quinta-feira, 10 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - Luedji Luna (Um Mar Pra Cada Um,)

Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre Um Mar Pra Cada Um, o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo já que já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro.

 


Para a artista, o processo de fazer música não requer pressa. O mesmo valendo para o seu consumo, já que esse é o tipo de trabalho que, naturalmente, cresce a cada nova audição. Evidentemente que, assim como ocorreu com o fenomenal Bom Mesmo É Estar Debaixo da Água - o nosso preferido na lista de melhores de 2020 -, a mescla de neosoul, jazz, R&B e ritmos africanos - segue central no projeto. Por mais romanticamente torto que sua poesia soe. "Eu tô indo pra um lugar muito menos superficial que esse, que é essa paisagem. Tô indo pra um lugar mais profundo. Eu tô investigando o mar invisível. Eu tô investigando o mar abissal", revelou na mesma entrevista. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Cinema - Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio)

De: Maura Delpero. Com Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico, Tommaso Ragno e Rachele Potrich. Drama, Itália / França / Bélgica, 2024, 119 minutos.

Guerras, fanatismo religioso, patriarcado, autoritarismo. Vamos combinar que essa trinca pode até parecer um resumo do mundo em 2025, mas não. No caso de Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio), filme da diretora Maura Delpero que estreia nesta semana nos cinemas, trata-se apenas da Itália nos anos 40. O cenário é uma remota (e gelada) aldeia nas montanhas onde uma numerosa família se ocupa de atividades cotidianas típicas do meio rural - tirar leite das vacas, juntar lenha, buscar água no poço. É aquela rotina que até hoje vemos em pequenas comunidades do campo, que possuem sua própria lógica de funcionamento, enquanto lá fora, à uma certa distância, o mundo acontece. Só que tem vezes que esse universo meio paralelo encontra uma brecha que perturba aquele dia a dia ordinário - e que, aqui, é representado pela chegada inesperada de Pietro (Giuseppe De Domenico), um jovem e taciturno soldado, que está em fuga da guerra.

Da forma como a narrativa é construída, em estilo fragmentado - os silêncios são inúmeros, bem como os longos planos em que a ação ocorre ao fundo, de forma quase abstrata, enquanto a neve oprime - caberá ao espectador ir meio que montando o quebra-cabeças daquilo que se acompanha. Ao chegar no local, Pietro é saudado pela família de Cesare (Tommaso Ragno), um sisudo professor local, por ter salvo Attilio (Santiago Fondevila), carregando-os nos ombros diretamente do front. O ato heroico ganha tração no povoado - para muitos uma atitude digna. Já para outros, parece haver certa vergonha no ato de desertar. "Talvez se todos fossem covardes não haveria mais guerra" comenta alguém em certa altura. Para a jovem Lucia (Martina Scrinzi), uma das filhas de Cesare, há um outro interesse, que pode ser percebido em seus olhares claudicantes: ela se apaixona por Pietro.

 


Em linhas gerais essa poderia ser uma história mais ou menos simples sobre o amor nos tempos de guerra - e sobre como tudo pode ser mais complexo do que, de fato, é, em tempos brutos. Mas o filme de Delpero, que é inspirado nas memórias da juventude da realizadora, guarda um espaço interessante para, de forma sofisticada e sutil, discutir uma série de temas que seguem mais do que relevantes nos dias atuais. Irmã de Lucia, a adolescente Ada (Rachele Potrich) claramente sofre por jamais poder verbalizar o seu amor pela amiga Virginia (Carlotta Gamba) - o que seria um escândalo em um espaço tão conservador e misógino em que as expectativas sobre as mulheres recaem apenas em um projeto: o de servirem de depósito de filhos para os seus maridos (sim, duro, mas real). A própria Ada, assim que conclui seus estudos, ouve de Cesare uma sentença dita com um naturalismo sufocante: "sua trajetória escolar termina aqui". Isso depois de ter sido aprovada em disciplinas, como, Economia Doméstica.

