quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Cine Baú - Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso)

De: Giuseppe Tornatore. Com Marco Leonardi, Philippe Noiret, Jacques Perrin e Agnese Nano. Drama, França / Itália, 1988, 124 minutos.

Confesso que em tempos tão brutos como os que vivemos, revisitar um clássico juvenil como Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso) me fez bem. É um filme açucarado, leve, divertido. Com uma dupla de protagonistas - no caso o menino Totó (Marco Leonardi) e o projecionista de cinema Alfredo (Philippe Noiret) -, que nos comove o tempo inteiro e que nos faz pensar no quão magnífica é essa paixão que nos "alimenta" (e que emana da tela grande). Sim, quem gosta de cinema tem um motivo a mais para já ter assistido à obra-prima de Guiseppe Tornatore mais de um punhado de vezes. Na história de ascensão e queda do cinema que dá nome ao título - localizado em uma Sicília ainda nos anos 50 -, uma verdadeira homenagem à sétima arte, seus astros, estrelas, produtores e diretores, incansáveis no objetivo de entreter o espectador. Aliás, não apenas entreter: fazer pensar, a partir do poder transformador da arte.

O menino Totó (ou Salvatore) é o que cada um de nós já foi na infância: curioso, destemido, incompreendido, sapeca. Logo no começo do filme ele surge na versão adulta, quando recebe uma triste notícia. E será a partir dela que ele rememorará todos os principais episódios de sua juventude, especialmente aqueles que envolvem a amizade com Alfredo. Aliás, uma amizade que se estabelece de forma meio truncada, torta, já que o garoto insiste em "invadir" a sala de projeção, sem necessariamente ter sido convidado. Não por acaso, entre uma ida a escola e outra (onde ele não é o melhor aluno), Totó usa o dinheiro que a sua sofrida mãe lhe dá para pagar contas ou comprar mantimentos para assistir a mais recente película. Em uma enternecedora sequência, Alfredo salva a pele dele, lhe devolvendo de maneira inesperada o dinheiro "perdido". E lhe livrando de uma surra, em um episódio que reafirma a amizade de ambos.



Agrupando sequências divertidas e memoráveis - como a que envolve o padre que censura as cenas de beijo ou aquela em que Alfredo pede cola para Totó na sala de aula -, com outras que devastarão o espectador (como esquecer do acidente que destrói o cinema, tornando Alfredo cego?), o filme fará um salto no tempo para mostrar Salvatore já na vida adulta (Jacques Perrin). Apaixonado por Elena (Agnese Nano) e trabalhando com um novo empresário local de nome Spaccafico (Enzo Cannavale), o rapaz agora moverá mundos e fundos na tentativa de conquistar o seu amor. É o momento em que o filme perde um pouco da sua graciosidade juvenil, para investir no romance brega a moda dos anos 80 - com direito a trilha sonora ultramelosa concebida pelo mestre Ennio Morricone. Mas nem tudo serão rosas e Totó terá de sair de sua terra Natal, em busca de novas oportunidades (para mim, um dos acertos da obra é não centrar a felicidade exclusivamente nas oportunidades do amor).

Ultrapassada em alguns aspectos (o que é a cena da professora SURRANDO um aluno que não sabe a tabuada, com direito a bater a cabeça dele na parede?), romanticamente kitsch em outros (Salvatore espera por 100 dias que a sua amada Elena abra uma janela como demonstração de amor), o filme é uma sucessão de eventos cômicos e trágicos sendo um verdadeiro triunfo que dificilmente não deixará o cinéfilo comovido. E que culminarão no retorno de Salvatore ao seu local de origem, que resultará na inesquecível cena final, que faz com que o homem relembre o seu primeiro encontro com Alfredo. Uma obra sobre o poder da amizade, sobre a força e a paixão provocados pelo cinema. Aliás, não é por acaso que Cinema Paradiso não apenas ganhou o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira na cerimônia de 1990, como costuma figurar em todas as listas de grandes obras da história do cinema. Simplesmente inesquecível.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Novidades em DVD/Now - Boas Intenções (Les Bonnes Intentions)

De: Gilles Legrand. Com Agnés Jaoui, Claire Sermonne e Alvan Ivanov. Comédia dramática, França, 2019, 103 minutos.

São as mais variadas as formas das classes mais abastadas expiarem a culpa pelas diferenças sociais existentes no mundo. Da participação no Rotary ao envolvimento em projetos locais, vale tudo para reduzir o sentimento de desigualdade que, em muitos casos, tem muito mais a ver com massagem no próprio ego do que um efetivo pensamento em uma política mais igualitária. Aliás, se assim fosse, a grande maioria dos ricos não votaria em candidatos que buscam a manutenção do status quo. E assim, aquela madame generosa que vai a Igreja todo o domingo, segue fazendo caridade enquanto o mundo gira com milhares de pessoas passando fome, em guerra, morrendo. Com ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. Bom, em partes o que o filme Boas Intenções (Les Bonnes Intentions) mostra, é uma dessas tantas histórias: no caso, a da voluntária em projetos humanitários Isabelle (Agnés Jaoui).

Isabelle, diferentemente da "madame" que mencionei no parágrafo anterior, dedica todos os minutos de sua vida ao ativismo. Com uma vida confortável (não luxuosa), um marido e dois filhos, auxilia imigrantes doando roupas e ministrando aulas de francês para estrangeiros. Em sua rotina, se vê rodeada por chineses, búlgaros, congoleses e até brasileiros. O envolvimento é tanto, que ela até esquece que tem uma família em casa. E tudo piora quando aparece uma nova professora, a graciosa alemã Elke (Claire Sermonne) que, com uma nova e moderna metodologia, faz Isabelle se sentir ultrapassada. Lembra do que falei sobre ego? É nesse momento que a nobre intenção da protagonista da lugar a uma espécie de "guerra particular" para ver quem se sai melhor na tarefa. Com tudo piorando quando o instrutor de CFC Attila (Alvan Ivanov), "entra" abruptamente em sua vida.


Com narrativa fragmentada, o filme de estreia do diretor Gilles Legrand possui vários arcos dramáticos, discutindo muita coisa ao mesmo tempo - de dramas familiares, passando pela busca da aceitação até chegar a tentativa angustiada de "resolver" a miséria do mundo. De alguma forma, a obra também coloca em cheque o caráter ilibado dos bem-feitores de nossa sociedade - não teriam eles também seus preconceitos, como a gente percebe em uma das primeiras sequências em que Isabelle interage com os imigrantes? Com momentos de leveza, alternados com outros mais comoventes, a película parece em muitos momentos ter dificuldade de se decidir entre a comédia e o drama, entre a crítica política ou o escracho social. Sem tomar partido, estabelece a problematização a partir dos mais variados ângulos: não há certo ou errado e sim pessoas sonhando, exercitando suas vocações, tentando, errando e tentando novamente, errando mais um pouco e acertando.

Na ânsia de ajudar os "seus" imigrantes, Isabelle acaba brigando com praticamente toda a sua família. Mas ela está certa em adotar essa postura? Ela precisa individualizar um problema tão grande, gerando outros tantos conflitos? O filme te faz pensar nessas questões e nos faz também colocar a mão na consciência a respeito de nossas atitudes para tornar este um mundo melhor - ou minimamente com menos ódio, preconceito e intolerância entre povos. Com fotografia naturalista e trilha sonora econômica, o filme caminha para um terço final em que todos procurarão compreender, de forma coletiva, as suas motivações. Aliás, eu acredito que, para filmes do gênero funcionarem, é preciso que a gente se importe com aqueles que assistimos: isso em partes acontece. Sim, em partes, afinal de contas aqueles que assistimos não passam de humanos.

Nota: 7,0

Novidades em Streaming - Cigarettes After Sex (Disco)

Os fãs do Cigarettes After Sex finalmente podem celebrar o lançamento de seu novo álbum: Cry foi disponibilizado na última sexta (25/10) e já chegou arrebatando os corações de quem acompanha a eletrônica enfumaçada e atmosférica da banda. O padrão permanece o mesmo do homônimo registro de estreia: composições sobre amores sinuosos, suas idas e vindas, dores e frustrações, embalados por melodias econômicas, minimalistas, que sugerem uma espécie de mistura gostosa do Interpol com o The xx. Eu costumo brincar que o Cigarettes, com seu lo-fi potente e romantismo flamejante, é a trilha sonora ideal pra quem aguarda a chegada do parceiro(a) que te acompanhará até a madrugada, com um bom vinho, pouca luz e muito lençol desarrumado. Se você ainda não testou isso, faça. E se tiver sozinho faça também, já que ninguém resiste a um bom pop de melodia elegante.


segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Picanha.doc - Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar

Eu vejo a barra do dia surgindo
Pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada
Abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

(Chico Buarque - Quando o Carnaval Chegar)

De: Marcelo Gomes. Documentário, Brasil, 2019, 85 minutos.

Era o ano de 1972 quando Chico Buarque de Holanda lançou a canção Quando o Carnaval Chegar. Ele tinha retornado do exílio, mas suas ações eram observadas de perto pelos militares. Sempre habilidoso com as palavras, utilizou esta, assim como tantas outras músicas, para, metaforicamente, atacar o regime que oprimia a população. O Carnaval, a festa, a cor, a vida e a alegria eram o símbolo para a liberdade política, social e cultural almejada, que tardaria mas chegaria. Quarenta e sete anos depois, o ótimo documentário Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, utiliza expediente semelhante ao tratar a festa máxima de nosso País como um refúgio, um pequeno espaço de celebração para o combalido povo trabalhador do agreste pernambucano. Mais precisamente, para a população de Toritama, que é conhecida por ser a "capital nacional do jeans".

