sequência e do desconforto na presença dos demais (e lá pelas tantas eu poderia jurar que haveria uma grande reviravolta envolvendo ele, mas não).

E há ainda Theo (Eamon O'Connell), o filho de Alice e Simon (Anders Danielsen Lie), que passa a ter papel de destaque depois do primeiro terço, quando ocorre a trágica morte de Max (Baylen D. Bielitz) - que cai da sacada do terceiro andar da casa de alvenaria, quando tentava recolocar uma casa para passarinhos em uma árvore (aliás, nada mais vida no subúrbio do que isso). Será Theo que se sentirá impelido a uma curiosa aproximação de Céline, que o atrai com presentes, conversas amistosas e um carinho desmedido que vai no limite entre a compensação pela maternidade interrompida e o desejo íntimo de algum tipo de concretização do mal. Há boas cenas entre todos, como aquela em que Theo se desespera ao ver o seu coelho de estimação dentro do caixão de Max, durante o funeral; ou mesmo a da festa surpresa ainda no começo (algo que escancara a homenagem à Hitchcock). Nesse sentido, no geral a mesquinharia da vida do bairro - aquela existência ordinária entre o agradável e o instável - tem seu apelo. Ainda que sempre fique a impressão de quase.

Nota: 6,5


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Curta Um Curta - Bestia

Teria dito Hannah Arendt em seu clássico livro A Banalidade do Mal que "em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime". Esse é o tipo de conceito que foi reconfigurado recentemente - especialmente a partir da ascensão da extrema direita no País (e no mundo) - e que faz uma crítica não ao mal premeditado e sim a mediocridade do "não pensar". O que tornaria possível, por exemplo, a existência de figuras como Adolf Eichmann que talvez nem fosse alguém perverso ou doentio, muito menos um antissemita raivoso. Mas que ainda assim, durante o nazismo, era um cumpridor de ordens. Um burocrata do Estado que trabalhava no setor de transportes de judeus para os campos de concentração. 


 

E o que tudo isso tem a ver com o premiadíssimo curta-metragem em animação em stop motion Bestia, que foi incluído no catálogo da Mubi? Bom, aqui temos mais uma representante desse mal que não está simbolizado por generais perversos com suas fardas, botas e armamentos. A ação se passa no Chile de Pinochet, onde acompanhamos uma mulher rechonchuda, de modos sisudos, que ocupa seus dias com refeições silenciosas e a plena atenção ao seu cãozinho de estimação. As feições apáticas e delicadas da protagonista - representada por uma boneca de porcelana -, servem para reforçar, paradoxalmente, o caráter sombrio de sua personalidade. Especialmente na hora de cometer crimes hediondos durante a ditadura militar chilena. Inspirada em uma personagem real - Ingrid Olderock, que ficaria conhecida como "mulher dos cachorros" -, esse é um thriller psicológico tenso, macabro, que revela o absurdo dos sistemas autoritários.


Pitaquinho Musical - Magdalena Bay (Imaginal Disk)

Celestial, mágico, hipnótico, sofisticado. E, acima de tudo, essencialmente pop. Resumir o tipo de som feito pela dupla californiana Magdalena Bay em seu segundo álbum de estúdio, Imaginal Disk, talvez não seja uma tarefa tão simples. Os adjetivos podem ser diversos e o caso é que eles nunca conseguirão abarcar o todo. Sim, há todo um conceito por trás do registro e que envolve terapias alternativas e a busca por uma espécie de bem-estar (ou de cura) que parece percorrer cada curva do projeto. E justamente por isso, talvez esse seja daqueles discos para ouvir repetidamente para, a cada novo encontro, perceber detalhes diferentes. Que retiram as músicas do óbvio meio pasteurizado que reina na música sintética dos dias de hoje. É como se o conjunto fosse ao mesmo tempo estranho e experimental, mas acessível e comercial - e experimente não ficar com Killing Time grudada na mente após umas duas audições.

 

 

A canção, por sinal, é aquele tipo que se repete a todo o momento no trabalho - e que vai no limite entre o retrô setentista enfumaçado e o brilho polido de uma eletrônica mais maximalista. O que não apenas confere personalidade, mas também expande os limites sonoros. Em geral é como se pequenas joias como Death & Romance, Image e Love Is Everywhere amaciassem os nossos ouvidos - característica reforçada pelos vocais açucarados da vocalista Mica Tenenbaum. Claro que nem sempre os temas - muitas vezes ricas divagações sobre passagem do tempo, expectativas em relação à fama e, claro, medo de ter o coração partido. Já Watching TV, com seus sintetizadores enérgicos, é bastante metafórica em relação ao poder alienante da tecnologia e que muitas vezes faz com que nos afastemos do real em favor do imaginário (Assistir muita TV / Vai te apodrecer por dentro). Vale cada segundo.

Nota: 9,5

 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Cinema - Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance)

De: Woody Allen. Com Lou de Laâge, Niels Schneider, Melvil Poupaud e Valérie Lemercier. Comédia / Policial, EUA / França, 2023, 96 minutos.

Toda vez que o Woody Allen lança um novo filme, eu passo mais ou menos pelo mesmo sentimento: vou a sala de cinema inicialmente desconfiado, para concluir a sessão satisfatoriamente surpreendido. Sim, a gente já sabe exatamente o que vai acontecer nas obras do diretor - que costuma unir personagens carismáticos (e neuróticos, em alguma medida), que precisam lidar com coincidências da vida e paixões frustradas, enquanto ruminam divagações filosóficas, poéticas e cheias de referências. Tudo embalado por uma trilha sonora simples mas sofisticada (em muitos casos são standards de jazz) e tendo como cenário alguma cidade cosmopolita, bela e contemporânea. É assim, salvo raras exceções, desde sempre. E não seria diferente agora, que o realizador se aproxima dos 90 anos de idade. Seguindo em ótima forma, como atesta o recém chegado Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance), que está em cartaz nas salas do País.

Assim como nos recentes - e ótimos - Um Dia de Chuva em Nova York (2018) e O Festival do Amor (2020), aqui a trama é centrada nas incertezas e complicações do amor. E de como eventos aleatórios podem representar uma mudança de rota - daquelas que nos faz repensar escolhas ou decisões tomadas anteriormente. O cenário é a França e é pelas ruas de Paris que o escritor Alain (Niels Schneider) caminha descompromissadamente, até esbarrar acidentalmente em Fanny (Lou de Laâge), uma funcionária de uma casa de leilões. Os dois, antigos conhecidos da época da escola, não se viam há muitos anos. O que não impede o encantamento - que é maior da parte de Alain, que não hesitará em reafirmar a antiga paixonite juvenil que tinha por Fanny, a "jovem nerd de blusa de gola alta". Conversa vai, conversa vem, eles combinarão um café. Ainda que ela seja casada com um certo Jean (Melvil Poupaud).

 

 

Jean, aliás, é daqueles que gosta de paparicar a esposa com presentes caros - joias, de preferência. Praticamente exigindo que ela use os adereços como forma de lhe agradar. "Não gosto de me sentir uma esposa trofeu", lembra ela em certa altura, antes de irem para uma luxuosa festa. Aliás, esse ambiente de pompa, de elegância - com pessoas ricas, meio esnobes e totalmente ocupadas com a aparência alheia - é aquele que Jean, como um homem de negócios que tem operações no mercado financeiro, frequenta. Para Fanny, tudo pode ser apenas tedioso nesse universo - e dá pra entender o fastio da moça, que é sim colocada em uma espécie de pedestal. Mas ao mesmo tempo tem de lidar com as pequenas crises de ciúme do marido, um adulto infantilizado, que gosta de brincar de ferrorama. E, nesse cenário, é óbvio que os encontros às escondidas com Alain, com quem ela se sente muito à vontade, vão despertar suspeitas. Que poderão gerar consequências trágicas.

