segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Cinema - O Agente Secreto

De: Kleber Mendonça Filho. Com Wagner Moura, Tânia Maria, Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha / Holanda, 2025, 159 minutos.

Muito provavelmente poucos filmes serão tão didáticos em evidenciar de que formas eram perseguidas pessoas que, não necessariamente, estavam conectadas ao aparato político em meio à ditadura militar, como no no ótimo O Agente Secreto - o enviado do Brasil ao Oscar, que está em cartaz no País. Professores, intelectuais, pesquisadores, jornalistas, artistas e muitos outros precisavam entrar em rota de fuga pelos motivos mais aleatórios - e que nem sempre estavam diretamente ligados ao confronto direto com os milicos ou às frentes de resistência ao regime. No caso de Marcelo (Wagner Moura), o protagonista da obra de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, 2016 e Bacurau, 2019), ele é um professor universitário especializado em tecnologia que meio que precisa sumir do mapa - e da faculdade em que ele trabalha em São Paulo -, depois que um industriário mal intencionado (e que detém o dinheiro) se sente incomodado com aquele "comunista cabeludo", que ousou patentear uma pesquisa a respeito de baterias de lítio.

Aliás, a construção dessa tensão ambiental pode ser percebida já nas primeiras sequências da produção, quando Marcelo faz uma parada em um posto de gasolina nos arredores de Recife - um local um tanto ermo, ladeado por vastas lavouras de capim elefante -, sendo surpreendido pelo fato de, ali, no pátio do estabelecimento, jazer um corpo. "Está desde domingo aí e a polícia ainda não veio ver", resume o frentista, atribuindo a demora aos festejos de Carnaval. Quando uma patrulha da Polícia Rodoviária Federal finalmente aparece, não é para averiguar o cadáver. E sim o fusca amarelo dirigido por Marcelo. "Tu não carrega tóxico aí dentro, não, né?", inquire o agente da lei, que, investido da síndrome do pequeno poder, atua no sentido de intimidar o cidadão nesse modelo de minúsculas opressões. Marcelo claramente está desconfiado. Talvez até com medo. Os motivos compreenderemos mais tarde.

 


Em linhas gerais esse é mais um filme de fluidez lenta, que aposta nas sutilezas como forma de fortalecer os seus pontos. Não há aquele caso ostensivo de militares de botas, balas de borracha e cassetetes em punho, dispostos a levar sujeitos tidos como subversivos para cativeiros onde serão sistematicamente torturados. Aqui, Marcelo chega placidamente a uma espécie de comuna na capital pernambucana, na ideia de fugir da vigilância constante do tal Ghirotti (Luciano Chirolli), o odioso industriário da Eletrobrás que chega à universidade como convidado, mas que sai cagando regra de uma forma quase caricata, abusando de comentários preconceituosos, racistas e xenofóbicos. Recebido pela carismática Dona Sebastiana (a ótima Tânia Mara), Marcelo tentará reiniciar a vida naquele local quase idílico que abriga refugiados (na falta de outra palavra), arranjando um emprego improvisado em um órgão público meio decadente, enquanto tenta antecipar ao máximo a obtenção de um passaporte falso para ele, e para seu pequeno filho. O que pode ocorrer com um contato mais direto com figuras da resistência que circulam à sombra, como Elza (Maria Fernanda Cândido) e Arlindo (Tomás Aquino).

Nesses dias de estada no Recife, o protagonista estabelece um vínculo bastante fraterno com o seu sogro Alexandre (Carlos Francisco), pai da falecida Fátima (Alice Carvalho), que teria morrido de uma pneumonia mal curada (ainda que nunca seja possível ter certeza disso, já que descobriremos mais adiante que ela também foi alvo de perseguição da corja de Ghirotti). Em meio àqueles dias turbulentos do ano de 1977, a população recifense será impactada por um excêntrico episódio, que ocupará as manchetes dos jornais de forma recorrente: uma perna humana é encontrada no estômago de um tubarão que encalha (e morre) na orla. Ocorrência que, evidentemente, terá a ver com o misterioso sumiço de corpos, alvos de execução por milicianos ligados ao Estado - destino que poderá ser o do próprio Marcelo, se ele não conseguir empreender seu projeto de fuga do País. Com tudo piorando quando Ghirotti contrata dois capangas para persegui-lo.

