De: Kleber Mendonça Filho. Com Wagner Moura, Tânia Maria, Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha / Holanda, 2025, 159 minutos.
Muito provavelmente poucos filmes serão tão didáticos em evidenciar de que formas eram perseguidas pessoas que, não necessariamente, estavam conectadas ao aparato político em meio à ditadura militar, como no no ótimo O Agente Secreto - o enviado do Brasil ao Oscar, que está em cartaz no País. Professores, intelectuais, pesquisadores, jornalistas, artistas e muitos outros precisavam entrar em rota de fuga pelos motivos mais aleatórios - e que nem sempre estavam diretamente ligados ao confronto direto com os milicos ou às frentes de resistência ao regime. No caso de Marcelo (Wagner Moura), o protagonista da obra de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, 2016 e Bacurau, 2019), ele é um professor universitário especializado em tecnologia que meio que precisa sumir do mapa - e da faculdade em que ele trabalha em São Paulo -, depois que um industriário mal intencionado (e que detém o dinheiro) se sente incomodado com aquele "comunista cabeludo", que ousou patentear uma pesquisa a respeito de baterias de lítio.
Aliás, a construção dessa tensão ambiental pode ser percebida já nas primeiras sequências da produção, quando Marcelo faz uma parada em um posto de gasolina nos arredores de Recife - um local um tanto ermo, ladeado por vastas lavouras de capim elefante -, sendo surpreendido pelo fato de, ali, no pátio do estabelecimento, jazer um corpo. "Está desde domingo aí e a polícia ainda não veio ver", resume o frentista, atribuindo a demora aos festejos de Carnaval. Quando uma patrulha da Polícia Rodoviária Federal finalmente aparece, não é para averiguar o cadáver. E sim o fusca amarelo dirigido por Marcelo. "Tu não carrega tóxico aí dentro, não, né?", inquire o agente da lei, que, investido da síndrome do pequeno poder, atua no sentido de intimidar o cidadão nesse modelo de minúsculas opressões. Marcelo claramente está desconfiado. Talvez até com medo. Os motivos compreenderemos mais tarde.
Em linhas gerais esse é mais um filme de fluidez lenta, que aposta nas sutilezas como forma de fortalecer os seus pontos. Não há aquele caso ostensivo de militares de botas, balas de borracha e cassetetes em punho, dispostos a levar sujeitos tidos como subversivos para cativeiros onde serão sistematicamente torturados. Aqui, Marcelo chega placidamente a uma espécie de comuna na capital pernambucana, na ideia de fugir da vigilância constante do tal Ghirotti (Luciano Chirolli), o odioso industriário da Eletrobrás que chega à universidade como convidado, mas que sai cagando regra de uma forma quase caricata, abusando de comentários preconceituosos, racistas e xenofóbicos. Recebido pela carismática Dona Sebastiana (a ótima Tânia Mara), Marcelo tentará reiniciar a vida naquele local quase idílico que abriga refugiados (na falta de outra palavra), arranjando um emprego improvisado em um órgão público meio decadente, enquanto tenta antecipar ao máximo a obtenção de um passaporte falso para ele, e para seu pequeno filho. O que pode ocorrer com um contato mais direto com figuras da resistência que circulam à sombra, como Elza (Maria Fernanda Cândido) e Arlindo (Tomás Aquino).
Nesses dias de estada no Recife, o protagonista estabelece um vínculo bastante fraterno com o seu sogro Alexandre (Carlos Francisco), pai da falecida Fátima (Alice Carvalho), que teria morrido de uma pneumonia mal curada (ainda que nunca seja possível ter certeza disso, já que descobriremos mais adiante que ela também foi alvo de perseguição da corja de Ghirotti). Em meio àqueles dias turbulentos do ano de 1977, a população recifense será impactada por um excêntrico episódio, que ocupará as manchetes dos jornais de forma recorrente: uma perna humana é encontrada no estômago de um tubarão que encalha (e morre) na orla. Ocorrência que, evidentemente, terá a ver com o misterioso sumiço de corpos, alvos de execução por milicianos ligados ao Estado - destino que poderá ser o do próprio Marcelo, se ele não conseguir empreender seu projeto de fuga do País. Com tudo piorando quando Ghirotti contrata dois capangas para persegui-lo.
Para além do roteiro em si, recheado de diálogos inteligentes e até bem humorados (principalmente aqueles que envolvem a Dona Sebastiana) - mesmo em um cenário de tensão -, o filme ainda merece elogios pela qualidade técnica, com um desenho de produção caprichoso, que recria absolutamente todo o cenário da época à perfeição (o que vai desde a arquitetura, passando pelos veículos, até chegar a objetos de decoração e figurinos). Há também um clima geral meio que de letargia do período. Uma espécie de nostalgia festiva de um Carnaval como alegoria da esperança, em um contexto político, social e econômico perto do colapso - e não deixa de ser interessante ver como o diretor une todos esses pontos de maneira quase lúdica, com instantes de devaneio que vão no limite do realismo fantástico (há uma cena com a "perna" que consegue ser assombrosa e engraçada em igual medida). O que é reforçado pela onipresença do cinema, com seus cartazes e reações do público à clássicos do terror como A Profecia (1977) ou Tubarão (1975), numa rima inevitável. A esperança e a dor se encontram em tempos de pirraça. Como numa música do Chico, tão trágica quanto envolvente.
Nota: 9,0