Com ares autobiográficos, Gomes retorna ao local em que cresceu - uma cidadela calma e pacata -, para encontrar um município invadido por um sistema de fabricação industrial de peças jeans, que movimentam a economia, exaurindo sua população. Praticamente em todas as casas de Toritama o que se ouve são máquinas de costura e outros equipamentos, trabalhando por praticamente 24 horas diárias, numa lógica que determina que "quanto mais se produzir, mais se vai ganhar". Com cada peça produzida rendendo de 10 a 20 centavos para o operário, o valor ao final do dia será diferente se a produção for de mil ou de duas mil calças. O que podem representar jornadas de quase 18 horas diárias, em alguns casos. Tudo sem direitos trabalhistas. Sem equipamentos de proteção - o barulho é ensurdecedor. E, o pior, sem nenhuma consciência a respeito do massacre que praticamente os escraviza em troca de algum dinheiro: a grande maioria dos trabalhadores está feliz, por reconhecer o poder de "decidir" sobre aquilo que fará com o seu tempo.



Muito mais do que um filme que denuncia a precarização do trabalho nos rincões brasileiros, a obra parece dar conta do estado de letargia coletiva que move a nossa população. Muitos valorizam a oportunidade de trabalhar, ignorando o mal-estar promovido pelas jornadas exasperantes (e não são poucos os instantes em que a câmera sinuosa do diretor flagrará algum dos moradores dormindo em qualquer canto e em qualquer oportunidade). O cansaço é latente, mas ninguém desanima. Ao contrário: a população de Toritama se orgulha de ser responsável por 20% (pasme!) do mercado nacional de jeans, com 20 milhões de peças produzidas ao ano. Detalhe: o município conta com cerca de 40 mil habitantes. Que trabalharão exaustivamente durante todo o ano, para tentar levantar o dinheiro que lhes possibilite ir a praia durante o Carnaval. Tentar, já que muitos precisarão vender móveis e eletrodomésticos para alcançar esse objetivo. O Carnaval, já dizia Chico, era custoso pra chegar.

No desenvolvimento da película, Gomes utiliza alguns recursos que transformam a obra em uma experiência ao mesmo tempo excêntrica, melancólica e sensorial. O contraste entre os corpos suados dos trabalhadores e as máquinas barulhentas, com os mesmos movimentos sendo repetidos indefinidamente, dão conta da estupidez dos dias que correm sempre do mesmo jeito, e sempre e sempre e sempre (alguns planos-sequência do trabalho ocorrendo chegam quase a gerar alguma angústia e o uso do som nesses instantes é avassalador). Entre as personalidades locais, um homem de nome Léo diverte com as suas divagações sobre tudo, apresentando inclusive um tipo de consciência meio torta a respeito daquilo que se vive em Toritama. Com dificuldade pra falar de seus sonhos - a vida é apenas trabalhar -, a população avança com poucas perspectivas, orgulhosa daquilo que não deveria se orgulhar: de ser escravizada enquanto aguarda o Carnaval chegar. Um filme duro, áspero e sutil que expõe a ideologia neoliberal como um modelo que impede o oprimido de enxergar a própria opressão.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Pérolas da Netflix - A Lavanderia (The Laundromat)

De Steven Soderbergh. Com Meryl Streep, Antonio Banderas, Gary Oldman, Sharon Stone e James Cromwell. Comédia dramática, EUA, 2019, 96 minutos.

Um filme como A Lavanderia (The Laundromat) teria tudo para ser verborragicamente chato se fosse um drama. Imagina pegar um tema real como o caso dos Panama Papers que, em 2016, denunciaram um esquema de fraudes milionário e que envolvia empresas de diversos países, para tratá-lo de forma solene e séria? Talvez funcionasse em um bem organizado documentário, mas o que o sempre versátil diretor Steven Soderbergh (Traffic) faz aqui é utilizar um tom de deboche que combina bem com o absurdo da ação de figuras inescrupulosas que, instaladas em escritórios fictícios, criam empresas de fachada que, por meio de evasão fiscal e outras negociatas, ganharão milhões às custas de pessoas comuns. Sim, o filme toma partido, tendo como alvo os próprios Estados Unidos e as suas brechas que permitem, por exemplo, que 60 de suas maiores empresas sejam isentas de pagar qualquer imposto sobre US$ 79 bilhões de renda bruta. BILHÕES!

Bom, um desses escritórios de advocacia fraudulentos era comandado por Ramón Fonseca (Antonio Banderas) e Jürgen Mossack (Gary Oldman), diretamente do Panamá. O filme começa com a dupla conversando diretamente conosco, quebrando a quarta parede, enquanto explicam de forma bastante didática sobre "crédito" e sobre como ele foi criado para que não precisemos mais levar conosco "milhares de tirinhas de papel no bolso", que também podem ser transformadas na grana que vem do futuro. Commodities, empréstimos, ações, títulos, fundos, mercados futuros, derivativos, securitização, chamada de margem e outros termos servem para introduzir o tema e para dizer que o dinheiro - aliás, nunca houve tanto dele! - pode ter outros nomes. O cenário em que ambos trafegam vai da pré-história até chegar a uma galante festa, em um plano sequência de quase cinco minutos, que dará o tom da película. Leve, colorido, sarcástico.



Mas ainda que o assunto seja tratado com leveza, a severidade das ações inescrupulosas dos protagonistas logo serão despejadas na tela quando um acidente de barco que levava um grupo de férias, resulta na morte de 21 pessoas. Impedida de ter uma indenização justa e sem conseguir o apartamento que desejava no acordo que resultou na morte de seu marido, uma mulher de nome Ellen Martin (Meryl Streep, que provavelmente será indicada ao Oscar pelo papel), resolve investigar por conta própria a empresa que está lhe dando o calote. É a partir das ações dela que o filme se desenvolverá em capítulos, que servirão como pequenas esquetes que mostrarão as mais variadas faces dos esquemas. Ás vezes a gente vai achar meio estranho que a obra enverede por um caminho diferente daquele que esperávamos para, mais adiante, retornar para os trilhos. Tudo terá sentido com o fio condutor sendo as tramoias da dupla por trás da empresa Mossack e Fonseca.

Recheada de participações especiais - de Sharon Stone à David Schwimmer, passando por James Cromwell e Will Forte -, o filme flanará com leveza, ainda que aborde o mal-estar da modernidade, que pode ser provocado pela ganância e pela ânsia de obter vantagens financeiras. Brigas familiares, ocultação de informações, chantagens diversas e outros estratagemas surgem com uma naturalidade que não surpreende, quando o assunto é a pretensão da riqueza. Reservando uma pequena surpresa para o final, o filme ganha um tom mais austero em sua reviravolta, com uma de suas figuras centrais personificando a busca por justiça e estabelecendo o debate sobre Reforma Tributária ou Fiscal como mais do que urgente. Sobra até para a brasileira Odebrecht, que é citada por pagamento de propinas para favorecer obras ao redor do mundo. A gente se diverte mas, no final, está rindo mesmo é do absurdo.

Na Espera - Jojo Rabbit (Filme)

Entre os filmes que aparecem na bolsa de apostas para a próxima edição do Oscar é provável que nenhum desperte tanta curiosidade quanto este Jojo Rabbit (Jojo Rabbit), que tem sua estreia prevista para o próximo dia 6 de fevereiro de 2020 - e que provavelmente deve estar na principal categoria da maior premiação do cinema. A obra, dirigida por Taika Waititi (de Thor: Ragnarok) parece uma bem elaborada sátira a respeito do absurdo dos sistemas totalitários - nesse caso, mais especificamente do Nazismo - ao narrar a história do jovem Jojo (Roman Griffin Davis) que, em meio a Segunda Guerra Mundial, tem seu mundo virado de cabeça para baixo quando descobre que sua mãe (Scarlett Johansson) esconde uma jovem judia (Thomasin McKenzie) no sótão de sua casa.


Com a ajuda de um estúpido amigo imaginário que é a cara de Adolf Hitler (o próprio diretor interpreta), o menino precisará confrontar o seu nacionalismo cego, quando uma amizade entre ele e a jovem começar a surgir. O tom do trailer é de completo deboche, com direito a cores leves e vibrantes, piadas engraçadas e trilha sonora acolhedora (tem um David Bowie lá no meio). Tendo em Bastardos Inglórios (2009), o último grande filme que debochava do Nazismo - e não são poucos, de O Grande Ditador (1940) até o recente Ele Está de Volta (2015) -, a expectativa é alta, ainda mais se levarmos em conta a participação de atores coadjuvantes como Sam Rockwell (que interpreta um oficial do Reich) e Rebel Wilson. Bom, a gente nem precisa dizer que já está Na Espera!





segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Cinema - A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life)

De: Casey Affleck. Com Anna Pniowsky, Casey Affleck, Elisabeth Moss e Tom Bower. Drama / Ficção Científica, EUA, 2019, 118 minutos.

No cenário pós-apocalíptico pensado para o filme A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life), uma doença de difícil explicação praticamente dizimou as mulheres do mundo. É nesse contexto que um pai (vivido por Casey Affleck, que também dirige e produz) deve se esforçar para proteger a sua filha (a ótima Anna Pniowksy) de algum perigo que, não sabemos exatamente qual. A trama começa com os dois isolados em uma floresta, dormindo em uma barraca não muito distante da cidade, mas evitando qualquer contato com outros humanos, especialmente os homens - como comprovará a pequena participação do ator Tom Bower, que aparece como um curioso andarilho, logo nos primeiros minutos. Será justamente esse acontecimento que motivará a dupla central a sair de onde está, para buscar refúgio em algum outro local. Aliás, eles estarão sempre em movimento, fugindo. O mundo parece ter ficado perigoso e, enfim, é preciso andar. E evitar as pessoas.