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Hábil na construção da narrativa, Allen vai deixando pequenas pistas que nos farão perceber o comportamento problemático de Jean - um caçador de cervos ocasional, que parece ter ligação com o suspeito desaparecimento de seu sócio, em episódio ocorrido anos atrás. "Dizem que ele despencou na selva, terá sido suicídio?", sussurra alguém em um dos jantares. Deixando de lado os vinhos importados e a volúpia das casas de campo, Fanny parece reencontrar em Alain a vida simples que há décadas deixou para trás. Ambos já casaram e se separaram anteriormente e hoje sentem prazer ao compartilhar um vinho de sagu debaixo da escadaria do apartamento modesto do escritor, que ele alugou pra concluir um novo livro. "A vida é uma grande piada sinistra", afirma Jean diante da esposa consternada, que tem de moldar o seu comportamento após o sumiço do amante, como forma de não levantar suspeitas. Ao cabo essa é uma experiência engenhosa e imprevisível, que mescla referências à George Simenon, Mallarmé e O Grande Gatsby de forma inteligente e nem tão verborrágica, como de praxe na filmografia de Allen. Vale conferir.

Nota: 7,5


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Cinema - Pisque Duas Vezes (Blink Twice)

De: Zoë Kravitz. Com Naomi Ackie, Channing Tatum, Alia Shawkat, Adria Arjona e Geena Davis. Comédia / Suspense, EUA / México, 2024, 102 minutos.

[ATENÇÃO ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Enquanto assistia ao ótimo Pisque Duas Vezes (Blink Twice) não conseguia parar de pensar naquela anedota (nem tão anedota assim) sobre o sujeito que conversa com uma feminista e, na tentativa de demovê-la de suas ideias, ele pergunta: "mas se todos os homens desaparecerem da Terra, quem defenderá as mulheres se elas estiverem em perigo?". Ao que ela responde: "defender do quê?". Sim, a gente sabe que não é todo o homem que é um abusador em potencial, mas, vá lá, é sempre um homem. E o que o filme de estreia de Zoë Kravitz parece tentar fazer, é lembrar meio que o óbvio: mulheres, tenham cuidado redobrado com desconhecidos, com ofertas fáceis, com supostas paixões avassaladoras que ocorrem no mundo dos sonhos. Em tempos de avanço da extrema direita, das mesas redondas com redpills e incels revoltados e de alterações nos papeis de gênero na sociedade, a misoginia nunca esteve tão em alta. E ela vende. Sendo preciso estar atenta.

Evidentemente que uma obra como essa deverá deixar acabrunhada aquela parcela da população que convive com uma masculinidade frágil crônica - e que, em muitos casos, envolve os machões raiz incorrigíveis. Afinal de contas, pra apreciar um grupo de mulheres reagindo a um amontoado de burgueses estupradores - com direito a muito sangue, agressões (inclusive com objetos fálicos) e mortes -, é preciso estabelecer como parâmetro o absurdo da violência a que elas estavam sendo submetidas antes. Ao cabo, essa é uma produção sobre sororidade. Sobre a importância delas se unirem para disputar espaços, manter conquistas, lutar por equanimidade. Lutar no sentido de guerra mesmo. Claro que a narrativa toda se desenrola em uma ilha isolada, mas dá pra encarar esse microcosmo, no limite da alegoria, como uma metáfora para a sociedade. Afinal, trinta e cinco mulheres foram agredidas por minuto, somente no Brasil, em 2022, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E nem foi preciso ir pra uma ilha pra isso.


 

Para além da bandeira escancaradamente levantada, a obra de Kravitz utiliza seus símbolos, cores e até figurinos, de forma muito criativa - o que mantém o interesse constante, mesmo com o espectador já imaginando o horror que se desencadeará (o trailer entrega demais). Em tempos em que o termo em inglês red flag virou um sinônimo para a denúncia de comportamentos abusivos, agressivos e tóxicos, Pisque Duas Vezes parece ser todo ele uma espécie de red flag ambulante, já que as cores vermelhas (e que, nesse caso particular, reforçam o indicativo de perigo) saltam os olhos, aparecendo em absolutamente todas as partes da ilha - na fachada da casa, nos móveis, nas sacolas com presentes, nas flores e em outros adereços. O que contrasta, aliás, com as roupas branquíssimas e virginais das jovens que chegam à ilha, convidadas pelo magnata da área de tecnologia Slater King (Channing Tatum) - estando entre elas as protagonistas Frida (Naomi Ackie) e Jess (Alia Shawkat). Por outro lado, a ambientação onírica, de sonho, leva ao limite a instabilidade gerada pelo consumo de drogas, de álcool e outros, que faz com que a realidade fique meio difusa, contribuindo para o senso de estranhamento.

Frida - e, vamos combinar que esse nome não deve ser coincidência - é uma artista de unhas (aquelas manicures dedicadas aos desenhos mais elaborados), que também é uma garçonete de meio período. Ainda no começo do filme, ela justamente está trabalhando em uma festa dada por King, que está em uma espécie de campanha para limpar a sua imagem perante a opinião pública - o que envolve a aquisição da tal ilha privada para onde ela irá, após o convite do CEO. Outras mulheres integram esse grupo, sendo elas a estrela de reality show Sarah (Adria Arjona), a desenvolvedora de aplicativos Camilla (Liz Caribel) e a advogada Heather (Trew Mullen) - além de Jess. Só que ao chegarem lá e terem seus telefone confiscados, Frida ficará desconfiada. Especialmente após eventos estranhos iniciarem - por mais paradoxalmente paparicadas que as mulheres sejam por lá, com presentes, perfumes, roupas caras, drinques à vontade e outros. E por mais sério que seja o assunto central, a opção por tratá-lo com leveza, convertendo a produção em um slasher excentricamente divertido que mescla Corra! (2017) com Bela Vingança (2020), certamente torna a experiência mais palatável para um público mais amplo. E a aderência, nesses casos, também fortalece o papel político da obra. 

Nota: 8,0


Tesouros Cinéfilos - Cold Mountain

De: Anthony Minghella. Com Nicole Kidman, Renée Zellweger, Jude Law e Brendan Gleeson. Drama / Guerra / Romance, EUA / Reino Unido / Itália / Romênia, 2003, 154 minutos.

Talvez um dos maiores melodramas desse início de século. Com tudo aquilo que caracteriza o estilo - do amor exagerado e impossível nos tempos de guerra, passando pela intensidade das emoções, até chegar a polarização moral que contrapõe a razão e a emoção. Assim podemos resumir a experiência com o épico Cold Mountain - filme do diretor Anthony Minghella que, recentemente, completou vinte anos de seu lançamento, sendo incluído no catálogo da Netflix. Baseada no best seller do escritor Charles Frazier, a obra nos joga para o Sul dos Estados Unidos, em meio à Guerra Civil Americana, que ocorreu entre 1861 e 1865. Na trama acompanhamos a paixão tórrida e instantânea vivida pelo carpinteiro W.P. Inman (Jude Law) e pela patricinha intelectual Ada Monroe (Nicole Kidman), que sai de Charleston para cuidar do seu pai (Donald Sutherland) no pequeno povoado que dá nome ao projeto.

Quando chega ao local, Ada é recebida com toda a pompa, com seu figurino elegante e modos refinados - o que atrai a atenção dos homens do entorno. Só que a guerra está próxima de eclodir e, em meio a olhares e pequenos gestos afetuosos entre Ada e Inman, ocorre o primeiro e meio desajeitado beijo. Justamente no dia em que os homens são convocados para a batalha. Como em um bom melodrama, fica a promessa: Ada vai esperar o retorno de Inman. Com idas e vindas no tempo, a violência do conflito nos é apresentada de forma bastante gráfica - com o protagonista escapando por pouco da morte, na conhecida Batalha de Cratera. Entre cartas não respondidas - que viram dramáticas narrações em off de Ada -, e a perspectiva de quase perder a vida (um dos tiros pega de raspão no pescoço), Inman resolve tomar uma drástica decisão: desertar. O que fará com que ele seja perseguido não apenas pela União, mas pelos seus pares confederados.