 

 

Para além do roteiro em si, recheado de diálogos inteligentes e até bem humorados (principalmente aqueles que envolvem a Dona Sebastiana) - mesmo em um cenário de tensão -, o filme ainda merece elogios pela qualidade técnica, com um desenho de produção caprichoso, que recria absolutamente todo o cenário da época à perfeição (o que vai desde a arquitetura, passando pelos veículos, até chegar a objetos de decoração e figurinos). Há também um clima geral meio que de letargia do período. Uma espécie de nostalgia festiva de um Carnaval como alegoria da esperança, em um contexto político, social e econômico perto do colapso - e não deixa de ser interessante ver como o diretor une todos esses pontos de maneira quase lúdica, com instantes de devaneio que vão no limite do realismo fantástico (há uma cena com a "perna" que consegue ser assombrosa e engraçada em igual medida). O que é reforçado pela onipresença do cinema, com seus cartazes e reações do público à clássicos do terror como A Profecia (1977) ou Tubarão (1975), numa rima inevitável. A esperança e a dor se encontram em tempos de pirraça. Como numa música do Chico, tão trágica quanto envolvente.

Nota: 9,0

Novidades em Streaming - Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho)

De: Koya Kamura. Com Bella Kim, Roschdy Zem, Ryu Tae-Ho e Park Mi-Hyun. Drama, França, 2024, 104 minutos.

Vamos combinar que a trama do estrangeiro que visita um outro País e se encanta pela sua cultura, gastronomia, arquitetura, história e gente - em muitos casos até estabelecendo laços sólidos no local -, é meio que um lugar comum. Um clichê. Ainda mais em obras literárias ou filmes românticos. Afinal, firmar raízes em outra nação - o que abre possibilidades para novas amizades e amores -, talvez seja uma das grandes alegorias para os recomeços. Onde o passado fica para trás em prol de um futuro muitas vezes idealizado (mas que na tela sempre parece perfeito). Só que nem sempre a vida é tão óbvia como muitas vezes é no cinema - por mais paradoxal que isso seja -, e é por isso que é tão interessante o arco narrativo visto no tocante Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho), produção inspirada em livro da autora Elisa Shua Dusapin, que estreou recentemente na plataforma Mubi.

Aliás, o filme já começa com uma série de paisagens geladas e enevoadas que, somadas à trilha de notas tristes, já identifica aquele espaço como um local isolado, dotado de uma estética em que a melancolia geral prevalece. É nesse contexto - o da pequena Sokcho do título, uma cidadezinha pesqueira da Coreia do Sul, quase no limite coa vizinha Coreia do Norte -, que vive a jovem Sooha (Bela Kim), uma funcionária de uma pousada que tem a sua rotina alterada pela chegada do misterioso escritor Yan Kerrand (Roschdy Zem), que ocupará um dos quartos justamente nesse meio de temporada, em que a quantidade de turistas do lugar reduz drasticamente. Yan parece estar ali por certo interesse que tem a ver com seu trabalho. Talvez esteja buscando inspiração para um novo romance. "Gosto de ir a lugares movimentados, mas quando estão vazios", comenta ele em uma das caminhadas ao lado de Sooha, que funcionará como uma guia improvisada do local.

 


A protagonista inicialmente estranha certos comportamentos do estrangeiro. Ele não parece tão encantado assim com a culinária local, como deveria ser o caso - em certa altura dá preferência para um pacote de Cheetos do que para uma saborosa sopa de rabanete branco. Pior, ele parece sempre disposto a recusar qualquer tentativa de inclusão nos hábitos do pequeno povoado - o que também tem a ver com as refeições nunca aceitas (ele prefere ir a um restaurante genérico). Sooha considera tudo um tanto enigmático, ainda que nunca enfrente uma barreira linguística, já que tem o francês como segunda língua. Seu pai, que ela nunca chegou a conhecer, era de Paris - e sua mãe (Park Mi-Hyun) não parece muito disposta a contar a história real a respeito do sujeito. E não deixa de ser curioso perceber como, quanto mais Yan parece distante e apenas conectado com seu trabalho (sempre recluso em seu cubículo), mais Sooha parecerá encantada. Talvez até apaixonada. Por um homem que, vejam bem, tem idade para ser seu pai.

