terça-feira, 30 de abril de 2024

Livro do Mês - Klara e o Sol (Kazuo Ishiguro)

Editora: Companhia das Letras, 2021, 338 páginas.

"Clara como a luz do sol / Clareira luminosa nessa escuridão". Devo confessar a vocês que, mais de uma vez durante a leitura de Klara e o Sol - mais recente obra de Kazuo Ishiguro (e meu primeiro contato com o trabalho do escritor japonês) -, pensei na música do Lulu Santos. E não apenas pela óbvia intersecção entre as palavras, ainda que a Klara de Ishiguro seja um nome próprio - no caso é a protagonista do livro, uma espécie de inteligência artificial robótica de última geração, projetada para fazer companhia a seres humanos -, mas também pelo verdadeiro elogio ao astro e a toda a sua potencialidade luminosa. Aliás, não haveria nada de errado se o livro se chamasse "Ode ao Sol", com algum subtítulo aludindo à dor e à solidão em tempos de tecnologias avançadas. Sim, porque o sol aqui é simplesmente o alimento de Klara. É ele que a nutre, mantendo-a estável, ativa e atenta, especialmente na primeira parte, a da "vitrine".

É nas primeiras páginas que a gente conhece um pouco da personalidade curiosa e observadora de Klara - que, como uma espécie de gadget, fica disposta em uma loja que vende esta e outras bugigangas tecnológicas. Acompanhada de sua amiga Rosa, Klara e passa os dias mudando de posição no estabelecimento, de acordo com os humores de sua gerente, enquanto aguarda por algum potencial comprador. Aqui e ali ela observa a rua, os táxis passando, os transeuntes, os prédios, as demais inteligências artificiais e até os equipamentos que fazem o serviço público - especialmente uma máquina apelidada de Cootings, com amplo potencial poluidor. Num grau de fumaceira que chega a quase impedir a entrada dos raios de sol pela fachada da loja. O sol, tão importante para nutrir Klara e as demais inteligências. Em meio a sua rotina, passa a reconhecer padrões, sentimentos, desejos e anseios tipicamente mundanos, o que a fará também aprender sobre suas próprias necessidades.




Todos esses elementos são amplificados na segunda parte da obra, quando Klara é adquirida por Josie, uma adolescente de 14 anos que, em companhia de sua mãe, Chrissie, mais de uma vez "namora" a inteligência artificial na vitrine da loja. Na propriedade da família, que parece ficar em uma área rural, já que é possível enxergar da janela principal o celeiro do vizinho (o senhor McCain) - uma estrutura que fica em um topo de morro junto à vegetação rasteira -, Klara tentará se enturmar não apenas com Josie e seus amigos, mas também com o vizinho da jovem, Rick, que parece ser seu melhor amigo e, vá lá, talvez até um interesse romântico. Só que o comportamento bastante estranho de Chrissie e também da mãe de Rick, a senhora Helen, fará com que a protagonista perceba que há algo ali que não está bem certo. Mais do que isso, há segredos familiares que talvez exijam de Klara uma mudança de rota que quebrará os paradigmas e até as perspectivas futuras daquela família, que é completada pela empregada doméstica Melania e por Paul, o pai de Josie.

Um dos traumas que virão à tona envolve o trágico falecimento de Sal, a irmã mais nova de Josie - que, de forma estranha, já teria sido vista na propriedade, no passado. E, pelos olhos de Klara será possível perceber como, diante de tantas revelações de impacto nesse cenário conturbado, ela reflete de forma arguta sobre a natureza humana e a respeito daquilo que nos move - com a protagonista sendo uma figura solidária, empática e calorosa com os demais. O que a torna capaz de estabelecer relações sólidas, profundas e que se adaptam às circunstâncias - especialmente quando ela faz uma triste descoberta sobre Josie. Ao cabo, Klara e o Sol - que será adaptado para o cinema por Taika Waititi em filme estrelado por Amy Adams e Jenna Ortega -, é um livro emocionante e de impecável ternura, que se debruça de forma existencialista sobre o tema da amizade. Para quem gosta de Não Me Abandone Jamais (2005), que eu não li (mas vi o filme), certamente será um prato cheio

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Cinema - La Chimera

De: Alice Rohrwacher. Com Josh O'Connor, Isabella Rossellini, Carol Duarte e Lou Roy-Lecollinet. Drama / Comédia, Itália / França / Suíça, 2023, 131 minutos.