Alguns poucos flashbacks mostrarão a mãe (Elisabeth Moss), o que nos fará entender que o mal que atingiu a população mundial, uma espécie de pandemia, era irreversível. E como as mulheres foram as mais afetadas, o pai opta por esconder o real gênero de sua filha: a veste como um menino e impede de todas as formas que ela exerça qualquer tipo de comportamento que denuncie a sua verdadeiro identidade. Nesse sentido, a história comove nos pequenos instantes, como aquele em que, dentro de uma casa abandonada, a jovem encontra diversas roupas infantis para menina, sendo impedida de usá-las pelo pai. E a gente perceberá mais tarde que esse tipo de reação aparentemente exacerbada terá lá sua razão de existir. Especialmente após a sequência em que a dupla vai até a cidade para a obtenção de mantimentos básicos, atraindo olhares de pessoas que, no fim das contas, se mostrarão pouco amistosas.



Bom, trata-se de um filme de uma fluência bastante lenta, vagarosa, o que poderá incomodar alguns cinéfilos que anseiam por um pouco mais de ação. Mas a meu ver isso tem lá a sua razão de existir: em um mundo em que o apocalipse se instalou, as horas passam devagar e só a sobrevivência interessa. Histórias metafóricas que subvertem a lenda da Arca de Noé - ao final uma heroína salva o dia -, e mesmo a leitura de livros obtidos em uma biblioteca abandonada, servem para tentar superar a letargia dos minutos que custam a avançar, além de manter algum fiapo de humanidade, evidentemente. E quando alguma eventual perseguição tem início, é o momento em que a gente "reenquadra" o corpo no sofá e percebe que há algo maior pelo que lutar, ainda que o filme jamais deixe claro quais os objetivos daqueles que perseguem a jovem - seriam pessoas do Governo? da Igreja? De empresas de tecnologia? Ou apenas bandidos perseguidores?

Sem apresentar soluções fáceis, A Luz no Fim do Mundo se mostra muito mais como uma obra de sensações, de sutilezas. Não são poucos os longos planos sequência, que nos colocam muito próximos das personagens. A fotografia evita a saturação ou a "febre do cinza", que povoa algumas obras de ficção e pequenos detalhes nas cores - repare como a casa abandonada e empoeirada ganha um pouco de "vida" nos tons, após eles se instalarem nela - evocam um fiapo que seja de otimismo ou de esperança. Sobre o diretor e protagonista ter sido acusado de assédio sexual recentemente - ele admitiu o ocorrido e aqui estou fazendo um esforço para separar a pessoa da obra de arte analisada -, não deixa de ser curioso o fato de que, em seu primeiro filme de ficção oficial (anteriormente ele tinha feito o esquisito pseudo-documentário Eu Ainda Estou Aqui), ele execute uma película que dê conta do desaparecimento das mulheres por causa de uma doença. Expiação do machismo ou da misoginia? Ou mera coincidência? Sinceramente, não sei se há um motivo maior por trás. Vocês que me digam. Como filme, A Luz no Fim do Mundo funciona direitinho.

Nota: 8,0


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Lançamento de Videoclipe - Harry Styles (Lights Up)

Interessante notar como, a cada lançamento, o músico Harry Styles parece se afastar mais do tipo de material apresentado por ele anteriormente, quando integrava o coletivo One Direction. De essência heterogênea (e pop), capaz de trafegar com naturalidade pelos mais variados estilos, o registro de estreia do artista, que chegou ao mercado dois anos atrás, figurou em diversas listas de melhores do ano - na do Picanha ficou em 11º lugar. O álbum oxigenou a carreira do jovem, que parece disposto a descolar ainda mais a sua imagem da da boyband, como comprova o recém-lançado videoclipe para Lights Up. Com uma pegada mais comercial, ainda que insidiosamente sexy, a faixa pode indicar o caminho para a chegada de um novo registro - o músico já estaria trabalhando nele. Enquanto a gente aguarda, vale clicar e conferir a nova música.

Grandes Filmes Nacionais - Abril Despedaçado

De Walter Salles. Com Rodrigo Santoro, José Dumont, Ravi Ramos Lacerda, Flavia Marco Antônio e Luiz Carlos Vasconcelos. Drama, Brasil / França / Suiça, 2002, 95 minutos.

Obras cheias de simbolismos e amplamente evocativas como o clássico moderno Abril Despedaçado, de Walter Salles, podem ser analisadas pelos mais diversos ângulos. Por um lado trata-se de um faroeste "à brasileira", que retorna ao começo do século passado para abordar a sangrenta luta entre duas famílias nordestinas pela posse de terras - e que inevitavelmente resultará em tragédias sequenciais. Por outro, o filme também é um elogio ao poder transformador das artes e ao espírito libertador da educação, o que é simbolizado muito particularmente pelo "relacionamento sério" entre o menino Pacu (Ravi Ramos Lacerda) e o seu único livro. Unindo estes dois universos bastante distintos, uma história de superação de dificuldades, de aprendizado e de mudança de destino - especialmente se este destino envolve um ciclo de violência que parece interminável.

A trama nos joga para a aridez escaldante do Nordeste onde, há mais de 100 anos, a posse de terras era determinada por uma luta ancestral. Uma camisa esmaecida, com uma mancha de sangue que já "amarelou", é o indicativo que autoriza o jovem Tonho (Rodrigo Santoro) a vingar a morte de seu irmão mais velho. Com a missão cumprida, passa a ser ele o jurado de morte pela família rival - a trégua durará até a próxima lua cheia (e uma espécie de fita preta amarrada no braço será o símbolo que lhe marcará seu destino). Consumido pela tristeza, Pacu, que é o irmão mais novo de Tonho, encontra em uma dupla de teatro mambembe - a jovem Clara (Flavia Marco Antônio) e seu tio Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos) -, uma espécie de "respiro" em meio ao cenário de muito trabalho (a família cultiva cana de açúcar e produz rapaduras), de luta, de dor e de abafamento palpável.


Na família não há espaço para diversão (ou para distração), como comprovará o descontentamento do pai dos meninos (o sempre carismático José Dumont, que aqui interpreta um homem embrutecido e melancólico). Será no choque entre esses dois mundos - um de sonhos, de sereias e de liberdade, outro de cansaço, de labor e de torpor -, que residirá um dos arcos dramáticos mais interessantes dessa pequena joia de nosso cinema. Não é por acaso que em uma das primeiras aparições de Clara e de Salustiano, apresentando um número ao mesmo tempo arriscado e divertido com o uso do fogo, nos encontremos tão comovidos: é a arte invadindo o sangue e as vísceras daqueles que estão ali a descobrir os encantos poéticos do "faz de conta". Ainda que, de forma paradoxal, a presença do sol, do fogo (e consequentemente do calor), em suas vidas, tenha significados distintos.

Aliás, o filme é pródigo em utilizar um sem fim de rimas visuais para reforçar aquilo que, efetivamente, quer dizer. É o caso, por exemplo, da junta de bois anda em círculos na lida no moinho da família - assim como os seus próprios integrantes, que rodam e rodam sem sair do lugar, sem sair da miséria e do ciclo eterno de pobreza (a despeito da posse de grandes áreas de terra). Já em outra cena, Tonho anda pela primeira vez de balanço, sentindo o vento no rosto, uma representação de liberdade efêmera, que será representada pelo rompimento da corda que segura o objeto. Há aspereza e ternura, dor e comoção se alternando permanentemente na tela, o que conduz o espectador a um sem fim de sentimentos - e aqui há também que se destacar o belo trabalho de fotografia e mesmo o desenho de produção (a aridez e o suor são tão claudicantes, que às vezes até parece que vão saltar da tela).


Com tantos valores em um mesmo filme - há ainda o ótimo elenco, que conta com outros nomes como Wagner Moura, Othon Bastos e Gero Camilo (em uma ponta ótima) -, nada mais natural que ele fosse reconhecido mundo afora. No Globo de Ouro, foi o último brasileiro a ter sido indicado na categoria Filme em Língua Estrangeira - perdeu para o bósnio Terra de Ninguém. Também foi nominado na mesma categoria no Bafta. Em uma eleição feita pelos membros da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) foi classificado como o 58º Melhor Filme Nacional de nossa história. Para Walter Salles, a obra ajudou a pavimentar o caminho que lhe levaria, mais tarde a filmar em Hollywood. E para os nossos corações cinéfilos, essa segue sendo uma das mais relevantes obras de nossa história. Poética e árida, aborda a violência, a ambição e a estupidez humanas como aspectos sombrios de nossa existência.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Titãs (Õ Blésq Blom)

Se não me falha a memória eu devia estar completando nove anos quando ganhei de presente dos meus pais, o disco Õ Blésq Blom dos Titãs. Eu não pedi esse álbum, evidentemente, mas na entrada dos anos 90 eu já era aquele gurizinho esquisito, de óculos e gordinho, que passava as tardes de fone de ouvido escutando discos e fitas antigas de rock no três em um do seu Ênio. Havia uma fita dos Beatles que gostava muito. E outra do Elvis Presley. Além de uma coletânea do Mamas and The Papas. E sei lá eu por quê eles acharam interessante a ideia de me presentear com esse registro - o quinto de estúdio da banda de Paulo Miklos, Arnaldo Antunes, Nando Reis e companhia. Sinceramente, não sei se meus pais tinham a consciência da representatividade desse trabalho e de sua relevância para um País que aos poucos se acostumava com a ideia de não ter mais uma Ditadura. Mas o caso é que o disco TAMBÉM ajudou na minha formação musical.