Aproveitando a narrativa para uma série de outros comentários sociais - os mais aprofundados envolvendo o culto à imagem e à necessidade de, nos tempos atuais, as mulheres recorrerem a procedimentos estéticos que quase nunca precisam -, a obra de Koya Komura ainda utiliza uma série de animações tão oníricas quanto transcendentais, como forma de reforçar as suas ideias. Nesse sentido não deixa de ser comovente o instante em que o sexo é "desenhado" como uma profusão carnal de traço sofisticado, capaz de ampliar a sensação de busca por algo que talvez nunca seja alcançado (por mais bonito e interessante que seja o namorado de Sooha, um jovem modelo). Sim, há uma fantasia ali que talvez seja quase óbvia sobre a idealização de um amor que jamais se concretiza, o que não reduz a surpresa do ato final quando Yan é franco de uma forma quase dolorosa demais. Isso não é um filme, afinal. Quer dizer, até é. Mas não do jeito que estamos acostumados.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - A Melhor Mãe do Mundo

De: Anna Muylaert. Com Shirley Cruz, Seu Jorge, Luedji Luna, Rihanna Barbosa, Benin Daihler e Lourenço Mutarelli. Drama, Brasil, 2025, 105 minutos.

"Nós não vamos dormir aqui, né? Não, nós vamos acampar!" Sinceramente, não é difícil entender os motivos de o público associar o comportamento de Gal (Shirley Cruz), a protagonista de A Melhor Mãe do Mundo, com o de Guido, o trágico personagem central de A Vida é Bela (1998), que tenta esconder os horrores da guerra do filho, ao tentar converter o campo de concentração em um espaço de "aventuras". Situações diferentes, mas tristezas semelhantes em um mundo que vira as costas para as minorias - sejam os judeus vítimas dos nazistas, sejam as mulheres pretas na sociedade como um todo. Tendo de matar um leão por dia para oferecer o mínimo - e não deixa de ser comovente o instante em que Gal coloca os filhos para dormir ao ar livre, na carroça que ela utiliza como catadora de papelão, enquanto recusa uma série de ligações do marido abusador Leandro (Seu Jorge), de quem ela está fugindo.

Quando contratou Shirley para ser a sua protagonista, a diretora Anna Muylaert - do ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) -, afirmou em entrevista ao Globo, que "ela tem uma coisa 'brava' de que gosto muito". Pode ser que esteja no olhar, ou nos movimentos do corpo, mas o caso é que a atriz é extremamente convincente em seu papel. Não apenas pelo fato de a maioria das catadoras serem negras, mas por Shirley já ter vivido na pele um abuso na vida real. "Ele passou 24 horas me estuprando e agredindo. Tinha um teste para uma novela na TV Globo, e me fez ligar para desmarcar", explicou na mesma entrevista. Nesse sentido, o resultado que se vê em tela parece muito próximo da verdade. Algo quase documental - do início em uma delegacia, encontrando pouco apoio após a abertura de um BO, ao final, quase esperançoso, em um ambiente de apoio e sororidade.

 


No meio do caminho, após a fuga de casa com as crianças à tiracolo - no caso os pequenos Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Daihler) -, encontros com um sem fim de pessoas, bem ou mal intencionadas, em uma jornada que foi apelidada em alguns veículos com a alcunha de road movie de carroça. O ponto final da jornada de Gal será a casa da prima, Bia (Luedji Luna, que se já não bastasse ser uma de nossas melhores cantoras da atualidade, também entrega muito na atuação), na região de Itaquera, onde deverá receber abrigo provisório. Em um dos encontros, Gal conhece Munda (Rejane Faria), uma vendedora de bandeiras de time de futebol que é cadeirante e que lhe explica de forma quase excessivamente didática, como funciona a ocupação onde ela reside.

Poética em alguma medida, a produção que chega à Netflix se ocupa em entregar momentos meio Projeto Flórida (2017) futebolístico, já que o sonho das crianças, que estão em um local muito próximo ao campo do Corinthians, é ver um jogo do Timão. Em outro instante, Gal recebe a ajuda de um certo Reginaldo (Lourenço Mutarelli), que parece disposto à auxiliá-la (ao menos até o instante em que ele revela sua verdadeira faceta). Discutindo nas entrelinhas um sem fim de temas políticos e sociais, com diálogos divertidos e curiosos (especialmente aqueles envolvendo as crianças), o filme ainda reafirma as dificuldades que envolvem se livrar de um marido abusador. Ainda mais quando este é o provedor da família - e, nesse sentido, não é por acaso que o churrasco na casa de Bia, é pago por Leandro. Que tenta uma reaproximação torta, com a conivência de todos ali. Ao final resta o banho que lava a alma de tudo. E que pode ter um significado para além do simples asseio e que versa sobre a complexidade de ser uma mãe periférica.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Balada de Um Jogador (Ballad of a Small Player)

De: Edward Berger. Com Colin Farrell, Tilda Swinton, Fala Chen e Alex Jennings. Suspense / Drama, Alemanha / Reino Unido, 2025, 102 minutos.

