segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - Levante

De: Lillah Halla. Com Ayomi Domenica Dias, Loro Bardor, Grace Passô e Rômulo Braga. Drama, Brasil / Uruguai / França, 2023, 99 minutos.

"Nessa idade ele já tem pálpebras". Em uma das cenas mais indigestas do ótimo (e perturbador) Levante, um médico - que mais parece um pastor da Igreja Evangélica - tenta demover uma jovem da ideia de fazer um aborto. Os argumentos são variados, sempre tratando um feto em formação, por mais inicial que seja uma gravidez, como um ser que irreversivelmente PRECISA nascer. Independente da vontade da mulher - dos seus desejos, dos seus projetos, dos seus planos. Algo que, aliás, em um Brasil reacionário e de fundamentalismo religioso - e que sequer tem vergonha em colocar a culpa de agressões físicas e psicológicas nas vítimas e não nos criminosos -, não chega exatamente a surpreender. E basta lembrar que um grupo de extremistas de direita se prestou a se reunir na frente de um hospital do Espírito Santo, alguns anos atrás, para protestar contra um aborto em iminência. O fato de a paciente ser uma menina de dez anos estuprada pelo próprio tio, para o cidadão de bem capixaba, não pareceu ser um grande problema.

Afinal de contas a gente sabe que uma das especialidades desses radicais que utilizam o nome de Deus para se arrogar de uma superioridade moral que, muitas vezes, sequer existe, é vigiar a sexualidade alheia. Sob a desculpa de "proteger as crianças" deixam crimes do tipo - muitos deles praticados no ambiente doméstico, por alguém da família ou por algum conhecido - correr soltos. E ainda exigem que essas mulheres - muitas delas jovens, periféricas, pobres e pretas -, sejam mães na marra. Por que talvez haja algo sobre isso na Bíblia, sei lá. No excelente filme de estreia de Lillah Halla, a jovem Sofia (Ayomi Domenica Dias) é uma promissora jogadora de vôlei. Com apenas 17 anos está sendo sondada para a obtenção de uma bolsa para a prática do esporte no Chile - e a experiência internacional pode ser importante para a sua carreira que ainda se inicia. Só que na mesma semana que ela recebe a boa notícia sobre a oportunidade no País vizinho, ela também descobre que está grávida. E, óbvio, ela não quer ser mãe. Não agora. Talvez nunca.


 

Sofia tenta, inicialmente, esconder a gravidez de todos que a rodeiam - suas colegas que integram o projeto social dedicado ao esporte para minorias (com quem ela mantém uma amizade cheia de cumplicidade) e, principalmente, de sua treinadora, Sol (Grace Passô que, como de praxe, entrega tudo em qualquer tipo de papel, por mais minimalista que seja). Em relação ao seu pai - o apicultor João (Rômulo Braga) -, ela também evita o tema até o limite possível. Enquanto isso tenta encontrar uma solução, qualquer que seja, em um País que não costuma tratar situações do tipo como casos de saúde pública. Pautados pela ciência. Quando vai para a internet pesquisar sobre o assunto, Sofia tem extrema dificuldade para encontrar qualquer tipo de orientação no Google. "Estou grávida e não quero ter", digita no buscador, meio que em vão. Depois apela para "clínicas de aborto", sendo direcionada para o suposto hospital em que é atendida pelo médico que faz aquela chantagem macabra, que está no início dessa resenha. A coisa toda vira quase um filme de terror.