A própria Adele (Roberta Rovelli), esposa de Cesare, sequer tem tempo de ser efetivamente consolada quando um de seus filhos simplesmente morre. Já há mais um na barriga - o décimo, que deve nascer em breve. E por mais respeitado que Cesare possa ser por seus pares a sua incorrigível rigidez se apresenta como uma de suas tantas falhas, como no caso do episódio da aquisição dos discos de Vivaldi (e as quatro estações que fluem de forma inexorável soam apenas trágicas quando percebemos que as mulheres não têm nenhum poder de decisão sobre questões financeiras). Triste, gélido, surpreendente (especialmente no terço final) e contemplativo, esse é aquele tipo de projeto que nem sempre é fácil. Há uma ambientação vagarosa, de trilha sonora mínima e uma dinâmica de filmagem pouco convencional e de quadros demorados. Mas o que fica dessa obra que foi a enviada da Itália ao Oscar desse ano, são as mensagens das entrelinhas, como no momento em que Ada revela à sua irmã Flavia (Anna Thaler), os motivos pelos quais gostaria de ser padre. "Para poder aplicar penitências?", pergunta a pequena. "Não. Para poder ser ouvida sem ser interrompida". Uma das tantas lições.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Diamante Bruto (Diamant Brut)

De: Agathe Riedinger. Com Malou Khebizi, Idir Azougli, Andréa Bescond e Léa Gorla. Drama, França, 2024, 103 minutos.

"Eu já me decidi. Vou ficar famosa e vou ter dinheiro". Diamante Bruto (Diamant Brut), a ótima estreia da diretora Agathe Riedinger, já passa da metade quando a protagonista Liane (Malou Khebizi) diz a frase que abre esse texto, com uma convicção comovente. Ela está em um consultório, onde um médico lhe explica as opções de próteses de silicone para o bumbum. Quais os tipos, os efeitos alcançados, os investimentos. Liane, uma jovem infliuencer de 19 anos que nem ainda teve as suas primeiras experiências sexuais direito, está convicta de que precisa daquilo. Para melhorar sua imagem - mesmo que, aos nossos olhos não haja nada que necessite melhoria ali. Só que a jovem precisa mais. Mais validação. Mais carinho de um público que está interessado apenas na sua aparência, no seu decote, na sua barriga a mostra, nas pernas e nos pés (machucados) sempre em um salto alto. É um efeito dos complexos tempos atuais: a fama tem um preço. E ele pode ser caro de muitas formas.

Há outras frases de efeito ditas por Liane nos transcorrer da narrativa e, muitas delas, são muito verdadeiras em sua mentalidade ainda em formação. Uma mentalidade em que plataformas de exposição como o Tik Tok funcionam como uma pequena bomba relógio em vias de explodir, quando o assunto é a saúde mental dos usuários. "Se você é bonita, as pessoas te admiram" ou "eu sei que não sou comum", são algumas das sentenças verbalizadas pela nossa anti-heroína que, ao cabo, só deseja ser conhecida a todo o custo. Não por mera vaidade, aparentemente. Mas também por acreditar que esse possa ser um caminho para que, de fato, a sua vida mude. Pra que ela saia de uma vida marginal, em que mora com a mãe narcisista e a irmã mais nova devota, indo daqui pra lá em meio a bicos feitos com produtos roubados. Aos poucos mais de 10 mil seguidores nas redes sociais, ela entrega dancinhas e performances generalistas com roupas mínimas - o que, em muitos casos, pode ser o suficiente para o acesso a algum tipo de fama.

 


Como muitas que estão nessa segunda divisão do universo dos influencers - sem ainda uma capacidade de monetizar a contento no mercado publicitário, e sem um público mais cativo que lhe consuma para além do fetichismo voyeur -, o caminho para o estrelato ainda passa por alcançar outros espaços. Que possam gerar um status a mais. No caso de Liane, o seu desejo nem tão secreto é poder participar de algum reality show televisivo de gosto duvidoso - e é exatamente o que ocorre quando ela faz um teste para o excêntrico programa Miracle Island Miami. Que, no mundo real, nem parece tão atrativo assim, já que o salário por dois meses de trabalho alcança, com muito bom gosto, os cinco mil euros - com exigências que vão de muita exibição do corpo e um comportamento disposto para o conflito e para certo hedonismo pervertido  ("não queremos nenhuma santa", alerta a produtora). Ah, fora o fato de os apresentadores terem um histórico de assédio e violências contra as mulheres. Um "detalhezinho". 