Óbvio que com nove anos nós não temos consciência social de nada. Às vezes nem com trinta e nove anos temos - pense nas pessoas dessa idade que votaram no Bolsonaro, por exemplo? Mas para mim era uma coisa muito diferente, relativamente excêntrica, ouvir aquele repente com um palavreado confuso, cantado pelo casal Mauro e Quitéria, já no começo do registro. Essa abertura, antropologicamente estranha, fazia a ponte para a música Miséria, que efetivamente abria o álbum. Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes / Índio, mulato, preto, branco / Miséria é miséria em qualquer canto. Os versos surgiam meio rasgados, sujos, uma batida roqueira que misturava regionalismo, com uma letra que olhava para os vulneráveis, ecoava as aflições dos carentes. Eu não percebia isso num nível de consciência enquanto escutava a canção com um sorriso no rosto. Mas isso me fez desde cedo refletir, talvez até de maneira inconsciente: havia miséria. Em qualquer canto. E a morte não causava mais espanto.


Quando lançou esse trabalho, os Titãs já eram uma banda consagrada, com uma dúzia de hits radiofônicos - Sonífera Ilha, Marvin, Televisão, Não Vou Me Adaptar, Comida e outras - tocando nas paradas. Álbuns como o essencial Cabeça Dinossauro (1986), já haviam tornado a banda uma espécie de porta-voz anti autoritarismo, com músicas como Polícia, Bichos Escrotos, Família, Igreja e outras servindo como denúncia da hipocrisia da sociedade e de suas instituições. Era um disco mais punk. Mais rock. O que Õ Blésq Blom parece ter feito foi atenuar a melodia - sai a agressividade, entra algum tipo de sutileza, que reverbera pop e rimos regionais -, mas mantendo a mesma pegada de crítica. "Havia o momento do Brasil que estava se desenhando muito problemático, uma ditadura militar ainda se desmanchando, a morte de Tancredo. O clima era de desilusão, um cenário de distopia", chegou a afirmar o baterista Charles Gavin em entrevista na época do lançamento de Cabeça. Esse espírito, essa abordagem, se arrastou por mais alguns álbuns, com os Titãs ecoando a fúria juvenil, de quem se recusava a se dobrar para um "sistema".

Com uma mistura de ritmos nordestinos, do repente ao maracatu - que mais tarde contribuiriam para a consolidação do movimento manguebeat -, o disco ainda deu ao mundo a música Flores, talvez um dos maiores hits dos Titãs. Em suas curvas, outras canções como O Pulso, 32 Dentes, Medo e, especialmente Deus e o Diabo (uma de minhas preferidas), reafirmaram a relevância do trabalho, um monumento ao rock cheio de guitarras suingadas, batidas criativas, efeitos sinuosos e que nos apresentava um coletivo em plena forma. Até retornar à moda no final dos anos, quando canções insossas como Epitáfio passaram a fazer sucesso nos bailes do formatura, a impressão que se tem é que os Titãs nunca mais tiveram a energia juvenil apresentada nesse trabalho. Septuagésimo quarto melhor disco da música brasileira - de acordo com votação feita pela Rolling Stone -, o álbum permanece na memória de quem, no final dos anos 80, ainda não sabia bem o que era ter esperança por dias melhores. Mas que encontrava na voz amargurada e cheia de vigor de Mauro e Quitéria, um estranho caminho possível.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Disco da Semana - Big Thief (Two Hands)

Existem coisas que raras vezes acontecem no mundo da música e das artes em geral. Um artista no topo de sua habilidade criativa de alguma forma amplia sua capacidade de produzir, potencializando características esboçadas em seus trabalhos anteriores e desenvolvendo uma identidade incrivelmente própria. E mais: em um período menor que seis meses consegue trazer ao mundo duas obras que estão entre os mais impactantes lançamentos do ano! Esse é o caso da banda americana Big Thief que, após o incensado e elogiadíssimo U.F.O.F. nos brinda agora com este maravilhoso Two Hands. Se no primeiro havia um clima mais "espacial" no indie/folk/rock praticado pelo grupo, no segundo a banda capitaneada por Adrianne Lenker recorre à simplicidade como grande trunfo de suas poderosas canções.

Como nos grandes discos que conseguem captar a atmosfera do local onde a banda se encontra, em Two Hands vemos uma banda em plena capacidade de execução e expressão dos sentimentos decorrentes das composições. Ao optar por um som cru sem muitas aparas e imperceptíveis overdubs, a sensação é a de estarmos assistindo ao ensaio de dentro do estúdio. E é aí que a mágica acontece de verdade. Bateria, baixo, violão, guitarra, o vocal peculiar de Lenker, são fatores a princípio pequenos mas que em conjunto resultam em algo difícil de explicar em palavras. E sabemos que quando nos maravilhamos com algo palavras geralmente nos faltam. Se no anterior sons nos remetiam a uma certa estranheza, como se estivéssemos em um lugar desconhecido, é no clima de familiaridade que somos acolhidos neste mais recente lançamento. E sabemos que a simplicidade requer muito trabalho para ser atingida.


Na introdução com Rock and Sing já podemos sentir a tristeza característica da voz de Lenker, bem como sua letra melancólica que nos convida a fazer exatamente o que o título diz. Funciona como uma leve (e breve) introdução preparando o terreno para a fabulosa Forgotten Eyes, cujas guitarras lembram um pouco Neil Young and Crazy Horse, onde Lenker brilha com sua voz ao mesmo tempo poderosa e vulnerável que contrasta com doçura no refrão. Uma das grandes canções do ano. The Toy é triste e climática enquanto Two Hands é formidável em sua execução - a maneira como a percussão, os instrumentos dedilhados e o vocal se encaixam é algo que beira o sublime em seu desabafo agridoce sobre um relacionamento difícil. Those Girls segue com delicadeza instrumental e vocal frágil enquanto Shoulders e a seguinte, Not, trazem as guitarras novamente à tona dando um clima mais roqueiro e intenso ao disco num de seus melhores momentos, peso esse que é complementado pelas letras viscerais de Lenker. Wolf ainda traz guitarras dedilhadas e a dupla final, Replaced e Cut My Hair, encerram o álbum em uma nota mais calma e melancólica.

O finado (e saudoso) Jeff Buckley certa vez declarou: "Ser sensível não é o mesmo que ser fraco. Significa estar tão dolorosamente atento que mesmo uma pulga pousando sobre um cão soaria como uma explosão". Ao nos depararmos com obra de tamanha sensibilidade é importante algo que chamo de contexto musical: sabe quando você ouve o disco certo no momento certo? Quando parece que alguma força além da compreensão te faz entrar em contato com aqueles sons, melodias, e parece que você está na companhia de amigos que te afagam mas ao mesmo tempo te jogam verdades doloridas (e purificadoras) na cara? Que você sente que amadureceu um pouco mais ao final da jornada? Pois é exatamente isso que aconteceu comigo durante a audição deste soberbo Two Hands. Uma obra difícil de se livrar e quando você se dá conta já colocou no repeat, ouviu dezenas de vezes, e aquilo foi se entranhando no inconsciente num crescendo cada vez maior. É algo raríssimo de acontecer - e muito especial. O disco do ano até agora.

Nota: 10


Cinema - A Noite Amarela

De: Ramon Porto Mota. Com Rana Sui, Ana Rita Gurgel, Marina Alencar e Felipe Espíndola. Terror, Brasil, 2019, 100 minutos.

Enquanto assistia ao nacional A Noite Amarela só conseguia pensar na página do Facebook Infelizmente millenialls são uma merda - por que, puta que pariu, que grupo de adolescentes CHATO DA PORRA o que protagoniza esse filme. Bom, excetuando-se o fato de se tratar de uma obra experimental, claramente de baixíssimo orçamento, o filme absolutamente não funciona. Nem como suspense psicológico, nem como drama adolescente, nem como comédia involuntária. Pra começar as personagens são muito mal construídas: são sete adolescentes que pouco se diferenciam entre si. Com personalidades extremamente parecidas, os sete protagonistas agem com aquele misto de presunção com letargia juvenil - isto a despeito dos figurinos eventualmente variados, das cores de cabelo diversificadas ou de outros detalhes que pudessem denunciar alguma diferença no comportamento de cada um deles. E quando isso acontece, tu não te envolve, infelizmente.

A única personagem que parece ser um pouco diferente - mas só parece - é a adolescente de nome Karina (Rana Sui). Quando ela e os demais colegas que estão terminando o Ensino Médio chegam a uma ilha nordestina para passar férias, ela parece sentir algum tipo de "vibração" diferente no local (especialmente na casa decrépita que abrigará o grupo em sua estada). Andando pelos cômodos, silenciosamente, é emanada uma espécie de tensão. Mas uma espécie de tensão que, vamos combinar, nunca se concretiza. Assim como ela surge, ela vai embora, quase de forma inexplicável. Pior: o comportamento de Karina é tão esquisito que ela é capaz de adotar um tom mais severo em determinada sequência - como no instante em que investiga antigas fitas VHS em um cômodo escuro - para no instante seguinte surgir rindo e se divertindo com os demais colegas. Falta profundidade na construção de cada personalidade: é tudo meio oco, raso.


Como filme experimental, a obra do diretor Ramon Porto Mota abusa de sobreposições, elipses e outras trucagens de edição, que mais parecem encobrir as deficiências do roteiro. A história de jovens que vão para um local passar férias e encontram um ambiente perturbador em que coisas estranhas acontecem é quase tão antigo quanto o cinema: mas na tentativa de alterar a lógica desses eventos, construindo um outro tipo de ambientação, o filme parece dar voltas e mais voltas sem nunca chegar a lugar nenhum. Há cenas que parecem meio aleatórias e que pretendem, ao menos de forma aparente, auxiliar o espectador na compreensão daquilo que assistem - como as divagações sobre "fotografia quântica" que aparecem na já citada fita VHS -, mas que parecem apenas instantes esparsos, que depois simplesmente desaparecem da narrativa. E o que dizer da inexplicável sequência da briga em um posto de gasolina, em que todos se regozijam após Karina estourar uma garrafa na cara de um guri, por causa de uma discussão envolvendo som automotivo?

