quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - A Prática (La Práctica)

De: Martín Rejtman. Com Esteban Bigliardi, Manuela Oyarzun e Camila Hirane. Drama / Comédia, Argentina / Chile / Portugal, 2023, 95 minutos.

Era pra ser curioso, engraçado, excêntrico, diferente, mas foi apenas chato mesmo. Ou vai ver fui eu que não consegui embarcar - e, devo admitir que, por vezes, me dá um pouco de ranço esse cinema metido à alternativo que soa apenas presunçoso. O auge do auge nesse 2025 nem era tão indie assim - o horroroso Megalópolis (2025) -, mas tem umas outras joias nessa série B do catálogo da Mubi, que exigem uma boa dose de boa vontade do fã de cinema. E é exatamente esse o caso do recente argentino A Prática (La Práctica), do diretor Martín Rejtman. Espécie de pastiche cômico que tenta soar como um Ari Kaurismäki latino, esse é o tipo de projeto que sai do nada pra lugar algum, enquanto tenta fazer algum tipo de exame aleatório dos sofrimentos, frustrações e dores da classe média, hétero e branca. E que, ao cabo, também luta pra sobreviver.

No centro da narrativa está o professor de ioga Gustavo (Esteban Bigliardi), um sujeito de meia-idade que está se separando da esposa Vanesa (Manuela Oyarzun), que também é instrutora da mesma prática. Enquanto tentam em vão uma terapia de casal tardia para um casamento que não tem mais salvação, Gustavo busca se adaptar à nova vida depois de sair do apartamento da ex, indo morar com o ex-cunhado fumante inveterado, que convive com a esposa meio maluca. Havia uma viagem para a Índia agendada, que o casal desmarca, ao mesmo tempo em que Gustavo vai para uma espécie de retiro espiritual (e, vamos combinar, nada mais burguesia nem tão emergente do que isso). É lá naquele local meio estranho que o protagonista descobrirá uma severa lesão no menisco, que quase lhe impedirá de trabalhar. 

 


E, aqui, a meu ver inicia essa tentativa meio desesperada do diretor em converter qualquer coisa em uma alegoria para as fraturas sociais daqueles que acompanhamos. Uma separação exige que a pessoa se reerga com suas próprias pernas, então que tal colocar uma inflamação no pé como uma metáfora pra isso? Mas há outros momentos meio constrangedores, como no caso do começo da película, instante em que um tremor leve de terra acontece. Uma aluna se lesiona na cabeça e perde a memória - aliás, aluna que parece preocupada com os excessos do instrutor em relação a ela. Assédio? Vai saber. Fica tudo mais ou menos no ar, exatamente como uma pedra flutuante completamente aleatória que aparece como um Deus ex-machina quase ao final, tentando solucionar algo que, ao cabo, é meio que insolúvel. Ver aquelas pessoas apenas aborrece. E nada mais.

Por sinal, o próprio fato de o sujeito ser um instrutor de ioga - um tipo de prática com rígido código de conduta, com exigências físicas e mentais -, aparece como uma desculpa para comentários sociais estúpidos a respeito de culturas regulamentadas. Aliás, é verdade que professores de ioga não comem alho?  Ah, Gustavo também é vegetariano. E tem uma mãe controladora. O que talvez ajudasse a compreender alguns comportamentos, se lá pelas tantas a gente não tivesse meio que de saco cheio daquelas pessoas vazias, que lavam roupas como um processo de purificação. E que perambulam pra lá e pra cá sem muita lógica, em atos entorpecidos e vazios, que culminam em diálogos ocos e que parecem retirados da pior peça de teatro juvenil da história. O surgimento de novos personagens, como o jovem Matias (Giordano Rossi), que é acusado de furto por Gustavo, ou mesmo a ex-aluna e enfermeira Laura (Camila Hirane) acrescentam ZERO em termos de interesse. Em uma experiência que termina oca como a vida simplória e ordinária de todos ali.