Importante dizer que Agathe é hábil em não julgar a protagonista - que parece sim ter alguma compreensão dos papeis de gênero e do machismo que a rodeia (como na repulsiva sequência do metrô, ainda no início, ou na distância que preserva do onipresente amigo de infância Dino, vivido por Adir Azougli) -, a inserindo no papel de desajustada que luta por aquilo que, de fato, ela acredita. E como ela acredita. Como se fosse uma personagem de Sean Baker em uma experiência onírica e nebulosa que retira da França o seu glamour meio natural, Liane se converte em uma representação da potência e da persistência frente a certos ideais - mesmo que, para os cidadãos de bem conservadores, esses ideais possam parecer meio difusos. Uma bunda e um par de seios mais volumosos que a façam chegar perto daquilo que ela deseja? Que seja. O Tik Tok está descaralhando uma galera da cabeça e é fundamental que não se perca de vista os efeitos malignos em jovens, que se sentem inadequadas ou insatisfeitas com seus corpos, ou que buscam validação o tempo inteiro. Liane não é a vilã. Ela é apenas alguém tentando jogar o jogo. Com aquilo que ele oferece. E talvez seja por isso que a gente se sinta tão feliz por ela no frame final.

Nota: 8,5 

 

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Cinema - Três Amigas (Trois Amies)

De: Emmanuel Mouret. Com India Hair, Camille Cottin, Sara Forestier e Damien Bonnard. Comédia / Romance, França, 2024, 117 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

"E se meu coração não tivesse mudado?". 

Vamos combinar que não há nenhuma grande novidade no que diz respeito à análise das complexidades que envolvem as paixões, em Três Irmãs (Trois Amies). Sim, amar não é uma ciência exata, cartesiana e muitos filmes já trataram disso com maestria. Só que essa obra aqui tem carisma de sobra pra segurar o espectador, ou pra nos envolver em alguma medida. Ao cabo há um charme meio torto no todo - especialmente quando descobrimos o segredo eventualmente machadiano, que envolve o narrador da história. Sim, o filme é sobre três amigas e suas andanças, mas o ponto de ligação de tudo é o professor Victor (Vincent Macaigne), que está devastado após a sua amada Joan (India Hair) revelar a ele que não o ama mais. Simplesmente meio que acabou a paixão e ela não sabe muito bem como lidar. Victor é carinhoso, devoto, verbaliza o quanto gosta dela, da família que construíram, da convivência. Mas não basta.

E, muito provavelmente, vocês que leem essas poucas linhas já sabem disso: não há lógica. Se houvesse uma espécie de equipamento de medida do quão apaixonados estamos por nossos pares, ele certamente variaria de um dia para o outro, de uma semana para a outra. Se alteraria com a passagem do tempo, a chegada dos filhos, a rotina. Somos seres de personalidade labiríntica, que respondem a estímulos variados no cotidiano. Joan, que leciona na mesma escola de Victor, garante à amiga Alice (Camille Cottin) que ela não deixou de gostar do marido. Ela tem apreço por ele. Que parece, de fato, alguém generoso, carinhoso. Mas como a gente lida quando aquele brilho, ou aquela admiração parece nos escapar? Lida, sei lá, vivendo talvez. Joan revela ao marido os seus dilemas e uma tragédia acaba ocorrendo, com ela se culpando. Uma sensação que só começa a se dissipar com a presença do docente que justamente substitui seu ex no educandário - seu nome é Thomas (Damien Bonnard).