 

 

Quem não tá muito familiarizado com a Guerra da Secessão pode ficar meio perdido na lógica do conflito - ainda que a principal mensagem pareça ser a de que a guerra é absurda, qualquer que seja a circunstância. E é interessante notar como a narrativa não converte a parte norte dos Estados Unidos no mocinho óbvio, dada a selvageria perpetrada pela União, em meio ao massacre. Ao lutar do lado dos confederados - que eram favoráveis a continuidade da escravidão nos voluptuosos campos de algodão e que, não por acaso, nos dias atuais servem como bandeira pra extrema direita trumpista -, Minghella confere complexidade à Inman. Da celebração da possibilidade de poder ir à guerra, à espiral de barbárie com que ele se depara, só há uma conclusão: a de querer voltar para casa, para os abraços da amada que ficou, e que está algumas centenas de quilômetros distante de onde ele está.

Hábil, o diretor entretém o espectador ao criar interessantes subtramas que dão substância ao projeto e que envolvem a chegada de Ruby (Renéé Zellweger, em papel que lhe daria o Oscar de Atriz Coadjuvante) - uma rústica agricultora, acostumada às lidas do campo - à propriedade de Ada (que parece meio abandonada desde a trágica morte de seu pai). Ruby foi enviada por um casal vizinho, os simpáticos Esco (James Gammon) e Sally Swanger (Kathy Baker), que estão preocupados com a saúde de Ada, que parece a cada dia mais isolada, paranoica e magra. Já Inman, em seu longo trajeto, se depara com o reverendo Veasey (o sempre ótimo e saudoso Philip Seymour Hoffman), um pregador mulherengo e com um código moral questionável, que foi expulso da paróquia após engravidar uma escrava. Todos esses encontros e desencontros - há muitos outros pelo caminho -, dão brilho à narrativa, que permanece sólida durante os mais de 150 minutos de projeção.


 

Como é de se esperar em obras do gênero, os cenários são majestosos, os figurinos são cheios de elementos, a trilha sonora é edificante e o desenho de produção como um todo é bem construído - com um detalhamento riquíssimo. A ponto de, por exemplo e para além da cenografia, um emaranhado de moscas surgir enquanto Inman convalesce, na enfermaria improvisada no campo de guerra. Complexo, violento, histórico, romântico, esse é aquele tipo de projeto voluptuoso, cheio de grandes astros - com direito até mesmo a uma participação especialíssima de Jack White (do White Stripes) como um músico andarilho e de um novinho Cillian Murphy como um soldado da União que, talvez, tenha um pinguinho de humanidade -, e que pouco a gente vê, nos dias de hoje. Nesse ponto, Anthony Minghella, que já havia brilhado antes em O Paciente Inglês (1997), faz muita falta. Afinal de contas, ele sabia fazer esses épicos como poucos.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Novidades em Streaming - Testamento (Testament)

De: Denys Arcand. Com Rémy Girard, Sophie Lorain e Marie-Mai Bouchard. Comédia / Drama, Canadá, 2023, 115 minutos.

Se tem uma coisa que caracteriza alguns setores da esquerda mais festiva - aquela que esquece os problemas reais da sociedade, para focar em debates inócuos a respeito do uso do pronome neutro ou sobre a necessidade de cancelar aleatoriamente alguém do próprio campo no Twitter (que descanse em paz essa rede) - é a capacidade de se arrogar uma superioridade moral inabalável. A gente vê muito esse comportamento entre nossos pares progressistas - e, em muitos casos, somos nós mesmos a agir assim. Nunca erramos e os problemas do mundo estão sempre nos outros - os atrasados, com sua militância de sofá e pouca atitude. Talvez seja o excesso de coisas a se pensar. Especialmente para os brancos ricos e bem nascidos, que frequentam boas faculdades, enquanto procedem com análises antropológicas sobre questões que nem lhes dizem muito respeito. É preciso expiar a culpa. Exigir da sociedade a reparação histórica que, sim, é importante. Se a pauta for discutida de forma inteligente, claro.

No ótimo O Testamento (Testament), do sempre interessante Denys Arcand - de As Invasões Bárbaras (2003) -, a rotina de uma casa de repouso para idosos de Quebec, no Canadá, é abalada com o surgimento de um grupo de jovens manifestantes, que realizam um protesto em frente ao local contra aquilo que eles consideram uma afronta. No caso, a existência de uma pintura - um mural grande, que ocupa uma ampla parede -, que seria ofensiva às Primeiras Nações (que é como são conhecidos os povos indígenas que habitavam o Norte do Canadá, antes da chegada dos colonizadores franceses). A obra de arte, feita por um artista plástico fictício de nome Jean Josephe D'Auvigny, mostra um grupo de exploradores europeus com armas e crucifixos na mão (uma ironia bastante atual no que diz respeito à simbiose entre guerra e religião), se aproximando de um povo minoritário seminu, indefeso, com suas lanças e outros objetos típicos. "Essas são imagens de um genocídio anunciado!", brada uma das ativistas, enquanto outra filma com o seu celular, certamente com o objetivo de gerar alguns cliques em suas redes sociais.

 

 

De canto de olho, o protagonista Jean-Michel (Rémy Girard), um dos moradores do asilo, assiste tudo com resignação. E estupefação. "Os jovens de hoje estão muito sérios", comenta em tom jocoso com Suzanne (Sophie Lorain), a diretora do estabelecimento, que fica com os cabelos em pé diante da persistência dos manifestantes. Que, com seus cocares, tambores e outros adereços (que contrastam com suas peles e olhos claros e modos urbanos) afirmam que só sairão dali quando a pintura for retirada do local. O caso é que nesse sindicato das minúsculas coisas, o episódio é levado para o congresso do Canadá. Gerando discussões que serão ampliadas, com a presença da mídia sensacionalista, disposta a qualquer tipo de polêmica pela audiência (sim, não parece ser exclusividade do Brasil). Já Jean-Michel, um arquivista ocasional e escritor de nicho aposentado de 73 anos, solteiro, sem filhos e já olhando mais pro fim do que pro começo, tenta seguir sua existência em meio àquele pequeno caos.

Apostando no humor e na ironia como forma de fortalecer os seus argumentos, Arcand - ele também um senhor de 83 anos -, adota a crítica à impaciência e ao belicismo dos tempos atuais, com suas regras e códigos definitivos enfiados goela abaixo.  Em uma das primeiras cenas, o homem vai a uma premiação literária anual da cidade apenas para ser apenas humilhado lateralmente por um grupo de feministas radicais, escritoras de livros com títulos autoexplicativos como Vaginas em Chamas. Em outro instante é a hipocrisia da busca pela vida saudável a qualquer preço - com seus exercícios físicos intermináveis e alimentação orgânica e vegana -, que vai para o centro do seu deboche. E, ainda assim, é preciso que se diga que o diretor não apela à mera nostalgia como recurso, ou faz com que seus personagens ajam como tiozões reacionários que têm saudades dos supostos tempos mais simples ou menos politicamente corretos. A análise do conjunto parece ser mais profunda. Como uma terapia em que todos estamos no divã.

 

 

Sim, aquelas pessoas mais velhas têm memórias, lembranças e uma falta de identificação com as coisas atuais - suas músicas, tecnologias, tatuagens ou redes sociais. "Estão dizendo para eu colocar um banheiro de gênero neutro aqui, mas isso vai comprometer todo o meu orçamento", comenta Suzanne em certa altura e é meio difícil não concordar com ela - que não parece ser uma extremista de direita contrária as pautas identitárias. O mundo real é mais complexo do que imaginamos. E não será o apagamento de uma pintura feita em mil oitocentos e alguma coisa que resolverá as falhas do capitalismo, a intolerância religiosa, a misoginia, o racismo, o aquecimento global, as guerras, as pandemias e tudo o mais. Talvez seja preciso centrar força no que interessa de fato. Pra que saiamos do tribunal das pequenas coisas - e que talvez sejam relevantes somente na rede social do Elon Musk. Depois a gente chama quem quer que seja de todes. Com gosto, diga-se.