Preciso admitir pra vocês que se tem uma coisa que me deixa meio desgostoso quando o assunto é o cinema atual, são os excessos estilísticos que só servem para acobertar filme ruim. Para além do fato de que, hoje em dia, tudo parece ter de ser ultraprocessado pra uma melhor "digestão" do público, há também aquele amontoado de clichês que vão do tom sombrio ou misterioso, passando por narrações em off sussurradas (e supostamente inteligentes), que formarão um contraponto para uma coleção de imagens exuberantes e maximalistas, que tendem a buscar certa quebra da lógica. Um bom exemplo de algo nesse perfil é o horroroso Megalópolis (2024) que talvez seja, até com alguma folga, a pior coisa lançada nesse ano. Só que essa fonte de completo vazio, de oco absoluto, parece longe do fim, como comprova o recém chegado Balada de Um Jogador (Ballad of a Small Player), que está disponível na Netflix.

E há que se considerar que a expectativa era alta, já que o diretor Edward Berger vinha de duas elogiadíssimas produções - aliás, duas favoritas aqui da casa -, no caso a releitura de Nada de Novo no Front (2022) e o provocativo e ousado Conclave (2024). Só que aqui, toda o aparato técnico bem executado do primeiro e a sutileza do segundo, dão lugar a uma trama abobalhada sobre um apostador que se vende como a última bolacha do pacote dos cassinos de Macau (com direito até mesmo a luvas especiais, que talvez tenha sido compradas na Shopee), um nome fictício mas nada pomposo e um figurino que parece saído de algum filme B do Brian De Palma. De bon vivant vencedor, que sempre pede a champanhe mais cara, o cara só tem a marra mesmo. Já que tá devendo na praça uma cacetada de grana. Não apenas pro hotel em que está hospedado, mas também pra uma ricaça que ele roubou em um golpe no passado, pra alimentar seu vício.

 


Ok que, vá lá, o Colin Farrell até se esforça em entregar algum tipo de charme comovente no seu Lord Doyle, que se movimenta de forma furtiva pelos corredores do cassino em que costuma jogar - isso após acordar de alguma noite aleatória de bebedeira. Em uma das primeiras narrações em off ele se vende como uma figura que vive às sombras, enquanto toca uma vida hedonista em terras chinesas. Isso, ao menos até o surgimento da esquisitona Cynthia Blyte (Tilda Swinton, que entra naquele bloco das atrizes de papel único, afinal, quem melhor pra interpretar uma figura excêntrica, né?), que aparece em sua vida como representante de uma firma que cuida do patrimônio de figuras da elite inglesa. Após uma perseguição meio aleatória, Cynthia dá a morta para Doyle: ele tem 24 horas pra saldar uma dívida milionária que ele tem com uma de suas clientes. É isso ou a deportação.

E como desgraça pouca é bobagem, Doyle já tinha sido alertado pelo pessoal do hotel de que sua dívida ali só vinha aumentando. E que ele tinha 72 horas pra pagar uma grana preta para os proprietários, pra não se ver no olho da rua. E é esse o trambiqueiro sem nenhum grande encanto, sem nenhuma grande história pregressa, sem nada que façamos com que tenhamos algum apego, que acompanharemos pelas próximas duas horas, adotando o modo Corra Lola Corra (1999) - mas com magnetismo nulo -, pra tentar obter os pilas. No caminho, ele conhece uma idosa, que responde apenas como Vovó (Deanie Ip) e que parece ter um outro por dentro, já que ela não perde uma rodada sequer de Bacará (um jogo de cartas que nem conhecia). E, enfim, essa senhora parece ser a chave para alguma solução, especialmente após a aparição de uma enigmática crupiê - seu nome é Dao-Ming (Fala Chen). E, bom, a coisa se arrasta com muito corte seco, tomadas aleatórias da metrópole iluminada, closes estranhos e fotografia saturada. Mas, assim, história mesmo, algo com mais substância, é pouco.