 


Aliás, não demora para que percebamos que Thomas está caidinho de paixões por Joan - ele a apoia em seu luto e respeita o seu tempo de depuração. Ela não parece estar interessada em um relacionamento agora. Quer dizer, ao menos até o surgimento de Martin (Mathieu Metral), um colega de Thomas que surge para dividir o apartamento com ele. Mais impetuoso do que o companheiro, Martin tem a ousadia de se aproximar de Joan que cede. Aquela coisa de não estar preparada pra um novo relacionamento, cai por terra. E a gente sabe: esse papo só cola porque a pessoa "certa" ainda não pintou. E até aqui você já percebeu que a narrativa parece percorrer uma lógica que lembra o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade (aquele do João que amava Teresa, que amava Raimundo e por aí vai). E é mais ou menos isso que vai se descortinando, com cada qual respondendo de forma nem sempre esperada.

Sobre Alice, bom lembrar que ela parece ter um relacionamento perfeito adequado (não exatamente fervoroso) com Éric (Gregoire Ludig). Mas as aparências enganam, já que o sujeito está, justamente, tendo um caso com a terceira amiga desse triângulo nada óbvio - seu nome é Rebecca (Sara Forestier). Sem que a amiga saiba, claro. Para os mais puristas ou conservadores, a naturalidade com que as traições, as trocas de casais e as mentiras acontecem podem incomodar. Ninguém é muito afeito a monogamia ali e, de certa forma, isso também pode evidenciar, do ponto de vista alegórico, o quão perdidos parecem os millenials, em meio a filhos que já cresceram (ou não existem), relacionamento mais longos que começam a se despedaçar sem muita explicação ou as exigências do mercado que também nos consomem. É um filme interessante, agridoce e leve. 

Nota: 7,5

 

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Pitaquinho Musical - Julia Mestre (Maravilhosamente Bem)

"Por debaixo da pele / Sou loba, sou fera / Olhar de felina / Poder de pantera / Se chega perto / Revelo / Por trás / Das garras minha aura mansa". Vamos combinar que, se ainda estivesse entre nós - ao menos do ponto de vista material (e não simbólico) -, Rita Lee estaria orgulhosa de ver onde chegou a sua "pupila". Sim, Julia Mestre nunca escondeu o fato de a ex-Mutantes ser uma das grandes inspirações de sua carreira e não são necessárias nem duas músicas do seu mais recente álbum, Maravilhosamente Bem, para que adentremos novamente naquele espaço de paixões sensuais, de tesão misterioso, de desejo carnal e noturno, tão bem construído por Rita. Aliás, uma simples olhada nos títulos das canções - Vampira, Pra Lua, Veneno da Serpente, Sou Fera -, já parece evidenciar esse ideal que nunca descamba para a mera homenagem protocolar, já que a artista, ex-integrante do Bala Desejo, imprime personalidade em cada fragmento da obra.

 


Sombrio, mas divertido, sexy mas onírico, esse é aquele tipo de registro que é direto, mas que vai crescendo a cada nova audição. Os refrãos estão lá, assim como as melodias sofisticadas, aconchegante, havendo sempre um detalhezinho da produção polida, que pode ser descoberto a cada reencontro - até mesmo pela força vocal da artista, que parece ser mais central (ainda) neste disco. "É um espelho lúdico de dias felizes do passado, artisticamente reimaginados com um toque moderno de Julia. Um álbum repleto de amor e nostalgia, que homenageia seu amor por divas clássicas da discoteca, como Donna Summer, Sade, Alcione, Lady Zu e as rainhas do rock brasileiro Marina Lima e (a já citada) Rita Lee", resumiu, a cantora no material de divulgação. Aliás, sobre Marina, a homenagem fica mais explícita na magnética Marinou, Limou - que converte o nome da veterana em uma espécie de mantra, um verbo que se espalha por cada canto do registro. Uma delícia do lo-fi e do pop vintage que vale o play.