"Você estava sonhando?". Quem acompanha o trabalho da diretora Alice Rohrwacher sabe de sua habilidade na hora de juntar dramas cotidianos com um tipo de fantasia de pegada quase felliniana. Foi assim com longas como As Maravilhas (2014) e Feliz Como Lazzaro (2018) e até com curtas, como no premiado Le Pupille (2022). No recente La Chimera, que está em cartaz nas salas do País, o expediente se repete. Aliás, quem se deter a ler apenas a sinopse disponível em sites de cinema - "um grupo de arqueólogos confronta o mercado negro de artefatos históricos" -, talvez tenha uma noção muito pequena a respeito da experiência. Afinal, aqui temos um filme divertido, provocador, cheio de pessoas complexas e com comportamentos ambíguos - no caso um grupo de ladrões que violam túmulos em um busca de objetos de valor que possam ser contrabandeados no mercado negro. E tudo com uma pegada meio política de contestação, de iconoclastia e de quebra do status quo e que passa longe da banalidade da síntese.

O protagonista da obra é um certo Arthur (Josh O'Connor), um inglês que está justamente retornando para a Itália, após ter passado uma temporada na prisão. Apesar da acalorada recepção de seus parceiros de pilhagens na Itália rural - a ambientação parece ser meio oitentista, o que é reforçado pela fotografia em tons pasteis, e pelos figurinos antiquados (e, eventualmente, exagerados, como nos instantes mais festivos) -, Arthur não parece estar no melhor do seu humor. Principalmente porque ele sente a falta de sua bela Beniamina (Yile Vianello), a ex-namorada cujo paradeiro ninguém sabe muito bem direito. Ainda que sua melhor amiga Flora (Isabella Rossellini), uma bem feitora que é como uma mentora em uma casa cheia de mulheres, garanta que ela vá voltar. Pra piorar, a jovem ainda surge nos sonhos do sujeito, sempre em cenários ensolarados, oníricos, idílicos - o que também reforça o apelo ao realismo fantástico, que é bem típico na filmografia de Rohrwacher.


 

É claro que aqui e ali o espectador mais ligado vai conseguir reconhecer as alegorias que nos conduzem por entre túmulos violados e a busca por objetos e outros elementos que façam a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas em linhas gerais há muito mais para além da metáfora - especialmente pelo carisma quase infinito desse grupo de foras da lei, que são capazes das mais excêntricas estratégias para conseguir consolidar um novo espaço de escavação. Nas horas vagas, talvez pra chamar menos atenção para a sua atividade central, o coletivo ainda funciona como um agrupamento teatral, que leva apresentações de música e dança pelas ruas da Toscana - e nessa hora é meio difícil não reconhecer os signos da obra de Federico Fellini, especialmente A Estrada da Vida (1954), A Doce Vida (1960) e Amarcord (1973), com seus personagens atormentados, que encontram alívio no bom humor mundano acima de tudo e no caráter circense que une os acontecimentos.

