quinta-feira, 30 de setembro de 2021
Livro do Mês - As Intermitências da Morte (José Saramago)
terça-feira, 28 de setembro de 2021
Novidades em Streaming - Caminhos da Memória (Reminiscence)
De: Lisa Joy. Com Hugh Jackman, Rebecca Ferguson, Thandie Newton e Angela Sarafyan. Ficção Científica / Policial, EUA, 2021, 116 minutos.
Tive dois sentimentos distintos assistindo a esse Caminhos da Memória (Reminiscence), novidade da semana no HBO Max e no Now. Como fã de ficção científica mais existencialista fiquei fascinado com a primeira parte - mais precisamente o primeiro terço - da obra dirigida por Lisa Joy (que dirigiu epísódios de Westworld). Especialmente pelo fato desta etapa apostar muito menos na ação e muito mais na abordagem sensorial do mistério que envolve a trama. E, sim, sei que cada pessoa vive a experiência de um filme a partir da sua bagagem e da sua subjetividade. Então quando me vi assistindo a uma narrativa futurista, em uma Miami de visual impressionante (tomada pela água, resultado da péssima política ambiental) em que um sujeito trabalha em uma empresa que tem como principal virtude evocar memórias de seus clientes, eu abri um sorriso. Acreditava que o filme abriria um vasto espaço para divagações, para reflexões metafísicas sobre lembranças, sobre saudades, sobre nostalgia, sobre formas de manter registros antes que estes desvaneçam.
E, inicialmente, é o que vemos. Na apresentação da forma de atuação dessa empresa - em que Nick (Hugh Jackman) e Emily (Thandie Newton) são sócios -, os clientes que os procuram vêm com a intenção de recuperar lembranças queridas, instantes sublimes, sejam eles encontros com parentes que partiram ou momentos de inadiável alegria. Aliás, não há muita explicação sobre o funcionamento do sistema como um todo, que utiliza um equipamento repleto de eletrodos, que parece reconhecer sinapses cerebrais que formarão a imagem desejada, com o usuário utilizando uma espécie de banheira (a condução da água certamente tem a ver com o processo) - um maquinário, por sinal, que faz lembrar a invenção vista na assombrosa obra literária Recursão, do escritor Blake Crouch. Só que tudo muda de figura quando a misteriosa Mae (a belíssima Rebecca Ferguson) procurar os serviços de Nick e Emily. Só que Nick não apenas se apaixona pela jovem, uma cantora enigmática: ele se torna completamente obcecado por ela.
Só que o problema é que ela some. Simplesmente desaparece. Após um rápido affair com Nick. Uma e outra investigação paralela fará com que o protagonista perceba que Mae pode ter conexões com o crime organizado. Pior, talvez ela tenha utilizado Nick como uma espécie de bode expiatório para a obtenção de informações que beneficiassem um grupo de mafiosos. E, a meu ver, é justamente quando a trama vai pro lado mais policialesco - com perseguições, tiros, discussões, bandidos estereotipados, lugares abandonados e outros clichês -, que o filme se transforma em um exemplar apenas genérico de ação. No caso, é desperdiçada uma grande oportunidade de se discutir com mais profundidade o ônus e o bônus de um equipamento capaz de fazer com que "revivamos" memórias - imaginem o poder que este conhecimento não poderia ter na mão e governos ou de outras instituições -, para se apostar na traminha corre-corre, de edição frenética, uso de câmera lenta aleatório e pouca inspiração. Aliás, pasmem: em um momento, um dos vilões tentará afogar Nick em um aquário (!). Sendo salvo por um tiro na estrutura, o que despejará toda a água, claro.
Ok, eu tenho consciência de que muito provavelmente o problema seja eu, que espero maior profundidade onde os produtores, diretores e demais envolvidos querem apenas que o público se divirta. E é isso que uma obra de ação costuma fazer. Sem necessariamente aprofundar contextos políticos, sociais, culturais e até quânticos. Mas admito que fiquei mal acostumado com ficções científicas mais "pensantes", casos de A Chegada (2016), Ex-Machina: Instinto Artifical (2015), Ela (2013) ou A Origem (2010). Ainda assim há que se reconhecer os méritos técnicos da obra, caso da belíssima fotografia, que transforma Miami em uma metrópole de contrastes, com os mais ricos vivendo em pontos mais secos do que os mais pobres. O mesmo vale para o desenho de produção, não menos do que magnífico, com prédios e outras construções literalmente "brotando" da água. Mas é só. Jackman, Newton e Ferguson se esforçam para entregar algo que comova um pouco mais. Que vá para além do movimento pelo movimento. Mas quando acaba é apenas isso: acaba. O que me parece uma pena.
Nota: 4,5
Na Espera - Belfast (Filme)
Conforme a temporada de premiações avança vão ficando mais claros quais os filmes que, muito provavelmente, estarão entre os indicados da próxima edição do Oscar. E esse é justamente o caso de Belfast, obra dirigida por Kenneth Branagh (Thor) que tem estreia prevista por aqui para o o dia 16 de dezembro no Brasil. Vencedor do último Festival de Toronto, o filme se credencia não apenas na categoria principal, mas também em outras como Roteiro Original. Na trama voltamos à Irlanda do Norte dos anos 60 onde o jovem Buddy (Jude Hill), um menino de apenas nove anos, sonha com um futuro no mundo das artes, em meio ao contexto tumultuado que envolveria a luta por direitos civis da classe trabalhadora - e a consequente violência que partiria desses eventos. O elenco tem como destaques nomes como o da veterana Judi Dench, além de Jamie Dornan. A expectativa é alta!
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
Novidades em Streaming - Pássaros de Liberdade (Birds of Paradise)
De: Sarah Adina Smith. Com Diana Silvers, Kristine Froseth, Jacqueline Bisset e Stav Strashko. Drama, EUA, 2021, 114 minutos.