Nota: 2,5 

 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Nourished By Time (The Passionate Ones)

Paixão, fé, revolta política, falta de dinheiro, guerra, consumismo, lavagem cerebral. Vamos combinar que poucos artistas da atualidade mesclam tão bem as experiências pessoais - que envolvem dificuldades financeiras, incertezas sobre o futuro e até a análise do poder transformador da arte -, com questões mais amplas sobre as falhas do capitalismo tardio e da sobrecarga vivida por qualquer minoria que insista, meramente, em sobreviver nos Estados Unidos, como o Nourished by Time. Com um elogiado disco de estreia na bagagem, Erotic Probiotic 2 (2023), a banda capitaneada por Marcus Brown agora retorna com o ótimo The Passionate Ones, onde novamente une R&B experimental, bedroom pop e neo soul, em um projeto cheio de vigor, com seu vocal espectral se mesclando à sintetizadores sedutores, pianos levemente caóticos e cordas estranhas.

 


Em linhas gerais é um tipo de som até meio difícil de definir. A um amigo, numa tentativa meio falha, comentei que a coisa toda lembrava uma junção do TV on the Radio com o Jamie XX - especialmente no componente da estranheza, com melodias que olham para o futuro, mas também honram o passado, como no caso da sofisticada 9 2 5, que tem um quê meio Chaka Khan, com uma letra cheia de personalidade que se inspira na vida real de James, que teve outros empregos, até "acontecer" como artista (Tentando driblar o sistema / [...] Trabalhando em restaurantes de dia / Escrevendo canções de amor de noite). O expediente da música de protesto, mas que também serve para dançar e amar (como resumiu o The Guardian), se repete em outros instantes, como no single Baby Baby um rap ágil com coralzinho gospel e um quezinho de disco music, que traz letra sobre desejo de fama e bombardeio na Palestina. É único, brilhoso, onírico e sensual em igual medida. Não há como ouvir a balada Tossed Away, ou a magnética It's Time (a melhor) e ficar alheio. É artista cheio de alma que veio pra ficar.

Nota: 10 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Taylor Swift (The Life of a Showgirl)

Apenas por curiosidade resolvi abrir alguns fóruns online pra ver o que os ouvintes estavam falando sobre The Life of a Showgirl, o décimo segundo disco da Taylor Swift e confesso a vocês que fiquei impactado em como as pessoas levam a sério o trabalho da loirinha! De comentários maldosos sobre ela estar sendo uma paródia de si própria, passando por discursos moralistas a respeito das letras tardiamente safadas da artista e críticas a um certo cansaço da imagem, até chegar ao auge de alguém dizer que ela só faz música pra atender o seu público, não seguindo seu "coração", aparentemente tudo está em julgamento. E nada está em seu lugar. Como o fã de novela que se queixa dos seguidos furos de roteiro, ou o consumidor de fast food que não entende como um hambúrguer tão famoso pode ser tão pobre do ponto de vista nutricional, espera-se que a Taylor, aparentemente, seja como uma espécie de baluarte da salvação da música no ano de 2025. Que ela dê um novo direcionamento para o seu pop de violão. Para que ela avance ainda mais pra dentro do matagal e da fogueira depois dos excelentes folklore e evermore (2020). E fuja do óbvio sem nunca mais olhar pra trás.

 


Mas, vamos combinar que talvez a Taylor só esteja feliz, convertendo essa alegria de um novo amor - alguém que a trata com doçura sem arroubos irônicos (Honey), que tem uma rola mágica de uns 20 centímetros (Wood) -, em um disco cheio de petardos brilhosos pra cantar junto, como as ótimas Opalite e The Fate of Ophelia (esta última com citações à Shakespeare, pra quem tá sedento por algum tipo de profundidade). Não é todo o dia que a gente precisa de uma dissertação de Mestrado musical - e o que não faltam são bandas diferentonas nessa seara. E o que o que me deixou surpreso, de fato, foi que a cantora chegou a anunciar que estava fazendo uma espécie de retorno aos tempos de Red (2012) e de 1989 (2014), que é o que acontece aqui. Ou seja, tudo estava alinhado! Sim, há acenos sobre o drama da mulher branca e famosa na era do cancelamento (CANCELLED!), a respeito da exploração na indústria da música (Father Figure, que tem uma interpolação de George Michael em uma canção de mesmo nome), além de uma diss track desajeitada, que parece direcionada à Charli XCX (Actually Romantic). Nada mais adequado para a hora do treino ou para encarar uma louça em cima da pia. E vida que segue!