É nesse cenário que surgem, por exemplo, a fotógrafa Mélodie (Lou Roy-Lecollinet), que se une ao grupo com algum tipo de interesse que não fica claro, e empregada de Flora, Italia (a brasileira Carol Duarte), que parece não estar a par dos segredos de Arthur, e que mantém seus dois filhos na casa da patroa em segredo. Com uma beleza geral comovente - seja nos ângulos de câmera curiosos, nos planos abertos e nos cenários bucólicos, interioranos - a diretora entrega aqui uma experiência completa de arte, alegre mas cáustica, fragmentada mas coesa. Em alguns momentos os objetivos podem ser tornar intrigantes - como na sequência em que Mélodie simplesmente quebra a quarta parede para realizar um discurso feminista ou na divertidíssima cena em que o grupo encontra um trovador que entoa uma canção que resume à perfeição o comportamento daquele bando de desajustados. Há um clima de conto de fadas no todo, em meio a músicas folclóricas, nostalgia enevoada e mágica no cotidiano. Está no dicionário: quimera pode ser uma esperança de algo difícil de alcançar, uma utopia. Só que, aqui, como cinema, ela é plenamente alcançada.

Nota: 9,0


terça-feira, 23 de abril de 2024

Cinema - 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas)

De: Estibaliz Urresola Solaguren. Com Sofia Otero, Patricia López Arnaiz, Itziar Laskano e Ane Gabarain. Drama, Espanha, 2023, 125 minutos.

"Desde quando você soube que era um menino? Você acha que pode ter havido algo errado quando eu estava na barriga da minha mãe?". 

Se tem uma coisa que me fascina em certos dramas familiares é a capacidade de adicionar complexidade às suas personagens - nunca reduzindo-as a meros estereótipos ou a figuras apenas unidimensionais. Pais que são afetuosos, mas severos, avós que são conservadores, mas que acenam a certo progressismo amoroso em certas pautas, filhos que podem ser rebeldes, mas que buscam apoio entre os seus quando se sentem incompreendidos - nada, afinal, pode ser mais vida real do que isso. Ninguém é perfeito o tempo todo. Somos seres humanos que falhamos, que tentamos acertar e que podemos ter escolhas moralmente questionáveis. E uma obra como 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas), a estreia da diretora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, entrega esse tipo de experiência a contento o que, diga-se de passagem, adiciona uma boa dose de naturalismo à produção. Como se quase acreditássemos naquelas pessoas que vemos em cena, como seres humanos "de verdade".

Aliás, vamos combinar que essa sensação é reforçada também pela interpretação comovente da jovem atriz mirim Sofia Otero - que, não por acaso, venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim do ano passado. A obra, ao cabo, é toda centrada nela - e em seu olhar curioso, destemido, cauteloso e insatisfeito. Em linhas gerais a gente tende a invisibilizar as crianças queer, como se elas não existissem - e num cenário de aumento do reacionarismo e do pânico moral, um filme que aborda o tema, ainda que com a maior delicadeza possível, pode ser inevitavelmente mal recebido (especialmente pelo cidadão de bem da família tradicional). Ainda assim há que se admirar a ousadia da diretora, que quebra esse paradigma ao nos apresentar as tensões e os dilemas da pequena Luzia (Otero), uma menina transgênero de oito anos, que trava uma verdadeira batalha interior na busca por alcançar uma nova identidade - nascida Aitor, ela ainda é tratada como menino por parentes, amigos e outros.


 

"Quando eu crescer vou ser que nem o meu pai? Eu não quero ser que nem ele." Esse é o tipo de frase que Luzia, que na intersecção entre gêneros assume o apelido de Coco, diz para a sua mãe, a exasperada Ane (Patricia López Arnaiz), que funciona como uma espécie de segundo vértice narrativo. No começo do filme ela cruza a fronteira da França - onde mora com seus três filhos, entre eles Aitor/Luzia -, em direção ao País Basco, na intenção de participar de uma cerimônia de batismo, do recém nascido filho de sua irmã. Ane é escultora e obteve uma vaga de emprego em que deverá demonstrar um pouco de suas habilidades - na casa da mãe, Lita (Itziar Laskano), ela aproveitará as ferramentas disponíveis na oficina de seu falecido pai, que também era artista plástico, para tentar algum tipo de inspiração em meio a objetos de metal, mesas improvisadas e muita cera de abelha que, fornecida pela sua tia, a apicultora Lourdes (Ane Gabarain), servirá de matéria-prima para a produção de moldes feitos a partir de peças de gesso.