Nota: 9,0

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Pitaquinho Musical - Rafael Castro (Vaidosos Demais)

Vamos combinar que a espera por um novo disco do paulista Rafael Castro valeu a pena. São nove anos desde Um Chope e Um Sundae (2015) que, a despeito de ser um trabalho divertido  - aliás, marca registrada do artista -, parece produto de uma época que não existe mais. Um período mais ingênuo talvez. Em que assuntos políticos, sociais e religiosos mal e mal apareciam - e é difícil ignorar esses temas hoje em dia. Com Vaidosos Demais, o músico retorna em boa forma, apostando em letras ácidas, provocativas e em uma mescla de estilos que vai no limite entre o brega o o indie. A abertura, com a engraçadíssima Bar e Lanches, já dá o tom, ao dar aquela avacalhada na cultura hipster branquela de classe média, com seus hábitos gourmetizados e afetações de todo o tipo, mas que pagam vale de bacanas frequentando locais "raiz" (Um pico bom pra ser descoladex / E postar que é bom demais se misturar).

 

 

Na sequência, O Algoritmo Te Escolheu mira seu alvo no ambiente digital e na eterna busca dos influenciadores de nicho por holofotes - com suas fotos hipersexualizadas, postagens higienizadas e publis insípidas -, em um universo de vale-tudo pela fama, pelo clique e pelo like a qualquer preço. Tema que, de forma complementar, também é discutido na urgente Fiscal de Foda. A hipocrisia da religião (Nunca em Nome da Satã), os equívocos do progressismo cirandeiro (A Esquerda Errou Nesse Sentido) e até a impertinência repetitiva do telemarketing (Pessoal da Claro), nada escapa da caneta zombeteira do artista, que constroi uma experiência caótica e diversa, que funciona como uma coleção heterogênea de pequenos instantes sonoros sobre a agitada vida contemporânea. Gravado em apenas 15 dias, o trabalho até perde um pouco de força na sua segunda metade, justamente quando Castro resolve falar um pouco mais sério. Mas nada que comprometa.

Nota: 8,5


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Picanha.doc - Moonage Daydream

De: Brett Morgen. Com David Bowie, Brian Eno e Iman. Documentário, Alemenha / EUA, 2022, 135 minutos.

É preciso ser justo com Brett Morgen: não é tarefa fácil condensar as diversas facetas de um astro da música tão complexo e tão cheio de camadas como David Bowie, em um documentário de pouco mais de duas horas. É provável que o músico - morto em 2016 apenas dois dias depois de lançar seu último álbum, Blackstar - mereça muito mais do que um filme, por tudo o que ele representa. Talvez uma série em dez episódios, com histórias a respeito do processo criativo, curiosidades de bastidores e até eventuais polêmicas. Só que Moonage Daydream, que finalmente foi disponibilizado na Amazon Prime, parece quase uma instalação televisiva, que presta homenagem ao ícone. E, sinceramente, isso não chega a ser um problema, já que essa se torna muito mais uma experiência sensorial, psicodélica e poética - reforçada pelas imagens evocativas lindamente editadas, que se mesclam as canções envolventes de Bowie - do que uma história documental.

Novamente, o negócio aqui é o sentimento. É perceber como a figura andrógina, iconoclasta e que confrontava o conservadorismo galopante que marcaria certos períodos de sua Inglaterra natal, foi simbólica para toda uma geração. Um homem que usava maquiagem e salto alto? Sem problemas. Um sujeito que se passava por um alterego inspirado em um alienígena vindo do espaço? Tudo certo. Ser bissexual quando este e outros temas tabus sequer eram discutidos? De boas. Ateísmo em tempos de efervescência religiosa? Por quê não. Todos esses elementos que formariam a personalidade de Bowie, convertendo-o em uma figura tão mítica e misteriosa quanto sexy e calorosa - como se de fato fosse alguém vindo de outra dimensão, de uma realidade paralela -, transformam a obra em uma ode biográfica que celebra o apelo estético, a moda, as influências e até a música desse mod que marcaria o glam rock. A gente sabe que o The Killers, o Arcade Fire, o Placebo e mais uma centena de outros artistas não existiriam se não fosse a influência de Bowie. Em todos os aspectos. 


 

Abrindo com uma apresentação em que o cantor interpreta a provocativa Hallo Spaceboys (Eu quero ser livre / Você não quer ser livre? / Você gosta de meninos ou meninas? / É confuso hoje em dia), a obra já estabelece o padrão que se encontrará na produção, que mistura imagens de arquivos, com pequenos trechos de entrevistas e curiosidades, com a narração em off feita muitas vezes pelo próprio Bowie. Tudo envolto em uma ambientação sofisticada de glitter, em uma névoa de filme distópico, com as músicas servindo como uma espécie de material de apoio que ancora aquilo que acompanhamos. Por exemplo, quando o artista fala de sua própria estranheza - ou de como a mídia e o público o percebiam -, trechos de Alladin Sane explodem (e eu confesso que só percebi a ambiguidade da frase "a lad insane" ao ver o documentário. Tudo como forma de reforçar a excentricidade e a loucura que eram parte intrínseca de sua personalidade.

Trafegando pelas várias fases da carreira, o documentário pode também ser uma boa porta de entrada para quem não está muito familiarizado com o músico, já que ele passa por cada etapa - e por cada persona -, de forma a fornecer apenas uma pincelada. A gostinho que fica é o de querer mais - especialmente no terço final, que praticamente ignora as últimas décadas de sua produção - e os momentos finais, de enfrentamento ao câncer (o que talvez seja proposital, na intenção de não apagar essa aura mítica). No mais, está tudo lá: as mudanças de cabelo, de figurino, de maquiagem. De gênero musical - ainda que o glam rock, o art pop e até a new wave, sempre tenham sido a matéria-prima. A ascensão e a leve queda - antes do retorno triunfal e popíssimo no começo dos anos 80 (com o ótimo Let's Dance). As jornadas pela Alemanha e pelo Japão e as consequentes influências. As quebras de tabus - sexuais, religiosos, políticos. A capacidade de trafegar por tudo e de falar sobre tudo - de budismo a Nietzsche, de artes plásticas à musicais da Broadway. A satisfação de se estar vivo. Em mundo sombrio e alegre em igual medida. Transitório. Impermanente. Como uma mosca no leite que absorve tudo. Assim foi Bowie. E o caso é que talvez nunca tenha havido na música, alguém como ele.


Cinema - O Bastardo (Bastarden)

De: Nikolaj Arcel. Com Mads Mikkelsen, Amanda Collin e Melina Hagberg. Drama / Faroeste, Dinamarca / Alemanha / Noruega / Suécia, 2023, 127 minutos.

Existe um paralelo quase óbvio em O Bastardo (Bastarden) e que envolve a urze - uma espécie de gramínea espontânea bastante rústica, que é capaz de florescer em terrenos pobres em nutrientes - e o protagonista do filme, o capitão Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), um oficial dinamarquês aposentado, que pretende construir uma propriedade na península da Jutlândia, se estabelecendo como agricultor e obtendo, da Corte Real do País, os direitos sobre a terra. Só que para conseguir cultivar qualquer coisa naquele terreno - situado em um ambiente ermo, isolado -, Kahlen vai precisar uma boa dose de boa persistência, já que é sabido por todos que nada cresce no urzal (que domina aquele terreno arenoso e provavelmente ácido). Um sujeito solitário, que passou parte de sua vida defendendo o exército alemão, e que agora tenta construir uma vida em uma área improdutiva - uma simbiose que só será possível com muita persistência (e olhe lá).

