segunda-feira, 19 de maio de 2025

Novidades em Streaming - Campeões (Champions)

De: Bobby Farelly. Com Woody Harrelson, Kaitlin Olson, Kevin Iannucci e Madison Tevlin. Comédia / Drama, EUA, 2023, 123 minutos.

Vamos combinar que dá pra contar nos dedos das mãos o número de produções que incluem pessoas reais com deficiência em seus elencos. Aliás, é mais fácil termos um ator ou atriz fazendo de conta que é um PCD - muitas vezes sendo até premiado por sua caracterização. Então, estou aqui para saudar o simpático Campeões (Champions), que é inspirado no espanhol Campeones (2018). É um filme previsível, eventualmente imperfeito e qua talvez seja apenas um bom passatempo? Sim, provavelmente é tudo isso. Mas devo confessar a vocês que achei a obra dirigida por Bobby Farelly extremamente carismática. Claro, na Era do Cancelamento em que vivemos não demorará para que o campo progressista e cirandeiro aponte, aqui e ali, o eventual capacitismo que pode emergir da presença do homem branco, hétero e bronco chegando pra salvar o dia na Apae estadunidense. Mas o que não são essas entidades do que instituições de suporte e de estímulo permanente a autonomia e à independência?

Sim, na hora de apontar dedos todo o mundo se horrorizou com a franqueza excruciante de O Filho Eterno de Cristóvão Tezza, mas atire a primeira pedra quem de nós é completamente livre de preconceitos - e de incertezas também, sobre como agir, como se comportar -, quando o assunto são pessoas com Síndrome de Down ou algum outro tipo de deficiência intelectual? Claro, são pessoas como todas as outras, os paladinos da moral se apressarão em dizer. Com suas complexidades, desejos e frustrações. E o que esse filme faz é nos lembrar, à sua maneira, exatamente disso. Óbvio que há todo um clima festivo e de "copo meio cheio" que certamente reduz a quase zero a maioria das dores vividas por quem sofre o preconceito diariamente - e essa sim pode ser uma crítica real ao filme. Esse tipo de apagamento. Mas e se ao invés de pesar a mão sobre isso, convertermos essa experiência em uma fábula otimista sobre a importância do respeito em relação aos PCDs?

 


 

Em resumo, a gente anda em círculos e pisa em ovos já que este não é um assunto fácil de ser abordado -, e novamente, ranço a parte que vocês podem ter com o Farelly, talvez por conta das inúmeras comédias de gosto meio duvidoso, é preciso saudar a sua iniciativa de levar essa história a um público maior (saindo do nicho alternativo europeu que, infelizmente, fica relegado a uma plateia menor e que muitas vezes tem preguiça de ler legenda). A ousadia de tentar. Talvez não acertar tanto. Mas tentar. Na trama, Woody Harrelson é o temperamental treinador assistente de basquete Marcus, que, após um bate boca com o técnico de sua equipe por divergências de ideias o empurra em plena quadra. Não bastasse a cena viralizar e a reputação do sujeito, famoso por ser uma figura intempestiva, ruir, a coisa piora quando ele colide seu carro com uma viatura de polícia. Bêbado. Na audiência, a juíza lhe sentencia: dezoito meses de prisão ou 90 dias de serviço comunitário treinando o time The Friends.

Marcus é aquele homem de meia idade meio básico, que não consegue permanecer em nenhuma relação - como comprova seu desastroso comportamento com Alex (Kaitlin Olson), com quem ele passa uma noite após conhecê-la no Tinder - e que não se importa com ninguém. Não procura ter interesse por ninguém - por suas vidas, suas existência para além dos limites da quadra (como ele compreenderá após a discussão com seu técnico principal). Nesse sentido, a obra terá aquela trajetória típica de filme esportivo dos anos 90 - estilo Jamaica Abaixo de Zero (1993) - de pessoas que parecem deslocadas, mas que superarão de forma conjunta as dificuldades. Não para serem campeões do ponto de vista do torneio - até porque será a jornada em si que se converterá na vitória alegórica. Mas para vencerem outros medos. Dando profundidade a personalidade a cada uma das estrelas do time - do bondoso Johnny (Kevin Iannucci), que, aliás, convenientemente é irmão de Alex, passando pela atrevida Cosentino (Madison Tevlin) até chegar ao imprevisível Showtime (Bradley Edens) e ao taciturno Darius (Joshua Felder) -, o filme, disponível na Netflix, tem luz própria e jamais utiliza os casos de deficiência para uma mera exploração sem sentido. É cativante.