Nota: 8,5 

Cine Baú - Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock)

De: Peter Weir. Com Anne-Louise Lambert, Margaret Nelson, Rachel Roberts, Helen Morse e Jacki Weaver. Drama / Suspense, Austrália, 1975, 115 minutos.

Uma montanha enevoada, um clima de sonho febril e bucólico, os banhos de flores, as roupas rendadas, a trilha sonora onírica e delicada, os letreiros góticos - absolutamente tudo, no início do clássico hippie Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock), sugere um ambiente romântico, mas misterioso, sensível, porém enigmático. Ao cabo, a obra conduzida pelo versátil Peter Weir (de O Show de Truman, 1998) e que recém completou 50 anos de seu lançamento, pode ser uma experiência excessivamente contemplativa para alguns paladares. Especialmente por não adotar, como seria esperado em uma produção dos anos 70, o esquema de início, meio e fim desenhados de uma forma mais tradicional, ou com algum tipo de solução mais satisfatória. Só que esse é um filme muito mais sobre a atmosfera criada. A respeito de sensações evocadas. E sobre temas que ficam uma camada abaixo - e que vão do amadurecimento, passando pelas descobertas sexuais, até chegar às diferenças sociais ou mesmo o medo do desconhecido.

Em um primeiro momento, a produção estabelece diálogo com suspenses típicos de gênero, quando três alunas e uma professora simplesmente desaparecem, sem muitas explicações, em meio a um piquenique junto às opressivas formações geológicas de Hanging Rock, em Victoria, na Austrália. É o Dia dos Namorados no ano de 1900 e as jovens estudantes de um internato para meninas estão animadas com a possibilidade de saírem à campo para celebrar a data. A severa diretora Mrs. Appleyard (Rachel Roberts) alerta para as situações de risco: os rochedos podem ser perigosos, há chance de haver cobras ou formigas e a exploração está proibida. A ideia é que elas elaborem uma redação como tema de casa e o clima é amistoso. Menos para uma garota de nome Sara (Margaret Nelson), que é obrigada a ficar no educandário - e, mais adiante, compreenderemos os motivos, dado o conservadorismo reinante e um certo estranhamento no que diz respeito ao afeto excessivo que Sara dispensa à outra jovem, no caso Miranda (Anne-Louise Lambert).

 


Aliás, aqui está uma das grandes habilidades do filme - inspirado em obra da romancista Joan Lindsay -, que é apresentar uma série de subtextos de forma sutil, sem apelar para obviedades ou convenções. O suposto lesbianismo de Sara nunca vai para além do campo da sugestão - ela é impedida de ir ao piquenique por ser uma novata recém-chegada de outro orfanato e que teria sido apartada de seu irmão. Com a opressão à ela se ampliando conforme ela apresenta uma série de dificuldades financeiras, ficando em "dívida" com a escola. Miranda é uma das jovens que desaparecem em Hanging Rock, ao lado de Marion (Jane Vallis) e Irma (Karen Robson). O sumiço se dá após um misterioso evento que faz os relógios pararem (às 12h em ponto), ao mesmo tempo em que os professores aceitam que as jovens saiam do seu raio de ação, sob a desculpa de investigarem melhor o local. No caminho, o trio que é acompanhado ainda por Edith (Christine Schuler) - que é a única que consegue fugir -, é sorrateiramente observado pelos jovens Michael (Dominic Guard) e Albert (John Jarratt).

Quando Edith retorna desesperada ao acampamento, após um transe que leva Miranda, Marion e Irma para uma espécie de fenda, as explicações são desencontradas. Uma professora, que teria tentado auxiliar nas buscas, também desaparece. A força tarefa que faz as buscas não tem muitas informações. Edith alega ter visto uma nuvem vermelha. O quarteto teria desmaiado junto às rochas antes do ocorrido. Pessoas aleatórias teriam sido vistas em meio às frestas estreitas, à distância, como se não tivessem uma "função" bem definida. "Na Inglaterra não se permite que jovens passeiem assim sozinhas", lembra Michael, fazendo um aceno ao patriarcalismo da época, que se une a um apelo à violência como forma de dominação. Nada fica muito claro e também a situação não se resolve, quando Irma é localizada desacordada. A sensação é de alarmismo e de colapso, com especulações sobre estupro e assassinato e outros crimes que podem abalar a reputação da escola - com a tragédia se ampliando perto do desfecho, com o mistério permanecendo insolúvel. O que não reduz o impacto dessa joia cult, que integra uma série de listas de melhores, inspirando, anos mais tarde, uma série de outros projetos, como As Virgens Suicidas (2000), de Sofia Coppola.