O ano é 1755 e esta, em alguma medida, é uma história de origem da Dinamarca, com regras políticas mal engendradas e códigos morais inexistentes. Em geral o que vale é a prática da força - com os proprietários das maiores posses se sentindo no direito de dominar tudo e todos do entorno (apenas a burguesia sendo a burguesia). E é por isso que a maior dificuldade de Kahlen nem será tanto com o terreno em si - já que depois de algumas escavações ele encontra água (e um solo mais propício) -, mas com os interesses. Que aqui são simbolizados pela existência de um certo Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg), um jovem e arrogante proprietário de terras da vizinhança, que busca o monopólio dos negócios. Aliás, negócios que ainda são embrionários para o protagonista. E como desgraça pouca é bobagem, Kahlen ainda contrata, meio que as escondidas, o casal Johannes (Morten Hee Andersen) e Ann Barbara (Amanda Collin), que justamente havia fugido da propriedade de Schinkel, por conta dos maus tratos.

 

 

Em linhas gerais, o diretor Nikolaj Arcel, do ótimo O Amante da Rainha (2012), conduz a narrativa entre o afeto (pela terra, pela agricultura) e a violência, sem muita pressa e apostando na força visual das pequenas dinâmicas, e em uma espécie de preparação permanente para os grandes eventos. Os diálogos são econômicos. As imagens aéreas são abrangentes, destacando a vastidão do cenário inóspito (que funciona como um catalisador para um senso meio palpável de isolamento e que, em alguma medida, nos faz admirar esses homens do passado, em seu esforço civilizatório em meio ao nada). Kahlen, ao cabo, deseja apenas produzir alimentos. E ter um título de nobre. O que ele poderá conseguir com o apoio de um grupo de ciganos foragidos, que vivem à margem da sociedade, e que aceitarão trabalhar para ele - estando entre eles a pequena Anmai Mus (Melina Hagberg) que surge em cena pela primeira vez numa tentativa de golpe ao protagonista.

Evidentemente que uma experiência do tipo também funciona pelo carisma das figuras que acompanhamos - e é sempre interessante ver como Mikkelsen encarna tão bem esses sujeitos meio rudes, que casam bem com filmes de época (talvez pelas suas feições rigorosas, nada delicadas, que tornam o seu rosto e a sua expressão inequivocamente pesadas). Aqui, a sua entrega é comovente, num equilíbrio entre a resiliência e o temor, já que a violência parece estar sempre à espreita - e quando ela chega, como no momento em que Johannes é covardemente torturado durante a festa da colheita (sim, em uma festa), ela é assombrosamente cruel. Com poucas chances de um final feliz - até mesmo porque em filmes realistas do gênero ficam evidentes as leis antiquadas, os preconceitos e a misoginia reinantes - há pouco espaço para a esperança. E até mesmo a inexistência do conceito de infância é respeitado (o que também merece aplausos). Ainda assim, obra é concluída com um calorzinho que sucede a geada. E que nos fará lembrar que a agricultura será mais farta, a colheita será bem sucedida, onde houver espaço para o afeto. Não é pouco.

Nota: 9,0


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Pitaquinho Musical - Fontaines D.C. (Romance)

Quem imaginou que o Fontaines D.C. pudesse distensionar o seu som denso, enevoado - talvez tornando-o mais acessível ou comercial em seu quarto registro, Romance -, errou o pulo. Seguindo no terreno do pós-punk lúgubre, que mescla guitarras cheias de fuzz com as linhas de baixo palpitantes, o coletivo de Dublin, na Irlanda, não mudou uma vírgula do seu estilo - para alegria dos fãs. O que mudou, desde a estreia com Dogrel (2019), foi o mundo, que parece ainda mais acelerado, tecnológico, turbulento e distópico, em um cenário de extremismo político, guerras, pandemias e tentativas individuais de sobrevivência em meio a toda a tensão. Contexto que, para quem tem aderência a um rock mais direto e reflexivo, que mescla divagações políticas e sociais amplas com o intimismo das pequenas coisas, se torna um prato cheio. O que é reforçado, não por acaso, pela voz de barítono às vezes seca, noutras pastosa, do vocalista Grian Chatten.


 

Nesse sentido, é preciso que se diga que esse não é um trabalho de fácil absorção, já que as ideias surgem espalhadas em canções nunca óbvias, de poucos refrãos e que por vezes parecem saídas de um filme alternativo de baixo orçamento. Mesmo singles como Starburster emergem em uma mistura quase aflitiva de hip hop com shoegaze, com a letra sobre síndrome do pânico e comportamento autodestrutivo, tendo como "efeito" adicional a respiração sôfrega do vocalista. Outros instantes como a noventista Here's the Thing não fariam feio em um disco tardio de grunge, que refletisse a realidade em meio ao caos. No material de divulgação, Chatten destacou que o álbum funciona como uma distopia futurista inspirada no clássico japonês Akira e em filmes como A Grande Beleza (2013) de Paolo Sorrentino. O que explica esse clima meio de submundo urbano e de glamour desbotado de canções como In the Modern World, Favourite e Death Kink. Essencial.

Nota: 9,0


quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Cine Baú - Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia)

De: Sam Packinpah. Com Warren Oates, Isela Vega e Emilio Fernández. Drama / Ação, México / EUA, 1974, 112 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Em uma das sequências mais desalentadoras de Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia), o protagonista Bennie (Warren Oates, num modo meio Seu Madruga das ideias) está prestes a concluir sua missão. Depois de espalhar uma trilha de sangue, desencadear uma sequência de assassinatos, ver sua amada ser estuprada e morta e, ainda conviver, nos instantes finais, com uma cabeça de um morto embrulhada numa sacola de supermercado e envolta por uma nuvem de moscas, o sujeito finalmente chega à grande propriedade de El Jefe (Emilio Fernández) - uma espécie de chefão mexicano com cara de poucos amigos. A cena que poderia ser jubilosa, uma vez que Bennie moveu mundos e fundos em busca de seu ambicioso objetivo, guarda uma dolorosa e pesada lição de moral: de que adianta uma maleta com um milhão de dólares se a sensação é de vazio? "Não tenho nada o que celebrar", comentaria Bennie, diante do dinheiro entregue por El Jefe.

Conhecido como Poeta da Violência - por seu estilo sem concessões, especialmente na hora de retratar homens rudes, misóginos e com um código moral questionável -, Sam Packinpah era um verdadeiro mestre na hora de apresentar pessoas comuns mergulhando em uma espiral de decadência. Foi assim no clássico Meu Ódio Será Tua Herança (1969), em que a mitologia dos filmes de cauboi é encapsulada em uma fábula tão violenta e sanguinolenta, quanto lírica e contemplativa. Em Tragam-me a Cabeça... o expediente se repete, já que quando Bennie é apresentado ao público no começo do filme, ele é apenas um pianista levemente debochado, que toca Guantanamera e outros clássicos do cancioneiro local, em um bordel da Cidade do México. Ao menos até o instante em que os homens enviados por El Jefe chegam ao local perguntando por Alfredo Garcia, que deve ser capturado vivo ou morto. O importante é a cabeça -  que vale a bagatela de US$ 10 mil. O que faz com que Bennie saia dessa simplicidade e comece a mexer os pauzinhos.




Um de seus primeiros contatos será com a prostituta Elita (Isela Vega) que não apenas conhece Alfredo, como teve um caso com ele pouco antes de sua morte - em um trágico acidente, após bater seu carro em um rochedo. O fato de o homem já estar morto talvez facilite a missão? Talvez. É nesse momento que Bennie e Elita - que também já viveram (e seguem vivendo) uma tórrida paixão - embarcam em uma espécie de road movie improvisado pelos cenários áridos do País da América Central, tendo no horizonte o sonho de mudar de vida. Mas é claro que eles não estão sozinhos - já que a notícia da recompensa se espalha -, o que fará com que eles confrontem não apenas um grupo de capangas que também deseja se apossar da relíquia, mas também uma dupla de motoqueiros, mais interessados em abusar de Elita do que qualquer outra coisa. Como de praxe na filmografia de Peckinpah, todos os homens são retratados como selvagens tardios, um tanto embrutecidos, excessivamente machistas, que não hesitarão em rasgar roupas de mulheres, esbofeteá-las ou humilhá-las de todas as formas. Algo que sempre foi problemático para o público e para a crítica - e não é à toa que o filme foi muito mal recebido na época do seu lançamento (para somente depois ter status de cult).