Nota: 7,5


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Pitaquinho Musical - Terno Rei (Nenhuma Estrela)

Vamos combinar: quem acompanha a carreira do Terno Rei já se acostumou com a sua música de ambientação urbana, cinzenta, de final de tarde em meio aos prédios altos e as calçadas ásperas - o tipo de sentimento palpável, que emana da sonoridade nostálgica e melancólica. Sim, a impressão que dá é a de já termos ouvido essas músicas antes - nas madrugadas das rádios alternativas ou em algum lugar na transição dos anos 80 e 90, pra quem viveu ali a juventude. As referências são quase óbvias, indo de Smiths e The Cure a Phil Collins e Radiohead -, sempre com uma guitarrinha pulsante e um letras urgentes a respeito de dores cotidianas ou sofrimentos contemporâneos mal curados -, o que jamais significa falta de personalidade ou estilo próprio. O que fica bastante evidente em Nenhuma Estrela, quinto disco de inéditas que, não por acaso, é um dos melhores da carreira.

 


 

Com um conjunto de canções perfumadas por sintetizadores enevoados, bateria frontal e refrãos nunca óbvios, o quarteto paulistano capitaneado por Ale Sater mostra maturidade e segurança em um registro extremamente bem produzido, requintado em sua estética e emocionalmente arejado - como comprovam músicas excelentes, como, Nada Igual, Próxima Parada e Programação Normal (sempre propondo algum tipo de dança em meio à tristeza, que vai no limite entre o pop e o experimental). Já Casa Vazia brinca com a ideia por trás da solidão de um bicho de estimação - no caso um cãozinho e seu eterno estado de espera (Dessa casa vazia / Sou protetor / Isso é tudo que tenha pra dar). "Fico muito feliz em ver como nossa música consegue tocar as pessoas e acompanhar fases da vida delas. Assim como vocês sentem isso, eu também sinto", resumiu o vocalista Ale Sater ao site Música Pavê. Os fãs agradecem.

Nota: 9,0

Novidades em Streaming - Oeste Outra Vez

De Érico Rassi. Com Ângelo Antônio, Babu Santana, Antônio Pitanga e Rodger Rogério. Faroeste / Drama, Brasil, 2025, 97 minutos.

Existe uma cena divertidamente melancólica em Oeste Outra Vez que talvez, em alguma medida, evidencie parte das discussões que a obra propõe. Nela, dois capangas do sertão goiano tentam estabelecer algum diálogo no quarto que compartilham. A noite já avança e um deles alega estar sem sono. "Tô tentando dormir mas a cabeça não deixa", comenta, afirmando que talvez esteja meio pra baixo. "Quer conversar um pouco?" questiona o companheiro. "Pode ser", responde o primeiro. Após alguns instantes de silêncio meio desconfortável em que eles se perguntam sobre o que exatamente irão conservar, o insone verbaliza: "não consigo pensar em nenhum assunto". "Bom, caso o senhor se lembre, me fale". Em geral essa poderia ser uma sequência meio boba, quase dispensável. Mas homens ainda meio jovens, incapazes de se comunicar - que não seja na base da violência, claro -, aqui, é a alegoria mais óbvia que ecoa nos tempos individualistas e niilistas que vivemos.

Sim, a aspereza daquele espaço ermo e desalentador pode até aludir aos faroestes clássicos de John Ford e a eterna busca por ocupação geográfica. De conquista e de vitória sobre algum inimigo forjado naquele ambiente em que a única linguagem possível é a do revólver. Claro que esse cenário pouco convidativo - arenoso, sem cor, sujo - parece indicar um tempo que não existe mais. Mas se fosse essa uma obra sobre redpills da classe média, que se alternam entre a misoginia galopante dos interiores de escritórios bem arejados e os encontros do clube de motoqueiros de final de semana, a coisa não fugiria muito dessa lógica. Aliás, se fosse um faroeste urbano, com homens violentos, toscos e bem vestidos, vivendo uma vida miserável de golpes, talvez a alegoria fosse ainda melhor. Refletindo ainda mais esse tempo em homens não sabem conversar sobre absolutamente nada na era do jogo do tigrinho e do pastorzinho coach, ao passo em que acreditam serem capazes de conquistar uma "mulherzinha" pra arrumar a casa e fazer companhia.

