terça-feira, 30 de abril de 2019

Lançamento de Videoclipe - Filipe Catto (Eu Não Quero Mais)

Certamente não foi por acaso que o gaúcho Filipe Catto lançou o provocativo videoclipe de Eu Não Quero Mais na última Sexta-Feira Santa. No vídeo, dirigido pelo Ismael Caneppele, o artista subverte a Santa Ceia, transformando-a em uma espécie de festividade LGBTQ+, que funciona como grito contra o conservadorismo e os retrocessos amplificados desde o resultado das últimas eleições. "Jesus esteve ao nosso lado o tempo todo. Lavou nossos pés, penteou nossos cabelos, comeu e bebeu com os nossos. Como poderia me odiar só por eu ser quem eu era? Ele era um de nós, um renegado que não frequentava palácios ou reuniões a portas fechadas. Brigava por emancipação espiritual, filosófica e, portanto, política. Um herói. [...] Era o diferente e por isso foi censurado, torturado, condenado e executado pelo Estado romano.", descreve Catto no material de apresentação do clipe. É a fé na arte, no corpo, na identidade e no direito de ir e vir de forma justa, amorosa e generosa - como pregava Cristo - resumida em cinco minutos de puro deleite. Ah, e no clipe ainda há a participação mais do que especial da nossa querida amiga Jan Koch. Bora clicar!

Grandes Filmes Nacionais - Os Famosos E Os Duendes da Morte

De: Esmir Filho. Com Henrique Larré, Tuane Eggers, Ismael Caneppele e Samuel Reginatto. Drama, França / Brasil, 2009, 101 minutos.

Poucas vezes o sentimento de não pertencimento a um determinado lugar foi tão bem retratado como no poético Os Famosos E Os Duendes da Morte, do diretor Esmir Filho. Baseado no livro homônimo de Ismael Caneppele - que também atua - o filme é absurdamente sensorial, funcionando como uma espécie de permanente devaneio de um jovem que deseja sair da pequena cidade de colonização alemã em que mora, no interior do Rio Grande do Sul, para "descobrir" o mundo (o que é simbolizado pela vontade de ir a um show do Bob Dylan). Nesse sentido, a obra faz um afago na juventude que vê a internet como uma espécie de janela para o universo: é nela que se navega e que se foge de um ambiente que parece meio parado no tempo e em que só o que se escuta é o canto dos grilos em meio à noite gelada e as notícias sobre falecimentos, que são destacadas em uma emissora de rádio local.

Aliás, para quem nasceu em uma cidade do interior gaúcho, meu caso, é simplesmente impossível não se identificar com aquilo que se vê. No contraste entre o convite dos avós para uma visita para comer uma galinhada e a casa de madeira pintada em um azul claro pouco definido, um outro lado em que a música, as artes e as redes sociais como Flickr e MSN quebram a barreira geográfica, encurtando distâncias, aproximando pessoas que não se conhecem pessoalmente - e que provavelmente desejariam muito se conhecer. Quem não passou alguma vez por isso morando em Lajeado, Estrela ou, mais ainda, Arroio do Meio, Muçum, Roca Sales ou outra, que atire a primeira pedra. A bergamota pode até ser a fruta oficial do inverno, mas e a vontade de consumir outras variedades? E como se alcança isso, sendo de uma família humilde, com condições modestas, morando em uma gélida cidade dos pampas?


O mundo é muito grande e o protagonista - que nas redes sociais se autointitula Mr. Tambourine Man (Henrique Larré) - mergulha nele postando divagações filosóficas em seu blogue e interagindo com outras pessoas, como a misteriosa Jingle Jangle (Tuane Eggers). Em uma verdadeira coleção de pequenos fragmentos, o filme vai no limite do fantástico para mostrar as interações entre ambos com o misterioso Julian (Caneppele). O clima é onírico e, em muitos casos, a impressão que dá é a de estarmos diante de um sonho - ou de uma espécie de fuga da realidade. Jingle Jangle e Julian aparecem nos campos gaúchos que margeiam a comunidade, como se fossem fantasmagóricas emanações: provocam, sorriem, demonstram medo e paixão, levando o Mr. Tambourine Man para um outro lugar, que não é ali. E a semelhança de Julian com Bob Dylan não é por acaso, já que, aparentemente, ele é a figura a conduzir o protagonista por esse universo sombrio e libertador em igual medida.

Com trilha sonora totalmente orgânica (de Nelo Johann) e fotografia rica, meio granulada, quase envelhecida em alguns momentos (cortesia de Mauro Pinheiro Jr.), a película também é um primor no que diz respeito às imagens que falam por si. Das estrelas vistas no teto do quarto do protagonista (há um universo real lá fora?), a borboleta que se debate até morrer, a obra investe em minúsculas abstrações que, curiosamente, também ampliam uma certa sensação de suspense. Quando Julian reaparece - "esse colono", reclamam os jovens - parece haver algum segredo relacionado ao passado de todos eles, pronto a vir a tona (o que torna esta também uma película de formação). E como esse clima de tensão é ampliado? Com o barulho ostensivo do mecanismo de uma geladeira, que irrompe na madrugada, por exemplo. Experimental, inevitavelmente bucólico e com uma linguagem pouco convencional, Os Famosos E Os Duendes da Morte completa 10 anos sem envelhecer nadinha: ao contrário, com o advento de redes como Instagram, os jovens estão cada vez mais vivendo um universo que não é o deles. E se exaurindo, assim como aqueles que assistimos nessa pequena joia do nosso cinema.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Cinema - O Ano de 1985 (1985)

De Yen Tan. Com Cory Michael Smith, Virginia Madsen, Michael Chiklis e Aidan Langford. Drama, EUA, 2018, 85 minutos.