Nota: 8,5 

terça-feira, 1 de julho de 2025

Novidades em Streaming - O Segundo Ato (Le Deuxième Acte)

De: Quentin Dupieux. Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard. Comédia, França, 2024, 80 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor francês Quentin Dupieux sabe que seu cinema costuma ser anárquico, provocativo, iconoclasta. As experiências podem ser mínimas. Mas costumam entregar o máximo em termos de reflexões sobre tudo o que envolve esse certo mal-estar da contemporaneidade. No cerne de O Segundo Ato (Le Deuxième Acte), que está disponível na Mubi, parece residir uma questão meio prosaica: qual o sentido de estarmos aqui, assistindo a um filme, enquanto tudo ao redor parece ruir? Inteligência artificial, destruição da natureza, pandemia, guerras, extrema direita, fascismo - e nós, aqui, interpretando esses papeis? A troco de quê? As angústias se tornam mais claras quando o veterano Guillaume (o sempre ótimo Vincent Lindon) simplesmente abandona as filmagens de seu mais recente projeto em andamento. Sai andando a contragosto, insatisfeito meio que sem saber exatamente com o quê. Ou ele sabe.

Enfim, ele parece insatisfeito. Mas estará mesmo? Ao seu lado, a companheira de cena Florence (Léa Seydoux) se exaspera e segue seus passos, tentando argumentar sobre o absurdo daquele comportamento. É o trabalho deles, afinal. Se tudo está ruindo, o que os impediria de continuar? "Os violinistas do Titanic seguiram tocando até que o barco afundasse", desespera-se Florence. Ao que Guillaume retruca, alegando que aquilo nunca existiu. Que foi uma mera invenção de James Cameron para tornar os artistas supostamente corajosos em meio a tudo. Coragem. O que talvez os falte para certas decisões. Ou ao menos até certo ponto, quando o homem recebe uma inesperada ligação de um agente do diretor Paul Thomas Anderson - ele mesmo, de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e Licoricce Pizza (2021). Enfim, um dos grandes de nossa geração. Que quer trabalhar com Guillaume. O que o deixa em êxtase momentâneo. Esquecendo, por um minuto, o discurso "lacrador". 

 

 


Na sequência em que estão filmando - ou não, porque nunca fica tudo exatamente claro nesse exercício de metalinguagem (a realidade por vezes pode ser outra, mas, vá lá, o que é, exatamente a realidade quando tudo o que vemos é um longo plano-sequência feito com dolly track, em que a câmera flui com maciez desconcertante?) -, Guillaume e Florence estão indo ao encontro dos amigos Willy (Raphaël Quenard) e David (Louis Garrel). Florence quer apresentar David a seu pai, que no filme dentro do filme é o próprio Guillaume, mas o caso é que o candidato a namorado não está tão interessado assim na jovem. Aliás, mais do que isso, bola um plano para colocar Willy no caminho de Florence. Enquanto se encaminham para o local, debatem uma série de temas caros à era do cancelamento - e que vão no limite do preconceito e da intolerância.

Na trama, David é bissexual. Já Willy é o machão da masculinidade frágil que não parece ter muitos limites na hora de verbalizar seu incômodo a respeito de pessoas que se relacionam com o mesmo sexo. "Para com isso! Você está querendo ser cancelado?", pergunta David, enquanto quebra a quarta parede para se direcionar justamente a nós, espectadores, cruzando novamente o limite entre o concreto e o fantasioso. No terço final, a coisa melhora ainda mais quando entra em cena o excelente Stéphane (Manuel Guillot), um figurante que está tão nervoso por ter de interpretar um garçom do restaurante em que a cena ocorre, que mal consegue servir o vinho de forma satisfatória. O que talvez seja mais um truque, vai saber. "Eu tenho problema com os filmes, quando os códigos são muito óbvios", comentou o realizador, anos atrás, em entrevista ao The Guardian. É mais ou menos o que resume o cinema conceitual, sombrio, entortado, nada racional e essencialmente cômico do realizador. 

 Nota: 8,0

 

Tesouros Cinéfilos - O Ódio (La Haine)

De: Mathieu Kassovitz. Com Vincent Cassel, Hubert Koundé e Saïd Taghmaoui. Drama / Policial, França, 1995, 95 minutos.

