De: Lillah Halla. Com Ayomi Domenica Dias, Loro Bardor, Grace Passô e Rômulo Braga. Drama, Brasil / Uruguai / França, 2023, 99 minutos.
"Nessa idade ele já tem pálpebras". Em uma das cenas mais indigestas do ótimo (e perturbador) Levante, um médico - que mais parece um pastor da Igreja Evangélica - tenta demover uma jovem da ideia de fazer um aborto. Os argumentos são variados, sempre tratando um feto em formação, por mais inicial que seja uma gravidez, como um ser que irreversivelmente PRECISA nascer. Independente da vontade da mulher - dos seus desejos, dos seus projetos, dos seus planos. Algo que, aliás, em um Brasil reacionário e de fundamentalismo religioso - e que sequer tem vergonha em colocar a culpa de agressões físicas e psicológicas nas vítimas e não nos criminosos -, não chega exatamente a surpreender. E basta lembrar que um grupo de extremistas de direita se prestou a se reunir na frente de um hospital do Espírito Santo, alguns anos atrás, para protestar contra um aborto em iminência. O fato de a paciente ser uma menina de dez anos estuprada pelo próprio tio, para o cidadão de bem capixaba, não pareceu ser um grande problema.
Afinal de contas a gente sabe que uma das especialidades desses radicais que utilizam o nome de Deus para se arrogar de uma superioridade moral que, muitas vezes, sequer existe, é vigiar a sexualidade alheia. Sob a desculpa de "proteger as crianças" deixam crimes do tipo - muitos deles praticados no ambiente doméstico, por alguém da família ou por algum conhecido - correr soltos. E ainda exigem que essas mulheres - muitas delas jovens, periféricas, pobres e pretas -, sejam mães na marra. Por que talvez haja algo sobre isso na Bíblia, sei lá. No excelente filme de estreia de Lillah Halla, a jovem Sofia (Ayomi Domenica Dias) é uma promissora jogadora de vôlei. Com apenas 17 anos está sendo sondada para a obtenção de uma bolsa para a prática do esporte no Chile - e a experiência internacional pode ser importante para a sua carreira que ainda se inicia. Só que na mesma semana que ela recebe a boa notícia sobre a oportunidade no País vizinho, ela também descobre que está grávida. E, óbvio, ela não quer ser mãe. Não agora. Talvez nunca.
Sofia tenta, inicialmente, esconder a gravidez de todos que a rodeiam - suas colegas que integram o projeto social dedicado ao esporte para minorias (com quem ela mantém uma amizade cheia de cumplicidade) e, principalmente, de sua treinadora, Sol (Grace Passô que, como de praxe, entrega tudo em qualquer tipo de papel, por mais minimalista que seja). Em relação ao seu pai - o apicultor João (Rômulo Braga) -, ela também evita o tema até o limite possível. Enquanto isso tenta encontrar uma solução, qualquer que seja, em um País que não costuma tratar situações do tipo como casos de saúde pública. Pautados pela ciência. Quando vai para a internet pesquisar sobre o assunto, Sofia tem extrema dificuldade para encontrar qualquer tipo de orientação no Google. "Estou grávida e não quero ter", digita no buscador, meio que em vão. Depois apela para "clínicas de aborto", sendo direcionada para o suposto hospital em que é atendida pelo médico que faz aquela chantagem macabra, que está no início dessa resenha. A coisa toda vira quase um filme de terror.
Equilibrando momentos mais sombrios, com instantes de uma leveza meio onírica, Lillah levanta a sua bandeira sem medo de evidenciar o fato de que, neste debate, ela tem lado. Um lado que, vamos combinar, já deveria, em outubro de 2024, estar mais do que consolidado: o de que a decisão a respeito do corpo da mulher deveria ser só da mulher (e não de um bando de idosos engravatados que criam suas leis não com a Constituição debaixo do braço, e sim com a Bíblia). Se aproximando do estilo intimista mas urbano de obras como Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020), a diretora evidencia esses contrastes entre a metrópole mais ou menos moderna - com suas estruturas de concreto, veículos e luzes neon -, mas que guarda cerca decadência que, metaforicamente, dialoga com as fraturas e os retrocessos do tecido social. Ao cabo, onde deveríamos evoluir, parece que, por vezes, nos atrasamos. "Deus é bom o tempo todo, o tempo todo Deus é bom", diz uma pichação irritante no concreto cinza. As meninas podem até ser livres para curtir a vida, dançar e sorrir ao som de Linn da Quebrada, Badsista, Irmãs de Pau e MC Carol. Mas inventa de engravidar e não ter o filho. A turma pró vida, se bobear, é capaz até de matar para que alguém nasça. Numa daquelas ironias mais brasileiras que o próprio Brasil. Filmaço.
Nota: 9,0