Em uma das cenas de O Ano de 1985 (1985) os dois irmãos protagonistas conversam sobre música. Mais precisamente sobre a Madonna e seus provocativos trabalhos. Após o mais velho revelar que havia comparecido a Virgin Tour, o mais novo diz, não com certo desalento: "eu tinha o outro disco da Madonna, mas o pai encontrou a minha mochila e jogou ele fora". No mesmo diálogo o menino fala de um vizinho que possuía vários álbuns, mas que todos eles haviam sido queimados por recomendação de um certo Pastor John. Os dois irmãos são Adrian (Cory Michael Smith) e Andrew (Aidan Langford). O primeiro está morando em Nova York e vem para a casa dos pais para passar o Natal, onde encontra o segundo. Os pais são figuras extremamente religiosas e, consequentemente, conservadoras. O que explica, por exemplo, o asco em relação aos ousados discos da "rainha do pop". Sim, as famílias de bem, todos sabemos, não toleram nada que seja diferente. Especialmente nas artes.

Assim vir para casa, para Adrian, se torna um verdadeiro suplício. Algo que ele faz meio a contragosto, mas também para agradar a mãe - que se esforça na aproximação com o filho (uma aproximação meio torta, excessivamente "gastronômica"). Com o pai o distanciamento é ainda maior. Veterano de guerra, acredita que os filhos devem ser criados para ser "homens". E, portanto, ele estranha o trabalho de Adrian - algo relacionado a criação de vídeos publicitários. Pior: fica ainda mais constrangido quando este lhes presenteia com roupas e outros objetos caros, no Natal. Há uma gritante diferença geracional que, aqui no Brasil, poderia ser traduzida pelos pais que votaram no Bolsonaro, que acreditam que bandido bom é bandido morto e que não admitiriam filho gay, como um contraponto a filhos com a mentalidade mais progressista, com um bom nível de empatia, uma maior tolerância e uma especial atenção aos problemas sociais.



Dentro da casa o clima é de opressão, com a película do diretor Yen Tan se desenrolando de forma vagarosa, mas nunca cansativa. A fotografia em preto e branco, levemente escurecida, acentua o clima de melancolia familiar meio generalizada - todos se espiam pelos cantos, como se estranhos fossem, sendo obrigados a conviver. E o pior: conforme os dias passam entre o Natal e o Ano Novo, percebemos que Adrian possui um segredo que certamente será de difícil digestão para pais tão antiquados. O apoio da ex-namorada Carly e do próprio irmão tornarão a estada de Adrian menos dramática. Mas o encontro com um ex-colega de aula, que hoje é gerente de um supermercado local, também dá conta do abismo existente entre as visões de mundo de ambos: definitivamente, Adrian não pertence mais aquele local.

Nesse sentido, a obra se insurge como uma verdadeira coleção de pequenos momentos, que servem apenas para validar nossas convicções (e eu confesso que recebi tudo isso de coração aberto, não por acaso considerando este um dos grandes filmes do ano). Em uma sequência, por exemplo, é possível perceber o constrangimento de Adrian ao ter de cantar os cantos durante uma missa. O pai que presenteia a mãe com um eletrodoméstico. A mãe que confessa não ter votado em Reagan (um republicano a favor da guerra, claro) nas últimas eleições. E um pai que insiste em achar que o filho pode contar com ele, sendo que sabemos que, não, ele não pode, formam o combo de grupo de um sujeitos que se vê obrigado a conviver, única e exclusivamente pela existência de laços de sangue. E, ainda assim, não deixa de ser comovente a promessa de Adrian a seu pai, na última cena em que estão juntos e que busca, exclusivamente, confortar o coração de seu genitor. Uma película tão pequena - são poucos mais de 80 minutos - com tantos subtextos ricos, é aquilo que costumamos considerar um achado. É simplesmente imperdível.

Nota: 9,0

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Disco da Semana - Djonga (Ladrão)

Recentemente o rapper Djonga esteve envolvido em uma polêmica: se recusou a fazer uma apresentação em Vitória, no Espírito Santo, após descobrir que integrantes da produção do evento estavam supostamente envolvidos em um caso de estupro. O artista soube da história por meio dos fãs. E tomou a sua decisão, sem pensar nos prejuízos acarretados por ela. Porque acima da figura que precisa ganhar dinheiro para se sustentar, está o sujeito, suas convicções, suas visões de mundo - e a visão de mundo de Djonga é aquela mesma que olha com carinho para a periferia, para as minorias ou para aqueles que vivem à margem da sociedade ou em vulnerabilidade (como é o caso das pessoas que sofrem violências de todo o tipo). É o rapper, com seus três assombrosos álbuns, que dá voz à comunidade, suas conquistas (ainda pequenas mas importantes), seus anseios, suas angústias e seus medos. E a comunidade negra, pobre e pouco assistida tem sim muito medo em um País em que o racismo estrutural é a ordem do dia. Ordem agora lamentavelmente legitimada pelo voto e pela ascensão de um reacionarismo descabido, quase pornográfico.