 


E, nesse contexto, eu admito que estou sem saber até agora se a escolha por músicas do Nelson Ned para integrar a trilha sonora da produção é apenas uma metáfora involuntária que envolve homens minúsculos tendo de compensar suas fragilidades emocionais empunhando pistolas, ou se foi algo deliberado. Justiça seja feita, Ned tinha nanismo e tinha um vozeirão que convertia suas canções - quase sempre libelos do sofrimento amoroso - em maiores (com o perdão do trocadilho) do que já eram. Já os homens de Oeste Outra Vez são pequenos porque são pequenos. Porque não sabem verbalizar aquilo que sentem. Que são desamparados - pelo Estado, por outras instituições, por suas famílias que lhes abandonam (uma ausência sentida e que poderia conferir ainda mais profundidade praqueles sujeitos mínimos se soubéssemos a origem desse desamparo). Onde estão as demais pessoas que circundam aqueles existências ordinárias? Afinal, se eles são como são isso também é efeito do meio em que vivem. E crescem. Sem perspectivas. Sem esperanças. 

Hábil em suas rimas visuais, o diretor Érico Rassi apresenta aqueles homens sedentos por vingança - a maioria das vezes por causa de sofrimentos amorosos nunca tornados claros -, como sujeitos falhos até na banalidade. Nesse sentido talvez não seja por acaso que praticamente todas as tentativas de atirar em alguém sejam estapafúrdias. Aqui não fica evidenciado o heroísmo daqueles bravos homens - tal qual os caubois de Ford de outrora (pistoleiros de código moral duvidoso, mas extremamente eficientes naquilo que se propõem) - e, sim, a total incapacidade até mesmo de executar aquilo em que deveriam ser bons. Efetivos. O capanga contratado por Toto (Angelo Antônio) para dar cabo de Durval (Babu Santana), após uma desavença, alega ser experiente. Mas não é. Bebe - aliás, a bebida é onipresente -, arma mal a arapuca, atira em tudo que é parte, mas deixa seu alvo escapar. O que inicia uma briga de gato e rato que quase sempre para na incapacidade de parte a parte de resolver a questão. Triste e esmaecido, esse é um filme que culmina numa cena tão aleatória quanto as decisões equivocadas daqueles que acompanhamos. Numa dança que segue mesmo frente ao imponderável.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Tesouros Cinéfilos - Reino Animal (Aminal Kingdom)

De David Michôd. Com James Fecheville, Jackie Weaver, Joel Edgerton, Guy Pearce e Ben Mendelsohn. Policial / Drama, Austrália, 2010, 112 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]

Existe uma sequência bastante simbólica lá pela metade de Reino Animal (Animal Kingdom), em que o detetive Nathan Leckie (Guy Pearce) faz uma analogia entre a natureza e seus complexos ecossistemas e o ambiente de crime em que o jovem Joshua (James Frecheville) parece cada vez mais imerso. "Você sabe no que consistem as florestas?", questiona ele. "São árvores que estão aqui a milhares de anos e de insetos que morrerão em menos de um minuto. São estruturas gigantes e pequenos seres irritantes". Alegoricamente, o que Leckie tenta lembrar ao jovem é que certas partes sobrevivem porque são fortes. Ao passo que outras são fracas e dependerão das demais para sobreviver. "Você pode pensar que é forte por conta daqueles que estão no seu entorno. Mas a realidade é que você é fraco e foi protegido pelos fortes. Que, no momento, estão perdendo a sua força", completa o investigador.