Além disso, há um seríssimo problema de iluminação no filme, que é absurdamente escuro. Tanto que a gente só começa a perceber qual a cara (e a expressão) de cada um dos protagonistas lá pelos quinze minutos de projeção. E se a luz surge clara no rosto de um dos jovens e escura no de outro, isso não acontece para acentuar a personalidade distinta ou um comportamento eventualmente antagônico: simplesmente acontece, mas sem nenhum sentido. Como no momento em que Karina tem um longo debate com Mônica (Ana Rita Gurgel). Há estátuas decadentes, há um farol, há um personagem gay que faz um discurso sobre espiritismo (!) mas, nada se encaixa. Juro que estava com a melhor das expectativas para esta película - não gosto de filmes de terror, de sobrenatural ou de jump scares, mas resolvi conferir este, por ser nacional: bom, se havia algo "genial" lá no fundo, que eu não percebi, me digam. Para mim o filme foi apenas aborrecimento e experimentalismo inócuo. Infelizmente.

Nota: 1,5

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Cinema - Em Guerra (En Guerre)

De: Stephane Brizé. Com Vincent Lindon, Mélanie Rover, Jacques Borderie e David Rey. Drama, França, 2018, 113 minutos.

Não fosse a presença sempre magnética do astro Vincent Lindon, e Em Guerra (En Guerre) poderia ser confundido com um documentário sobre a crise desencadeada por um processo de demissão em massa numa indústria francesa. A câmera sempre íntima de suas personagens, os longos planos sequência, a utilização de som diegético e os diálogos amplamente naturalistas transformam a película de Stephane Brizé no elogio da luta trabalhista diante de um sistema que oprime e que ignora completamente o esforço do operariado, seus direitos e, consequentemente, sua subsistência. Aliás, esta não é a primeira vez que Brizé aborda o tema: foi assim também no ótimo O Valor de Um Homem, em que se distanciava a França glamourosa dos cartões postais e de pontos turísticos romantizados como a Torre Eiffel, para entrar em seu lugar um País que convive com o desemprego alarmante e com o abismo social que coloca em lados opostos ricos e pobres.

Bom, se na película de 2015 um desempregado de meia idade lutava com todas as forças para tentar retornar ao mercado de trabalho, agora, a causa é coletiva, já que 1.100 empregados da fábrica Perrin Industrie são demitidos após o fechamento do Parque, que reabrirá na Romênia, com salários mais baixos. E o pior, os executivos da companhia estão ignorando completamente um acordo feito dois anos antes, com a participação dos sindicatos - muitas vezes criminalizados -, em que os funcionários ampliavam a sua carga horária, abrindo mão de honorários e outros benefícios, para garantir a manutenção dos seus empregos. O motivo alegado pelos industriários é a insatisfação dos acionistas: mesmo com a empresa dando lucro (17 milhões de euros anuais), este não estaria sendo satisfatório no mercado. Uma equação de difícil compreensão e que fará os trabalhadores, encabeçados por Laurent Amedeo (Lindon), irem literalmente à luta.


Greves, passeatas, longos debates com sindicatos, mobilizações, busca de apoio político, da imprensa e do Ministérios Público e uma série de outros recursos serão aplicados pelos trabalhadores, que viverão uma verdadeira via crucis de enfrentamento à homens engravatados em prédios imponentes, mas que parecerão o tempo todo estar pouco "se lixando" para a sua causa. É uma obra que vai ao centro nervoso de uma briga trabalhista, de forma crua, direta e absurdamente verossímil. Uma luta inglória, aliás. Nesse sentido chegam a impressionar não apenas as sequências em que se discutem as próximas ações coletivas para que haja alguma conquista efetiva - e a verborragia pode ser cansativa para quem não tem paciência para um filme com esta temática -, mas também aquelas em que o enfrentamento se apresenta como única solução, sendo possível acreditar realmente nas agressões sofridas pelos trabalhadores, quando entram em choque com a polícia (e com o Estado).

Filme que não apresenta solução fácil, a obra pode soar apelativa em seu terço final - ainda que saibamos que dificilmente se conquista alguma coisa nesse meio, sem alguma "atitude extrema". Ostensivamente panfletário, o roteiro mostra que quem define as regras do jogo é sempre o lado mais forte dessa equação, cabendo à ponta mais frágil se unir e ter inteligência para que haja comoção da opinião pública - ainda que a mídia dificilmente ajude. Com uma excelente mise-en-scène - particularmente gostei muito da presença da imprensa no filme, que lhe confere um ar de "permanente reportagem" -, a obra peca apenas nos excessos relacionados à trilha sonora (que busca amplificar o clima bélico, mas que no fim parece apenas um barulho confuso) e a seu tamanho (lá pelas tantas as ideias parecem se repetir). No mais, é como se estivéssemos no centro de uma manifestação que teima em lutar contra as injustiças de um sistema que privilegia quem tem dinheiro. E que sacrifica diariamente milhares de trabalhadores. A propósito, qualquer semelhança com o nosso País não será mera coincidência.

Nota: 8,0


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Disco da Semana - Elza Soares (Planeta Fome)

Quando da ocorrência de governos opressores acaba havendo um movimento quase natural que coloca em lados opostos o Estado e os artistas. Podem observar. Foi assim na Ditadura Militar, com compositores e músicos como Geraldo Vandré e Chico Buarque de Holanda ecoando a voz dos oprimidos, que ansiavam pelo "carnaval" que parecia nunca chegar. É assim na atualidade, com um grande número de escritores, cantores, artistas plásticos utilizando a sua arte para se defender, para soltar o grito daquilo que não pode, que não é de Deus, que desrespeita a moral e os bons costumes e a "família tradicional", conservadora e hipócrita, claro. Bom, não é novidade que a Elza Soares sempre foi a representação de tudo aquilo que o homem branco, hétero e antiquado, abomina. De família simples, preta, mulher, sempre usou sua aveludada voz e seu talento musical para fazer um contraponto da lógica estabelecida pelo mercado certinho, quadrado.

E o que mais impressiona é o fato de os anos passarem, com Elza permanecendo ativa, prolífica. Com uma média de quase um disco por ano - ao menos nos últimos anos -, tem sido a voz que representa as minorias, os vulneráveis, aqueles que precisam falar, gritar, mas não sabem como. Bolsonaro, todos sabemos, é o inimigo público número um das artes. Aliás, não só das artes, do POVO. Elegeu a Lei Rouanet como uma espécie de "bode expiatório" do mau uso do dinheiro público na cultura, que seria povoada por pessoas peladas, depravadas, ofensivas. Ignorou assim a importância do papel da arte, da transformação que ela é capaz de promover, se bem conduzida, inclusive como política pública. E talvez seja por tudo isso que Elza sinta tanta necessidade de se expressar. E por nós que ela se expresse, já que cada disco é melhor que o outro. Cada petardo é certeiro, dito de forma sinuosa, lânguida, de uma forma que jamais conseguiríamos, na lata, sem medo.



"O Brasil está doente mas estou avançando", disse a artista em uma entrevista à Folha de São Paulo. Ela está lançando o seu 34º disco da carreira, que leva o título de Planeta Fome - que alude a resposta que ela deu a Ari Barroso quando tinha apenas treze anos e se atreveu a cantar em um programa de calouros da extinta Rádio Tupi. Esse atrevimento glorioso permanece embotado em Elza, no novo material em que ela nos entrega. A palavra zeitgeist é utilizada hoje em dia sem nenhuma parcimônia para resumir o "espírito de nosso tempo". Mas é que Planeta Fome traduz justamente esse sentimento. "Nos anos 60 eu via muita gente na rua. Chico, Caetano, aquelas composições fortes. Sofreram, claro, por toda a rebeldia. Mas hoje, está todo mundo com medo de falar. É por isso que uso a minha voz, para falar o que se cala", afirma a artista na mesma entrevista, garantindo, metaforicamente, que está com FOME. "De saúde, de respeito, de amor, de um País melhor".

No repertório do álbum, produzido por Rafael Ramos, do Selo Deck, há regravações como o clássico Comportamento Geral de Gonzaguinha, que nunca soou tão atual (Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que tá desempregado) e Pequena Memória de Um Tempo Sem Memória de Seu Jorge. Em Não Tá Mais de Graça, um dos hinos de Elza, A Carne, é recuperado com uma pequena mudança que celebra as conquistas da comunidade negra (A carne mais barata do mercado / Não está mais de graça). Nas inéditas, uma mistura de ritmos regionalistas (Libertação), MPB (Menino), rock (Bla Bla Bla) e música brega (Tradição). Em todas elas uma visceralidade, uma crueza que exala por cada "poro", exaltando um povo que não baixará a cabeça sem lutar, como comprova País do Sonho, uma das tantas candidatas a música do ano (Eu preciso encontrar um país / Onde a corrupção não seja um hobby / Que não tenha injustiça, porém a justiça / Não ouse condenar só negros e pobres). A Rainha do Samba definitivamente não existe mais. Virou a Rainha de Tudo. E de todos.