Mas a força da arte de Djonga está nas palavras - e ele certamente tem muito a dizer. Ele precisa dizer. São elas que cortam, oferecem resistência e que, eventualmente gritadas, ecoam a voz daqueles que nem sempre falam. Que se resguardam. Que se resignam. Desde pequeno geral te aponta o dedo /  No olhar da madame eu consigo sentir o medo / Você cresce achando que é pior que eles / Irmão quem te roubou te chama de ladrão desde cedo narra o artista na autorreferencial Hat-Trick, que abre o disco Ladrão. Mas o tom nesse terceiro trabalho dificilmente será de autopiedade ou de excessos comiserativos. Djonga certamente tem consciência de seu papel nessa luta e não por acaso lembra do porvir da resistência como algo real e palpável em Deus e O Diabo Na Terra do Sol, feita em parceria com Felipe Ret: As grades prendem homens, não ideias / E a ideia certa chefe até nas ruínas floresce.


Estou mais preocupado em ser ouvido pelas pessoas e que meu trampo dê vontade a elas de falar. Acho que todo mundo está precisando falar bastante, pois estamos cheios de coisa no peito. Então, se meu trampo for ouvido e der vontade do cara falar, nem que seja para discordar de mim, já está bom, destacou o rapper em entrevista ao site Reverb, como que resumindo o conceito central do registro, que dá sequência aos soberbos Heresia (2017) e O Menino Que Queria Ser Deus (2018). Não é por acaso que as canções do mineiro abordam não apenas as questões raciais como uma ferida histórica, mas também celebra as conquistas dos negros, a superação das dificuldades do dia a dia - não apenas do artista e ela está espalhada por toda a parte (Você piscou e eu já tô no terceiro), mas do trabalhador que tem ônibus pra pegar, conta pra pagar e filho pra criar. Eu tiro onda, porque mudo paradigmas / Meu melhor verso só serve se mudar vidas / Pois construi um castelo vindo dos destroços narra na ótima Ladrão.

Musicalmente o registro é um verdadeiro caldeirão de referências culturais com citações a Pantera Negra, Che Guevara, Queen Latifah, Oscar Niemeyer, Malcom X, Mickey, Antônio Conselheiro e Kendrick Lamar e sonoras, numa mescla absurdamente fluída de trap, hip hop, R&B, jazz e música urbana. Djonga está atento ao mal estar da modernidade e por mais que isso seja clichê, representa um reflexo de nossos tempos. Nesse sentido, não são por acaso que menções a Sérgio Moro como um falso justiceiro ou a famosa facada que elege presidente. É claro que em meio ao engajamento, ao espírito de empoderamento, também há espaço para o amor, para o sexo e para o corpo como processo de desconstrução - como comprovam as sinuosas Leal e Tipo. Com estilo mais cru e um flow com pequenas variações em relação aos registros anteriores, Ladrão, com seu ainda impressionante projeto gráfico, consolida Djonga como um dos mais importantes nomes do rap nacional. E o principal: sem a necessidade de precisar mudar para agradar alguém. Abram alas pro Rei!

Nota: 9,3


Músicas Gêmeas - Rihanna x Vaya Con Dios

Quem já viu o encarte do álbum Anti, da Rihanna, garante: não há NENHUMA menção a qualquer tipo de sampler da música What's A Woman?, lançada em 1990 pelos belgas do Vaya Con Dios, nos créditos de Love On The Brain, que viria a se tornar um dos principais singles do registro. Plágio? Homenagem? Foi sem querer? O caso é que a balada de Rihanna, influenciada pela soul musica dos anos 50/60, lembra muito a melodia, pontuada pelo baixo, da canção do Vaya Con Dios. Bom, ninguém reclamou e muita gente até nem percebeu. A exceção dos nostálgicos, que ouviram doses cavalares de Antena 1 na juventude e agora ficam comparando duas músicas que se assemelham. Ou não.



quarta-feira, 24 de abril de 2019

Pérolas da Netflix - Durante a Tormenta (Durante La Tormenta)

De: Oriol Paulo. Com Adriana Ugarte, Chino Darín, Javier Gutierrez, Álvaro Morte e Nora Navas. Drama / Suspense, Espanha, 2019, 128 minutos.

Já se vão quase 35 anos desde aquela vez em que Marty McFly voltou ao passado a bordo de um DeLorean para alterar a linha do tempo e quase comprometer a sua própria existência. Quem assistiu a De Volta Para o Futuro - alguém não assistiu? - tem até hoje a imagem do personagem vivido por Michael J. Fox literalmente desaparecendo, enquanto sua futura mãe tem uma série de desencontros com aquele que viria a ser o seu pai. E se ele não nascesse? Era uma comédia, divertida, leve, inesquecível. E que, agora, nostalgicamente, reaparece assim que começamos a assistir ao ótimo espanhol Durante a Tormenta (Durante La Tormenta), que bebe da fonte da película de Robert Zemeckis, mistura elementos de outros filmes de ficção científica - como Efeito Borboleta e Interestellar -, e nos entrega como resultado um suspense cheio de personalidade, vigoroso e que nos prende do começo ao fim.