Nota: 4,0 

 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - Big Thief (Double Infinity)

"Essa música surgiu como tantas outras, sem pensar muito". Vamos combinar que se fosse outra artista falando essa frase, que não a Adrianne Lenker, e ela poderia soar apenas presunçosa. Mas não é o caso da vocalista do Big Thief, porque é simplesmente impressionante a capacidade dela - e de sua banda - de simplesmente produzirem grandes canções, sem que haja um grande esforço. Com o resultado sempre sendo uma coleção impecável de discos, que tem por marca aquele indie folk encharcado, meio diluído em névoa, que se torna gigante não pelo grande aparato tecnológico, mas sim pela sua total discrição. Tudo soa moderado, mas rigoroso. "É uma canção espiritual sobre fazer amor. É sobre tirar essa vergonha dos nossos corpos, do nosso sexo, da nossa cultura", comentou ao site inglês INews, a respeito de All Night All Day, a tal canção feita sem "muito pensar", que integra o recente Double Infinity.

 


Ainda assim, é importante reiterar que simplicidade - talvez pudesse ser chamado também de conforto - nunca significa negligência. Em momento algum a sonoridade soa opaca demais, sem brilho ou personalidade. Ao contrário, mesmo quando o agora trio (após a saída do baixista Max Oleartchik), formado ainda por Buck Meek e James Krivchenia, fala de temas cotidianos e nostálgicos, como no single Incomprehensible, que aborda o medo de envelhecer e a efemeridade da juventude (Daqui a dois dias vou fazer aniversário e vou fazer trinta e três / Isso realmente não importa diante da eternidade), tudo soa maior, mais estofado. Com um toquezinho de psicodelia meio mágica, reforçada pela cítara que aparece um canções como Grandmother, o álbum poético até dizer chega, é daqueles que cresce a cada audição. Evidentemente, sem que haja qualquer esforço.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Novidades em Streaming - Casa de Dinamite (A House of Dynamite)

De: Kathryn Bigelow. Com Rebecca Ferguson, Tracy Letts, Idris Elba, Gabriel Basso e Jared Harris. Suspense / Drama, EUA, 2025, 113 minutos.

"Então gastamos 50 bilhões de dólares para isso?". A frase dita pelo secretário de defesa Reid Baker (Jared Harris), em um dos pontos altos de Casa de Dinamite (A House of Dynamite) talvez passe batida pelo espectador mais desavisado. A ponto de ela retornar no terço final, como uma espécie de lembrete do absurdo da guerra. Será que, nos tempos atuais, naturalizamos esse tipo de aporte financeiro destinado a tanques, mísseis e outros equipamentos que incluem o aparato bélico? Vocês entenderam a dimensão disso? Cinquenta BILHÕES de dólares, na ideia de acertar uma "bala com outra bala"? E que, ainda por cima, falha na hora decisiva. Qual o propósito, afinal, disso? Qual a lógica de simplesmente aguardar o fim do mundo, enquanto um bando de burocratas fardados ou uniformizados decide sobre botões a serem apertados? E que resultarão na morte ou não de milhares de civis?

Desde a ascensão dessa extrema direita tosca - que tem na figura de Donald Trump o seu mais alto representante -, que o medo de uma possível terceira guerra mundial ronda o planeta. Se em tempos de Guerra Fria, o diretor Stanley Kubrick optou pelo deboche como ferramenta, no inesquecível Dr. Fantástico (1964), o tom sério e meio envolto por ideais sobrevivencialistas (com direito a imagens aéreas de um bunker gigantesco), não me parecem gerar o mesmo efeito. Aliás, pior, talvez só resulte em medo. E em pessoas achando que os Estados Unidos devem dobrar a aposta quando o assunto forem os confrontos que quase parecem inevitáveis, entre nações. Se for preciso gastar 50 bilhões de dólares? Que se gaste. Se dez milhões de pessoas vão morrer nos arredores de Chicago? Azar, temos de contra atacar para não sermos taxados de covardes. De fracos. Na eterna disputa por quem tem o maior pênis, em um quadro provável de micropenia coletiva, que só pode ser compensada com bazuconas.