 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Wolf Alice (The Clearing)

Vamos combinar que, quando o assunto é a música alternativa, existem algumas bandas que são apostas certeiras. Daquelas que praticamente não têm como dar errado. E esse é justamente o caso dos ingleses do Wolf Alice que, depois de lançarem o melhor disco internacional de 2021, o essencial Blue Weekend, retornam com o ótimo The Clearing, o quarto trabalho de estúdio. Mais maduros e, consequentemente mais preocupados com questões que dizem respeito aos trinta mais, o grupo capitaneado por Ellie Rowsell, nunca soou tão limpo. É como se o seu soft rock psicodélico, antes diluído em algum tipo de plasma que o deixava mais garageiro, mais sujo e até mais sonhador, agora tivesse passado por um polimento. Reflexo da chegada em uma nova gravadora (um braço da Sony), que tentará vendê-los como os "novos" salvadores do pop britânico? Talvez. Mas, também e provavelmente, uma vontade pessoal de se aproximar de um público mais amplo.

 


Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na pegajosa Just Two Girls, que não apenas tem aquela pegada mais setentista e estrutura clássica de estrofe e refrão, como ainda possui uma letra comovente sobre amizade entre duas mulheres, ecoando sentimentos de vulnerabilidade, julgamentos e inseguranças (Apenas duas garotas / Como duas crianças no parque / Aqui está o palco, você é a estrela). Já a ótima baladinha Play It Out aborda às pressões relacionadas à maternidade e sobre como as jovens mulheres só parecem ser validadas enquanto forem jovens ou férteis. Talvez os mais apressados possam se sentir à vontade pra dizer que não há nenhuma canção tão potente como Don't Delete the Kisses ou Lipstick on the Glass nesse álbum. Mas esse é um trabalho que cresce a cada nova audição. O que faz com que a cada dia canções diferentes - como Thorns, Bloom Baby Bloom, Bread Butter Tea Sugar ou White Horses - permaneçam conosco.

Nota: 8,5 

Novidades em Streaming - O Pavão (Pfau: Bin Ich Echt?)

De: Bernhard Wenger. Com Albrecht Schuch, Julia Franz Richter e Theresa Frostad Eggesbø. Comédia / Drama, Áustria / Alemanha, 2024, 102 minutos.

Em um dos filmes mais engraçados de Woody Allen, o diretor e ator vive Leonard Zelig, um sujeito meio sem graça que sofre de uma curiosa condição psicológica: a de ser capaz de adequar não apenas a sua personalidade, mas também a sua aparência, para que esta fique ajustada ao grupo em que está convivendo. Se está ao lado de médicos ingleses afetados, logo ele estará comentando os avanços da ciência com sotaque característico. Se estiver próximo a um coletivo de jazz, ele, como um camaleão humano, modificará a cor da pele, tornando-se um habilidoso saxofonista. A necessidade de se ajustar às convenções era o que estava no centro de crítica de Zelig (1983), um mocumentário absurdamente hilário e que, hoje, anda meio esquecido na filmografia de Allen. O que nos leva à O Pavão (Pfau: Bin Ich Echt?) que, em alguma medida, repete as ideias da obra do nova iorquino em suas discussões sobre personalidade (ou ausência de uma), quebra de padrões sociais e outros temas relacionados.