Nota: 9,0

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Músicas Gêmeas - Jorge Ben Jor x Rod Stewart

Foi a mais linda história de plágio ô ô ô. Que me contaram e agora eu eu vou contar. Daquela vez que o Rodzão pegou, um trecho de Taj Mahal. Daquela vez que o Rodzão pegooo ou, um trecho de Taj Mahal. Te te te te teteretete, te teteretete, te teteretetee. Sim, um dos casos mais curiosos e, por que não, divertidos de plágio na história envolve o cantor Rod Stewart, que teria se apropriado indevidamente de um trecho de Taj Mahal do Jorge Ben Jor - mais precisamente o seu indefectível refrão - para a construção da sua atemporal Do Ya Think I'm Sexy? Na época a história deu o que falar, com direito até a matéria no Fantástico, com uma dramatização típica do jornalismo sensacionalista brasileiro (vale procurar!). Bom, o caso é que Ben Jor, que lançou originalmente Taj Mahal em 1972 moveu uma ação sobre direitos autorais contra Stewart que trouxe ao mundo a sua composição em 1979. Tudo parece ter terminado de forma amigável, afinal o inglês admitiu o plágio, nesse episódio em que tanto a cópia quanto a original se tornaram hinos inesquecíveis.







Picanha em Série - Killing Eve (1ª e 2ª Temporadas)

De: Phoebe Waller Bridge. Com Jodie Comer, Sandra Oh, Kim Bodnia e Fiona Shaw. Comédia dramática / Policial, Reino Unido 2018/2019, 700 minutos (total aproximado).

Surpreendente, sedutora, divertida, sangrenta! É simplesmente impossível classificar Killing Eve (Killing Eve), uma série que reconfigura totalmente o conceito de "jogo de gato e rato" que muitas vezes ocorre nos thrillers convencionais, assim subvertendo a sua lógica, se tornando imprevisível a cada novo episódio. Exibida originalmente pela BBC, a série coloca em lados opostos uma fria assassina psicopata, que leva a alcunha de Vilanelle (interpretada de maneira irretocável por Jodie Comer) e uma investigadora da inteligência britânica - e Eve do título (Sandra Oh) - que se empenhará de todas as formas em capturar a criminosa. A história é simples, mas o charme está em cada curva do programa, em cada investida de Eve na tentativa de alcançar Vilanelle e nas reviravoltas que tornam o programa uma espécie de bomba-relógio cômica e violenta em igual medida.

Com duas temporadas lançadas de oito episódios cada, a série começa com a assassina realizando o seu ofício - e executando as mortes para as quais é contratada das formas mais bizarras e cruéis possíveis. As vítimas podem ser desde burgueses pederastas, passando por testemunhas ocasionais, até renomados líderes políticos que, sabe-se lá por quê, encontrarão em seu caminho a fúria divertidamente agressiva (e sexy) de Vilanelle. Contratada por Konstantin (Kim Bodnia), que talvez tenha ligação com um grupo conhecido como "Os 12" e que representa o Governo Russo, a psicopata verá o cerco fechando ao seu redor, conforme Eve levanta pistas e se aproxima da sua antagonista. Mas há algo a mais nessa relação entre ambas, que explodirá futuramente em um misto de te(n)são e ódio, de admiração e de desprezo, encontrando seu limite nos fortuitos encontros entre ambas, que sempre serão concluídos de forma inesperada (inclusive para nós, espectadores).


Com ótimos desenho de produção, figurino e até objetos cênicos, a série, criada por Phoebe Waller-Bridge (a protagonista de Fleabag) reserva para o público um sem fim de episódios e sequências inesquecíveis e que podem envolver um simples frasco de perfume (ou um batom), um investigador em meio a boate na hora errada, um esfaqueamento de surpresa ou mesmo um maluco que "captura" Vilanelle e que parece ter mais problemas que a própria. Repleta de ambiguidades, a série ainda desperta dúvidas sobre o comportamento de certas personagens, como é o caso de Carolyn (Fiona Shaw) - afinal de contas, de que lado ela está? E há ainda o surgimento, no meio do caminho, de uma outra assassina, que leva a alcunha de The Ghost e que poderá modificar ainda mais o relacionamento entre Eve e Vilanelle. Entre o deboche a curiosidade, a vilã da história parece ficar, vejam só, com ciúme dos procedimentos da outra. Sim, nada é muito lógico no decorrer da história.

Indicada a vários Emmy - inclusive Melhor Série Dramática -, a premiação consagrou Jodie Comer como Melhor Atriz em Série Dramática no evento realizado no mês passado. E, vamos combinar que o show é todo dela. Cheia de trejeitos, alternando um humor mais sisudo com outro mais cômico, a atriz é parte do que torna Killing Eve tão interessante. Há alguma lógica em seus atos que a tornam uma espécie de anti-heroína involuntária (como no caso do assassinato abusadamente "colorido" e tenso ocorrido em um um bordel na Holanda). Há o sotaque delicioso, o gestual plácido, a graciosidade quase infantil como um contraponto para a brutalidade de sua violência e Comer faz tudo isso da forma mais natural possível, abusando dos olhares insidiosos, do comportamento furtivo. O que forma o contraponto perfeito para uma Sandra Oh igualmente talentosa.


quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Cinema - Coringa (Joker)

De: Todd Philips. Com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Frances Conroy, Brett Cullen e Zazie Beetz. Drama, EUA, 2019, 122 minutos.

"Sou só eu ou o mundo está ficando mais louco?" Está. Está ficando mais louco. As pessoas estão perturbadas, insanas, descrentes. Estão acoadas lutando para sobreviver e tentando entender o que acontece nesse universo de caos, de violência gratuita, de ódio, de polarização, de indecência política e de banalização (e legitimação) da grosseria, da estupidez e da intolerância. Estão conectadas em aparelhos, mas estão distantes, frias, individualistas. Há uma sensação de isolamento em meio a confusão de tudo que parece nada. Há um futuro incerto. Há dor. Doença. Desamor. Deboche. Dívidas. Depressão. Gatilhos despertados. Assassinato e brutalidade. O filme Coringa (Joker) - essa verdadeira hecatombe fílmica que não parará tão cedo de ser falada, estudada, analisada - se passa no começo dos anos 80, mas dialoga completamente com o tempo em que vivemos. E talvez por isso incomode. Por não dar uma solução fácil. Por nos jogar o absurdo na cara, como quem diz: lidem com isso.

O poder da arte é inacreditável e por mais que haja gente achando que o filme do diretor Todd Philips - cuja melhor obra, pasme, é o primeiro Se Beber Não Case (2009) - faça algum tipo de apologia (ou banalize) a violência, dificilmente uma obra de ficção vai conseguir competir com a vida real. Violência estilizada? Sangue glamourizado? Nada que Tarantino não tenha feito. Personagens com problemas psicológicos que, a partir do disparo de algum "gatilho" (no sentido metafórico), resolvam surtar? Oras, Travis Bickle de Táxi Driver está aí para dizer que o sangue é derramado desde as obras mais trágicas de Shakespeare. E, sim, pessoas perturbadas existem ou alguém já se esqueceu que Mark Chapman assassinou John Lennon sob a alegação de ter sido "inspirado" pelo clássico juvenil O Apanhador no Campo de Centeio? Alguém acredita que a literatura insidiosamente juvenil (ainda que melancólica) de J. D. Salinger tenha efetivamente esse potencial destrutivo? Bom, uma pessoa perturbada, provavelmente com uma série de problemas psicológicos achou e, bom, o resto é história.


Bom, o Coringa que leva o nome de Arthur Fleck, vivido por Joaquin Phoenix - que parece ter nascido para o papel -, é justamente uma dessas figuras rejeitadas pela sociedade, que vive a margem, com um amontoado de demônios interiores e sofre. Na primeira sequência ele está trabalhando vestido de palhaço em uma loja, segurando uma placa. É acossado por um grupo de skinheads à moda da Gotham City mais fétida possível, que lhe espancam. E assim a vida seguirá lhe dando porradas, com o sujeito, de pouco trato social, perdendo o emprego, tendo dificuldade de relacionamento com qualquer pessoa (especialmente as mulheres) e tendo como único prazer da vida assistir um programa de variedades apresentado no final da noite por um certo Murray Franklin (Robert De Niro, emulando os trejeitos de David Lettermann). Enquanto cuida da mãe doente, Arthur apanha da vida. E sonha em participar do programa de Murray. E apanha mais um pouco da vida. E luta por um emprego. E apanha. E tenta ser comediante de stand up. E apanha. E apanha. Até que reage. Explode. Tem o gatilho "disparado". Literalmente.

A revolta de Arthur, que em certa altura do filme tem uma reação extrema diante da provocação de três jovens playboys em um metrô, gera uma reação em massa que transforma o episódio particular no eco de uma sociedade cansada de tantas injustiças. A cidade está imunda por conta das greves dos lixeiros - aliás, ponto pro desenho de produção já que Gotham surge como uma metrópole palpavelmente emporcalhada, cinza e com aparência permanente de suja (nunca vi tanto saco de lixo amontoado). Há também o cancelamento de programas sociais que geram renda - inclusive para Arthur. O desemprego, a pobreza, tudo parece aumentar em uma sociedade de contrastes, tendo a figura do multimilionário Thomas Wayne (Brett Cullen) como a representação da elite a ser derrubada. Não demora para que muitas pessoas vistam também as máscaras de palhaço. Ou se pintem como um. As injustiças têm de cessar. O que não será possível sem violência. É o proletário, a classe operária tentando ir ao paraíso. E tornando Arthur/Coringa uma espécie de ícone de sua revolta.