É nesse ambiente em que transitam muitas pessoas, que Luzia tentará se ambientar, em meio a vizinhas futriqueiras que já a entendem como uma menina - num divertido e comovente paradoxo -, a familiares preconceituosos, que acham que a jovem deve cortar o cabelo para parecer mais com um "menininho", e também a amizades improvisadas, como é o caso justamente da tia avó, Lourdes, que parece ser a mais compreensiva, a mais aberta a ouvir as dúvidas de Luzia (que, como criança, parece ainda incapaz de verbalizar o que sente, de fato). Durante a obra são muitas as alegorias, seja no objeto religioso que, em dado instante desaparece, seja na cauda de uma sereia que funcionará como uma metáfora feminina, até chegar na experiência que envolve as próprias abelhas, seu senso de comunidade e seu ideal de coletividade acima de tudo, sem julgamentos ("existem 20 mil tipos dela, todas belas"). É um filme comovente, de idas e vindas, de câmera próxima aos rostos dos atores e de personagens que se aproximam e se afastam, que brigam, mas se abraçam e que dialogam sobre temas desconfortáveis, daqueles que nem todos talvez estejam preparados pra confrontar - mas que precisarão. O resultado é de uma beleza desconcertante, capaz de lidar com as fronteiras de gênero sem tornar o tema pesado.

Nota: 9,0


sexta-feira, 19 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Tótem (Tótem)

De: Lila Aviles. Com Naíma Sentíes, Montserrat Marañon, Marisol Gasé e Mateo Garcia. Drama, México / Dinamarca / França, 2023, 95 minutos.

Em uma pequena sequência do afetuoso e elegíaco Tótem (Tótem), a protagonista Sol (Naíma Sentíes), uma menininha de apenas sete anos, constroi uma daquelas casinhas tipicamente infantis com as almofadas do sofá da sala da casa de campo do seu avô Roberto (Alberto Amador). É um instante mínimo, mas que evidencia que a pequena talvez esteja buscando algum tipo de refúgio particular, em meio a um mundo exterior em turbulência. Sol é interrompida pela empregada da família, que pede para que ela saia dali - "você ainda vai se machucar", diz ela. Como se ela já não estivesse suficientemente machucada. Sol está na casa do avô para celebrar o aniversário de seu pai, Tona (Mateo Garcia) - uma festa está sendo preparada. Só que há uma nota triste nessa celebração: há a chance de que esta seja a última festa para Tona, que sofre de um câncer terminal. O que faz com que mal tenha motivação para se levantar da cama. Que dirá sair do quarto.

Só que a família está engajada nessa espécie de rito final para Tona. Pode ser que o homem estivesse contrariado em relação a tudo aquilo - está doente, cansado, talvez só quisesse poder ter um pouco de sossego nos seus últimos dias. Ainda assim não deixa de reconhecer o esforço comovente de suas duas irmãs - Nuria (Montserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé). A primeira se ocupa de tarefas domésticas e de elaborar um bolo para o irmão, tendo ainda de lidar com a pequena (e mimada) Ester (Saori Gurza), que se pendura nas pernas da mãe, resmunga, sobe na geladeira junto com seu gato (um comportamento adorável ao seu estilo, mas que exaspera Nuria). Já Alejandra tem como tarefa limpar a casa das supostas energias ruins, o que a faz contratar em cima da hora uma dessas terapeutas holísticas meio canastronas, que passam aquela vibe do charlatanismo. Por fim há Roberto, o patriarca, um terapeuta que atende pacientes em meio àquela ambiente confuso, cheio de gente, que beira o caos.