Naquela altura do campeonato o filme dirigido por David Michôd - vencedor do Festival de Sundance, que completa 15 anos de lançamento em junho - já evoluiu bastante. E o fato é que a casa está começando a cair, definitivamente, para Pope Cody (Ben Mendelsohn), tio aloprado de Joshua, que está em permanente fuga da polícia por envolvimento com o tráfico de drogas e também para a matriarca Janine 'Smurf' Cody (Jacki Weaver), avó do rapaz. Na trágica história está uma trilha de sangue que levará à morte outros familiares, como Baz Brown (Joel Edgerton) e Craig Cody (Sullivan Stapleton). A polícia de Melbourne não parece estar com muita paciência e na incessante busca por alguma pista de Pope, que se esquiva aqui e ali sem dar muito na cara, a coisa vai complicar. Nesse ecossistema, não é demais lembrar: Joshua é um arbustinho em um cenário de sequoias. É um pequeno, protegido pelos grandes. Mas até quando?

 


 

O caso é que o jovem de apenas 17 anos chega meio que por acaso aquele contexto familiar sombrio, violento e de poucas perspectivas. Quando sua mãe morre de overdose ainda no começo do filme, ele se vê sozinho e, no desespero, resolve ligar para a vovó Smurf. Como uma idosa de modos excêntricos e que gosta de manter a prole próxima - o modo com que ela trata seus filhos, um bando de barbados de trinta e poucos ou quarenta anos, faria Freud se revirar no túmulo -, Smurf resolve trazer Joshua para perto. Para morar com ela. E, assim, tal qual o personagem de Sean Penn em O Pagamento Final (1993), que deseja de todas as formas fugir do universo do crime, o protagonista se vê inserido nesse submundo meio que sem querer querendo. Não parece haver muita escapatória nesse reino animalesco. Ainda que Leckie tente lembrá-lo, de forma quase comovente, que talvez aquele ambiente não seja pra ele.

Ao cabo, essa é uma experiência tensa e urgente, que permite ao espectador um mergulho meio que sem concessões nesse ambiente de assaltantes à mão armada, de gangues traficando cocaína, de golpes e de contragolpes. Andando pra lá e pra cá como a figura escamosa que coordena meio que tudo, Smurf é capaz de tratar cada um dos seus "bebês" como crianças em corpo de adulto, ao passo em que também ignora qualquer sentimento mais profundo frente ao luto inevitável. Os negócios são apenas os negócios e a família está ali para que tudo saia a contento. Ainda que nem sempre a coisa ocorra de forma satisfatória. Policiais corruptos, amigos cheios de contradições, advogados de índole questionável, violência que parece emergir de qualquer canto, inclusive de brigas de trânsito (ou de homens da lei decididos a resolver a coisa na marra). Nessa fauna em que só os maiores sobrevivem, talvez seja o caso de evitar a trocação. Pra evitar ser preso. Ou morrer. O que costuma ser o destino óbvio do peixe pequeno.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Novidades em Streaming - O Bom Professor (Pas de Vagues)

De: Teddy Lussi-Modeste. Com François Civil, Toscane Duquesne e Mallory Wanecque. Drama / Suspense, Bélgica / França, 2024, 90 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM OS MAIS VARIADOS SPOILERS]

Quem já assistiu ao ótimo filme dinamarquês A Caça (2012) lembra do sentimento de revolta pelo qual somos tomados, frente a uma grande injustiça - no caso, um professor de séries iniciais sendo acusado de abuso sexual e as graves consequências disso. Mesmo sem provas, a situação escala e, verdade seja dita, ainda que inocentado, a pecha de abusador nunca mais sairá de sua testa - como nos lembra a brilhante conclusão da envolvente produção de Thomas Vinterberg. No caso de O Bom Professor (Pas de Vagues), a situação é mais ou menos parecida. Temos um docente do primeiro grau que, depois de uma brincadeira meio boba em sala de aula, vê sua reputação, sua carreira e quase toda a sua vida irem por água abaixo. Havendo aqui uma pequena diferença, que é o fato de professor ser gay e morar com seu namorado - o que fará com que percebamos que, talvez, o buraco seja mais embaixo.