Devo admitir que, a despeito da temática atrativa, fui para a sessão desse Pássaros de Liberdade (Birds of Paradise) - novo filme disponível na plataforma da Amazon Prime -, sem maiores expectativas. E talvez seja por isso que tenha me surpreendido positivamente. Ok, não estamos diante de um novo Cisne Negro (2017). Não chegamos a tanto. Mas isso não desmerece o esforço da diretora Sarah Adina Smith em não apenas nos entregar uma obra sobre superação de obstáculos - algo bastante natural nas academias de balé -, mas também uma experiência eventualmente sensorial, o que amplia o arco narrativo central para além da disputa por espaço envolvendo duas jovens bem diferentes entre si. Nesse sentido, acredito que a película agradará em cheio não apenas os fãs de cinema mais jovens - especialmente pelos conflitos à moda millenial -, mas também os mais experientes que poderão, aqui e ali, encontrar algum sentido um pouco mais aprofundado nas eventuais mensagens cheias de simbolismos espalhadas no roteiro.
Nesse sentido, há um momento meio central em que Kate (Diana Silvers) e Marine (Kristine Froseth) conversam, numa tentativa de "aproximação" - já que, até aquele momento, os eventos ocorridos nos bastidores da academia de balé que ambas frequentam, serviriam apenas para colocá-las como as antagonistas da trama. No diálogo, Kate revela uma história que era sempre contada pelo seu pai, na juventude, sobre os animais estarem se comportando muito mal na floresta em que viviam. Insatisfeitos com a situação, os deuses teriam envolvido a Terra em um amplo cobertor escuro, tapando inclusive o sol. Foi então que uma pequena passarinha resolveu voar o máximo que podia, o mais alto possível para "bicar" o cobertor, fazendo buracos nele. Impressionados com a valentia do pequeno animal, os deuses resolveram amenizar a pena deixando a terra coberta em apenas metade do dia. E foi assim que o dia e noite teriam sido concebidos. Com as estrelas sendo cada um dos furos feitos pela passarinha.
Ok, talvez contando assim esse momento possa soar meio bobinho. Talvez até infantil. Mas ele é concebido de uma forma muito mais evocativa, com a inserção de colagens de imagens fabulosas, quase como uma espécie de devaneio bucólico, de belíssimo resultado visual. Não são poucos os instantes em que Kate e Marine surgem dançando ou interagindo de alguma outra forma, o que faz com que o espectador mergulhe em um universo abstrato, extravagante, em meio a densa floresta. E é ao elevar a parte técnica para um patamar levemente superior, que o filme alcança uma outra proporção na abordagem da "obra de amadurecimento". Fora o fato de que não há vilões desenhados de uma forma óbvia na história - e a quebra de estereótipos também é um mérito. Kate é a menina pobre, uma espécie de Billy Elliot que alcança seu sonho através de uma bolsa de estudos (e com grande esforço de seu pai). Já Marine é a filha enfastiada de uma diplomata, que utiliza sua influência (e seu dinheiro) para benefícios próprios. A conexão entre as duas servirá para que percebamos a exigência do universo desse tipo de arte, de tão altíssimo nível, seja o verdadeiro "vilão".
Ainda assim é claro que este não é o único arco narrativo. Há tramas paralelas que movimentam a história - caso do pouco esclarecido caso da morte do irmão gêmeo de Marine, com o qual ela mantinha uma relação quase simbiótica. Há também a insatisfação dos pais de Marine sobre o destino da bolsa de estudos gerida por eles, com seus recursos. Além das pitadas que envolvem encontros e desencontros dos jovens, com o abuso de drogas, o sexo, a superação de limites e as imposições físicas surgindo o tempo todo como limitadores. É, ao cabo, um filme de beleza estética e que ainda provoca reflexões sobre tomadas de decisão e sobre como elas poderão influenciar as nossas vidas para sempre. E sobre como é importante poder colocar a cabeça no travesseiro sem sofrer com dúvidas morais, éticas. Para um filme "juvenil", não deixa de ser interessante. Ah, e quase esqueço, ainda há a veterana musa Jacqueline Bisset, do alto dos seus 77 anos e mais de 50 filmes na carreira, interpretando a instrutora linha dura. Vale conferir.
Nota: 7,5
sexta-feira, 24 de setembro de 2021
Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - Nirvana (Nevermind)
He's the one
Who likes all our pretty songs
And he likes to sing along
And he likes to shoot his gun
But he don't know what it means
Don't know what it means
And I say, yeah
Eu tinha dez anos quando o Nevermind, do Nirvana, foi lançado. Dez. E apesar de já gostar de muito de música - os Beatles já eram uma paixão herdada, como relatei neste texto - demorei um bom tempo para perceber a grandeza daquilo que havia concebido Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl há exatos 30 anos. E talvez até hoje ainda não compreenda direito - especialmente quando ouço os acordes iniciais de Come As You Are em alguma rádio alternativa aleatória, que parece encravada em uma época que não volta mais. Aliás, uma época em que o rock talvez ainda fosse algo relevante. Foi bem mais tarde que eu fui prestar atenção no famoso disco da capa do bebê pelado perseguindo uma nota de dinheiro. O ensino médio já avançava. Entre uma partida de futebol na escola e a persistência em concluir algum jogo da franquia Streets Of Rage do Mega Drive, fui seduzido pelas imagens do clipe de In Bloom que, sinceramente, eu nem lembro direito de como foram parar na nossa televisão. Algum programa de variedades? Uma semi-embrionária MTV?