Na trama também haverá uma alteração da lógica temporal, motivada por um episódio que ocorre no futuro, mas que afeta o passado. O filme começa em 1989. Em cena vemos o jovem Nico, que executa uma versão de Time After Time da Cindy Lauper, ao mesmo tempo em que faz uma gravação caseira de si próprio tocando guitarra. Após a mãe do rapaz sair para trabalhar, Nico presencia, a partir de sua janela, uma discussão entre vizinhos que resulta em uma morte. Ao sair correndo de casa para buscar ajuda, Nico é atropelado e morre. A obra salta para 2019, onde Vera (Adriana Ugarte) e David (Álvaro Morte) estão comprando a casa que foi de Nico e de sua mãe 30 anos atrás - o que percebemos quando o casal descobre, em um cômodo, a TV, a câmera de vídeo e o videocassete antigos. Será ao ligar o aparelho em uma noite mal dormida de tempestade, que Vera conseguirá "conversar" com Nico, em 1989, impedindo a tragédia que lhe seria o seu destino. A TV, catalisada pelos raios e trovões, funcionará como um portal, que modifica o passado. E também o presente/futuro.


Tudo muda na vida de Vera. De enfermeira ela passa a médica, David não é mais o seu marido e o pior drama para ela: a sua filha pequena não existe mais. O crime do passado aconteceu, mas Nico está vivo e seu paradeiro é um mistério. Só que tudo isso contribuiu para que tudo se alterasse no futuro. Assim, Vera luta para provar que não possui problemas psicológicos, se empenha em desvendar os mistérios do assassinato ocorrido no passado e tenta, de todas as formas, alterar novamente a lógica de espaço/tempo, para que a sua filha reapareça no mundo (ela sumiu, assim como McFly quase desaparece na De Volta Para o Futuro, citado ali no começo). Sim, parece meio complexo e talvez inicialmente até seja: mas a obra do diretor Oriol Paulo (do curioso Um Contratempo) é muito bem montada e a cada ida e vinda no tempo as peças do quebra-cabeças vão sendo fechadas. Não sem algumas reviravoltas - algumas previsíveis, outras nem tanto, claro.

Em geral trata-se de um filme leve de assistir, com um bom suspense, daqueles que não cansam jamais. Vale a pena fica atento a detalhes, como uma simples caixa de fósforos, que podem representar alguma mudança de perspectiva no desenrolar da trama. O mesmo vale para personagens chave, como uma outra vizinha, Clara (Nora Navas), que é mãe de um dos melhores amigos de Vera, Aitor (Miquel Fernández) e que, no mundo modificado, possui grande proximidade do assassino visto no começo do filme. Se há um pecado no filme é o fato de tudo ser redondinho demais, já que a gente sempre espera que em filmes de ficção científica a distopia cruel supere a "realidade", mesmo quando as coisas comecem a afunilar. Mas não é nada que comprometa.


terça-feira, 23 de abril de 2019

Tesouros Cinéfilos - Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre)

De: Pedro Almodóvar. Com Cecilia Roth, Marisa Paredes, Penélope Cruz e Antonia San Juan. Drama, Espanha / França, 1999, 101 minutos.

Ao final de Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre) um letreiro indica que a obra é dedicada a "todas as atrizes que viveram atrizes. A todas as mulheres que representam. Aos homens que representam e se tornaram mulheres. A todas as pessoas que querem ser mães. À minha mãe". Nesse sentido, não é demais lembrar que o cinema de Pedro Almodóvar sempre foi pródigo em sua análise do universo feminino - com as mulheres sustentando as mais variadas tramas -, e é muito provável que com esta película este nostálgico "fetiche" tenha atingido o seu ápice. Em tela mulheres de todos os tipos: apaixonadas, vigorosas, empáticas e humanas buscando se encontrar em um mundo em que tragédia e riso caminham lado a lado, sendo sempre possível, a despeito das peças pregadas pelo destino, seguir em frente, perdoar e, enfim, recomeçar.

Na história acompanhamos o drama de Manuela (Cecilia Roth), que perde o filho Esteban (Eloy Azorín) na noite do aniversário do jovem. Após assistirem uma encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo (foi o presente de aniversário da mãe), Esteban se esforça para pegar um autógrafo da atriz Huma Rojo (Marisa Paredes) - que interpreta Blanche Dubois -, correndo atrás do táxi que lhe conduz pelo subúrbio. Por uma fatalidade, ele é atropelado e acaba falecendo. Alguns dias depois, lendo os diários do filho, Manuela encontra um manuscrito que dá conta do desejo do rapaz de conhecer o seu pai. É neste momento que a devastada mãe resolve ir a Barcelona para tentar um encontro com o pai de Esteban, vivido por Toni Cantó. Mas há um problema: o homem atualmente é a travesti Lola. E faz 18 anos que Manuela não lhe vê.