 
 
 
É nesse cenário de muita coisa acontecendo ao mesmo tempo que Sol é deixada por sua mãe, a atriz Lucia (Iazua Larios). Tudo que a pequena quer é poder ver o pai - que a impede de lhe visitar no quarto, por vergonha de sua aparência. Ela fica instigada, entristecida, algo que do alto de seus sete anos tem dificuldade de compreender plenamente. Em meio a construção de casinhas de almofadas na sala e visitas ao depósito onde estão as bebidas e outros produtos, Sol interage com os animais da casa - cachorros, papagaios, passando por caracois e outros - tentando espantar certo tédio. Há algo de amistoso nela, mas também de curioso. De um ambiente a outro a câmera muitas vezes colada nela, fornece uma sensação de claustrofobia. De opressão. Tudo soa meio apertado, truncado, como são muitas vezes as famílias ocupadas, que realizam uma série de atividades ao mesmo tempo (e quem já preparou uma festa de aniversário improvisada ou uma ceia de Natal em família sabe como é esse cenário).

Dirigida por Lila Aviles - em seu segundo filme, depois do ótimo A Camareira (2019) - esta é uma experiência naturalista, amorosa, que apresenta o ser humano como um sujeito que centra sua identidade na coletividade, nas celebrações em grupo, nos cultos e cerimônias religiosas ou sociais. Nascemos para os rituais e com eles também nos vamos. Do começo ao fim, da vida à morte, da saúde à doença, estamos sempre congregados como forma de sacramentar amizades, famílias, coletividades. É daí que parece brotar o ideal alegórico do totem, que dá nome ao filme. Algo reforçado no encontro final, que certamente fica marcado como um dos momentos mais comoventes do cinema neste ano. A gente ri e chora, se emociona, se impacta. Em muitos casos conduzidos pelos olhares e silêncios de Sol, por sua insatisfação ou mesmo pela demonstração de amor entortada. Pela dança e pelas pinturas, pelas artes e pela cultura. É um filme diferente daquilo que estamos acostumados. Ainda que não seja assim tão complexo, tão fora da curva. Tá na Netflix e vale o play.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pitaquinho Musical - English Teacher (This Could Be Texas)

Não são necessárias muitas audições de um disco como This Could Be Texas, o aguardado álbum de estreia dos britânicos do English Teacher, para que percebamos como se sobressai nele uma certa "poética do drama" - um tipo de estética que envolve desde vocais pungentes e meio sôfregos, passando pela repetição de versos como mantras e por letras sobre questões sociais, econômicas e políticas salpicadas de citações culturais, até chegar nas melodias que parecem nadar entre o pós-punk, a psicodelia e o dreampop. Sim, a gente admite que dá um certo cansaço saber que temos novamente a melhor banda de todos os tempos da última semana, mas o caso é que é difícil ficar alheio à canções tão especialmente brilhantes, como, por exemplo, You Blister My Paint. Nela tudo é tão perfeito, desde o vocal ao mesmo tempo etéreo e espacial de Lily Fontaine que vai ao encontro da melodia limpa e sofisticada, até chegar à letra enigmática e alegórica sobre a sensação de se sentir ofuscado por alguém que se ama.


 

Outros momentos são mais diretos, como no caso de The World's Biggest Paving Slab, que não faria feio no mesmo bloco musical noventista em que estivessem o Veruca Salt ou o Sleater Kinney, ou qualquer outra do movimento riot - ainda que a letra verse sobre "delírios de grandeza e inferioridade do ponto de vista das celebridades locais de uma cidade pequena". Como não poderia deixar de ser em projetos do tipo, instantes mais urgentes e de mais impacto, se alternam com canções mais minimalistas, que se valem de cordas, pianos e elementos eletrônicos discretos - caso da imperdível Mastermind Specialism, que parece trilha sonora de filme alternativo saído do Festival de Sundance, em que a protagonista se questiona a respeito de suas escolhas de vida (sexuais, religiosas, de trabalho). Canções sobre objetivos não alcançados (Not Everybody Gets to Go to Space), a respeito de estereótipos no mundo da música (R&B) e sobre conservadorismo e sensação de não pertencimento (Albert Road), surgem de forma bem costurada, coesa e com personalidade. Um dos grandes lançamentos do semestre.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - O Mundo de Andy (Man on the Moon)

De: Milos Forman. Com Jim Carrey, Danny DeVito, Paul Giamatti e Courtney Love. Comédia / Drama, EUA / Reino Unido / Japão / Alemanha, 1999, 118 minutos.