Sinceramente até hoje não sei. Existem memórias da nossa juventude que simplesmente se perdem por mais que tentemos evocá-las. Há algum instante meio nebuloso e nostálgico em que alguma coisa acontece mas nunca conseguimos materializa-la de forma palpável. É algo meio abstrato. Tão abstrato quanto assistir a uma banda de rock em um clipe em preto e branco, como se fosse em um programa de variedades, um vocalista loiro com óculos de nerd, todos de terninho cafona, um palquinho meio teatral (que mais tarde seria devastado naquela mistura sombria em caótica), uma guitarra pesada e bem arranjada, uma bateria bem pontuada, um refrão gutural e grudento. Sério, aquilo me fisgou. Eu precisava saber mais sobre essa música, sobre essa letra, sobre esses caras. Lembro que até obter minha edição do Nevermind em vinil - um dos poucos que preservo em minha modesta coleção, mesmo sem ter aparelho de som para ouvi-lo -, foi uma antiga cópia em K7 que movimentaria minhas tardes. Com In Bloom no talo. E todo o resto.
É claro que a fita acabou sendo a porta de entrada tardia para o meu mergulho no grunge - o que transformaria aquele adolescente magrelo de 1997 no excêntrico sujeito que usava uma camiseta xadrez AMARELA e um All Star surrado. A tiracolo, a nova obsessão se tornaria obter alguns álbuns do Pearl Jam, do Alice In Chains, do Stone Temple Pilots e do Soundgarden (esse último também já devidamente homenageado nesse quadro tão subjetivo). Aliás, sobre o Pearl Jam, um parênteses: um dia ainda relatarei por aqui a EPOPEIA que foi obter o disco Ten, quase ao final dos anos 90. E a emoção que foi tê-lo em mãos pela primeira vez. Assim, nessa época, foi que o "pessoal de Seattle" se tornou parte da minha companhia oficial. Com o Nirvana sempre à frente, numa espécie de obsessão permanente, que tornaria até o Foo Fighters uma das bandas do coração por muito tempo. Como se a onipresença de Dave Grohl fosse capaz de garantir a manutenção do legado do próprio Kurt. Vai saber.
Hoje é o dia em que, de forma justa, os sites especializados em música prestarão a sua homenagem a esse disco que, talvez junto com o Ok Computer do Radiohead forme os dois grandes pontos de ruptura em matéria de rock noventista. Analisarão a importância de Butch Vig na produção e a evolução do coletivo - que inicialmente contava ainda com Pat Smear -, até chegar ao refinamento melódico que encontraríamos em Nevermind. E em canções como Lithium, Polly, Smells Like Teen Spirit, On A Plain e as já citadas Come As You Are e In Bloon. Todas, contra qualquer previsibilidade, hits radiofônicos. Todas nostalgicamente saborosas. Religiosamente ouvidas. Todas com suas letras viscerais e enigmáticas - repletas de metáforas sobre amadurecimento, Deus, violência, amizades, excitações e tristezas juvenis. Sim, hoje é dia de tudo isso para todos as páginas que se dedicam à música - e até para quem não sabe escrever sobre o tema, mas se mete, que é o nosso caso. Porque, aqui entre nós, todo o dia é dia de Nevermind. E isso nem sempre é algo fácil de descrever.
quarta-feira, 22 de setembro de 2021
Na Espera - Não Olhe Para Cima (Filme)
Pérolas da Netflix - Febre do Rato
De: Cláudio Assis. Com Irandhir Santos, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Conceição Camarotti e Tânia Granussi. Drama, Brasil, 2011, 104 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor Cláudio Assis sabe que seu cinema é provocador, iconoclasta e até eventualmente enigmático - como comprovam os ótimos Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006). Bom, não é diferente com o hermético Febre do Rato, que está disponível na Netflix. À moda de um Glauber Rocha urbano - com direito a fotografia em preto e branco (cortesia de Walter Carvalho) - o realizador mistura o caos da metrópole e todos os seus contrastes e complexidades, com o idílio poético que é evocado a partir da margem, do gritos dos excluídos, dos vulneráveis e daqueles que, no cotidiano, não são vistos. Nesse sentido o protagonista Zizo (o onipresente Irandhir Santos) se torna uma espécie de porta-voz dos oprimidos ao editar um periódico que dá nome ao filme. Mais do que isso, portando um megafone, trafega em meio aos desafortunados da periferia como se fosse uma espécie de profeta anarquista, que conclama o indivíduo para refletir sobre a coletividade.
Ao cabo é um filme que nos apresenta uma Recife distante dos cartões postais, entrecortada por casas paupérrimas e úmidas que, paradoxalmente, encontram-se abaixo dos prédios suntuosos que se avizinham. No entorno de Zizo que leva, não por acaso, o apelido de Poeta, o ecossistema é movimentado por outros sujeitos como o gracioso casal Pazinho (Matheus Nachtergaele) e a travesti Vanessa (Tânia Granussi) e o traficante Boca (Juliano Cazarré), que toma de assalto uma fábrica abandonada onde convive com os amigos Rosângela (Mariana Nunes) e Bira (Hugo Gila). Além das vizinhas Dona Anja (Conceição Camarotti) e Marieta (Ângela Leal) que, a despeito da idade mais avançada, "movimentam" a banheira a céu aberto do protagonista - local escolhido para que sejam despejadas as paixões carnais mais desvairadas daqueles que acompanhamos (e, admito, que é simplesmente impossível não rir dos movimentos frenéticos ocorridos nesse prosaico cenário).
