Acho que o que mais "assusta" quando assistimos ao filme Crash: No Limite (Crash) é o tipo de exame de consciência que a obra do diretor Paul Haggis nos propõe: moldados pelo sistema que nos envolve, não seríamos TODOS preconceituosos em alguma medida? Mesmo na crença de sermos ilibados seres superiores, capazes de respeitar as diferenças, estaríamos realmente livres de comportamentos discriminatórios? Não sei dizer. E acho que o que costuma causar estranhamento nessa verdadeira obra-prima moderna - que tirou o Oscar das mãos de O Segredo de Brokeback Mountain (2004), na cerimônia de 2005 - é justamente isso: é vermos em cena é um agrupamento de pessoas complexas, que reagirão ao seu meio a partir de experiências puramente pessoais. Um dia bom ou um dia ruim não são desculpa para comportamentos agressivos à moral e aos bons costumes, mas eles não influenciam as nossas ações?
Já não fomos escrotos com o garçom do restaurante porque tínhamos brigado com a namorada? Ou respondemos de forma ríspida àquele colega de trabalho boa praça porque estávamos com problemas familiares? Sim, o ser humano não é uma equação simples em que as pessoas seriam divididas arbitrariamente em boas ou más, sem exceção. Fosse assim não haveria pedófilos na Igreja. Ou votantes do Bolsonaro que participam de projetos sociais (espero que eles existam). Ninguém é ruim o tempo inteiro. Ou bom, como imaginam os maniqueístas filmes da Hollywood dos anos 90. Ou vocês são? Nunca houve um dia de fúria? De descontrole? Em Crash não torcemos por nenhum dos personagens, porque o mesmo sujeito que é um boçal racista em uma das mais repugnantes sequências do cinema moderno, será o envolvido em uma ação bem sucedida para salvar a vida de uma pessoa, após um grave acidente de carro. Também agimos por instinto, afinal.
Bom, a intenção aqui não é fazer um tratado sobre o comportamento humano a partir de uma obra cinematográfica, mas costumo considerar Crash um BAITA filme justamente pelo fato de ele evocar esse tipo de discussão. Sim, eventualmente há alguma forçação de barra, mas o caso é que o impulso pode fazer com que as pessoas tenham as mais variadas reações. Quantas notícias já não vimos por aí, de pessoas que, motivadas por sabe-se lá que sentimento, cometeram crimes para depois se arrepender? Nesse sentido e, voltando ao filme, como não se emocionar com o toque quase divino imprimido à cena em que um homem raivoso quase mata acidentalmente uma garotinha, por achar que o pai desta estava por trás de uma ocorrência policial envolvendo o seu estabelecimento comercial? Com que tipo de culpa esse homem não viveria, se houvesse nesse episódio uma vítima fatal? Armas são a maior MERDA desse mundo e o filme de Paul Haggis nos faz lembrar o tempo todo disso (como na cena em que um policial em "violenta emoção" mata um homem negro por achar que este estava sacando um revólver).
O cartaz do filme tinha uma frase embutida e que amplifica esse tipo de discussão: "até que ponto VOCÊ se conhece?" A obra foi produzida na esteira do 11 de setembro, com americanos traumatizados, impacientes na compreensão do outro e com dificuldades para tolerar as diferenças étnicas, sociais raciais (e vamos combinar que a construção de um MURO nos Estados Unidos, nos dias de hoje, não ajuda muito). Na película há a esposa rica de um promotor, uma dupla de assaltantes, um policial caucasiano veterano de guerra, um policial novato, um chaveiro latino, um detetive negro e seu irmão traficante, um diretor de cinema e sua esposa, um imigrante iraniano e sua filha... um episódio trágico envolvendo um desses núcleos aproximará os habitantes desse microcosmo. Não apenas as histórias se cruzarão: seus traumas, dores, imperfeições, frustrações colocarão todos no limite (assim como diz o subtítulo em português).
Ainda que o elenco de estrelas seja um atrativo a parte - nomes como Sandra Bullock, Matt Dilon e Don Cheadle são alguns dos que se sobressaem - a força da obra está mesmo em sua história e na análise que nós também fazemos sobre o nosso comportamento. É como se estivéssemos, afinal, em um divã. Ou diante de um espelho. Com excelente edição - o filme salta de uma história para outra de forma fluída, ágil - a película ainda utiliza a sua trilha sonora e, especialmente, a fotografia eventualmente granulada, empalidecida e sombria, como um atestado geral do estado de espírito daqueles que assistimos nessa bela narrativa. Ou mesmo de nosso tempo. Em um mundo que está bem longe de ter superado as questões de preconceitos raciais - ao contrário, a eleição de figuras como Trump e Bolsonaro ainda parecem legitimar o discurso de ódio - um filme como Crash segue dolorosamente atual. É simplesmente imperdível.