 

Hey Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby! Are we losing touch?

If you believed they put a man on the moon
Man on the moon
If you believe there's nothing up my sleeve
Then nothing is cool

(Man on the Moon - REM) 

 

"O que é real? O que não é? É isso o que eu faço no meu ato, testar como as outras pessoas lidam com a realidade". Em uma das primeiras sequências de O Mundo de Andy (Man on the Moon), Andy Kaufman (Jim Carrey) se apresenta em um desses clubes de comédia de stand up. Diante de uma plateia desconfiada, encarna um de seus personagens - o Homem Estrangeiro -, que tenta em vão fazer o público rir. Quando ele avisa ser hábil em imitar celebridades, sua inépcia parece ainda mais evidente - ainda assim parece haver algum magnetismo naquele sujeito, com seu sotaque meio carregado, voz tímida, movimentos corporais excêntricos. Não demorará para que o público venha abaixo diante de uma imitação fenomenal de Elvis Presley - que é finalizada com um inesperado thank you, na voz tímida e quase afeminada do Homem Estrangeiro. Todo esse conjunto chama a atenção do famoso produtor George Shapiro (Danny DeVito) que, bom, converteria Kaufman em uma das grandes estrelas de sua geração.

Parte dessa história de ascensão meteórica é vista no filme de Milos Forman, que completa 25 anos de lançamento em 2024. A real é que Kaufman não era assim tão conhecido no Brasil - temos de pensar nos anos 70/80 como um período em que mal e mal a TV a cores chegava por aqui - e, em alguma medida, a produção de 1999 ajudou a jogar alguma luz a essa figura excêntrica e carismática, que encarnava seus personagens em tempo integral - a ponto de não sair deles nos bastidores, fora do palco, o que burlava os limites desse tipo de arte. Na primeira cena com Shapiro, por sinal, Kaufman só sai da pele do Homem Estrangeiro quando percebe estar de fato diante do produtor. Shapiro, aos trancos e barrancos, o colocaria na televisão - fosse em episódios do Saturday Night Live ou mesmo na pele de Latka na sitcom de humor Taxi, que foi exibida pela ABC entre os anos de 78 e 82 (e que era estrelada também por Christopher Lloyd e Judd Hirsch, além do próprio DeVito). Só que, por incrível que pareça, o protagonista abominava esse tipo de comédia. O que o faria colocar uma série de condições para estar nesses projetos.


 

O caso é que toda a excentricidade do sujeito, seu estilo pouco convencional, seu comportamento imprevisível ganhariam força com o trabalho de Carrey - que, como mostra o documentário Jim & Andy (2017) não apenas desejava muito o papel, como tornaria os bastidores da produção caóticos bem ao estilo de Kaufman. O que envolveria a replicação dos métodos do astro, com direito à permanência em seus personagens fora do palco e provocações a colegas de produção com maneirismos e outros exageros (ele era uma grande inspiração para Carrey). Levado às telonas, esse combo transforma a obra de Forman, um diretor respeitado de clássicos como Um Estranho No Ninho (1975) e Amadeus (1984) em uma produção envolvente e intensa, que leva o espectador do riso às lágrimas, especialmente pelo caráter trágico da sua vida como um todo - da dificuldade de aceitação de seu pai, à morte precoce por um câncer. Tudo acompanhado de perto pelo melhor amigo e parceiro de negócios Bob Zmuda (Paul Giamatti, sempre um coadjuvante de luxo) e pela namorada Lynne Margulies (Courtney Love).