Mas quem mexe MESMO com o "coração" - quer dizer, digamos que o coração possa aqui ser uma metáfora para outros órgãos - de Zizo é a jovem Eneida (Nanda Costa) que, a despeito de todos os esforços (e poemas) do protagonista, desvia de todas as suas investidas. Muito mais jovem do que o sujeito, o acompanha a distância em suas andanças, enquanto se diverte com Boca, Rosângela e os demais. Resta a Zizo ir para o bar da esquina, se lamuriar na companhia de Pazinho - que também anda encrencado com Vanessa - e se satisfazer de alguma forma com Dona Anja. Ainda assim a despeito das provocações sexuais diversas - existe uma inesquecível envolvendo uma máquina fotocopiadora - há um ponto em comum que move este coletivo que está a margem: o da luta apaixonada tão anárquica quanto sofisticada, tão violenta quanto engraçada. Todos, afinal, estão do mesmo lado na hora em que a polícia resolve descer a porrada em meio a uma manifestação tão pacífica quanto despudorada.
Em entrevistas, Assis não deixa de denunciar, em algum sentido, a hipocrisia da sociedade - que ele faz questão de avançar para seus filmes. Não por acaso, em entrevista ao Brasil 247 na época do lançamento da obra, ele afirmou que estava tentando alcançar os espectadores mais sensíveis: "não querem que eu diga de uma forma direta, do jeito que é, tudo bem, eu digo com poesia". O que não significa que a provocação não esteja em cada curva da película, seja em um diálogo mais controversamente divertido - como no instante em que Pazinho admite que Vanessa é o homem de sua vida -, seja no instante em que, se empenhando em conquistar Eneida, Zizo assista a ela urinando enquanto estica a mão para o seu mijo. Sim, o cinema de Assis é sobre o que der na telha, é sobre vontades. É sobre paixões, sobre gozos, sobre comportamentos, sobre diletantismo, sobre lutas, sobre sangue, sobre suor e sobre urbes que ardem em meio ao caos social. E talvez seja por isso que seja um cinema tão irresistivelmente nosso.
terça-feira, 21 de setembro de 2021
Cinema - Cry Macho: O Caminho Para a Redenção (Cry Macho)
De: Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Eduardo Minett, Dwight Yoakam, Natalia Traven e Fernanda Urrejola. Drama, EUA, 2021, 104 minutos.
Vamos combinar: toda vez que sai um novo filme dirigido e atuado pelo Clint Eastwood ficamos nos imaginando se este vai ser o seu aceno final rumo a aposentadoria. Difícil saber. Aos 91 anos o veterano ainda parece encontrar prazer não apenas em estar atrás das câmeras, mas também em se desafiar em frente a elas. Sim, não há mais o vigor de outrora. E a a figura máscula e decidida vista em seus grandes clássicos - especialmente os faroestes - deu lugar, definitivamente, ao senhorzinho de olhos cansados, que olha para o passado com nostalgia e um certo saudosismo. E aí o que acontece em suas mais recentes obras parece ser um clima de "tributo constante". E quem analisa cinema também acaba envolvido por essa atmosfera. Não esperamos mais a virilidade e a força daqueles tempos distantes. O que entra no lugar agora é a sabedoria. A experiência a ser repassada. O caráter contemplativo, quase existencial da vida como um projeto em que a missão foi cumprida. E tudo com a certeza, talvez paradoxalmente melancólica, de que o ocaso se aproxima. De que o fim está no horizonte.
E talvez por isso a informação que se tem é a de que a equipe de filmagem teria se emocionado ao ver o nonagenário Clint em cima de um um cavalo - sequência de Cry Macho: O Caminho Para a Redenção (Cry Macho) que ele se desafiou fazer. O mesmo valendo para o instante em que ele esmurra a cara de um bandido que pretende "sequestrar" o seu protegido. O que está em jogo em um filme do tipo é a proteção ao legado. Que vem acompanhado de uma pré-disposição nossa para passar pano para os eventuais equívocos narrativos, com um roteiro que ocorre sem maiores complexidades, com desafios mínimos (e em muitos casos não muito bem explicados). É uma forma de homenagear os esforços daquele que poderia estar na beira da praia, curtindo a família e cuidando da saúde, mas que prefere entregar aquilo que mais ama, no caso a sua arte, para o público que lhe acompanha de forma quase ardorosa.
Nesse sentido parece meio estranho dizer que o roteiro do filme - baseado na novela de Richard Nash - seja o de menos. Só que é difícil analisar uma obra dessas sem dosar as paixões. É como aquele grande jogador de futebol que já foi ídolo de nosso clube e que agora, próximo de pendurar as chuteiras, padece das dores da idade, das dificuldades decorrentes do esforço agora sem resposta. Clint fez tanto pelo cinema que o filmezinho água com açúcar à moda de um "faroeste da Sessão da Tarde" serve para que nos sintamos magnetizados pela sua inebriante presença. Mesmo que com ombros agora arqueados. Mesmo que com movimentos muito mais vagarosos. E com muitas cenas em que ele anuncia para o jovem Rafa (Eduardo Minett) - o qual ele está empenhado em trazer do México para a casa do seu pai, no Texas - que está indo dormir. Miko, o personagem de Eastwood, não esconde, afinal, que está exausto. Que está velho. Não tenta ser o que não é. E talvez seja isso que nos comova. Esse olhar para a realidade que sempre chega. Com a idade, com o peso, com a saudade.
Os obstáculos de Miko e Rafa pelo caminho pouco importam. Em meio as paisagens desérticas do Sul do Texas e do norte do México, o que ficam são as lições de vida. As últimas danças inesperadas. As amizades que surgem de improviso. No road movie que acompanhamos, muito mais do que um tiro bem dado ou um soco bem desferido o que ganha valor é a palavra bem aplicada. É a generosidade transmitida, como no instante em que Miko descreve o absurdo da persistência do "macho" como um valor - o que em uma sociedade tão machista e tão misógina não é pouco. Eastwood não vai ganhar o Oscar por esse papel. Aliás, provavelmente não será sequer indicado. Mas o filme tem belas ambientações, uma fotografia granulada que faz ressaltar o caráter "desértico" daquilo que acompanhamos. E que ainda apresenta um outro lado do México - o que na era pós-Trump não deixa de ser um aceno para o absurdo da xenofobia. Talvez seja insuficiente para muitos. Talvez o público esperasse mais. Mas no finalzinho do feriado essa obra nos abraçou. Nos fez refletir. Sobre tempo, sobre memória, sobre idade. Sobre vida e sobre morte. E isso, pra mim, é também uma experiência arrebatadora de cinema.