"É a história de um homem que cai de um prédio de 50 andares. O cara, durante a queda, repete sem parar para se reconfortar: até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem. Mas o importante não é a queda. É a aterrissagem". Vamos combinar que a narração em off que abre o cru O Ódio (La Haine), inicialmente parece apenas enigmática. Um microconto torto e metafórico. Que retornará diversas vezes durante a narrativa - contribuindo para que, mais adiante, seu sentido passe a ser melhor compreendido. Especialmente no universo em que habitam os protagonistas dessa experiência intensa, magnética e violenta do diretor Mathieu Kassovitz. Ao cabo, esse é o tipo de filme que podemos chamar de "pedrada". Tudo é veloz, com os acontecimentos se descortinando em um efeito cascata. Meio drama febril, meio policial estilístico, como se estivéssemos em uma mescla de Trainspotting (1996) com Guy Pearce. Ainda que muito mais político. E, talvez por isso mesmo, nem tão engraçado.

O cenário aqui é um bairro habitado por imigrantes pobres no subúrbio de Paris. A violência policial parece escalar, bem como a discriminação e a xenofobia. Um jovem de nome Abdel foi agredido durante uma série de protestos e agora está em coma. Corre risco de vida. Para o judeu Vinz (Vincent Cassel) só parece haver uma solução possível para o caso. Se o amigo morrer, ele terá de matar um policial como contrapartida. Uma coisa meio "olho por olho dente por dente" - como sinalizava o antigo Código de Hamurabi, em sua suposta proporcionalidade nem tão justa. Só que nesse contexto há um problema, que é lembrado pelo boxeador negro Hubert (Hubert Koundé), um sujeito que aparenta ser mais pacífico, a despeito de sua academia de pugilismo ter sido totalmente destruída durante os tumultos: "o ódio só gera mais ódio". Com um agravante: como minorias, eles estão na ponta mais fraca. Com tudo piorando com o avanço nem tão sutil de uma extrema direita violenta e preconceituosa que, na produção, é simbolizada por Jean-Marie Le Pen. Era os anos 90, afinal. Turbulentos como só.

 


Aliás, o racismo institucional e o discurso xenofóbico estão por toda a parte - e, nesse sentido, não deixa de impressionar o quão atual a obra segue, em tempos de crises imigratórias, de trumpismo e de células nazistas proliferando mundo afora. Em uma sequência, por exemplo, Vinz e Hubert, acompanhados do inseparável Saiïd (Saïd Taghmaoui) - um árabe meio da pá virada que completa o trio que vara uma madrugada intensa, frenética e imparável, desde a hospitalização de Abdel -, tenta entrar em uma espécie de festa de luxo. Mais do que isso, tentam conversar com algumas mulheres, mas sem muito sucesso. É só mais um motivo para que a intolerância e a raiva eclodam, com uma das jovens desprezando o trio de forma categoria, comentando algo tipo "por isso ninguém gosta de se aproximar de pessoas como vocês". Há outras partes da cidade em que esses jovens tão marginalizados quanto vulneráveis não são bem-vindos. No hospital, no mercadinho, mesmo num churrasco no terraço de um prédio abandonado.

É tudo dolorido, com a sensação de desalento sendo ampliada pela fotografia em preto e branco, que torna aquele ambiente essencialmente urbano, caótico e cinza em um espaço apenas de existência - e, vá lá, resistência. Sem muita perspectiva para quem não se sente parte de uma Pátria. Kassovitz - que seria premiado como melhor diretor no Festival de Cannes -, alguém que participou de protestos na juventude, utiliza a experiência pessoal partindo ainda de histórias reais, como a do jovem zairense Makomé M'Bowolé, que foi morto por um tiro à queima-roupa, supostamente acidental, disparado por um policial. Isto após já estar rendido. Claro que o espírito ágil e efervescente do filme reserva um sem fim de instantes mais divertidos, pautados pela cultura hip hop - com suas roupas, danças, grafites e músicas -, por discussões e debates cheios de significados - aliás, mais um mérito do ótimo roteiro -, e skinheads sendo espancados. Ousado, verdadeiro, fervilhante e cativante.