Em sua jornada, Manuela reencontrará a antiga amiga Agrado (Antonia San Juan) e conhecerá a jovem freira Rosa (Penelope Cruz), que se tornará sua protegida após esta descobrir uma inesperada gravidez. E já que coincidência pouca é bobagem, Manuela começará a trabalhar para Huma, após um curioso (e revelador) encontro entre ambas. O filme se desenrola a partir desses pequenos recortes que envolvem o convívio de todas elas, suas idas e vindas, suas tentativas de resolver as angústias que não lhes deixam acalmar o coração. Luto, uso de drogas, HIV, dissimulação da Igreja Católica e prostituição são assuntos que funcionam como fios condutores da narrativa que, ao fim do cabo, discute a importância da sororidade, da absolvição e da compreensão das diferenças. É uma obra colorida, alegórica, de gargalhada e de choro em igual medida e de um olhar carinhoso, especialmente para aquelas figuras que vivem a margem da sociedade.

Tido pela crítica como o melhor filme de Almodóvar - não por acaso faturou o Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira na cerimônia do ano 2000 - a película ainda é um requinte no que diz respeito às suas referências, que vão da já citada peça de Tenessee Williams ao filme A Malvada (1950) - e aqui vale prestar atenção no aspecto metalinguístico da narrativa, com Manuela "substituindo" pessoas em vários momentos e em vários papeis, tal qual a Eve Herrington, vivida de forma impressionante por Anne Baxter, no clássico estrelado por Bette Davis. Com um elenco recheado de estrelas e inspiradíssimo, a obra conta com várias cenas inesquecíveis, como na parte em que, após apanhar na rua, Agrado se olha no espelho e diz estar parecida com o Homem Elefante, por causa de seus hematomas. Em tempos em que o preconceito, a ódio e a intolerância andam em alta - motivados por uma inexplicável ascensão de alas conservadoras de direita - os filmes do Almodóvar são um verdadeiro respiro, nunca sendo demais recordá-los.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Pérolas da Netflix - Temporada

De: André Novais Oliveira. Com Grace Passô, Russo APR, Rejane Faria e Hélio Ricardo. Drama, Brasil, 2019, 113 minutos.

Temporada é aquele tipo de filme que parece sobre o nada mas que, na verdade, é sobre tudo ao mesmo tempo. Não por ser algum tipo de projeto ambicioso e hiperbólico e sim por apostar na sutileza como forma de abordagem para temas relacionados a diferenças sociais, a solidão e a busca pela felicidade. É o filme sobre o cotidiano. Sobre a vida real. Sobre errar e acertar. Ou sobre deixar o passado para trás para tentar tudo de novo. E novamente. E o pior: em um País que não costuma olhar com carinho para as classes menos favorecidas ou vulneráveis. Na trama acompanhamos a jornada de Juliana (a espetacular Grace Passô) que está se mudando de Itaúna para a periferia de Contagem, em Minas Gerais, para trabalhar como agente de controle da dengue na região. No local, enquanto se ambienta a sua rotina e aos novos colegas de trabalho, ela tenta se "acertar" com o marido, que ignora todas as tentativas de contato.

E o filme é mais ou menos isso. Ou parece só isso. No final de semana uma ou duas cervejas, no dia a dia o trabalho, os encontros com pessoas conhecidas e desconhecidas, o cotidiano, a brasilidade. O flerte com algum colega. As roupas simples e os diálogos idem. A fotografia quente da cidade periférica. Os corpos fora do padrão - especialmente os de Hollywood - que se assemelham ao meu e ao seu, que lê esse texto. Uma das críticas à Temporada é que, no filme, não há um arco dramático mais aprofundado, mais bem definido. Mas é o filme político, sem ser panfletário, sem precisar esfregar nada na cada. Há, aqui e ali, uma discussão sobre precárias condições de trabalho, sobre salários baixíssimos (mesmo pra quem é concursado), sobre as dificuldades para que as contas fechem e os sonhos permaneçam.



E como o diretor André Novais Oliveira (do premiado Ela Volta na Quinta) faz isso? Com sequências como aquela em que vemos Juliana e Hélio (Hélio Ricardo) sentados diante de uma espécie de estação de tratamento de esgoto. No lugar de belas paisagens cotidianas, a realidade nua e crua, feia. As edificações acinzentadas e disformes. Sem lógica. Paupérrimas, como a casa adaptada por Juliana, que se vira como pode e aceita a condição que lhe é imposta. O mesmo valendo para o trabalho e para as reações diversas das pessoas que recebem os agentes - mal humoradas, tristes, solitárias, benevolentes. Há uma curiosa mistura de tudo nessa obra absurdamente naturalista em que não sabemos exatamente para o que torcer, como ficar ou de que forma olhar, sendo que só o que conseguimos sentir o tempo todo é empatia por aquele coletivo torto, que pega ônibus, que come no dogão, que fala em um linguajar cheio de gírias, que procrastina e que vai no pagode.