E vamos combinar que esse status de cult pode também ter a ver com o niilismo da coisa toda - reforçado pelo fato de não haver herois nessa narrativa (algo muito diferente do maniqueísmo que reinava nos faroestes do meio do século passado). Peckinpah não parece interessado em redimir ninguém, por mais poéticos que possam ser os instantes envolvendo a viagem de Bennie e Elita, com bonitas paisagens, violão sendo tocado e promessas de um futuro. "O mais importante é estarmos juntos, casarmos em uma Igreja" comenta uma Elita meio resignada, em certa altura, basicamente suplicando para que eles façam meia volta e abram mão da ideia estapafúrdia de obter uma cabeça de um homem morto, para que ganhem algum dinheiro. Não para Bennie. Para ele, a cabeça é a alegoria para a boa sorte - e não pode haver nada mais metafórico do que um homem que tenta "matar" um morto que, ao cabo, já está sepultado. É parte da lição: morrer por dentro, pelas entranhas, é o que esse protagonista desprezível não imaginava. No fim das contas ele não se difere tanto assim do próprio El Jefe, que espanca a própria filha, como forma de puni-la pela gravidez. A cena inicial, na lagoa, com patos, pôr do sol e um clima bucólico, logo dará lugar a uma espécie de antessala da violência em um ocaso do faroeste - em que homens ambiciosos se matam primeiro, para perguntar depois. É poesia. Mas também danação.

 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Cinema - Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness)

De: Yorgos Lanthimos. Com Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley e Hong Chau. Drama / Comédia, EUA / Reino Unido / Irlanda, 2024, 164 minutos.

Devo confessar a vocês o fato de ser bastante tolerante quando o assunto são os filmes esquisitões. Tenho paciência para as excentricidades. E para diretores que utilizam suas obras para provocar as mais variadas sensações - inclusive a repulsa ou o nojo. Ainda assim, tenho uma espécie de balizador: a produção precisa fazer um mínimo de sentido dentro daquilo a que se propõe. Senão a sensação de vazio será meio inevitável. E admito que, ao chegar ao final da terceira história de Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness) - especialmente em uma sequência em que a personagem de Emma Stone dança freneticamente (e inexplicavelmente) diante de seu carro, que ela costuma pilotar em altíssima velocidade -, tive a impressão de estar sendo feito de bobo. Naquela altura do campeonato já se iam mais de duas horas de projeção do novo projeto do grego Yorgos Lanthimos - do ótimo e ainda recente Pobres Criaturas (2023) - e foi o momento em que me deu esse "ruim".

Em geral eu gosto da filmografia do diretor. Dente Canino (2009) já foi devidamente recomendado aqui. Assim como A Favorita (2018). Da mesma forma gosto demais de obras como O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), que parecem devidamente empenhadas em criticar a hipocrisia da classe média e as falhas morais da sociedade americana (e grega), sempre dispostas a parecer eticamente infalíveis. Como disse no primeiro parágrafo, por baixo das extravagâncias e dos personagens caricatos, exóticos, sempre pareceu haver algum significado. E, não, a arte não necessariamente deve prescindir de algum tipo de intenção para funcionar. Ou para ser considerada satisfatória. Muito pelo contrário, ela deve ser aberta. Possibilitando ao espectador interpretá-la a partir de sua bagagem. Daquilo que lhe forma. Só que o problema foi não sentir nada com esse filme. Nada. Nem o suposto nojo. Nem ranço. Acho que eu estava apenas indiferente. E, evidentemente, o problema bem poderia ser eu.


 

Na já citada parte final desse trinca de histórias aleatórias que não possuem muito em comum que não seja a presença de um único personagem, Emily (Emma Stone) e Andrew (Jesse Plemons) são membros de um tipo de culto good vibes, naquele estilo que mistura sexualidade difusa com crentismo freestyle, e que costuma ocupar o dia a dia das famílias brancas e mais abastadas. Nessa história de axilas e suores sendo lambidos (sim) como parte de um processo de purificação há uma busca desenfreada por uma jovem mística capaz de fazer os mortos ressuscitarem. E, bom, as premissas podem soar interessantes, mas o todo se torna apenas banal. E chato. Emily dança animadamente porque encontrou a tal jovem. Que reanima um homem para a vida, após mostrar suas habilidades com um cachorro. Isso depois desta sofrer um estupro. E ser expulsa do culto por não ser mais alguém "pura". A religião e os dogmas sendo utilizados como subterfúgio para o controle de corpos? Talvez seja isso. Sei lá, só queria que acabasse o suplício.

E, admito que a coisa toda não começa tão mal, até mesmo porque a primeira história - seu título é A Morte de RMF - é excelente. Nela, um sujeito chamado Robert Fletcher (também o Jesse Plemons) é o funcionário exemplar de um escritório, que atende basicamente a todos os pedidos feitos pelo seu chefe dominador (Willem Dafoe). Ocorre que não demora para que percebamos que o homem controla obsessivamente toda a vida de seu empregado: com quem ele se relaciona, se vai ou não ter filhos, qual a bebida que toma, como age. Como um adulto infantilizado, Robert obedece, garantindo seu cargo. Ao menos até ocorrer uma solicitação excêntrica do patrão: a de que ele atropele um outro homem! O abuso de poder nas corporações e as críticas ao capitalismo tardio parecem estar no cerne dessa história, que descamba para o humor negro inesperado quando as coisas saem do controle. É disparadamente a melhor das três fábulas. 

 

 

E há ainda a história do meio, sobre um policial (Plemons) que está de luto por causa do desaparecimento de sua esposa Liz (Stone) em um acidente em alto mar - ela é uma bióloga marinha -, que é surpreendido pelo retorno de sua amada, meio que do nada. Só que o problema é que Daniel tem a impressão de que aquela não é Liz, por mais semelhante a ela que seja - especialmente pelo seu comportamento oposto ao padrão a que ele estava acostumado. Sim, é uma narrativa de paranoia que descamba para a violência policial e para o cinema de corpo - e, obviamente que Lanthimos não ia conseguir concluir um filme sem dar uma de David Cronenberg das ideias (especialmente no instante que envolve um fígado extraído do corpo de Liz). Sério, pessoal, lá pelas tantas eu cansei. Cansei do aleatório, do comportamento ilógico dos personagens, da misantropia irritante, das decisões sem pé nem cabeça. É muito personagem exaustivo junto. O que me fez pensar que um pouco de normalidade talvez não seja tão ruim.

Nota: 5,0

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Pitaquinho Musical - Childish Gambino (Bando Stone and the New World)

Muito provavelmente não haverá um disco tão eclético em 2024 quanto este Bando Stone and the New World, anunciado como o último trabalho de Donald Glover sob o nome de Childish Gambino. Para o bem ou para o mal, o artista atira para muitos lados e gêneros, alcançando um resultado meio caótico e que vai para além dos elementos mais óbvios do hip hop. Pode ser apenas uma provocação final, ou mesmo uma galhofa em um cenário em que tudo parece tão previsível e estéril, mas o caso é que a crítica "especializada" torceu o nariz. Já os fãs - ou mesmo quem aprecia música de uma forma mais descompromissada -, gostaram. Especialmente dos singles, caso de Lithonia, um rock branquelo de refrão pegajoso e guitarras grudentas que, supostamente, integrará a trilha sonora de um filme que levará o mesmo nome do registro (não há muitas informações a respeito, muito menos data de lançamento).