Só que, como não poderia deixar de ser quando o assunto é o cinema alternativo europeu, aqui temos uma espécie de episódio de Black Mirror, feito para ser exibido no Festival de Locarno. Na trama do filme de Bernhard Wenger - o enviado da Áustria para o Oscar 2026 -, Matthias (Albrecht Schuch) é uma espécie de mestre na personificação de papeis. Aliás, a ponto de tornar essa habilidade a sua profissão. Ele pode até parecer meio tímido ou um tanto normie, mas como o dedicado funcionário de uma empresa chamada My Companion, ele pode se converter em qualquer pessoa, encarnando um papel que esteja de acordo com o desejo do cliente. Alguém para ser companhia durante um concerto musical? Na mão. Um namorado gay, que ajudará o parceiro na compra de um apartamento que só é vendido para casais? Não seja por isso. Um piloto de avião que surge como o pai improvisado de uma criança, em sala de aula? Oras, vamos lá.

 


Como um Zelig dos tempos modernos, Matthias vai pra lá e para cá com seu ar blasé, solicitando aos clientes uma avaliação positiva no site, a cada serviço concluído, para que os negócios sigam satisfatórios. Só que a vida real não é feita de personagens. Quer dizer, pode até ser, em partes, mas sempre haverá o dia em que a máscara pode cair. Exatamente como dizia o Lulu Santos, na ótima Tudo Igual (Não leve o personagem pra cama / Pode acabar sendo fatal). E o caso é que a namorada de Matthias, Sophia (Julia Franz Richter), já tá de saco cheio da apatia do companheiro. Incapaz de tomar qualquer decisão, de mostrar qualquer tipo de autenticidade. "Você simplesmente não parece mais real", reclama ela na discussão central da narrativa, enquanto ele assiste a um enorme cachorro recém adotado por ela, comer ração diretamente do sofá. Aliás, o caso é que até o drama da DR soa fake, como se as lágrimas tivessem de ser aplicadas artificialmente.

Enquanto vive seu próprio drama pessoal, Matthias se prepara para dois novos papeis. Em um deles, auxilia uma idosa - seu nome é Vera (Maria Hofstätter) - a ser capaz de argumentar com o marido reinento. O que ocorre em sessões periódicas em um apartamento improvisado no centro. Já outro contratante é um senhor que organiza uma festa de 60 anos, com Matthias encarnando o filho do sujeito. O homem quer que ele capriche no discurso - algo emotivo, convincente -, para que ele possa se cacifar para a presidência de uma associação de ricaços que ele representa. Enigmático, estranho e meio delirante, o filme aposta em situações que vão no limite do deboche à burguesia pequena, sendo impossível não encontrar eco na obra de diretores como Ruben Östlund (especialmente a sequência final, com sua referência à The Square: A Arte da Discórdia, 2017) e Yorgos Lanthimos, com sua crítica lúcida ao vazio da experiência das elites econômicas abastadas. Contexto que é reforçado pelo exótico retiro espiritual feito pelo protagonista. Tá na Mubi e vale prestar atenção.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Cinema - Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another)

De: Paul Thomas Anderson. Leonardo DiCaprio, Teyana Taylor, Sean Penn, Chase Infiniti e Benicio Del Toro. Ação / Policial / Comédia / Drama, EUA, 2025, 161 minutos.

Existe uma frase atribuída à Che Guevara que diz que "a revolução se faz através do homem, mas o homem tem de forjar, dia a dia, o seu espírito revolucionário". Em alguma medida e, em uma interpretação bastante livre, é possível afirmar que tal sentença resume bem o sentimento vivido por Pat Calhoun (Leonardo DiCaprio), personagem central de Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another), que está em cartaz nas cinemas do País. Ao cabo, a obra dirigida por Paul Thomas Anderson - um dos favoritos da casa - é uma experiência larga, grandiosa, que alterna momentos frenéticos de perseguição e de fugas espetaculares (tanto a pé, como em carros em movimento), com instantes um tanto intimistas, domésticos e reflexivos. Não apenas sobre os tempos em que vivemos - de ascensão de uma extrema direita a cada dia mais radical -, mas também da persistência quase romântica em não deixar os ideais revolucionários esmorecerem.