Nota: 8,0
quinta-feira, 16 de setembro de 2021
Pérolas da Netflix - Machuca (Machuca)
De: Andrés Wood. Com Ariel Mateluna, Matias Quer, Manuela Martelli, Ernesto Malbrán e Tamara Acosta. Drama, Chile / Espanha / França / Reino Unido, 2004, 116 minutos.
"Um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la". Quando olhamos para o Brasil contemporâneo é simplesmente impossível não pensar na frase atribuída ao filósofo e teórico político Edmund Burke - que, por ironia do destino, era um conservador. E o expediente se repete em toda a América Latina - e o filme Machuca (Machuca), do diretor chileno Andrés Wood, não deixa de ser um curioso exercício cinematográfico banhado em tintas lúdicas, mas que aproveita a história de amizade entre dois meninos que estão em extratos sociais opostos para traçar um painel do Chile nos tempos que antecederiam o Golpe Militar. E que deporia o governo democrático de Salvador Allende para implantar em seu lugar a ditadura de Pinochet. O pano de fundo político é composto por complexidades e ambiguidades que se estendem para essa história de formação que envolve o protagonista Pedro Machuca (Ariel Mateluna) e seu amigo Gonzalo Infante (Matías Quer).
A trama se passa nas dependências do Colégio São Patrício - conceituado educandário que é o escolhido pelos pais das famílias mais abastadas para o estudo dos seus filhos. Só que o governo socialista de Allende inspira os padres da instituição a implantarem uma nova política - tipo uma política de cotas -, que utiliza parte dos impostos dos ricos para que jovens em vulnerabilidade social possam estudar no local. É claro que a chance de não dar certo é grande, dadas as enormes diferenças existentes no miscigenado grupo. E a situação piora quando o grupinho dos ricos resolve fazer bullying com o recém-chegado Machuca. A provocação se estende à Gonzalo, que se recusa a participar dos ataques à Machuca. Em uma sequência tão agressiva quanto poética se forma uma amizade inusitada. Os dois afugentam os valentões e, dali para frente, não se "desgrudam", passando a brincar juntos e a fazer as lições. Condição que também possibilitará a ambos descobrir detalhes da realidade um do outro.
E acredito que justamente nesse ponto que o filme ganhe força, já que as famílias de ambos os meninos não estão em lados antagônicos apenas financeiramente, mas também em termos de política. Sem passar pano para os eventuais equívocos do governo Allende - lá pelas tantas a população passa a sofrer com o desabastecimento, ainda que as reformas propostas pelo presidente tenham sofrido com a estagnação e a falta de avanço perpetradas pelo Congresso -, a obra coloca as famílias mais pobres ao lado de Allende - que é saudado de forma comovente pelos humildes com um sonoro "Allende, Alende, teu povo te defende!". Do outro lado, as classes ricas anseiam pelo Golpe Militar, preocupadíssima com a ameaça comunista que, supostamente, rondava o Chile. A parafernália inclui desfiles em carros luxuosos, com a elite lutando para não perder os seus privilégios, mostrando-se insatisfeita com as reformas, especialmente a agrária, e a estatização.
Não demora para que a violência se torne uma saída inadiável. Em lados destoantes, Machuca e Gonzalo querem apenas ser amigos. Mas como sustentar isso? Sendo crianças, não compreendem bem a complexidade daquilo que vivem - e a cena em que Gonzalo tenta esconder um panfleto socialista (com direito a foice e martelo desenhados) de sua família é apenas tragicamente divertida. Com ótima edição, que alterna cenas das passeatas, das lutas, com ótimos instantes "domésticos", o filme avança para a convulsão social sem necessariamente tomar partido - ainda que seja inevitavelmente nefasto perceber os efeitos de um governo militarizado, especialmente em uma escola. Aliás, a violência desmedidamente implementada nos faz perceber que, em partes, estamos o tempo todo tentando escapar de algo parecido por aqui - algo que as elites sonham em estabelecer, sempre empunhando as armas e a bíblia como mecanismo de força. A diferença é que, aqui, no momento, não há Allende. O presidente luta contra moinhos de vento, contra ameaças ilusórias, amparado por paranoias conspiratórias. Vamos repetir a história, como afirmou Burke, se assim continuar. E assistir ao povo, tal qual acontece com a família de Machuca, padecendo. É dolorido. Mas serve pra nos dar aquele chacoalhão.
terça-feira, 14 de setembro de 2021
Tesouros Cinéfilos - Carne Trêmula (Carne Trémula)
segunda-feira, 13 de setembro de 2021
Pérolas da Netflix - Crimes de Família (Crímenes de Familia)
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Picanha em Série - The White Lotus
De: Mike White. Com Sydney Sweeney, Alexandra Daddario, Jake Lacy, Murray Bartlett e Jennifer Coolidge. Comédia dramática, EUA, 358 minutos, 2021.