Equilibrando momentos mais sombrios, com instantes de uma leveza meio onírica, Lillah levanta a sua bandeira sem medo de evidenciar o fato de que, neste debate, ela tem lado. Um lado que, vamos combinar, já deveria, em outubro de 2024, estar mais do que consolidado: o de que a decisão a respeito do corpo da mulher deveria ser só da mulher (e não de um bando de idosos engravatados que criam suas leis não com a Constituição debaixo do braço, e sim com a Bíblia). Se aproximando do estilo intimista mas urbano de obras como Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020), a diretora evidencia esses contrastes entre a metrópole mais ou menos moderna - com suas estruturas de concreto, veículos e luzes neon -, mas que guarda cerca decadência que, metaforicamente, dialoga com as fraturas e os retrocessos do tecido social. Ao cabo, onde deveríamos evoluir, parece que, por vezes, nos atrasamos. "Deus é bom o tempo todo, o tempo todo Deus é bom", diz uma pichação irritante no concreto cinza. As meninas podem até ser livres para curtir a vida, dançar e sorrir ao som de Linn da Quebrada, Badsista, Irmãs de Pau e MC Carol. Mas inventa de engravidar e não ter o filho. A turma pró vida, se bobear, é capaz até de matar para que alguém nasça. Numa daquelas ironias mais brasileiras que o próprio Brasil. Filmaço.

Nota: 9,0


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pitaquinho Musical - Adorável Clichê (Sonhos que Nunca Morrem)

Vamos combinar que seis anos entre um lançamento de disco e outro para uma banda pode ser um hiato bastante longo - ainda mais em tempos tão urgentes, apressados e cheios de acontecimentos relevantes como os que vivemos. Ainda assim, esse foi o período levado pelos catarinenses da Adorável Clichê para maturar o seu segundo registro de inéditas. Intitulado Sonhos que Nunca Morrem, o trabalho parece um pouco mais polido, com os vocais mais destacados, do que no enevoado álbum de estreia, o elogiado O Que Existe Dentro de Mim (2018). Na essência, pouca coisa mudou no shoegaze psicodélico de guitarras primaveris - uma das marcas registradas do quarteto integrado por Gabrielle Philippi (voz e guitarra), Marlon Lopes (guitarra e voz), Gabriel Geisler (baixo) e Felipe Protski (teclado). O que para os fãs certamente é um atrativo a mais.


 

Com apenas nove músicas e cerca de 34 minutos de duração, esse é daqueles discos que por vezes parecem nostálgicos, familiares - especialmente pelas melodias levemente açucaradas, que servem de base para as letras enigmáticas, que se organizam como pequenos fragmentos poéticos. Um bom exemplo nesse sentido, está na ambígua Devagar, que parece uma canção sobre amores apressados, mas talvez seja apenas a respeito da importância da conscientização no trânsito (E eu confio tanto em você / Mas eu não quero te perder / Então vá devagar). Já o single Depressão é sobre a nossa habilidade única de fazer papel de trouxa, quando em meio a um relacionamento tóxico - daqueles em que ficamos catando migalhas da pessoa amada (Penso em ignorar / As mensagens que manda de quando se lembra de mim). Atmosférico em alguns momentos, barulhento em outros, esse é daqueles pra ouvir repetidamente.

Nota: 9,0


Novidades em Streaming - Il Buco

De: Michelangelo Frammartino. Com Antonio Lanza. Drama / Experimental, Alemanha / França / Itália, 2022, 93 minutos.

Il Buco é aquele tipo de filme que parece ser bastante divisivo. Por um lado o estilo contemplativo, quase experimental da produção - que venceu o Prêmio do Júri no Festival de Veneza -, deverá acertar em cheio o coração dos cracudos da cinefilia, sempre dispostos a ter mais paciência com obras com estruturas narrativas menos óbvias e um maior apelo sensorial. Por outro ângulo, o hermetismo eventualmente exagerado pode afastar o fã ocasional, que talvez se exaspere com tanto simbolismo e com o caráter vagaroso e fragmentado da experiência. Sim, o filme do diretor Michelangelo Frammartino é meio que oito ou oitenta. Pode dar sono se você der play depois de um dia cansativo de trabalho. Mas também pode te maravilhar com o espetáculo visual proporcionado pela natureza exuberante e pela poesia subjacente, que permitem ainda uma série de reflexões sobre o quão pequenos somos diante de tudo. 