 

 

Só que Gambino já foi o responsável por uma das mais impactantes canções (e videoclipes) do milênio - no caso, This Is America, que exagerava no estereótipo ao examinar a percepção equivocada da sociedade, quanto à cultura e as experiências do povo negro nos EUA. Também escreveu, dirigiu e atuou em Atlanta, que segue como uma das mais relevantes e cínicas séries sobre racismo estrutural dos últimos anos. Isso o desautoriza a fazer música que não seja política? É preciso ser militante o tempo inteiro? Talvez no cerne de Bando... esteja justamente esse Gambino que se permite, e que é capaz de escrever uma música adocicada e alto astral como Real Love, que mais parece saída de alguns dos discos recentes do The 1975. Essa quebra de lógica é algo que se espalha por cada esquina do projeto. Que trafega entre a elegância sofisticada da música litorânea (Steps Beach), a rave noventista estilo Prodigy (Got To Be), o gospel com coralzinho (Can You Feel Me), o afrobeat celestial (No Excuses) e o power pop de piscina que parece trilha sonora de filme dos anos 80 (Running Around). Só relaxa e vai!

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Novidades em Streaming - Pacifiction

De: Albert Serra. Com Benoit Magimel, Pahoa Mahagafanau, Cécile Guilbert e Marc Susisi. Drama / Suspense, França / Espanha, 2022, 165 minutos.

"A política é como uma boate. É uma festa com o diabo. Estão todos lá, juntos, com fachos de luz na cara, perdendo a direção. Não há dia e nem noite. As pessoas estão no escuro, tão completamente alheias a realidade que sequer se olham mais. Como uma matilha de cães. Dilacerando uns aos outros. Eles se 'mijam' o tempo todo pensando nas explosões nucleares. Mas não veem os verdadeiros perigos. Que se propagam como ondas atômicas em seus mundinhos." O longo discurso proferido por De Roller (Benoit Magimel), protagonista de Pacifiction, ajuda a explicar o que está por baixo da densa narrativa da elogiada obra de Albert Serra. Em linhas gerais tudo parece muito simples nessa história de um representante do Estado trafegando pelos mais variados ambientes, articulando com todos os tipos de pessoas. Mas é difícil não pensar naquele microcosmo como uma espécie de alegoria para o todo. Para as questões macro que nos afligem nestes tempos.

Sim, o medo da bomba atômica - e de algo meio externo à nossa existência - sempre pareceu onipresente. Ainda mais para a geração anterior, que cresceu em meio aos temores da Guerra Fria e dessas disputas de líderes lunáticos, querendo provar qual deles têm a maior pica (mesmo que esse falo seja metafórico, já que, muito provavelmente, na vida real o membro deve ser diminuto). Mas em tempos de pandemia, de alienação religiosa, de avanço da extrema direita, das crises envolvendo imigrantes, de preconceitos, de meio ambiente em colapso, de xenofobia, de crimes escondidos e nunca resolvidos, talvez os problemas estejam mais próximos do que sugerem a presença de militares (ou de um submarino). Não que, em si, eles não sejam problemas. Também são. Mas há a rotina e seus acontecimentos. E muitas vezes é com ela que lidamos. Ida ao mercado, trabalho, filhos na escolas. As complexidades e dificuldades cotidianas. O problema atômico? Talvez seja uma preocupação distante. Talvez.


 

A trama de Serra é pesada, e pouco convidativa. Daquelas que não tem pressa e que se demora em divagações, silêncios e repetições, como forma de reafirmar suas ideias. Pode ser apenas aborrecimento para alguns fãs de cinema - e tá tudo bem, porque tem vezes que aborrece mesmo. Chateia. Cansa. E talvez leve umas boas duas horas até que, diante do discurso de De Roller, a gente perceba com mais clareza sobre o que se trata tudo aquilo. Como uma figura onipresente, o sujeito vai para lá e para cá, discutindo os mais diversos temas - políticos, sociais, culturais, religiosos - com os nativos do pequeno Taiti, na Polinésia Francesa, e os forasteiros. Um novo cassino que funcionará como um espaço de diversão. A igreja que talvez seja fechada. Um candidato a prefeito de índole meio duvidosa. As disputas de surfe escapistas entre ondas enormes. Uma escritora que está para lançar um livro. Um cliente do hotel que está insatisfeito por ter perdido seu passaporte. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo nesse espaço idílico, que está sob a ameaça nunca muito clara do retorno dos testes nucleares.

De forma paciente, Serra nos conduz de lá para cá em meio a conversas, observações, contêineres, músicas havaianas, artes regionais e instantes aleatórios. Enquanto a vida ocorre na ilha paradisíaca, com suas belezas naturais ostensivas - da natureza verde ao mar azulíssimo -, o final de tarde alaranjado, enevoado, parece uma metáfora para um mundo que clama, em seus dilemas ambientais e violências extremas. A política da boa vizinhança reina, mas há uma dureza que emerge por baixo dos panos, em debates sobre tributação e burocracias - ou mesmo a cada palavra supostamente tranquila, ou aceno mais sutil. Em certa altura, alguém placidamente comenta que "o genocídio dos índios criou as grandes civilizações". Na boate ninguém está pensando na destruição ou se que alguém será capaz de algo, em um espaço tão maravilhosamente belo. Mas será mesmo? Num mundo em que o capital manda, não parece haver limites para o homem. Se for preciso despejar uma bomba atômica só pra teste, em um lindo local isolado do canto do planeta, por quê não, né? Se for pra ganhar a terceira guerra, quem sabe. Ou será que estamos paranoicos? O filme de Serra não nos responde nada disso. Mas nos deixa pensativos por algumas boas horas (ou dias) depois que os créditos sobem.

Nota: 8,0


Cinema - Armadilha (Trap)

De: M. Night Shyamalan. Com Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan e Alison Pill. Suspense, EUA, 2024, 105 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Vamos combinar que quando o assunto é M. Night Shyamalan, não dá pra negar que o diretor ao menos se esforça em tentar entregar algo que fuja, minimamente, de certo padrão. Sim, nem sempre dá certo. E muitas vezes o sentimento é meio ambíguo mesmo: até um ponto a gente vai gostando do tipo de tensão provocada ainda que, ali adiante, a gente saiba que provavelmente a coisa vai desandar. E não é muito diferente com o recente Armadilha (Trap), que segue em cartaz nos cinemas - o que dá conta da força do nome do indiano, independente da irregularidade de suas produções. E se Shyamalan nunca escondeu sua admiração por Alfred Hitchcock, talvez poucas vezes em sua filmografia ele tenha chegado tão próximo do tributo já que, aqui, ao invés de acompanharmos os mocinhos em algum tipo de fuga desesperada, a gente segue de perto os bandidos. Ou o bandido. Com toda a tensão (e diversão) que isso possibilita.

Na trama, daquelas que tipicamente transcorrem em um único cenário - como Hitchcock faria, por exemplo, em Festim Diabólico (1948) -, temos o bombeiro Cooper Abbott (Josh Hartnett), que está empenhado no papel de pai exemplar, ao levar sua filha de apenas 12 anos, Riley (Ariel Donoghue), a uma apresentação da estrela pop Lady Raven (Saleka Shyamalan que, de fato, é uma cantora teen, além de ser filha do diretor). Riley tirou boas notas e está animada com o show, ao mesmo tempo em que seu pai parece olhar com desconfiança para aquele cenário todo, com toda a parafernália e um sistema de segurança maior do que o padrão. Não demora para que a gente entenda o motivo de todos aqueles policiais e agentes de segurança do FBI no entorno: o objetivo é montar uma arapuca para capturar um assassino em série, conhecido como O Açougueiro (The Butcher), que captura suas vítimas para, bom, o apelido é meio autoexplicativo.


 

E eu admito que, no meu caso, demorou um pouquinho pra cair a ficha de que o maníaco em questão era o próprio Cooper. E de que seriam as investidas dele, no sentido de tentar driblar todo aquele aparato, que acompanharíamos. E, não vou negar: a primeira parte do filme é realmente empolgante. Especialmente quando a câmera gruda no rosto do protagonista, que passa a espionar possíveis brechas, caminhos pelos bastidores e corredores que lhe permitam alguma fuga espetacular. Enquanto Riley se comove com a apresentação de sua estrela pop preferida - com todos os clichês do gênero (de dancinhas feitas para o Tik Tok, passando pelo autotune, ou mesmo pela parceria com aquele rapper genérico) -, Cooper vai para lá e para cá provocando acidentes, andando de forma provocativa no meio dos policiais, furtando seus aparelhos de comunicação, ou mesmo cartões de identificação dos empregados, que lhe permitam trafegar com naturalidade. É uma experiência interessante e relativamente complexa - mais ainda quando nos pegamos torcendo (sim) pelo assassino, uma vez que ele se apresenta como uma figura carismática e absolutamente preocupada com sua filha.