E há ainda o personagem Russão (Russo APR), com o seu inacreditável carisma, que sonha em poder abrir uma barbearia pra levantar uma grana extra, que possibilitará melhores condições para o filho. É o dia a dia da informalidade, livre, direta, que representa uma ruptura justamente por não ser óbvia, como em qualquer outra obra. Com longos planos sequência, o filme centra a sua força nos diálogos e nas atuações - rudes e comoventes em igual medida -, que atingem seu ápice em uma comovente aparição de Dona Zezé (a falecida mãe do diretor), que interpreta uma senhorinha querida, que oferece bolo e café para Juliana, lembrando a ela que "saco vazio não para em pé". Na nebulosidade do Brasil que perde o seu encanto, ainda há a cordialidade a ser encontrada, o anseio de vida no riso e no choro. O mesmo riso e o mesmo choro que o espectador alternará, desavergonhadamente, ao assistir a essa verdadeira pérola do cinema nacional.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Cinema - Em Trânsito (Transit)

De: Christian Petzold. Com Franz Rogowski, Paula Beer, Godehard Giese e Barbara Auer. Drama, Alemanha / França, 2018, 101 minutos.

Só a sutileza com que o diretor Christian Petzold (Phoenix) aborda o avanço do nazismo (ou do fascismo) na modernidade já torna Em Trânsito (Transit) um filme digno de nota. Para falar de cerceamento da liberdade, de cassação de direitos e de injustiças sociais, não há volta no tempo, não há trens levando judeus para campos de concentração ou quaisquer outras cenas de maus tratados ocorridas no holocausto. Não há fotografia empalidecida ou saturada ou trilha sonora que dialoga com o período. A película se passa em algum ponto da modernidade, com desenho de produção em que se veem carros, construções e rodovias atuais, o mesmo valendo para figurinos e outros objetos cênicos. O que não muda nesse contexto? Somos apresentados a um grupo de pessoas que está em fuga de uma França pronta a ser sitiada pelo exército, que pretende iniciar um "trabalho de limpeza" no País.

Nesse sentido, Em Trânsito é uma espécie de distopia daquelas típicas da ficção científica, em que a sociedade moderna, eventualmente decadente, se choca com um passado de opressão e de censura (e medo) do diferente. No microcosmo proposto por Pletzold, seria como se o nazismo estivesse para acontecer na atualidade, em uma capital como Paris, motivada por uma política conservadora e ditatorial que se avizinha. E, assim as pessoas precisam fugir - e não é por acaso que, logo no começo do filme, a proprietária de uma hospedaria trata com desconfiança o protagonista Georg (Franz Rogowski). No mesmo hotel Georg pretende entregar documentos a um autor, de sobrenome Weidel, que ele descobre ter se suicidado. Antes de abandonar o local, ele se apropria de manuscritos do escritor falecido, assumindo, após uma viagem a Marselha, a sua identidade.


Na verdade a película é uma obra sobre pessoas tentando encontrar o seu lugar no mundo, mas em um mundo doente, boçal, em que prevalecem os preconceitos e a intolerância. Não é por acaso que um autor se mata, já que os artistas muitas vezes são os primeiros perseguidos em ditaduras. Em Marselha, Georg conhecerá Marie (Paula Beer), que por conta de uma daquelas incríveis coincidências é a viúva do falecido Weidel. Marie acredita que o homem está vivo, já que muitas pessoas afirmam ter visto ele - na embaixada, nas cafeterias em setores do Governo. Mas na verdade trata-se de Georg que está utilizando a identidade do escritor para forjar uma ida para o México onde, em exílio, poderá escapar da guerra. E é aí que entra o componente romântico, com Georg convidando Marie para lhe acompanhar já que, claro, ele se apaixona por ela.

Não bastassem as dificuldade naturais dos envolvidos, ainda há uma mãe imigrante, com o seu filho - o que não deixa de ser uma forma de atualizar para os dias atuais o tema da perseguição político/religiosa às minorias. Como em qualquer "guerra", a violência está logo ali ao lado, com integrantes do exército invadindo casas e levando na marra àqueles que são considerados subversivos, não restando para quem sente medo, a opção exclusiva de fugir. Trata-se de uma obra moderna, que joga algum frescor no tema da guerra, ao fugir do óbvio, esfregando em nossas caras que a perseguição e o medo, travestidos de "intervenção militar" pelo bem da sociedade, podem ser a pior escolha. Cabe a nós decidir pelo nosso futuro. Ao menos enquanto somos uma democracia.

Nota: 8,5


terça-feira, 16 de abril de 2019

Pérolas da Netflix - Girl

De: Lukas Dhont. Com Victor Polster, Ariel Worthelter, Katelijne Damen e Valentjin Dhaenens. Drama, Bélgica, 2019, 104 minutos.

Quando Girl começa e a jovem Lara (Victor Polster) surge em cena pela primeira vez, jamais temos dúvida de estarmos diante de uma garota: seu sorriso delicado e suas feições suaves são o complemento para uma identidade totalmente feminina. Sim, trata-se de uma mulher que nasceu com corpo de homem mas que, com apenas quinze anos, tem consciência de suas escolhas e do que deseja para sua vida. Apoiada de forma comovente pelo pai (Ariel Worthelter), Lara está fazendo um tratamento com hormônios, enquanto aguarda uma cirurgia para readequação de gênero. Sim, não bastassem todos os dilemas, anseios, dúvidas, descobertas e inseguranças da juventude, Lara é uma garota trans em um mundo em que o ódio, o preconceito e a intolerância parecem sempre prontos à vir a tona por meio de, entre outros, o "cidadão de bem" - aquele inexplicável sujeito que se preocupa mais com a sexualidade dos outros do que com a própria.