Após assistir The White Lotus - mais uma dessas joias oferecidas no catálogo da HBO Max -, eu só posso dizer muito obrigado. Muito obrigado à plataforma de streaming por nos possibilitar acesso a tantos conteúdos de qualidade, como essa minissérie dirigida por Mark White. Como em muitos outros materiais semelhantes, o que rege a narrativa aqui é a mesquinharia, a futilidade e a hipocrisia das classes mais abastadas. A trama toda se passa num resort de luxo no Hawai e, de maneira bem resumida, trata das complexas relações - de poder, inclusive - entre os turistas e os empregados do local. E sobre como o privilégio branco se perpetua e se retroalimenta de uma forma praticamente infinita, com os ricos demonstrando uma insatisfação permanente, mesmo quando envolvidos em férias suntuosas, em locais paradisíacos. Sabe o tiozinho classe média que dá carteiraço por ter algum carguinho em algum órgão ou instituição meia boca e que se dá uma importância maior do que realmente tem? Bom, ele faria uma figuração perfeita nessa série.
Aliás, nesse sentido é uma série que nos gera o tempo todo um sentimento de profunda vergonha alheia, especialmente por não estabelecer limites no comportamento desconfortável, individualista e ordinário daqueles que acompanhamos. Por exemplo, um dos personagens, Shane (o ótimo Jake Lacy) está em lua de mel no resort. A despeito de estar bem instalado em um hotel à beira da praia, com piscina e tudo do bom e do melhor - pago com o dinheiro da mãe endinheirada (Molly Shannon) -, Shane não consegue saborear a experiência pelo fato de acreditar estar sendo enganado pela gerência do local (que o teria instalado em um quarto que não estaria plenamente de acordo com aquele que foi contratado). Mas aqui não estamos falando de um quarto ruim, ou mal situado. É um espaço amplo, confortável, com deck e vista para a praia, com mobiliário bonito, roupas e banheiros limpos. Mas o jovem encafifa que a instalação contratada pela mãe foi outra: premium. A mais gold de todas. E que lhe diferenciaria, portanto, em relação aos demais frequentadores do local.
Parece meio bizarro que Shane não consiga relaxar em momento algum e que se comporte dessa maneira por quase a totalidade do tempo? Não. Não, se pensarmos em como se age a nossa elite, que, em muitos casos, é incapaz de pensar no bem-estar coletivo - salvo as raras exceções em que participam de alguma ação de caridade na igreja do bairro (ou no Rotary) e que certamente não passará batida pelos discursos laudatórios da mídia. Acompanhando Shane, a bela esposa Rachel (Alexandra Daddario) se torna uma figura apagada. Jornalista de formação, é proibida pelo marido de trabalhar. Ainda mais como freelancer. Em uma pauta que ele próprio considerava ridícula. Assim, se torna a mera esposa troféu, que é levada pra lá e pra cá, enquanto o marido truculento sapateia pelo local, perseguindo de maneira quase enlouquecedora o gerente Armond (o maravilhoso Murray Bartlett) que, com um sorriso permanente no rosto, parece sempre disposto a atender os caprichos dessa burguesia vazia, infantilóide, solitária e infeliz.
E aqui eu estou falando de um recorte - e um arco narrativo - de uma série que possui ainda muitas outras camadas, e mais um outro tanto de figuras patéticas. Há a solteirona depressiva de terceira idade, que pretende jogar as cinzas da falecida mãe castradora no mar (Jennifer Coolidge), há o casal de meia idade em crise, que parece ser progressista só no discurso (Connie Britton e Steve Zahn) e que está o tempo todo em guerra com os filhos adolescentes (Sydney Sweeney e Fred Hechinger). Há os empregados que precisam lidar com os caprichos - e as loucuras - do local. Colocar em palavras a complexidade dos temas debatidos em The White Lotus é reduzir o impacto de discussões que podem ir de sexualidade reprimida e racismo estrutural, passando por abuso de poder (e de medicamentos) e até a misantropia dos nossos tempos. E tudo ainda embalado por uma trilha sonora maravilhosa, uma edição dinâmica e uma fotografia de cores quentes, que contribuem para a ampliação da sensação "febril" que parece nos envolver enquanto acompanhamos essa trama tão engenhosa. Vale cada fragmento. Cada segundo. Quase esqueço de comentar: ainda há o mistério que envolve uma morte. Pra quem gostou de Big Little Lies e Years and Years poderá ser mais uma ótima sessão.
Novidades em Streaming - Suor (Sweat)
De: Magnus von Horn. Com Magdalena Kolesnik, Aleksandra Kolieczna e Julian Swiezewski. Drama, Suécia / Polônia, 2020, 106 minutos.
"E fora do story, tu tá bem?". A pergunta que virou meme recentemente nas redes sociais reacendeu a discussão: vestimos máscaras nas redes sociais? Somos nós que aparecemos verdadeiramente nas publicações que fazemos - especialmente as do Instagram, onde a ordem parece ser manter uma atitude permanentemente otimista? Ou é tudo um faz de conta em que "publis" e "recebidos" cheios de sorrisos são substituídos pela vida real? Bom, a intenção desse jornalista que vos tecla nesse modesto site não é apelar pra psicologia barata e sim falar de um filme polonês que trata de forma magistral essa temática - no caso o ótimo Suor (Sweat). Disponível na plataforma Mubi, a obra nos apresenta à influenciadora digital fitness Sylwia (Magdalena Kolesnic), uma verdadeira celebridade das mídias digitais, que atraiu milhares de seguidores postando seus treinamentos e exercícios cheios de energia, de cores e de vida.
Requisitada para participar de programas de TV, reconhecida pelas pessoas nas ruas e amada pelos seus seguidores, Sylwia parece ter uma vida perfeita: tem dinheiro, tem saúde, tem amigos, mas... será mesmo tudo tão bom assim? O que o filme do diretor Magnus von Horn faz, com maestria diga-se, é nos mostrar um outro lado - no caso o lado menos glamouroso dessa rotina. Hábil, o diretor faz com que modifiquemos o tempo todo o nosso pensamento sobre a protagonista que acompanhamos - e, nesse sentido, é bastante natural que façamos um julgamento prévio a respeito da natureza do comportamento da bela jovem, que será substituído mais tarde por uma outra percepção. Especialmente quando percebermos que todas as suas supostas virtudes servem apenas como uma fachada que esconde uma existência solitária e, vá lá, talvez até com alguns problemas de autoestima e autoaceitação.