Aliás, muitos dos melhores embates envolvem as peripécias de Kaufman e Zmuda, que são confrontadas por Shapiro, que faz de tudo para colocar panos quentes - também para não perder as rédeas, dado o potencial do astro em entreter. "Quem você está querendo divertir? Você mesmo ou o público?", pergunta um exasperado Shapiro na primeira cena em que aparece um certo Tony Clifton, um exótico cantor de salão, dotado de um senso de humor ácido e nada amistoso - alguém, aliás, intencionalmente sem graça e que mais uma vez ultrapassa qualquer limite que possa haver no humor. E, claro, ainda há as abomináveis sessões de luta livre contra as mulheres, com Kaufman se autointitulando "campeão intergênero" - e por mais misógina que essa provocação pareça, ela parece ter como fundo a ideia de debochar do comportamento patético dos lutadores, especialmente os do Sul dos Estados Unidos, com suas batalhas fraudulentas e pendor pra certo amadorismo, que é endeusado pelos rednecks. "São piadas que só tem graça para vocês", desespera-se Shapiro, que ouve como resposta um "eu sempre tenho de estar à frente do público". Em alguma medida é possível afirmar que ele alcançou esse objetivo, com seu senso de humor sem limites e cáustico que, mais adiante, influenciaria uma infinidade de outros nomes, casos de Sacha Baron Cohen e Ricky Gervais.


segunda-feira, 15 de abril de 2024

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Cheiro do Papaia Verde (Vietnã)

De: Tran Anh Hung. Com Lu Man San, Thi Loc Truong, Gerard Neth e Thi Hai. Drama / Romance, Vietnã / França, 1993, 104 minutos.

Vamos combinar que é difícil analisar o tocante O Cheiro do Papaia Verde (Mùi Đu Đủ Xanh), sem levar em conta o aspecto sensorial da obra. Ao cabo, trata-se de um filme pequeno, que parte de um fiapo de história - aliás, como é bastante comum no cinema asiático -, mas que faz o espectador mergulhar em uma ambientação de cores vivas, de cenários bucólicos, de barulhos (mas de silêncios) e até de sabores e de cheiros que parecem saltar da tela. Assim como ocorre no cinema contemplativo de Apichatpong Weerasethakul, temos uma experiência com a sua própria fluidez de tempo. Entre um take e outro, com o uso de travellings, de planos sequência, de gruas e de câmeras próximas ao chão - que emulam o cinema de Yasujiro Osu -, temos uma natureza abundante que abraça os habitantes da vila vietnatima em que se passa a história. Sim, é um filme sobre contrastes sociais, infidelidade, memória, papel da mulher na sociedade, trabalho e tradições, mas é também uma produção naturalista e poética, profunda mas sutil.

O cenário ficcional é um pequeno vilarejo da Saigon do início dos anos 50, portanto um pouco antes da Guerra do Vietnã - ainda que ronde o espaço os toques de recolher e uma certa tensão do ambiente no contexto de outra guerra, a da Indochina. É nesse local que Mui (Lu Man San), uma criança de dez anos, chega para trabalhar como serviçal de uma família rica, mas que enfrenta um período de decadência financeira (as vendas já não estão das melhores e há ainda os episódios de infidelidade do patriarca, que, não bastasse dar suas escapadas, ainda leva a grana do comércio de tecidos). Curiosa e observadora sobre o mundo, Mui atua em trabalhos domésticos gerais, especialmente os que envolvem a preparação de legumes e a elaboração dos pratos da cozinha oriental - em especial aquele feito com o mamão que ainda não está maduro. Aliás, a alegoria sobre uma fruta que ainda verde surge como uma metáfora para a própria Mui, que desbrava os cantos daquela habitação, sendo mais ou menos adotada por aquela família - a matriarca (Thi Loc Truong) perdeu uma filha e parece ver nela uma forma de suprir a ausência.