Ao cabo o filme - disponível na Reserva Imovision - parece um documentário, mas não é. Quase não tem diálogos - à exceção de um instante em que um filme na TV recapitula a subida de um animado grupo de empresários ao topo da Pirelli Tower, um grande arranha-céu de Milão, na Itália. Nesse sentido, essa também é uma obra de contrastes. Se por um lado os ricaços celebram o avanço civilizatório representado pela ampla torre, por outro os habitantes de um pequeno povoado se acotovelam para assistir a essas imagens que parecem tão distantes de tudo. Ao lado um grupo de crianças brinca. E um coletivo de exploradores de cavernas se organiza para adentrar o Abismo Bifurto, uma das cavernas mais extensas do mundo, com 700 metros de profundidade, localizada no Sul da Itália. Não há muito que se saiba sobre essa expedição, sobre suas histórias ou motivações. Não há um protagonista entre eles, por assim dizer.


 

Quer dizer, talvez o protagonista seja a própria natureza em sua complexidade, as montanhas e as campinas, o gado que vaga calmamente, o silêncio e o minimalismo sonoro, e a cratera que surge como um espectro que tudo observa. E engole. Na primeira cena - evocativa e bucólica -, temos uma câmera localizada dentro do buraco, em seus primeiros metros. Com a escuridão contrapondo a claridão que invade por meio dos raios de sol (e com as cores). Essa oposição pode ser percebida em outros aspectos que envolvem vida e morte, saúde e doença, penumbra e luz, cidade e campo, subida e descida. Esses elementos dicotômicos surgem em toda a parte, sendo um dos exemplos mais gritantes o momento em que os exploradores entram na caverna e utilizam o fogo - feito com páginas de revistas velhas acendidas com fósforo -, para conseguirem ter alguma visão do que se encontra abaixo.

O fato de uma das imagens da revista ser a do ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy talvez também signifique alguma coisa, especialmente em uma década que culminaria com a corrida espacial e as disputas políticas nas entranhas do universo. Aqui a busca é outra, a pesquisa é mais íntima. Sendo observada, a alguma distância, por um dos moradores do vilarejo, que se comunica com o rebanho bovino aos grunhidos e que, por fim, padece de uma doença - sendo socorrido e levado para a sua casa pelos próprios moradores da Calábria local. Frammartino não se ocupa em explicar por quê as coisas acontecem. Elas apenas são como são. É uma espécie de ironia subjacente pensar que um idoso está a beira da morte, enquanto uma expedição avança até o limite de uma perigosa caverna nunca explorada. Com alguns dos homens fazendo uma parada para bater uma bolinha no entorno - até o momento em que a bola é tragada pelo buraco da caverna. No fim das contas talvez seja isso mesmo: todos iremos para o buraco. O entorno é belo. Mas vai acontecer.

Nota: 8,0


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - As Três Filhas (His Three Daughters)

De: Azazel Jacobs. Com Carrie Coon, Elizabeth Olsen, Natasha Lyonne, Jovan Adepo e Jay O. Sanders. Drama, EUA, 2024, 101 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]

Em meio a tantos pequenos momentos de impacto do ótimo As Três Filhas (His Three Daughters), obra de Azazel Jabobs que está disponível na Netflix, um em especial ficou impresso na minha mente. Nele, Benjy (Jovan Adepo), o namorado de Rachel (Natasha Lyonne), confronta Katie (a ótima Carrie Coon), que passa boa parte do filme tratando-o como um intruso na casa que, provisoriamente, compartilham. "Sabe quantas refeições eu fiz aqui nos últimos meses? Inúmeras", argumenta o homem, que ainda faz referência à relação cordial que ele preserva com o sogro Vincent (Jay O. Sanders) - atualmente um idoso moribundo que padece de um câncer terminal. Katie, assim como a irmã mais nova Christina (Elizabeth Olsen), está em visita à Rachel - a filha do meio e de outro casamento, que mora com o pai das três -, para acompanhar aqueles que devem ser os últimos dias de vida do genitor.