Bom, antes de mais nada, é preciso que se diga que não se trata de minimizar a importância do assunto e sim do fato de imputar crimes a alguém sem que de fato haja uma prova mais contundente. E quando o assunto são casos do tipo, as paixões parecem ainda mais exacerbadas, com parte da população já aparentemente desejosa de julgar, condenar e se possível destruir de todas as formas o "culpado". Linchar, matar, trucidar - e vamos combinar que essa sanha punitivista muitas vezes não é nem exclusividade apenas da extrema direita. Até que se prove o contrário, o abusador é o abusador, mesmo sem muitas certezas. Isso me faz lembrar, aliás, outra excelente produção, no caso o ótimo Dúvida (2008) que é concluído com uma Irmã Aloysius (personagem de Meryl Streep, sempre maravilhosa) aos prantos, afirmando ter dúvidas depois de um padre/professor cheio de carisma, com métodos mais inovadores e bastante próximo dos alunos, ser expulso do educandário por talvez ser um pedófilo. 


 

Só que diferente do que ocorre no filme estrelado pelo saudoso Philip Seymour Hoffman, aqui não parece haver muita margem pra incerteza. Tudo o que há são os alunos exacerbados, após o professor de francês Julien (François Civil) fazer um elogio ao cabelo da introspectiva estudante da sétima série Leslie (Toscane Duquesne), como parte de uma explicação sobre figuras de linguagem. Visivelmente desconfortável, Leslie leva a questão adiante: apresenta uma carta à diretoria, onde denuncia uma sequência de atitudes de Julien que, supostamente, evidenciariam os abusos. O que vai de situações episódicas, como dirigir o olhar a ela, a frases mais ambíguas, como quando o educador afirma gostar de tomar água para se "refrescar". O que ele teria dito dando uma mordidinha provocadora no lábio. Com a tensão estabelecida, caberá a Julien se esforçar para apagar a imagem já criada - e não ajudará em nada o fato de um bando de crianças da sétima série se mostrarem dispostos à agitar o entorno.

Leslie tem um irmão que parece - salvo algum estereótipo -, muito mais abusivo do que Julien. Aliás, irritado, o rapaz ameaça de morte o professor. Mas também ameaça a menina, para o caso de ela estar mentindo. No educandário, os demais docentes não parecem muito animados em apoiar Julien - cada qual preocupado apenas com as suas carreiras e os possíveis desgastes que a situação poderia gerar. Com tudo piorando quando vaza um vídeo íntimo do protagonista em uma noitada em uma boate gay, sendo apenas feliz ao lado do seu companheiro. "Talvez isso pudesse ter te ajudado dessa vez", afirma alguém em certa altura, de maneira meio torta. Em tempos em que os dedos parecem todos apontados para os professores, para seus métodos, para o que escolhem como parâmetros de ensino, uma obra como essa dirigida por Teddy Lussi-Modeste que, de quebra é inspirada em eventos reais ocorridos com o próprio, se converte em um verdadeiro filme de terror e um verdadeiro desafio para pedagogos mundo afora. Afinal, a homofobia não pode dar espaço para a censura. Ou impedir um professor de exercer seu ofício com dignidade. O gosto é amargo. Mas propor a reflexão já é um começo.

Nota: 8,0 


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Tesouros Cinéfilos - Entre os Muros da Escola (Entre les Murs)

De: Laurent Cantet. Com François Bégaudeau, Jean-Michel Simonet, Boubacar Touré e Rachel Régulier. Drama, França, 2008, 128 minutos.

Vamos combinar: quem assiste Entre os Muros da Escola (Entre les Murs) normalmente se surpreende com o caráter naturalista da obra. Esse é um filme de sala de aula. Aliás, de muita sala de aula. Com professor e alunos dialogando, gritando, colidindo, rindo se confrontando. Só que, aqui, diferentemente do que ocorre no subgênero das produções escolares - em que a encenação toda pode soar meio fake -, temos a impressão de a câmera ter sido apenas ligada no ambiente de uma escola de verdade, com os estudantes tendo sido estimulados a apenas agirem como se estivessem, de fato, em aula. Adolescentes se provocando, olhando para trás o tempo todo, tirando sarro uns dos outros, gaitando. Ou mesmo deitados com ar cansado em cima da carteira. Desgostosos com algo ou apenas insatisfeitos porque essa etapa da vida é um saco mesmo e a gente ainda tem de prestar atenção no que o professor diz. É tudo tão, mas tão realista - e ao mesmo tempo tão magnético, tão envolvente, tão vivo -, que não dá pra sair ileso.