Vamos combinar que deve ser um saco ter de aparentar felicidade em um dia em que não necessariamente estejamos alegres - e o que essa bela experiência fílmica faz é humanizar o influenciador digital. Sim, pode parecer incrível, mas por trás dos dentes perfeitos e da maquiagem sempre impecável há um ser humano: cheio de falhas, de medos, de inseguranças, de anseios. Aliás, um dos desejos que Sylwia manifesta em uma de suas lives para os seus seguimores tem a ver com a vontade de ter um namorado. Alguém pra amar, simplesmente. Pra lhe acarinhar. Pra assistir Netflix debaixo das cobertas. Só que expor esse tipo de fragilidade (?) nas redes sociais significa desgastar a sua imagem - especialmente em relação aos patrocinadores, aos investidores. Sim, o público pode até eventualmente gostar: o vídeo viraliza, gera engajamento. Mas é um burburinho que, na bolsa de valores das estrela, tem impacto negativo. E como contornar isso? E, pior, todo o santo dia?
Sem fazer julgamentos o filme deixa as conclusões em aberto - sem nos deixar de fazer refletir sobre temas como culto às celebridades, dificuldades de relacionamento e mesmo a necessidade permanente que temos de expor a nossa vida pessoal nas redes. Até que ponto isso é saudável? Quando acompanhamos Sylwia sofrendo para estabelecer qualquer tipo de conexão emocional (ou química) com um candidato a namorado ou mesmo para conseguir sucesso em qualquer conversa com a sua mãe, percebemos que todas essas questões não tem respostas fechadas. Ao mesmo tempo, a jovem não parece genuinamente feliz quando está fazendo aquilo que mais ama - seus exercícios, em rede nacional -, sendo adorada por uma horda de pessoas que sonham em uma vida cor de rosa como a dela? É desse contraste, que se estende aos aspectos técnicos - a fotografia que se alterna entre a riqueza de cores do universo barulhento e fake dos treinos e o cinza dos instantes introspectivos e silenciosos é um achado -, que von Horn extrai a matéria-prima para esse filme imperdível.
Nota: 8,5
quarta-feira, 8 de setembro de 2021
A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Ar Condicionado (Angola)
segunda-feira, 6 de setembro de 2021
A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Cafarnaum (Líbano)
De: Nadine Labaki. Com Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Cedra Izam e Nour El Husseini. Drama, Líbano, 2018, 126 minutos.
Uma pesquisa no Google pelo verbete Cafarnaum nos leva a duas explicações que, de alguma forma, se entrecruzam. De um lado temos o resultado geográfico - uma cidade bíblica que ficava às margens do Mar da Galileia, onde Jesus teria realizado alguns de seus milagres. Já o substantivo masculino tem como sentido "o local onde há tumulto e desordem ou onde objetos diversos são amontoados". Essa sensação de caos permanente, de profunda instabilidade - seja material, emocional ou qualquer outra -, é aquilo que encontramos no ótimo (e dolorido) Cafarnaum (Capharnaüm), obra-prima do cinema libanês, dirigida por Nadine Labaki. Nela somos apresentados ao jovem Zain (Zain Al Rafeea) que, aos 12 anos precisa lidar com tantos problemas ao mesmo tempo - entre eles cuidar dos vários irmãos que vivem em um pequeno cortiço com os pais e ainda trabalhar em um mercadinho próximo -, que é simplesmente impossível não ter empatia quando ele se revolta em relação a esse universo tão duro, tão desalentador, tão injusto.
Quando o filme começa a gente já sabe que houve um crime envolvendo Zain. Pelo pesado sistema judicial do Líbano não parece haver nada de errado em conduzir uma criança de 12 anos algemada, tribunal adentro, pra lhe ouvir sobre suas defesas e lhe conceder algum veredicto. Quando a obra volta no tempo descobrimos que a gota d'água para o pequeno foi o casamento que foi arranjado para a sua irmã Sahar (Cedra Izam), uma pré-adolescente que mal passou pela primeira menstruação que é simplesmente entregue, pela própria família, a um certo Assaad (Nour El Husseini), um homem bem mais velho do que ela. Esse contexto de naturalização da pedofilia, ainda que não totalmente compreendido por Zain (talvez não nesses termos), revolta o garoto. E o faz fugir de casa para morar na rua, junto a outros refugiados. Em um dia qualquer em um parque de diversões, ele conhece a jovem etíope Rahil (Yordanos Shiferaw) que, mãe de um pequeno bebê, acaba "adotando" Zain.
Ainda que o sofrimento seja levemente "amenizado" por essa relação simbiótica entre Zain e Rahil - ele a auxilia com o seu bebê enquanto ela trabalha, ela o alimenta e cuida como se fosse uma mãe emprestada -, a dor do pequeno não se encerra já que a sua via crúcis diária continua. No Líbano de Labaki não há espaço algum para a romantização da pobreza - como costumamos ver naquelas obras estilizadas da Netflix, que embalam os contrastes sociais em um forçado caleidoscópio cultural que serve muito mais para "maquiar" os problemas do que para discuti-los. Na desordenada Beirute, a cidade surge como um conglomerado acinzentado e nada harmonioso de prédios, havendo pouco espaço para a natureza, para as cores, para as artes, para qualquer respiro. O comércio de rua é anárquico, a sensação é de opressão constante, como se observássemos uma verdadeira selva em que um tenta enganar o outro, que tenta enganar o um. Os crimes são a céu aberto: tráfico de crianças, pedofilia, furtos, agressões. Se Zain pudesse, ele jamais teria vindo pra esse mundo. Aliás, ele não queria ter vindo pra esse mundo. E a sua luta nesse sentido é tão comovente quanto surpreendente.