O comportamento displicente de Katie em relação à Benjy - que, por milímetros não resvala no racismo, especialmente após ela argumentar que sequer se lembra de ter estado com ele anteriormente -, em alguma medida dá conta do descaso dela com a própria família. Mesmo estando por muito tempo ausente, chega ao apartamento de Rachel e do pai como uma espécie de general do exército sisuda, cheia de regras, enxergando defeito em tudo. Ao cabo, ela é uma mulher que não relaxa, que está tensa com as burocracias que podem advir de um futuro funeral - e que vão desde a elaboração do texto do obituário, até o futuro do apartamento, que deverá ser herdado por Rachel. Quando ela encontra a geladeira do local atrolhada de maçãs - algumas delas já ficando podres -, Katie se exaspera. Sendo que será justamente Benjy o responsável por esclarecer as coisas mais tarde: "é só o que Vincent, já muito fragilizado, gosta de comer. E é a Rachel quem está aqui todo o santo dia para picar a fruta e levar pra ele".


 

Em alguma medida esse é um ponto de virada interessante da narrativa que, conforme avança, só nos fará concluir o fato de que todas ali - especialmente as três irmãs - são pessoas com virtudes e defeitos, imperfeitas a partir dos mais variados ângulos, mas que talvez estejam em busca de fazer o melhor. Ou o que pensam ser o melhor. Até a cena de Benjy no conflito com Katie - em que ele revela como Rachel se ocupa em relação ao pai extremamente doente e que necessita de cuidados permanentes (para além dos paliativos, fornecidos pela clínica que lhes ampara) -, Rachel era apenas a maconheira meio indolente, cujo grande projeto de vida parece ser acreditar nas apostas online como fonte de renda (sim, as bets não são exclusividade do Brasil). Não parece ser difícil julgá-la. Ou mesmo se irritar, como faz uma Katie apreensiva, que não consegue relaxar nem quando liga pra família. Mas ao cabo é Rachel que está ali. Que permanece. Mesmo não sendo filha biológica de Vincent (que lhe adotou quando era ainda uma criança).

Como terceiro vértice desse triângulo, Christina é a hippie aposentada, atualmente casada e mãe de uma filha - uma fã de Grateful Dead e praticamente de ioga, que preserva um otimismo quase ingênuo (ao menos antes de explodir). Talvez sua trajetória não tenha muito a ver com aquilo que ela sonhou - e esse desequilíbrio entre a verdade e o que ela deseja que seja a verdade é transmitido de forma comovente pelo olhar anguloso de Elizabeth Olsen, quase o tempo todo encharcado por lágrimas. Aliás, esse é o tipo de projeto que se vale muito das impressionantes atuações, dos eficientes diálogos, dos pequenos acontecimentos entre pessoas distintas que colidem em um ambiente que parece menor do que é - e a claustrofobia de um apartamento fechado, com as três protagonistas tentando se entender diante da iminente morte do pai convalescente, torna tudo ainda mais trágico, sufocante. Alguém poderá dizer que não há muita novidade nesse tipo de drama doméstico, sobre conflitos porta adentro e sobre dores e traumas que emergem de forma inesperada. Ainda assim, esse é o tipo de obra de fácil identificação. Família é família, afinal. Em tempo, sobre Oscar: vai ser preciso uma campanha de arrancada nesses meses finais. Coon, Olsen e até Sanders podem ser lembrados. Até porque entregaram tudo. O espaço é curto. Aguardemos.

Nota: 8,0


segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Novidades em Streaming - Instinto Materno (Mother's Instinct)

De: Benoît Delhomme. Com Anne Hathaway, Jessica Chastain e Anders Danielsen Lie. Drama / Suspense, EUA, 2024, 94 minutos.