Só que essa representação tão fiel à realidade tem um por quê, que é o fato de o professor François (François Bégaudeau) ter sido não apenas o escritor do livro que baseia a obra dirigida por Laurent Cantet, mas também ser corroteirista. Ou seja, três em um. Que isso vá automaticamente garantir esse caráter de "vida como ela é", bom, talvez não. Mas certamente ajuda. E em si, o filme é uma joia não por possuir algum tipo de grande trama dramática de superação de dificuldades em uma escola de segundo de Ensino Médio de um bairro de classe trabalhadora de Paris (daqueles cheios de imigrantes, pessoas pretas, pobres e, em alguma medida, marginalizadas). Ou mesmo algum suspense emergente, que nos deixe vidrados. Mas por permitir que a gente mergulhe naqueles universos, e reflita sobre aquelas histórias, apenas escutando aqueles alunos curiosos, complexos, cheios de sonhos e de receios sobre uma existência futura que se avizinha.

 


E é importante que se diga, não é porque a produção se passa 80% dentro de sala de aula, com discussões no limite entre o divertido e o aborrecido, que não haja nada acontecendo. Há tudo. Em certa altura, um dos carismáticos estudantes questiona a sexualidade de François . "A gurizada tem dito por aí que você gosta de homens", instiga Boubacar (Boubacar Touré). Sem se alterar, o professor lhe questiona sobre se aquilo faz alguma diferença para o aprendizado. E, bingo, esse assunto nunca mais volta porque, de fato, o que importa é que o docente tenha uma adequada metodologia, ou uma pedagogia eficiente. O que nem sempre será possível e é interessante notar que, a despeito das boas intenções de François, ele também se mostrará, eventualmente, como um sujeito falho, que nem sempre é capaz de conduzir a turma de forma correta, como fica evidente no instante em que ele dá a entender que duas estudantes se comportam como "vagabundas".

E é dessas pequenas complexidades que emergirão os fragmentos mais movimentados e comoventes. Há, por exemplo, um momento em que os meninos debatem longamente sobre seleções de futebol - o que torna o ambiente mais pesado já que, num grupo racialmente miscigenado, pode ser bastante natural que os filhos de imigrantes africanos, tenham preferência pela Costa do Marfim ou pelo Mali, em detrimento da França. Com a coisa descambando, e o problemático Souleymane (Franck Kesta) sendo conduzido à diretoria. Em outro instante, o já citado Boubacar é perguntado sobre o que lhe daria "vergonha". A resposta dele deixa uma pulga atrás da orelha: "sentar na mesma mesa para almoçar com a mãe de Burak". O que nos leva a inferir a respeito da complexidade das relações religiosas, raciais e culturais como um todo. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, Entre os Muros da Escola segue como uma experiência engenhosa, que faz um verdadeiro raio x de uma sala de aula, com cada aluno funcionando como um indivíduo de personalidade distinta e com o professor sendo apresentado não como um Deus intocável, mas como uma pessoa cheia de imperfeições, mas que tenta fazer o melhor. Magnífico é pouco. 


terça-feira, 6 de maio de 2025

Pitaquinho Musical - Josyara (AVIA)

Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é AVIA, o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara e que tem como narrativa central o "encontrar-se e o perder-se no outro, as delícias e implicações disso" - como a artista baiana explicou em entrevista à Revista Noize. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito.

 


Peça central do trabalho, a deliciosa e sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Com co-produção de Rafael Ramos e parcerias com nomes como Liniker, Pitty, Juliana Linhares, Pitty e Iara Rennó, este também é um álbum muito mais colaborativo do que, por exemplo, o anterior ÀdeusdarÁ (2022), uma experiência mais solitária e intimista - e que foi o nosso vigésimo colocado na lista de melhores discos nacionais daquele ano. Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas.