Bom, talvez como forma de deslocar um pouco essa realidade avassaladora, o diretor Lukas Dhont aposta na empatia, evitando assim o clichê da história de superação. O drama de Lara é outro: é o da pressa da juventude, é o da urgência de ver o seu corpo "acontecer" como de fato ela deseja - com seios, com uma vagina no lugar do pênis e com a plenitude de poder, enfim, ser ela mesma. É claro que o preconceito inevitavelmente surge aqui e ali - como na sequência em que um professor pergunta em sala de aula se as colegas se importarão com o fato de Lara usar o banheiro feminino. Mas o acolhimento diante da causa é maior, com a família, os médicos e os psicólogos empenhados em ver o objetivo de Lara finalmente alcançado. E não é por acaso que são tão comoventes as cenas em que a jovem se olha no espelho, tentando identificar se os seios de fato cresceram alguma coisa. O mesmo valendo para as sequências que mostram uma "gambiarra" feita com fita adesiva para esconder os genitais.


Lukas Dhont banha tudo com um naturalismo impressionante. A câmera simplesmente "cola" no rosto de Polster que surge praticamente em todas as cenas, sem nunca apostar em uma caracterização caricatural. Pelo contrário é na economia de palavras, no olhar meio de lado, no sorriso constrangido que a jovem comunica tudo - de tristezas como um episódio de bullying envolvendo as colegas de balé - à pequenas euforias, como no momento em que uma professora pergunta a ela se ela é a irmã mais velha de seu aluno. E, aqui, cabe um parêntese sobre o fato de Polster não ser uma atriz trans (ao contrário, trata-se de um ator cisgênero): sua atuação é soberba, cheia de sutilezas, o que lhe fez faturar com justiça o prêmio de Melhor Ator na mostra Um Certo Olhar do último Festival de Cannes. Aliás, ainda sobre Cannes, a película faturou outro prêmios como o Câmera de Ouro de Primeiro Filme para Lukas Dhont.

E há ainda em meio a tudo o já citado balé - que surge como exercício metafórico para a transformação do corpo. Nas exaustivas tentativas de replicar os movimentos, não são poucas as cenas em que surgem diante de nós os pés machucados de Lara. E quanto mais ela se esforça, mais ela se machuca, sendo que a dor que ela sente diante de todo aquele contexto é muito mais do que física - é também emocional. Não é por acaso que o desmaio diante de uma dor extrema ocorre justamente quando ela está mais fragilizada pela angústia de ter de aguardar o resultado de seu tratamento, que possibilitará tomadas de decisões futuras. Não é um filme fácil, mas haverá em cada canto da fotografia granulada típica do cinema europeu ou da trilha sonora urgente, um palpável otimismo que nos fará torcer o tempo todo por Lara e por todos aqueles que lhe querem bem. Uma obra sensível que está lá, disponível na Netflix.

Lançamento de Videoclipe - Marcelo Jeneci (Aí Sim)

Finalmente a notícia que os fãs do Marcelo Jeneci esperavam chegou: após um hiato de seis anos desde o lançamento de De Graça (2013) vem aí um novo registro de inéditas do artista! A princípio programado para o fim de maio, o trabalho começou a ser gestado em julho de 2017, com produção de Wladimir Gasper e coprodução de Lux Ferreira e do próprio Jeneci. Como forma de anunciar o novo álbum, o compositor divulgou na última semana um vídeo para a música Aí Sim - primeiro single do disco. A faixa, a exemplo de outras, como, Café Com Leite de Rosas e Longe foi composta em parceria com Arnaldo Antunes. O clipe, bastante gracioso, foi dirigido por Chlöe de Carvalho e tem locações no Nordeste, que combinam bem com o clima regionalista da canção, que tem instrumental leve que forma a base perfeita para o vocal limpo de Jeneci.





segunda-feira, 15 de abril de 2019

Tesouros Cinéfilos - Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk)

De: Barry Jenkins. Com Kiki Layne, Stephan James, Regina King, Teyonah Paris e Colman Domingo. Drama, EUA, 2018, 119 minutos.

Parece inacreditável que, nos dias de hoje, episódios como o do assassinato do músico Evaldo dos Santos, há pouco mais de uma semana, ainda ocorram. Na ocasião, uma ação absurdamente destemperada de um Exército racista e despreparado foi o gatilho para o disparo de 80 tiros de fuzil contra a família do homem, que retornava de uma festa. O que fez a corporação diante desse episódio nefasto? Divulgou uma nota, no dia seguinte, que garantia que Evaldo havia atirado primeiro contra os militares, que apenas teriam agido em legítima defesa. Nas imagens divulgadas na internet e no relato de testemunhas não há nada que confirme a desvairada versão da polícia. Foi execução pura e simples. Talvez motivados por "violenta emoção" ou "surpresa" - pra ficar nas palavras do Pacote Anticrime do Sérgio Moro - os militares agiram, confirmando aquilo que as estatísticas não deixam mentir: a política pública de segurança é racista já que de cada dez mortes, sete são de pessoas negras.