Duas vizinhas (e amigas) traumatizadas por um evento trágico que modifica suas vidas para sempre. De quebra, essas duas mulheres são vividas por Anne Hathaway e Jessica Chastain. Em uma obra que se passa em uma pequena cidade dos Estados Unidos nos anos 60 - com suas cercas alvas, jardins impecáveis e rotinas perfeitas, só possíveis dentro do mais sublime sonho americano. Alguns setores da crítica se apressaram em apontar Instinto Materno (Mother's Instinct) como uma mistura de Alfred Hitchcock com Douglas Sirk. Sim, vamos combinar que são muitos os atrativos da estreia do diretor de fotografia Benoît Delhomme na direção - especialmente pra quem é apaixonado por esse tipo de narrativa que nos joga para esse espaço idílico e suburbano, onde por baixo da aparência impecável das roupas, dos cabelos e dos sapatos há uma série de segredos prontos para serem revelados.

Só que devo admitir que o sentimento na conclusão foi um tanto ambíguo. Particularmente eu tendo a gostar muito desse tipo de trama doméstica que soa exagerada, quase caricatural em alguns momentos - desde que mantido o equilíbrio entre suspense e drama. Ao mesmo tempo, gosto das alegorias óbvias que mais parecem acenos para os estudantes de cinema iniciantes, que se deleitarão, por exemplo, com o fato de as roupas de Céline (Hathaway) ganharem tons mais escuros após a morte do filho - uma forma de tornar o luto ainda mais evidente do que já é. Só que em igual medida, na reta final, pareceu tudo tão conveniente e sem maiores surpresas, que fiquei meio frustrado. Ao cabo, não há muito espaço para as ambiguidades. Para as incertezas. As coisas são apenas como são e as mulheres ali envolvidas estarão fadadas a uma disputa particular que, de quebra, arremessa para longe qualquer traço de união feminina.


 

Aliás, nesse sentido, fosse esse um filme lançado algumas décadas atrás e talvez a história funcionasse melhor. Mas quando acompanhamos Alice (Chastain) em mais da metade do tempo da projeção achando que Céline está enlouquecendo, ou simplesmente querendo puni-la de alguma forma pelo ocorrido com o filho, a coisa toda passa a ser apenas uma paranoia monotemática sobre o vazio que se espalha para o entorno. Há, por exemplo, os dois maridos e mal sabemos sobre eles para além do fato de serem dois sujeitos que passam o dia inteiro fora a trabalho, sendo os provedores abnegados, em uma tentativa de sobrevivência meio às escondidas. Claro que o marido de Céline, Damian (Josh Charles), também sofre, mas não vai muito além dos cigarros fumados em sequência e do desconforto na presença dos demais (e lá pelas tantas eu poderia jurar que haveria uma grande reviravolta envolvendo ele, mas não).

E há ainda Theo (Eamon O'Connell), o filho de Alice e Simon (Anders Danielsen Lie), que passa a ter papel de destaque depois do primeiro terço, quando ocorre a trágica morte de Max (Baylen D. Bielitz) - que cai da sacada do terceiro andar da casa de alvenaria, quando tentava recolocar uma casa para passarinhos em uma árvore (aliás, nada mais vida no subúrbio do que isso). Será Theo que se sentirá impelido a uma curiosa aproximação de Céline, que o atrai com presentes, conversas amistosas e um carinho desmedido que vai no limite entre a compensação pela maternidade interrompida e o desejo íntimo de algum tipo de concretização do mal. Há boas cenas entre todos, como aquela em que Theo se desespera ao ver o seu coelho de estimação dentro do caixão de Max, durante o funeral; ou mesmo a da festa surpresa ainda no começo (algo que escancara a homenagem à Hitchcock). Nesse sentido, no geral a mesquinharia da vida do bairro - aquela existência ordinária entre o agradável e o instável - tem seu apelo. Ainda que sempre fique a impressão de quase.