Nota: 8,5

Tesouros Cinéfilos - Mulheres Diabólicas (La Cérémonie)

De: Claude Chabrol. Com Sandrine Bonnaire, Isabelle Hupert, Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Cassell. Suspense / Drama, Alemanha / França, 1995, 112 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]

Houve uma vez, durante uma entrevista ao famoso crítico de cinema Roger Ebert, que Claude Chabrol afirmou: "sou um comunista, mas isso não significa que eu tenha que fazer filmes sobre a colheita do trigo". Talvez, em uma interpretação meio livre, o que o diretor quisesse dizer é que, para se fazer um filme político ou mais panfletário, que marque seu ponto (ou ideologia), não há a necessidade de ser tão explícito. Até mesmo porque a sutileza pode contribuir para que o debate seja fortalecido. Sim, filmes sobre greves de trabalhadores por condições mais justas ou sobre proletários sofrendo nas mãos de patrões certamente escancaram os ideias de quem os faz. Mas e que tal uma obra sobre uma empregada doméstica que, revoltada pelas sistemáticas humilhações que sofre de uma família burguesa, resolve se unir a uma amiga funcionária dos correios para dar cabo desses ricos afetados?

E, mais do que isso, que tal se colocássemos nessa equação uma dupla de atrizes cheias de personalidade - no caso, Sandrine Bonnaire e Isabelle Huppert -, e ainda envolvêssemos a produção em uma aura de mistério à moda Hitchcock (que é algo que Chabrol sempre fez muito bem), com acontecimentos excêntricos se espalhando pela narrativa? Sim, enquanto a personagem da Regina Casé no ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) simboliza a vitória do proletariado com uma arrojada entrada na piscina dos patrões (o que ela era impedida, mesmo sendo parte da "família"), em Mulheres Diabólicas (La Cérémonie), temos as protagonistas meio que ficando de saco cheio, invadindo a casa dos burgueses torpes que haviam recém demitido a diarista Sophie (Bonnaire) para, enquanto eles apreciavam uma ópera enfadonha de Mozart, sacarem suas armas e meterem bala. Extremo? Sim. Simbólico? Bastante.

 


 

Ok, por mais que não seja possível celebrar uma vitória plena na conclusão desse clássico moderno que completa 30 anos - baseado no livro de Ruth Rendell e que pode ser conferido na Reserva Imovision - há que se comemorar o espírito catártico, quase anárquico do desfecho, que junta um clima meio Laranja Mecânica (1971) com Violência Gratuita (1997). Chabrol sempre afirmou ser um sujeito fascinado por "assassinos sorridentes" e aqui essa parte da gargalhada entortada, em que a gente ri mas mais de nervoso do que qualquer outra coisa, cabe à debochada Jeanne, vivida com entusiasmo por Huppert. É ela que parece arquitetar, em suas entranhas, algum tipo de plano macabro que possa compensar Sophie das seguidas humilhações sofridas por ela, vinda de uma família de quatro pessoas (pais com dois filhos), com seu casarão onipresente, de jardim largo. E por mais atenciosa e estranhamente sorridente que a patroa, a afetada dona de uma galeria de arte chamada Catherine (a sempre bela Jacqueline Bisset) seja, parece haver algo muito errado no fato de ela nunca conseguir manter uma diarista.

Claro que Sophie também tem os seus segredos. Em um mundo em que nem o mais favorável espírito meritocrático a salva do analfabetismo  - o que ela esconde com receio e vergonha e que também dá conta das desigualdades vividas naquele cenário -, a jovem se mantém silenciosa e reservada, enquanto prepara os pratos cheios de proteína para aquela família que só tem dinheiro e mais nada. Mesquinha, Catherine sequer parece perceber o absurdo de apontar onde fica o quartinho da empregada, ao passo que seu marido mais ou menos truculento Georges (Jean-Pierre Cassell) não vê problema algum em desferir um tapão no rosto de Jeanne, quando ele desconfia de que ela esteja abrindo suas correspondências. Esses abusos justificam a violência desmedida? Talvez não. Sophie e Jeanne tem uma série de esqueletos no armário e traumas passados, que revelam que elas também não são flor que se cheire - o que, por sinal, é ótimo em uma narrativa que evita o maniqueísmo. Ainda assim, o filme tem força por lembrar às elites a importância de não meter demais o louco. Porque o proletariado pode se revoltar. E aí as forças, no mínimo, vão se equilibrar.