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown)

De: Mahdi Fleifel. Com Mahmood Bakri, Aram Sabbah, Mohammad Alsurafa e Angeliki Papoulia. Drama, Palestina / Grécia / França / Alemanha / Arábia Saudita / Dinamarca / Holanda / Reino Unido, 2024, 105 minutos.

"De certa forma é uma espécie de destino dos palestinos, não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante". Vamos combinar que em tempos de ódio, de preconceito, de intolerância e de xenofobia, reforçados pelos subsequentes ataques do governo de Israel à Faixa de Gaza - um genocídio bárbaro, que parece não ter fim -, a frase dita pelo já falecido intelectual Edward Said, que abre o desalentador filme Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown), não poderia ser mais atual. De fato, para um povo em permanente processo de deslocamento, inseguro e desumanizado, o desespero soa ainda maior. Não há sensação de pertencimento onde quer que se esteja - o que explica esse senso de urgência e de fuga eterna que emana da obra do diretor Mahdi Fleifel - documentarista conhecido pelo premiado Um Mundo Que Não É Nosso (2012), e que está disponível na Reserva Imovision.

O cenário é uma Atenas moderna, urbana, agitada de dia, meio poética e sonora à noite, onde os primos Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah) vivem de pequenos trambiques - como furtos de bolsas de velhinhas desatentas na praça -, na tentativa não apenas de sobreviver com o mínimo que seja de dignidade (algo difícil de se obter para quem é um refugiado, em um País que não deseja a sua presença), mas também de juntar algum dinheiro para o que seria o destino final de sua jornada. No caso, a Alemanha, onde aguardam a esposa e o filho de Chatila. Em seus sonhos nada oníricos - sempre carregados e pontuados por ausências -, a ideia é a de se instalar no rico País europeu para, lá, abrir uma cafeteria. A principal barreira? Tentar obter um passaporte, o que envolve a conexão com figuras não muito amigáveis e que habitam uma espécie de submundo da capital grega, como é o caso de um contrabandista que promete obter os documentos em troca de alguns outros favores.

 


 

Nada é muito fácil ali e a situação se torna ainda mais complicada quando a dupla central meio que adota o adolescente Malik (Mohammad Alsurafa), um jovem de 13 anos, que também está em fuga da Faixa de Gaza, buscando uma oportunidade de escapar dali para encontrar sua mãe na Itália. Mais gentil, sensível e empático com o menino, Reda o acompanha em suas andanças, enquanto Chatila, na crença de que seu parceiro está, de fato, preocupado com o novo amigo, bola um plano bastante complicado para ajudá-lo. O que envolverá a participação de uma quarta pessoa - no caso, Tatiana (Angeliki Papoulia), uma mulher grega que é incumbida de se fazer passar pela mãe do garoto, para que a fronteira possa ser finalmente cruzada. Tudo é intenso e sofrido e mesmo os pequenos instantes iluminados servem apenas para nos lembrar do desespero que ronda - como no momento em que Reda furta um par de tênis de uma loja para, lembrando à Malik que "não é legar roubar".

E, nesse sentido, vamos combinar que a obra não poderia ser mais acertada ao não apenas não vilanizar excessivamente os seus protagonistas - com sua disposição natural para a sobrevivência -, mas também não os tornando dois mártires incorrigíveis buscando fazer sempre o bem (o que seria uma solução bastante cômoda em um momento em que os olhos estão voltados para o conflito do Oriente Médio). Ao cabo mão há espaço para o maniqueísmo barato, que poderia comprometer a experiência. Reda tem problemas com drogas. Chatila não hesitará em agir com violência meio determinada em qualquer que seja a situação. Assim, as figuras vistas são complexas, com seus medos, desejos, sonhos, contradições e códigos morais questionáveis - o que é reforçado pelo impactante terço final, em que uma dolorosa sequência de sequestro escancara a violência estrutural a que todos ali estão submetidos. Trágico, cru e comovente, esse é daquele tipo de projeto que nos acompanha após os créditos subirem. 

Nota: 8,5