Nota: 6,5


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Curta Um Curta - Bestia

Teria dito Hannah Arendt em seu clássico livro A Banalidade do Mal que "em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime". Esse é o tipo de conceito que foi reconfigurado recentemente - especialmente a partir da ascensão da extrema direita no País (e no mundo) - e que faz uma crítica não ao mal premeditado e sim a mediocridade do "não pensar". O que tornaria possível, por exemplo, a existência de figuras como Adolf Eichmann que talvez nem fosse alguém perverso ou doentio, muito menos um antissemita raivoso. Mas que ainda assim, durante o nazismo, era um cumpridor de ordens. Um burocrata do Estado que trabalhava no setor de transportes de judeus para os campos de concentração. 


 

E o que tudo isso tem a ver com o premiadíssimo curta-metragem em animação em stop motion Bestia, que foi incluído no catálogo da Mubi? Bom, aqui temos mais uma representante desse mal que não está simbolizado por generais perversos com suas fardas, botas e armamentos. A ação se passa no Chile de Pinochet, onde acompanhamos uma mulher rechonchuda, de modos sisudos, que ocupa seus dias com refeições silenciosas e a plena atenção ao seu cãozinho de estimação. As feições apáticas e delicadas da protagonista - representada por uma boneca de porcelana -, servem para reforçar, paradoxalmente, o caráter sombrio de sua personalidade. Especialmente na hora de cometer crimes hediondos durante a ditadura militar chilena. Inspirada em uma personagem real - Ingrid Olderock, que ficaria conhecida como "mulher dos cachorros" -, esse é um thriller psicológico tenso, macabro, que revela o absurdo dos sistemas autoritários.


Pitaquinho Musical - Magdalena Bay (Imaginal Disk)

Celestial, mágico, hipnótico, sofisticado. E, acima de tudo, essencialmente pop. Resumir o tipo de som feito pela dupla californiana Magdalena Bay em seu segundo álbum de estúdio, Imaginal Disk, talvez não seja uma tarefa tão simples. Os adjetivos podem ser diversos e o caso é que eles nunca conseguirão abarcar o todo. Sim, há todo um conceito por trás do registro e que envolve terapias alternativas e a busca por uma espécie de bem-estar (ou de cura) que parece percorrer cada curva do projeto. E justamente por isso, talvez esse seja daqueles discos para ouvir repetidamente para, a cada novo encontro, perceber detalhes diferentes. Que retiram as músicas do óbvio meio pasteurizado que reina na música sintética dos dias de hoje. É como se o conjunto fosse ao mesmo tempo estranho e experimental, mas acessível e comercial - e experimente não ficar com Killing Time grudada na mente após umas duas audições.

 

 

A canção, por sinal, é aquele tipo que se repete a todo o momento no trabalho - e que vai no limite entre o retrô setentista enfumaçado e o brilho polido de uma eletrônica mais maximalista. O que não apenas confere personalidade, mas também expande os limites sonoros. Em geral é como se pequenas joias como Death & Romance, Image e Love Is Everywhere amaciassem os nossos ouvidos - característica reforçada pelos vocais açucarados da vocalista Mica Tenenbaum. Claro que nem sempre os temas - muitas vezes ricas divagações sobre passagem do tempo, expectativas em relação à fama e, claro, medo de ter o coração partido. Já Watching TV, com seus sintetizadores enérgicos, é bastante metafórica em relação ao poder alienante da tecnologia e que muitas vezes faz com que nos afastemos do real em favor do imaginário (Assistir muita TV / Vai te apodrecer por dentro). Vale cada segundo.

Nota: 9,5

 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Cinema - Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance)

De: Woody Allen. Com Lou de Laâge, Niels Schneider, Melvil Poupaud e Valérie Lemercier. Comédia / Policial, EUA / França, 2023, 96 minutos.