 


Sim, o que o filme de Bigelow - que ganhou o Oscar por Guerra ao Terror (2009) - tenta imaginar é como os Estados Unidos reagiriam diante de uma ameaça catastrófica: um míssil nuclear lançado de algum lugar do Pacífico, sem origem identificada. E sem autoria clara. E que explodirá nos arredores de Chicago, massacrando parte da população de um dos seus principais estados. Como baratas tontas, generais, secretários de defesa, integrantes do Pentágono e o próprio presidente dos Estados Unidos, encarnado com niilismo por Idris Elba, batem cabeça para tentar decidir os próximos passos. O artefato deve colidir em 19 minutos. Não há tempo para um plano de evacuação. A tentativa de abater uma bala com uma bala falha miseravelmente (com 50 bilhões de esfarelando) e só resta o que muitos ali fazem: chorar, pensar nos seus familiares, se apegar às rotinas pacíficas, distantes desse mundo hostil.

Como eu disse, parece haver aqui e ali uma mensagem legítima antiguerra - e que talvez esteja na simples beleza da vida de cuidar de um filho doente ou de projetar pedir alguém em casamento. Mas que também aparece em discursos tolos e mesmo no comportamento idiotizado de certas figuras que deveriam tomar decisões claras - mas não tomam. Em geral o mundo está a deriva, se ficarmos nas mãos dessas figuras que são hábeis em explodir bombas atômicas, mas que são péssimas em diplomacia. Em relações institucionais. A meu ver um filme como esse pode aumentar o sentimento de paranoia. Por mais que, lá no meio, em uma criação propositadamente teatral da Guerra da Secessão, a oficial de inteligência Ana Park (Greta Lee), lembre que apenas a Batalha de Gettysburg tenha resultado em quase 50 mil mortes. 

 

 

É um absurdo a guerra, né? Mas quando há tanta gente falando em tela sobre os "inimigos" de sempre - Rússia, China, Coreia do Norte e outras ameaças "comunistas" (como se estivéssemos em uma produção dos anos 80) - e repetindo toda a encenação por outros dois pontos de vista distintos, não sei se a mensagem, se é que há mensagem, cola tão bem. O primeiro terço, o que Rebecca Ferguson como a capitã Olivia Walker aparece, é bem urgente, angustiante, tenso. Depois, tudo meio que se dilui, quando a coisa migra pra outras salas e outras siglas e outras tentativas de decidir algo. Quase caindo no banal. Algo que nem as mensagens espalhadas de "pare o genocídio" em cartazes ao fundo, enquanto crianças circulam pelas ruas tranquilamente, parece amenizar. 

Nota: 6,0 

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Pitaquinho Musical - TOPS (Bury the Key)

Vamos combinar que esse ano está tão impressionante do ponto de vista musical, que até aquelas bandas que, em muitos casos, não chamam muito a atenção, parecem empenhadas em entregar o seu melhor lançamento em anos. E é justamente esse o caso do TOPS e de seu quinto registro de inéditas Bury the Key. A capa, de tintas meio sombrias, pode até enganar os ouvintes desavisados, mas o que o grupo capitaneado por Jane Penny faz, aqui, é arredondar ainda mais o seu sophisti-pop etéreo, deixando-o ainda mais limpo, mais acessível. Claro que os trabalhos anteriores nunca foram aquele exemplar de som garageiro, mas aqui temos uma banda tão iluminada e tão dedicada a uma ambientação mais aconchegante, que singles como ICU2 não fariam feio em algum disco dos conterrâneos do The New Pornographers.

 


Em linhas gerais é até meio divertido ver canções de títulos potentes como Falling on My Sword - que parece saída de algum disco de love metal dos anos 80 -, fazendo de conta que há um peso a mais de guitarra, que nunca chega a se converter em um abalo roqueiro de fato. Até mesmo porque a natureza do TOPS sempre foram as canções pegajosas inundadas em sintetizadores primaveris, cheios de carisma e de guitarras arejadas, como no caso da saborosa Chlorine, um esforço eficaz sobre a sensação de solidão em meio aos bares da cidade (Pare de encher meu copo com tanto amor vazio). Já Mean Streak consegue soar açucarada e metafórica, mesmo que os versos sugiram a eventual dor decorrente de um amor não correspondido ou de uma relação mais tóxica (Por quê você fica com ela, quando sempre me quis?). Enfim, mais um disco que parece pequeno nas aparências. Mas que se agiganta a nova audição.