E talvez não seja por acaso que uma das mais doloridas sequências de Cafarnaum seja aquela no parque de diversões. Sozinho, Zein anda na roda gigante com a expressão entediada, desinteressada. Olhar a cidade de cima não lhe surpreende, não lhe amedronta. O que para qualquer outro jovem seria motivo de assombro, para ele é apenas enfado. Não há prazeres na existência miserável. Brincar? Retirar a roupa de um manequim gigante em um dos brinquedos do parque? Correr na aridez da terra? Quando Zain é separado de sua irmã - que também era sua melhor amiga, sua confidente -, ele perde boa parte de sua motivação para continuar. Reencontrando-a aqui e ali, aos cacos - até o momento em que a realidade reaparecerá para lhe dar uma nova porrada. O Líbano parece ter lá as suas belezas - tem história, tem uma cultura milenar, tem atrações turísticas. Mas o que interessa para a diretora é o que ocorre nas vísceras do País. Em suas entranhas. E é por isso que seu cinema é tão vigoroso a ponto de Cafarnaum ter recebido uma indicação ao Oscar e ter recebido o prêmio do Júri no Festival de Cannes.
quinta-feira, 2 de setembro de 2021
Tesouros Cinéfilos - No Ritmo do Coração (CODA)
De: Sian Heder. Com Emilia Jones, Marlee Matlin, Troy Kotsur, Daniel Durant e Eugenio Derbez. Drama, EUA, 2021, 111 minutos.
Em uma das tantas cenas maravilhosamente divertidas de No Ritmo do Coração (CODA), o professor de música Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez) lembra a uma de suas alunas a frase dita por David Bowie, na canção Song for Bob Dylan (Escrevi uma canção para você / Sobre um homem jovem e estranho / Chamado Dylan / Com uma voz como areia e cola). Bernardo - ou Sr. V, como gosta de ser chamado -, tenta explicar pra sua pupila o fato de que não basta apenas ter uma bela voz: é preciso também ter o que dizer. Saber o que fazer com ela. Dylan, todos sabemos, sempre soube o que dizer. Com sua voz arenosa, eventualmente claudicante. E a lição que fica para Ruby (Emilia Jones), a protagonista dessa joia dirigida por Sian Heder - e que é uma refilmagem do francês A Família Bélier (2014) -, é a de que há muitas outras formas de comunicar aquilo que desejamos. E que nem sempre uma voz imponente será suficiente para isso. Não que Ruby não soubesse disso. Ela sabe. Especialmente por ser a única pessoa capaz de falar em uma família em que os pais Frank (Troy Kotsur) e Jackie (Marlee Matlin) e o irmão Leo (Daniel Durant) são surdos.
Sim, Ruby pode se expressar com a voz em meio a uma família em que a linguagem de sinais prevalece cotidianamente. Apesar das dificuldades, o quarteto, que trabalha em uma colônia de pescadores em uma pequena cidade da costa dos Estados Unidos, mantém a harmonia. O que não significa que não haja conflitos e não será preciso ser nenhum adivinho para saber que o sonho da jovem em se tornar uma intérprete - com direito a uma bolsa de estudos em um conservatório -, encontrará como principal barreira os próprios pais. Acostumados a uma vida dedicada ao trabalho, Frank e Jackie contam com Ruby quase como uma porta-voz entre os "falantes" que habitam seu universo - sejam eles clientes, fornecedores, empregadores ou os colegas de sindicato. Quando Ruby começa a se destacar em uma atividade extracurricular no coral de escola, o Sr. V percebe o seu imenso potencial. E será necessário explicar aos pais que vivem em um universo ausente de sons, como aquilo pode ser não apenas importante para a jovem, mas também a realização de seu maior sonho.
Nesse sentido, o filme é pródigo em estabelecer um outro contexto para o conceito de "pais castradores", uma vez que Frank e Jackie se comportam dessa maneira muito mais pelas dificuldades em acessar o universo da filha - que mantém algum sigilo, por certo tempo, sobre as aulas de música -, do que por um eventual radicalismo ou por excessos disciplinares. Não por acaso, os pais são retratados como figuras afáveis que possuem uma grande paixão pela vida - e entre si e com os filhos -, o que torna a experiência absolutamente agradável, leve. Condição que garante um bom espaço, inclusive, para risadas - a cena em que Frank explica ao jovem Miles (Ferdia Walsh-Peelo) como utilizar a camisinha (tudo em uma linguagem de sinais bastante exagerada, claro!) é não menos do que ótima. O mesmo valendo para os métodos de aprendizado nada ortodoxos do Sr. V, que estabelece uma química vibrante com a protagonista.
Bem executada também na parte técnica, a obra guarda alguma semelhança com os esforços propostos pelo ótimo O Som do Silêncio (2019), inclusive nas elipses que envolvem a completa falta de "ruídos" - e há uma sequência, em especial, que não é apenas perfeita nesse sentido, já que ela também é bela ao evocar outras sensações provocadas pela música e que vão para muito além da simples expressão sonora (sim, creiam, vocês se comoverão). Já a paleta de cores é agradável e primaveril, adotando pequenos contrastes entre a enseada cinzenta da orla (e do trabalho com a pesca) e as tonalidades vivas vistas em figurinos e outros adereços que envolvem o universo das artes. E se já não bastassem todos esses predicados, o filme ainda tem como atrativo o fato de que os atores que interpretam surdos serem efetivamente surdos - o que foi uma exigência de Matlin, assim que foi escalda. Ainda é muito cedo pra falar em indicações ao Oscar - o drama venceu o Festival de Sundance. Mas é uma obra tão deliciosamente fantástica, que estamos na torcida!