E é claro que apresentar Cooper como um sujeito ambíguo - um pai de família dedicado e um provável bombeiro responsável, como um contraponto a um psicopata sangue frio de dupla personalidade que, traumatizado na infância, não hesitará em fazer picadinho de suas vítimas -, também é parte da brincadeira. E talvez seja por isso que a coisa aqui funcione melhor do que em outras experiências de Shyamalan: ao não tentar se levar tão a sério, tudo se torna tão mais direto e agradável, que não são poucos os momentos em que nos pegamos sorrindo (ainda que meio de nervoso). Em certa altura, Cooper, por exemplo, oferece um donut a um policial - em uma brincadeira com o mais óbvio dos estereótipos. Em outra parte, a própria Lady Raven se vê envolvida nos estratagemas malucos do sujeito, com direito a prisão em banheiro e fuga em uma limousine. Sim, é preciso uma boa dose de suspensão da descrença. Talvez a descrença da descrença sendo suspensa. E, claro, a coisa descamba pra total falta de lógica no instante final. Mas ao nos garantir entretenimento descompromissado, com seu senso de humor ironicamente sombrio, Shyamalan dessa vez tem um quase acerto.

Nota: 6,5


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Pitaquinho Musical - Cátia de França (No Rastro de Catarina)

"Em nossa casa podia faltar manteiga, mas nunca faltaria um livro". A frase dita por Cátia de França em mais de uma entrevista, serve pra dar conta da importância não apenas da educação, mas também da cultura em sua vida. Sua mãe, Adélia de França - a primeira professora negra da Paraíba -, sempre manteve a humilde residência da família "alimentada" por nomes como João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e José Lins do Rego. E toda essa bagagem literária - que se une a uma formação musical completa -, permite à artista, atualmente com 77 anos, a construção de verdadeiros poemas em forma de canção, como aqueles que podem ser vistos no recente disco No Rastro de Catarina, o oitavo da carreira da compositora. Unindo passado e presente e resgatando memórias que permanecem atuais, o projeto mescla pop, rock, reggae, bolero, samba e outros ritmos, traduzindo em alguma medida as incertezas dos nossos tempos.

 


No material de divulgação, é possível perceber como a musicista vai de lá para cá em canções compostas em fases distintas de sua vida. Nesse sentido, se o hino feminista Espelho de Oloxá, escrito em 2017, segue mais necessário do que nunca ("No meio da praça, que existe aqui dentro / Me vejo em protesto, nem tô me cabendo / Demandas do mundo, me importo, pertenço / Creio piamente na mudança dos ventos"), outras, como a tocante Malakuyawa, de 1989, segue atemporal em sua minuciosa análise da velhice e da beleza proveniente desse acúmulo de experiência (Essa pele enrugada / É como trilha, mapa revelando um País / A veia rosada é como sede / A vida sábia é feliz). Assuntos ligados ao absurdo da guerra (Bósnia), à questões raciais (Negritude) ou mesmo à saudade de um amor lésbico ausente (Indecisão), se espalham entre guitarras primaveris e percussões potentes, em um dos grandes registros da temporada. Vale conferir!

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - Caminhos Cruzados (Crossing)

De: Levan Akin. Com Mzia Arabuli, Lucas Kankava e Deniz Dumanli. Drama, Suécia / Turquia, 2024, 105 minutos.

"Eu estou aqui, até o dia em que eu não estarei mais". Vamos combinar que filmes sobre indivíduos à procura de outras pessoas - parentes, antigos amores, amizades do passado -, muitas vezes servem como alegoria para a própria busca interior. Em muitos casos há algo a ser consertado. Reparos a serem feitos. Tudo que possa redimir, em alguma medida, aqueles sujeitos - servindo também para que eles olhem para si mesmos, para suas decisões equivocadas, para medos, incertezas ou arrependimentos. E é justamente esse o caso do afetuoso Caminhos Cruzados (Crossing), obra do diretor Levan Akin (do bonito Então Nós Dançamos, 2019) que, a despeito de ter como cenários os limites geográficos que nos conduzem da Geórgia rural à Turquia absolutamente urbana, suja e fervilhante, tem boas chances de ser um o enviado ao Oscar da Suécia, País natal do realizador. Premiações e elogios da crítica não têm faltado. E muitos menos carinho do público.

Tudo porque essa é uma história de fácil identificação - tão universal quanto existir. Na trama, acompanhamos uma professora aposentada de nome Lia (Mzia Arabuli), uma senhora sisuda e de modos meio endurecidos, que chega à uma pequena comunidade costeira da Geórgia, para perguntar sobre o paradeiro de sua sobrinha, uma trans de nome Tekla. Não há muitas informações a respeito para além do pedido da irmã de Lia que, antes de morrer, solicitou a ela que localizasse seu paradeiro. Toda a movimentação da protagonista chama a atenção do jovem Achi (Lucas Kankava) que, pouco antes da chegada de Lia, estava "ocupado" levando uma carraspana de seu irmão mais velho, Zaza (Levan Bochorishvili), um ex-aluno da mulher. O começo é meio conflituoso, caótico e, naquele ínterim, Achi vê uma brecha para escapar daquele contexto. Mais do que isso, garante a Lia que sabe do paradeiro de Tekla. Podendo auxiliá-la também nas barreiras da língua, já que se vira com o turco e também o inglês.


 

E é assim que se configura a dupla de amigos mais inesperada da temporada. Viajando de um País a outro, ambos chegarão à Istambul com informações incertas, mas um objetivo mais ou menos claro. O que os fará navegar pelos dias e noites turbulentos da capital turca, em meio a becos, bairros e concretos, e pessoas tão carismáticas quanto vulneráveis. Em paralelo, seremos apresentados à advogada trans Evrim (Deniz Dumanli), uma integrante de uma ONG que trabalha em prol dos direitos LGBTQIA+. O que não a impedirá de também sofrer preconceitos, em um cenário de tanto conservadorismo - como fica evidente na sequência em que ela discute o encaminhamento de seus novos documentos, que lhe concederão a nova (e feminina) identidade. Em alguma medida, as vulnerabilidades das minorias em uma experiência como esta estão sempre pelas frestas, pelos cantos, sendo sutilmente entregues. Parece que nunca sabemos de onde virá a violência, ou quando e como virá. E, nesse sentido, é impossível não sentir empatia.

A própria Lia é retratada como uma figura enigmática, cheia de ambiguidades. Do preconceito contra as próprias mulheres georgianas (e suas supostas liberdades nos tempos atuais) e o carinho de sua busca incansável pela sobrinha trans abandonada no passado, parece haver todo um estudo da complexidade da experiência humana. Ninguém é bom ou ruim o tempo inteiro e todo temos as nossas decisões equivocadas, ou que nos gerarão arrependimentos. Vale o mesmo para a Achi que, assim que chega à Istambul, empreende uma jornada particular à procura de trabalho, amigos, ou algo que possa fazer com que ele se estabeleça. Ou simplesmente seja aceito. A ideia, claramente, é não retornar ao ambiente tóxico ao lado do irmão. Assim, a oportunidade de redenção pode ser pouco clara ou meio nebulosa - assim como é a câmera trôpega e documental de Akin, muitas vezes bem próxima do rosto e dos movimentos de seus personagens. Mas ela aparecerá. Em meio a encontros fortuitos, amizades inesperadas ou na simples fuga de um mundo ainda mais difícil para os que desviam de certo padrão. Essa obra, disponível na Mubi, é uma joia. E dá pra entender todo o carinho que ela emana.

Nota: 8,5