Porque em geral é muito cômodo aceitar o mundo em que vivemos. Com Bolsonaro, Trump, Netanyahu, supremacismo branco, nazismo da pós-modernidade, xenofobia, genocídios e instabilidade social generalizada. Mas como é possível acordar todas as manhãs, recolhendo todo o ânimo restante para que o ideal de um mundo melhor para as gerações futuras se perpetue? Como ir para além da paixão sanguínea e ideológica que move os movimentos de esquerda (ou progressistas) que lutam por justiça social e um maior equilíbrio entre quem está acima e abaixo da pirâmide? No primeiro terço da produção é meio que impossível não se comover com uma espécie de deleite amorosamente revolucionário. Aquela coisa de tesão e fúria, de sexo e bomba, de luta panfletária por liberdades em meio a tiros, gozo e tentativas espetaculares de driblar as forças militares que se instauram nas entranhas do poder. E que acham que podem determinar o futuro do cidadão comum, levando-se em conta sua raça, gênero ou cor da pele.

 


Pat e a parceira de crimes (e de cama) Perfídia Berverly Hills (a ótima Teyana Taylor) - como se fossem uma espécie de Bonnie and Clyde das trincheiras revolucionárias -, integram o coletivo French 75 que realiza, por baixo dos panos, uma série de ações que envolvem explosões com bombas, resgates mirabolantes de presos políticos, e ataques a rede elétrica, que visam a desestabilizar o governo tirânico e autoritário de extrema direita em vigor. E que tem no comandante Steven Lockjaw (Sean Penn, como se fosse um General Heleno do universo nem tão alternativo), o seu principal rosto. Aliás, rosto asqueroso como costuma ser o desses neofascistas que compensam algum tipo de ausência, com muito grito, muita arma empunhada, um tanto de cara feia e muita raiva de qualquer minoria. Negros, gays, imigrantes, quem quer que seja. E é por isso que ele fica absolutamente exasperado quando ele é humilhado por Perfídia, durante uma ação do grupo. Para mais tarde capturá-la, obrigando-a a fazer sexo com ele.

Perfídia, mais adiante, dá à luz à filha Charlene (Chase Infiniti), mas, incapaz de seguir uma vidinha de "bela, recatada e do lar", ela foge de casa para seguir os ideais da revolução, deixando a cargo de Pat a criação da pequena. Só que, em uma das ações do French 75 as coisas saem errado, Perfídia é presa, indo parar em uma espécie de Programa de Proteção de Testemunhas, que é conduzido pelo próprio Lockjaw, com seus trejeitos e tiques nervosos absurdamente irritantes. Um conjunto de situações que obrigará Pat e Charlene a fugirem, enquanto Perfídia também consegue escapar do seu asilo forçado - no caso, para o México. Um salto de 16 anos no tempo mostrará pai e filha vivendo agora com outra identidade (seus novos nomes são Bob e Willa), tentando tocar a vida em uma cidade santuário isolada. E, claro, como não poderia deixar de ser, a caçada em si ainda não terminou, especialmente após Lockjaw se tornar integrante de luxo de um grupo supremacista - o que faz com que Bob / Pat se torne a cada dia mais paranoico. Tendo no vício em drogas uma espécie de válvula de escape.

 

 

Com uma trilha sonora envolvente, de cordas e pianos cortantes que sobem e diminuem, mas que permanecem meio que o tempo todo - cortesia de Jonny Greenwood, do Radiohead -, e uma edição ágil, mas nunca confusa, Uma Batalha Após a Outra é uma aventura política quente, inspirada em um conto de Thomas Pynchon, e que dialoga, inevitavelmente, com o atual contexto político (ainda que Vineland, o texto de Pynchon, tenha sido escrito na esteira do governo do republicano Ronald Reagan). Por vezes exagerado, em outros momentos engraçado, mas o tempo todo hipnótico, esse é o tipo de produção que, as pessoas elogiam dizendo que "nem se vê às 2h40 passarem". Sim, isso pode ser um mérito, especialmente em uma obra bem costurada, ágil e que mantém a atenção do público. Claro que, no terço final, quando a perseguição parece não ter mais fim - depois da entrada em cena do professor de caratê de Willa, Sergio (Benicio Del Toro) -, a coisa pode dar uma certa cansada. Ainda mais quando meio que já compreendemos a mensagem que fica, no que diz respeito ao combate permanente de regimes autoritários. E da importância de nunca desmobilizar. 