Nesse sentido, acreditem, os cinéfilos de "direita" (eis que eles existem) estão detestando o filme por causa de seu componente político. Já houve até twitada dizendo que o Coringa deveria ir para Cuba. Mas isso é reduzir uma obra imensa, um complexo estudo de personagem de uma figura que é uma no começo e outra no fim da película, a uma narrativa meramente política - e quem já viu DE FATO filmes políticos sabe que esse Coringa poderia até ser maior nesse debate, se houvesse ainda mais contexto que deixasse as diferenças sociais ou econômicas escancaradas. Mas nem é tanto assim. A meu ver muito maior do que isso é o Coringa como obra de arte em si. É a entrega inacreditável de Joaquim Phoenix a um papel que lhe levará certamente a uma nominação ao Oscar - o que ele faz com o rosto enquanto ri compulsivamente, tentando refrear essa sua "condição" é assombroso. É um filme com uma edição de som que torna tudo mais incômodo, mais ruidoso, com engrenagens, barulhos e músicas que vêm sabe-se lá de onde e que servem para estabelecer o caos interno, a confusão, a entropia. É a fotografia azuladamente saturada e melancólica como complemento ao desenho de produção - já citado - que transforma a cidade em um ambiente permanentemente pestilento. É o conjunto da obra que faz desta uma experiência única e que nos faz ter prazer em ir ao cinema. Sobre o Coringa ser "de esquerda"? Nem ele percebeu isso. Mas para nós todos que amamos essa arte, trata-se da cereja do bolo.

Nota: 10

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Novidades em DVD/Now - Toy Story 4 (Toy Story 4)

De: Josh Cooley. Com Tom Hanks, Tim Allen, Madeleine McGraw, Tony Hale, Christina Hendricks, Keanu Reeves e Jordan Peele. Animação / Comédia, EUA, 2019, 100 minutos.

Vamos combinar que, em relação aos episódios anteriores, não há muita inovação no Toy Story 4 (Toy Story 4). Mas, como sempre acontece na série, trata-se de um filme bom de assistir e muito acima da média, quando o comparamos a outras animações. Partindo exatamente de onde parou no final do terceiro episódio, Woody (Tom Hanks) e companhia estão em uma nova casa, onde agora são "propriedade" da pequena Bonnie (Madeleine McGraw), que está prestes a ir para a pré-escola. No educandário, Bonnie construirá, de maneira artesanal, um novo brinquedo improvisado - de nome Forky (Tony Hale) -, que será seu novo xodó. Mas quando, em meio a uma viagem de férias, Forky desaparece, Woody, Buzz (Tim Allen), Jessie (Joan Cusack) e outros brinquedos antigos e novos, juntarão forças para que o objeto seja devolvido ao local que pertence.

Bom, como em todos os filmes da série, um fiapo de história sempre é o motivo para que o grupo se envolva em grandiosas aventuras, em que todos têm de superar desafios praticamente impossíveis, para que as coisas estejam de volta ao seu lugar. É aquela obra que num instante nos faz rir, noutro se empenha em nos fazer chorar, trazendo sempre uma mensagem otimista sobre a importância da amizade, da lealdade, de amadurecer e mudar e até de reconhecer o valor das coisas simples. Forky vai parar, inesperadamente, em uma espécie de loja de antiguidades. E no local terá de lidar com figuras ambíguas e pouco amistosas, como a boneca Gabby Gabby (Christina Hendricks) que, ao lado de outros brinquedos de aparência meio macabra, farão um contraponto vilanesco. Já ao grupo de Woody, há o reencontro com Bo (Annie Potts), que terá bastante relevância neste episódio e a adição de novos parceiros de aventuras, como o motoqueiro metido Duke Kaboom (Keanu Reeves) e a dupla Bunny (Jordan Peele) e Ducky (Keegan-Michael Key), que garantem o alívio cômico.


Nesse sentido, ainda que aqui e ali a narrativa se esforce em tentar fazer o espectador chorar, parece ser um filme menos comovente que o anterior. Há sim, nas entrelinhas, um novo tipo de mensagem sobre o "destino dos brinquedos", sobre pertencimento e sobre descobrir um mundo para além daquele que se delimita a um quarto (brinquedos podem almejar algo a mais, afinal?). Num contraponto, momentos divertidos como o desejo latente de Forky, um garfinho de plástico que vira brinquedo, de ir para um "outro local" são engraçados, ainda que eventualmente repetitivos. O mesmo valendo para a piada com Bunny e Ducky e seu grande poder de imaginação na hora de cumprir uma missão que envolve a tentativa de pegar uma chave. É tudo grandioso, megalomaníaco, com os personagens saltando por cenários em grandes proporções, se enganchando e se pendurando de um local a outro, tendo um parque de diversões como pano de fundo. Sabe quando dá a impressão de que uma missão não vai dar? Vai dar.

Do ponto de vista técnico a série impressiona cada vez mais a cada novo capítulo - e chega a ser assombroso perceber o realismo da animação já na abertura do filme, durante uma cena na noite chuvosa. O mesmo valendo para o momento em que um gato aparece e é necessário fazer alguma força para driblar a ideia de que o bichano possa ser de verdade. É um trabalho exuberante e que, dado o grau de detalhamento, merece ser reconhecido. Mas como história, confesso que Toy Story 4 apresenta alguns sinais de desgaste. As crianças crescem, se desapegam aos brinquedos, que passam a ter outros destinos, outros sentidos, nas mãos de outras pessoas. Talvez tudo isso funcione como uma metáfora para a própria película. Quando ela surgiu, ainda lá em 1995, ela era uma novidade contagiante como é um novo e deseja brinquedo nas mãos dos pequenos. Mas, lá pelas tantas, o tempo passa e começam os sinais de desgaste. Ainda há tempo de uma aposentadoria honesta para a franquia. A impressão que temos é a de que ao menos o Woody já percebeu isso.

Nota: 7,5


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Novidades em DVD/Now - Meu Bebê (Mon Bébé)

De: Lisa Azuelos. Com Sandrine Kiberlain, Thais Alessandrin, Patrick Chesnais e Victor Belmondo. Comédia / Drama, França / Bélgica, 2019, 85 minutos.

Em uma das tantas sequências formidáveis do gracioso Meu Bebê (Mon Bébé), Heloise (a sempre ótima Sandrine Kiberlain) está desesperada porque perdeu o seu celular. Dentro do equipamento estavam todos os vídeos e fotos da filha Jade (Thais Alessandrin) realizados nos últimos três meses. Com 18 anos, Jade se prepara para estudar no Canadá, assim que terminar o Ensino Médio. É a última dos três filhos de Heloise que ainda está em casa - os outros dois irmãos também já saíram. E o motivo do desespero dessa mãe que, agora, vê o ninho ficar vazio, não é não ter fotos ou vídeos da filha. Quer dizer, é também. Mas é saber que o seu "bebê", como ela carinhosamente chama a caçula, vai estar longe. E que os filhos crescem e amadurecem, afinal,  passando a ter desejos e anseios próprios, que escapam os limites estabelecidos por tantos anos pelos pais. Sim, cortar o cordão umbilical não deve ser fácil para pais que são muito ligados aos seus filhos: e de alguma forma é isso que a película da diretora Lisa Azuelos (Rindo à Toa) aborda.

Bom, o filme teria tudo para ser uma xaropice sem fim, se o conflito central não fosse bem trabalhado. Ou se Jade se apresentasse como uma adolescente rabugenta, como muitas vezes são os millenials, com Heloise fazendo o contraponto de uma mãe quadrada, antiquada. Mas não. A obra estabelece a relação familiar como um núcleo plausível, em que as pessoas erram e acertam tentando fazer o melhor, mas que apresenta Heloise como uma figura eventualmente sobrecarregada - ela é divorciada - e que coloca, naturalmente, a maternidade quase sempre em primeiro lugar. Os "namorados" vêm e vão com hora marcada, o que talvez explique o fato de que, em uma das primeiras tentativas de sair com um outro homem, ela retorne desesperada para casa, ao perceber que estava atrasada em relação ao horário que deveria estar de volta a seus pequenos. O zelo é permanente. E isso transparece em todos os gestos, olhares e cuidados emanados, de forma comovente, pela mãe. Inclusive nas brigas ou nos conflitos.


É um filme sobre a relação de mães e filhos mas que, de maneira alguma é contraindicado para aqueles que não são pais - e nem desejam ser (como é o meu caso). Ao contrário, a obra tem personagens tão simpáticos que, em alguns casos, a vontade que temos é a de entrar na tela para poder também dar um abraço naqueles que assistimos. Nem tudo serão rosas nessas relações (todos nós sabemos disso): mas o filme é conduzido num misto de leveza, graça e drama capaz de nos fazer emocionar e rir em uma mesma sequência (como é o caso daquela que mostra uma homenagem dos filhos já adultos em um aniversário da mãe). Não é uma obra que torna pesaroso o processo de "entrega dos filhos para o mundo", compreendendo-o como algo natural. Ele também pode ter desejos, querer independência, experimentar - e aos pais cabe aconselhar e educar, mas não lutar contra isso. Nesse sentido, Sandrine é hábil ao transmitir essa ambiguidade: é óbvio que ela quer que a filha vá estudar em uma ótima faculdade. Mas como lidar com a distância?

Com uma série de flashbacks comoventes, a obra ainda é inteligente em suas rimas visuais - em duas cenas distintas envolvendo aeroporto, por exemplo, numa delas quem chora é a filha. Na outra, é a mãe. E por motivos distintos. Em outra Heloise acompanha Jade caminhando no corredor de sua casa, acompanhada de um namorado, ao mesmo tempo em que, nas suas recordações, enxerga a menina agora pequena, frágil, com medo, aos cinco anos, indo na mesma direção. São sutilezas que nos arrebatam, que geram empatia. No meio de tudo ainda há o inevitável choque de gerações, que gera um sem fim de divertidos antagonismos. É o caso de uma mãe que esbraveja dizendo "você vai ver quando tiver seus filhos", para ouvir como resposta um "eu NUNCA vou ter filhos". Há contrastes. Há semelhanças. Há amor e ódio - numa linha muito tênue. Há compreensão e dedicação. Há dor e perda - também simbolizada por um avô doente que se aproxima da morte. E há também o olhar "libertador" de Heloise, quase nos instantes finais, com a sensação de missão cumprida. Ao menos até ali.