 


 

Ao mesmo tempo, a protagonista se aproxima dos outros integrantes da família - especialmente o filho mais novo (de três), Tin (Gerard Neth) que costuma atormentá-la com seu comportamento imaturo, perturbador e até ressentido pelas seguidas ausências do pai (Ngoc Trun Tran). Já no andar de cima, a avó (Thi Hai) é uma senhora inválida, viúva, que raramente deixa o quarto que habita. Mui circula pelos ambientes, atende pedidos, encontra vizinhos e amigos, enquanto acompanha a derrocada dos patrões. O que envolverá uma tragédia futura e um salto temporal em que ela surgirá adulta, agora trabalhando como serviçal na casa de um amigo do filho mais velho da família, de nome Khuyen (Hoa Hoi Vuong) - um pianista casado com uma mulher aparentemente fútil, que ele não ama tanto assim. E, bom, a gente mais ou menos imagina o que vai acontecer, em meio a memórias, lembranças - carinhosas ou não - de um ambiente ingênuo, mas de aprendizado e que nos apresenta um País poucas vezes visto em produções que chegam ao Ocidente.

Aliás, esse foi o primeiro filme do diretor Tran Anh Hung, do recente O Sabor da Vida (2023), que, não apenas lhe apresentou para o mundo, como lhe deu notoriedade, com indicações a premiações (entre elas o Oscar) e vitórias no Festival de Cannes (na categoria Câmera de Ouro). Em um momento em que suspenses policiais e comédias mais escrachadas movimentavam a Hollywood dos anos 90, o realizador foi na contramão ao estacionar sua câmera como um meio de mostrar a vida regular, cotidiana do povo vietnatima - seus amores e sonhos, seu comércio, suas famílias, filhos, avós, fazendo uma espécie de contraponto à modernidade. "Eu queria mostrar a humanidade dessas pessoas, que ainda não havia sido vista no cinema", comentou Hung em entrevistas de divulgação, citando ainda que a obra também nascia de imagens que tinha da própria minha mãe, do frescor e da beleza de seus gestos. O resultado é uma experiência extremamente bem coreografada entre arabescos e balaústres, que se mesclam com folhagens verdíssimas, cantos de grilos, formigas e sapos despreocupados, percussões inesperadas, instrumentos de cordas e um todo estimulante, que burla os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Tudo executado de forma inebriante, vívida e bastante fluída.

 

Pitaquinho Musical - Tyla (Tyla)

Quando lançou o single Water, em julho do ano passado, Tyla meio que surgiu para o mundo como uma enxurrada, uma torrente - pra ficar na metáfora aquosa que alude à canção. A música viralizaria no Tik Tok. Alcançaria, com sua energia absurdamente sexy, melodia envolvente e refrão grudento, milhões de visualizações de seu clipe no Youtube - um tipo de trajetória que, em alguma medida, é a de muitas jovens que despontam nesse universo. Só que Tyla ainda tinha o componente adicional de ser alguém de fora dos grandes centros. Desse eixo que parece centralizar tudo nos Estados Unidos e na Europa. Aliás, nativa da África do Sul, trazia para junto de seu hit instantâneo uma série de referências e de elementos de gêneros locais, como o afrobeat e o amapiano - um estilo que mistura jazz, lounge music e deep house e que eu, do alto da minha mais completa ignorância, mal tinha ouvido falar.


 

Mas aí passado todo esse furor, ficou aquela pontinha de dúvida: Tyla seria capaz de sustentar um álbum? De entregar mais do que um hit único? Bom, a chegada de seu disco homônimo comprova que sim. Mesclando pop e R&B com os já citados gêneros sul africanos, a jovem artista apresenta algo que foge do óbvio, em alguma medida. "Amo o meu continente, respeito-o, acredito muito nele. Só quero que as pessoas vejam e sintam o que sinto quando ouço música africana e vejam o que temos para oferecer, sabe?", resumiu no material de divulgação. A disposição para furar a bolha é, de fato, contagiante. As letras, como não poderiam deixar de ser para quem tem apenas 22 anos, se alternam entre o empoderamento feminino, a autoestima de quem exala confiança juvenil e as desilusões amorosas eventuais, tão típicas da juventude. Só que o combo geral é abusadamente saboroso, como comprovam outras ótimas canções, casos de Truth or Dare, ART e Jump. Difícil ficar alheio.

Nota: 8,5