Nota: 9,0 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - Os Enforcados

De: Fernando Coimbra. Com Leandra Lea, Irandhir Santos, Stepan Nercessian, Thiago Thomé e Irene Ravache. Drama / Policial, Brasil, 2024, 123 minutos

Quem acompanha a carreira do diretor Fernando Coimbra sabe de sua habilidade em construir aquele drama policialesco e essencialmente urbano - repleto de personagens de caráter duvidoso, que navegam em um cenário de criminalidade reinante. Foi assim, por exemplo, com o ótimo O Lobo Atrás da Porta (2013) - que lhe credenciaria para a direção de alguns episódios da série Narcos, da Netflix -, é assim com o recente Os Enforcados, que passou meio que batido pelos cinemas e, agora, chega para aluguel nas plataformas de streaming. A trama gira em torno de um casal de trambiqueiros - Regina (Leandra Leal) e Valério (Irandhir Santos) -, que comercializa máquinas de caça níquel clandestinas na periferia do Rio de Janeiro. Só que, a despeito da reforma que eles estão executando em sua voluptuosa casa, o caso é que eles estão falidos. Endividados. Em crise. O que, ao menos em partes, não altera o sexo fetichista da dupla.

A oportunidade de ouro para quem tá meio que ligando o foda-se surge quando o tio de Valério, um certo Linduarte (Stepan Nercessian), uma figura influentíssima no jogo do bicho, anuncia que vai deixar os negócios - o que representa uma tentativa de recomeço para Valério, que é influenciado por Regina que, mais adiante, perceberemos ter uma ambição atroz. Sentimento ampliado por um outro trambique. Esse perpetrado pela mãe de Regina, Helena (Irene Ravache) - uma charlatã leitora de cartas de tarô, que anuncia a filha que a lua em Saturno (ou algo que o valha) configurará uma virada financeira. Nem tudo será tão simples porque a ideia de Valério era vender a sua parte dos negócios para o tio. Só que ele descobre que o sujeito anda enrolado com políticos, com milícia e gente grande do local. "Todo mundo quer a morte desse cara e você nunca será o suspeito, já que é o sobrinho", insinua Regina. E, bom, é mais ou menos por aí que se inicia uma trilha de sangue, de violência, de chantagens e de perseguições.

 


O caso é que Regina e Valério não apenas matam o próprio tio para assumir seus negócios, como ainda o escondem em meio as paredes da casa em reforma - uma coisa estilo Festim Diabólico (1948), mas talvez com menos charme blasé. Enquanto as obras avançam, os golpes (e paranoias) também se ampliam. Há outros homens interessados em saber do paradeiro de Linduarte que, eles dão a entender, teria algo a ver com a morte do próprio pai de Valério, uma outra figura controversa e ligada ao crime. Há uma escola de samba no meio dos negócios - e que faz aquele aceno ao estelionato -, além de uma empresa de fachada para a lavagem de dinheiro. Só que o casal central descobrirá, a duras penas, que o tio também era um falido de marca maior, estando endividado até o pescoço. Com gente graúda. O que levará a uma investigação da Polícia Federal e uma tentativa desesperada de sobreviver em meio a tudo.

Sim, essa resenha meio mal construída pode dar a entender que é tudo meio sem graça nessa perseguição de gato e rato e em tentativas aleatórias de um bando de alpinistas sociais ascenderem a qualquer custo. Mas aqui temos não apenas o resumo alegórico desse Brasil atual do jogo do Tigrinho, e de pessoas em um desejo nem tão secreto de enriquecerem percorrendo menor caminho possível, como tudo é feito com um senso de humor meio Marçal Aquino, meio Guy Ritchie (na melhor fase) - se é que isso é um elogio. Há uma tentativa de graça que não fica só na violência estilizada pela violência. Por exemplo, quando o tio morre o sangue se espalha até pelo teto, se bobear. O cachorro sapateia por cima da gosma vermelha. O que exige de Regina um esforço a mais no alvejante. Há outros acenos sobre questões sociais e políticas, como no momento em que Valério afirma, como "cidadão de bem que paga impostos", ser a favor de um combate mais efetivo do crime organizado. Como se ele não fizesse parte daquele contexto. Enfim, nada mais Brasil do Brasil. E méritos para Coimbra, que é capaz de levar tudo isso pra tela apostando na excentricidade de tudo, sem pedantismo ou academicismo excessivo.

Nota: 8,0