Toda vez que o Woody Allen lança um novo filme, eu passo mais ou menos pelo mesmo sentimento: vou a sala de cinema inicialmente desconfiado, para concluir a sessão satisfatoriamente surpreendido. Sim, a gente já sabe exatamente o que vai acontecer nas obras do diretor - que costuma unir personagens carismáticos (e neuróticos, em alguma medida), que precisam lidar com coincidências da vida e paixões frustradas, enquanto ruminam divagações filosóficas, poéticas e cheias de referências. Tudo embalado por uma trilha sonora simples mas sofisticada (em muitos casos são standards de jazz) e tendo como cenário alguma cidade cosmopolita, bela e contemporânea. É assim, salvo raras exceções, desde sempre. E não seria diferente agora, que o realizador se aproxima dos 90 anos de idade. Seguindo em ótima forma, como atesta o recém chegado Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance), que está em cartaz nas salas do País.

Assim como nos recentes - e ótimos - Um Dia de Chuva em Nova York (2018) e O Festival do Amor (2020), aqui a trama é centrada nas incertezas e complicações do amor. E de como eventos aleatórios podem representar uma mudança de rota - daquelas que nos faz repensar escolhas ou decisões tomadas anteriormente. O cenário é a França e é pelas ruas de Paris que o escritor Alain (Niels Schneider) caminha descompromissadamente, até esbarrar acidentalmente em Fanny (Lou de Laâge), uma funcionária de uma casa de leilões. Os dois, antigos conhecidos da época da escola, não se viam há muitos anos. O que não impede o encantamento - que é maior da parte de Alain, que não hesitará em reafirmar a antiga paixonite juvenil que tinha por Fanny, a "jovem nerd de blusa de gola alta". Conversa vai, conversa vem, eles combinarão um café. Ainda que ela seja casada com um certo Jean (Melvil Poupaud).

 

 

Jean, aliás, é daqueles que gosta de paparicar a esposa com presentes caros - joias, de preferência. Praticamente exigindo que ela use os adereços como forma de lhe agradar. "Não gosto de me sentir uma esposa trofeu", lembra ela em certa altura, antes de irem para uma luxuosa festa. Aliás, esse ambiente de pompa, de elegância - com pessoas ricas, meio esnobes e totalmente ocupadas com a aparência alheia - é aquele que Jean, como um homem de negócios que tem operações no mercado financeiro, frequenta. Para Fanny, tudo pode ser apenas tedioso nesse universo - e dá pra entender o fastio da moça, que é sim colocada em uma espécie de pedestal. Mas ao mesmo tempo tem de lidar com as pequenas crises de ciúme do marido, um adulto infantilizado, que gosta de brincar de ferrorama. E, nesse cenário, é óbvio que os encontros às escondidas com Alain, com quem ela se sente muito à vontade, vão despertar suspeitas. Que poderão gerar consequências trágicas.

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Hábil na construção da narrativa, Allen vai deixando pequenas pistas que nos farão perceber o comportamento problemático de Jean - um caçador de cervos ocasional, que parece ter ligação com o suspeito desaparecimento de seu sócio, em episódio ocorrido anos atrás. "Dizem que ele despencou na selva, terá sido suicídio?", sussurra alguém em um dos jantares. Deixando de lado os vinhos importados e a volúpia das casas de campo, Fanny parece reencontrar em Alain a vida simples que há décadas deixou para trás. Ambos já casaram e se separaram anteriormente e hoje sentem prazer ao compartilhar um vinho de sagu debaixo da escadaria do apartamento modesto do escritor, que ele alugou pra concluir um novo livro. "A vida é uma grande piada sinistra", afirma Jean diante da esposa consternada, que tem de moldar o seu comportamento após o sumiço do amante, como forma de não levantar suspeitas. Ao cabo essa é uma experiência engenhosa e imprevisível, que mescla referências à George Simenon, Mallarmé e O Grande Gatsby de forma inteligente e nem tão verborrágica, como de praxe na filmografia de Allen. Vale conferir.

Nota: 7,5