Nota: 8,0


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Tesouros Cinéfilos - Assunto de Família (Manbiki Kazoku)

De: Hirokazu Koreeda. Com Lily Franky, Jyo Kairi, Sakura Ando, Mayu Matsuoka e Kirin Kiki. Drama, Japão, 2018, 121 minutos.

O conceito de família como um "núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária" é totalmente reconfigurado no excelente Assunto de Família (Manbiki Kazoku) - último vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e que se apresenta como uma obra cheia de nuances, de poesia e de surpresas. A história começa quando o trambiqueiro Osamu (Lily Franky) está voltando para casa com seu filho Shota (Jyo Kairi) após um furto bem sucedido feito em um mercado. No caminho eles se deparam com uma garotinha miserável de nome Yuri (Miyu Sasaki) e resolvem, dadas as condições paupérrimas de sua existência, levá-la junto para a sua casa. Após saber das dificuldades que a menina de apenas quatro anos enfrenta, eles decidem permanecer com a pequena, alimentando-a, educando-a e transformando-a no mais novo integrante da família. Uma espécie de "sequestro do bem" - se é que isso é possível.

Osamu, sua esposa, a cunhada, uma avó e Shota já vivem em condições pouco habitáveis. No pequeno barraco em que moram, comem juntos, dormem juntos no mesmo ambiente em que se acotovelam (e se cuidam), se revezando em atividades gerais que lhe possibilitem alguma renda. A jovem Aki (Mayu Matsuoka), por exemplo, é uma espécie de prostituta de luxo em uma excêntrica casa em que homens pagam para observar meninas. Nobuyo (Sakura Ando), a esposa de Osamu tem o seu emprego de assalariada, mas a pobreza material reina, ao passo que o bom humor com que encaram as adversidades, o otimismo latente, forma um comovente contraponto. Que nos faz pensar justamente sobre os conceitos de riqueza e de pobreza e mesmo do real sentido da palavra "família", já que claramente a pequena Yuri nunca recebeu tanto carinho, afeto e atenção como no meio de seus novos "parentes".


Como é de praxe na filmografia do diretor Hirokazu Koreeda, a relação de pais e filhos, com a presença de crianças tentando sobreviver em um mundo de contrastes é um dos pontos centrais da narrativa. Mas não é só isso. Ao discutir até que ponto podemos considerar como nossa "família" apenas aqueles que possuem o mesmo sangue do que a gente, o realizador reserva uma gratíssima surpresa para o espectador conforme ele percebe que aquele excêntrico núcleo não é necessariamente o que parece - com as relações entre eles sendo muito diferentes daquelas que imaginávamos. E isto, inegavelmente é um dos charmes da narrativa, sendo praticamente impossível não torcermos para que eles permaneçam juntos, unidos e dedicados, mesmo quando agentes da lei aparecem para investigar parte das ilegalidades cometidas por aqueles que acompanhamos.

Trata-se de uma obra densa e leve em igual medida, nos arrancando lágrimas de enternecimento e sorrisos de canto de boca o tempo todo. Há algum tipo de inevitável estranhamento emanado muito mais pelas diferenças culturais do que necessariamente pelos atos dos personagens - havendo, aqui e ali, poucas variações entre as atitudes de ocidentais e orientais diante de situações limite. Cada abraço, cada aconchego, cada banho de chuva (ou de rio) inesperado ou mesmo uma conversa prosaica sobre puberdade entre pai e filho ocasionais são acompanhados por uma câmera que vai rente e de uma fotografia granuladamente naturalista capaz de transformar a disfuncionalidade em empatia. A gente se apaixona por aqueles que assistimos e deseja o melhor para todos. De preferência juntos, ainda que as eventuais crises de consciência possam modificar o destino. Família a gente não escolhe afinal? Não para Osamu e companhia.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Na Espera - História de Um Casamento (Filme)

Scarlett Johansson e Adam Driver em um novo filme do Noah Baumbach (Frances Ha, A Lula e a Baleia). Bom, não é preciso dizer muito mais do que isso pra vocês já saberem que História de Um Casamento (Marriage Story) estará entre os indicados ao Oscar 2020 - ocupando as vagas tradicionalmente destinadas aos filmes autorais/alternativos. Podem me cobrar depois! Nos dois teasers liberados - cada um com uma percepção do "outro" em um relacionamento -, a impressão que temos é de que esta será uma daquelas obras pra fazer chorar. Temos um casal gracioso, otimista, empático, capaz de enxergar o melhor naquele que lhe acompanha, maaaas... até quando?


No material de divulgação - que entrega demais, diga-se -, há a menção de problemas conjugais que levarão a dupla até um limite. E para que fazer com que seus filhos pequenos não sofram as consequências de uma eventual separação, o casal decide continuar vivendo sob o mesmo teto, transformando o divórcio em um processo mais amigável. Mas este novo modelo de convivência será realmente possível? Bom, só descobriremos quando o filme, que tem ainda no elenco Laura Dern, Ray Liotta e Ala Alda, estrear oficialmente, o que ocorrerá no dia 06 de dezembro desse ano. Bom, por aqui estamos Na Espera, claro.

Cinema - Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (Midsommar)

De: Ari Aster. Com Florence Pugh, Jack Reynor, Vilhelm Blomgren e Will Poulter. Suspense, EUA, 2019, 147 minutos.

Existem filmes que, muito mais do que um começo, um meio e um fim bem definidos, utilizam a sua narrativa cheia de simbologias para evocar as mais diversas sensações no espectador. Nesse tipo de obra nada é previsível. Tudo pode acontecer - desde acontecimentos surpreendentes, passando por finais não necessariamente felizes ou conclusões em aberto. Normalmente são películas que "explodem a nossa cabeça", nos fazendo remexer na cadeira e a pensar sobre tudo e mais um pouco que acabamos de assistir. Esse tipo de obra mais sensorial do que esquemática, mais incômoda do que lógica pode não agradar a todos os tipos de cinéfilos. Mas aqueles que se aventurarem certamente serão recompensados. E é exatamente este o caso de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (Midsommar), a mais recente obra de Ari Aster (do igualmente excepcional Hereditário).

Pra não tentar dar muito spoiler - o ideal é que as pessoas assistam sem ter muita informações sobre - o filme começa com uma tragédia envolvendo a jovem Dani (Florence Pugh). Após algumas ligações para o namorado Christian (Jack Reynor) relatando uma série de e-mails inquietantes e perigosos disparados por sua irmã que sofre de depressão, vem o choque: a irmã se suicida e também mata os pais em um episódio macabro envolvendo a fumaça do escapamento do veículo da família. Após algum tempo, ainda devastada pela catástrofe, Dani é convidada por Christian para, acompanhada de três amigos, viajar até a Suécia para participar de uma espécie de "festival de verão", em uma vila idílica. As férias poderiam servir para a jovem tentar seguir em frente após o ocorrido. Só que, bom, o que era pra ser uma jornada sem preocupações, logo se transforma em uma experiência perturbadora quando uma série de eventos estranhos começam a ocorrer no local.


Vestidos todos de branco, os moradores do local mais parecem neo-hippies que acreditam na elevação a partir da comunhão com a natureza - como ficará mais claro conforme a narrativa avança. Com uma série de regras estabelecidas, a comunidade vai "absorvendo" aos poucos os novos moradores, que permanecem ali entorpecidos por drogas e pelo clima bucólico, pastoril que emanará tranquilidade em cada dança, em cada movimento discreto, em cada suavidade dos gestos dos nativos. Mas há algum tipo de desconforto que, para nós, espectadores, vai ficando cada vez mais palpável - o que Aster constrói a partir de uma trilha sonora incômoda (cheia de zumbidos, efeitos e sobreposições que tornam a diegese absolutamente claustrofóbica), de uma fotografia colorida, sensorial e de um desenho de produção que coloca em lados distintos a pureza do coletivo que ali reside (suas flores, seu céu sempre azul e claro e seus comportamentos amistosos) com a violência aplicada, por exemplo, aos anciãos que ali residem - em uma das tantas sequências chocantes. O elenco está todo muito bem e os diálogos entre eles são totalmente críveis, não tornando os jovens um grupo de adolescentes necessariamente tolos (como geralmente ocorre em filmes de terror gore).

Discutindo os mais variados temas - fanatismo religioso, diferenças culturais, ritos de passagem, importância do tempo para amenizar as feridas, sensação de pertencimento a um grupo, empatia e insignificância da vida -, a obra é uma verdadeira colcha de retalhos que nos faz refletir sobre a nossa existência, nossas relações com família e com amigos, sobre comportamento humano (suas fraquezas, anseios e ambições) e também sobre a iminência da morte, evidentemente. Com poucas soluções fáceis, a obra utiliza a morosidade da passagem do tempo, como uma forma de aumentar a nossa angústia diante da inevitável tragédia anunciada que é a existência humana. Antropologicamente, ainda acho que o maior impacto de Midsommar diz respeito a uma das principais questões da atualidade e que envolve o mal que o homem é capaz de proporcionar ao próprio homem, na tentativa de impôr as suas crenças religiosas. O que por si só, já é maior atestado de qualidade dessa pequena obra-prima moderna.

Nota: 9,0