Nota: 8,5 

Novidades em Streaming - Éden (Eden)

De: Ron Howard. Com Jude Law, Ana de Armas, Siney Sweeney, Daniel Brühl e Vanessa Kirby. Suspense / Aventura, EUA / Austrália, 2025, 129 minutos.

Eu preciso ser honesto com vocês: um filme como Éden (Eden) deve ter um amontoado de inconsistências, pouca coisa deve fazer sentido do ponto de vista histórico e há uma grande chance de que não haja qualquer pé na realidade. E, ainda assim, trata-se de uma experiência cinematográfica irresistível, divertida, tensa e sexy - capaz de nos deixar meio que hipnotizados pelas mais de duas horas de duração. Dirigida por Ron Howard - que tem uma carreira irregular, marcada por clássicos modernos oscarizáveis, como, Apollo 13 (1995) e Uma Mente Brilhante (2001) e por bombas atômicas como o recente Era Uma Vez Um Sonho (2020), a obra se inspira na história real do casal Friedrich Ritter (Jude Law) e Dore Strauch (Vanessa Kirby) que fogem da Alemanha no pós Primeira Guerra, para viver na pequena Floreana, um ponto isolado da Ilha de Galápagos.

A ideia era meio que abrir mão dos valores burgueses e capitalistas que pareciam estar corroendo o tecido social, para viver uma espécie de utopia de comunhão com a natureza, em uma nova vida bem distante do mundo "civilizado" e livre de qualquer amarra moderna. Na companhia apenas dos sons da mata e da praia do entorno, Ritter, que era médico, encontrava bastante tempo para se sentar diante de sua máquina de escrever, na intenção de compor uma série de manifestos que encontrariam espaço em jornais estadunidenses e europeus. E é mais ou menos aí que iniciam-se os problemas do casal, com outras pessoas buscando esse espaço idílico, como no caso dos agricultores Margret e Heinz Wittmer (Sidney Sweeney e Daniel Brühl), que chegam ao local com o filho tuberculoso Harry (Jonathan Tittel); além da excêntrica e hedonista baronesa Eloise Wernhorn (Ana de Armas), que chega com seus servos na intenção de construir um resort de luxo no local.

 

 

Uma rápida pesquisa na internet nos permitirá saber que todas essas pessoas, de fato, existiram e, muito provavelmente, coabitaram o local ao mesmo tempo. Mas o que Howard parece desejar fazer, aqui, é nos lembrar de certos ideais um tanto niilistas, baseados em figuras como Nietzche ("quem quiser permanecer limpo entre os homens, deve aprender a banhar-se em águas sujas") ou filósofos como Sartre ("o inferno são os outros"), que são citados de forma permanente e quase presunçosa por Ritter - como uma espécie de metáfora fragmentada do todo. Porque ao final e ao cabo, o casal não consegue deixar a civilização pra trás, sem que ela o encontre. E junto com ela, todos os preconceitos, mentiras, manipulações e antagonismos. Com uns se colocando contra os outros em disputas territoriais - por água, por comida, por poder (e até por prazer) -, o que nos faz lembrar as crianças perdidas do clássico literário O Senhor das Moscas (1954).

Quando os Wittmer chegam, Ritter não acredita que eles tenham força pra permanecer. Há muitos perigos ali e uma série de exigências de sobrevivência que parecem inadequadas para forasteiros. Mas eles ficam, persistem, constroem uma boa horta e se estabelecem com muito trabalho - a despeito dos olhos sempre tristes de Margret, que descobre estar grávida na ilha (o que renderá uma das sequências mais tensas do longa). Já a baronesa é absolutamente irresistível com o seu apelo à luxúria e consumo desenfreado, como uma pequena burguesa autoritária e cheia de personalidade, que antagoniza a todos ali, especialmente ao anunciar ser meio que a dona da ilha. Como um microcosmo da própria falência do capitalismo tardio, o filme consegue ser engraçado e reflexivo ao mesmo tempo, alternando momentos de diálogos hilários (a cena do almoço ou a da tentativa de sedução à um figurão de Hollywood são imperdíveis), com outros repletos de ressentimentos e de uma quase inevitável escalada da violência. Eu tenho a impressão de que se esse filme tivesse sido lançado na década de 90, ele seria sucesso absoluto. Talvez até sendo lembrado nas premiações. Hoje em dia, as pessoas parecem menos dispostas à papagaiadas escapistas. Tudo é levado a sério. Mas quem se aventurar sem grandes pretensões, deve se divertir.

Nota: 7,0