Bom, se hoje é assim - e o caso de Evaldo é UM CASO, em meio a centenas que ocorrem somente no nosso País - o que dirá em tempos passados, muito mais segregacionistas e preconceituosos? Na abertura do filme Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk), um letreiro do autor James Baldwin diz que "toda a pessoa negra nascida na América nasceu na Rua Beale, no bairro negro de uma cidade americana, seja em Jackson Mississipi ou no Harlem em Nova York. A Rua Beale é o nosso legado". Essa sentença é uma forma de dar conta, metaforicamente, de uma história de preconceito, de racismo e de abusos de autoridade. Se por um lado a Rua Beale - localizada em Nova Orleans - é barulhenta e o berço do jazz, por outro ela também é o local em que a violência contra os negros acontece, legitimada por aqueles que deveriam ser os responsáveis por defender o cidadão, independente de sua raça. É assim em qualquer lugar do mundo. É assim em Guadalupe, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, com a família de Evaldo dos Santos.


Na trama, acompanhamos a jornada da jovem Tish (Kiki Layne), que luta para livrar o marido Fonny (Stephan James) de uma acusação criminal, aparentemente injusta, de estupro. Cumprindo pena enquanto aguarda o desenrolar jurídico do episódio - o que envolve uma tentativa de localizar a suposta vítima, que teria fugido para Porto Rico -, Fonny descobre que Tish está grávida. E como se não bastassem os problemas relacionados à prisão do homem, as famílias de ambos ainda "batem cabeça" encontrando espaço para desavenças religiosas - o que envolve uma maravilhosa cena em que todos estão reunidos (pais mães, irmãos), bem no começo da película. Provar a inocência de Fonny não será tarefa fácil: há um advogado caucasiano que se empenha no caso, mas parece haver sempre uma desconfiança no ar, em relação as suas reais intenções. O que é reforçado pela morosidade para qualquer tipo de resolução.

A despeito da "morosidade", o filme poderá soar levemente arrastado para o espectador que não está tão habituado a uma linguagem cinematográfica com uma fluidez mais lenta, quase lânguida. Mas a obra é muito bonita, quase nos remetendo àqueles antigos filmes apaixonados dos anos 40. Há uma forte carga romântica - reforçada pela bela trilha sonora - que faz com que torçamos o tempo todo pelos protagonistas. Mas o que a gente sabe de antemão é que tudo é mais difícil quando estamos falando de provar a inocência de um negro. A família de Fonny fará de tudo para que isso aconteça - entre elas a sua sogra, vivida por uma Regina King assombrosa em caracterização que lhe deu o Oscar. Mas há um outro lado também machucado, dolorido: o de uma mulher que foi estuprada e, traumatizada, pode ter confirmado aquilo que não era verdade. A dúvida permanece até o final, ainda que a presença de policiais racistas, de entes políticos cheios de preconceitos e de um Estado que não olha para as minorias, posso indicar aquilo que, afinal de contas, todo mundo já sabia: Fonny era inocente. E, assim como Evaldo, não merecia a sentença que lhe foi dada.


quarta-feira, 10 de abril de 2019

Disco da Semana - Matheus Brant (Cola Comigo)

Quando lançou o disco Assume Que Gosta (2016), o musico Matheus Brant deu carta branca para que os hipsters tivessem um disco "carnavalesco" para chamar de seu. O registro, divertido até dizer chega, era um convite nostálgico para um encontro entre a música alternativa e ritmos como o arrocha, o axé, a marchinha, o sertanejo universitário e o pagode. Sim, em cada coraçãozinho indie que pulsa a cada novo lançamento da Grimes ou do Arcade Fire há alguém disposto a cantar a plenos pulmões o refrão de Abandonado, do Exaltasamba (que o artista incluiu naquele trabalho). Sim, o encontro entre ritmos mais comerciais com violõezinhos estilo MPB, alguma dose de psicodelia e toneladas de sintetizadores resultou em músicas que caíram no gosto tanto do fã do programa do Rodrigo Faro, quanto do admirador de cada episódio do Greg News.

Assim, havia muito expectativa para o novo registro de Brant que, intitulado de Cola Comigo, chega dando aquela abraço carinhoso no pagode dos anos 90 - sim, aquele mesmo que crescemos escutando nas tardes do Domingo Legal, onde uma dúzia de pagodeiros cantavam sorridentes, enquanto estalavam os dedos e faziam dancinhas estranhas, em meio aos piores playbacks da história. Só Pra Contrariar, Soweto, Negritude Junior, Karametade, Os Travessos, Katinguelê... há uma pitada de cada um desses coletivos no trabalho que exala um frescor impressionante, jamais parecendo apenas uma simples homenagem ou uma mera caricatura. Com personalidade, Brant se leva a sério - sem perder o senso de humor, claro -, dialoga com o lirismo poético do samba e perfuma cada canção com cores próprias e com um verniz que revitaliza o estilo que se desgastou, assim que o novo milênio surgiu.



Em entrevista concedida ao site Revista Arte Brasileira, o instrumentista disse sentir falta na nova MPB, no samba e nos artistas indie em geral de uma certa vitalidade nas composições - uma comunicação direta com o público. "Essas eram justamente as características presentes no pagode. Assim, pensei que aproximar esses dois universos poderia resultar em algo interessante. De um lado o pagode com a coloquialidade e a espontaneidade muitas vezes consideradas de mau gosto e de outro o indie, a nova MPB, com seu apuro técnico, arranjos e sonoridade contemporâneos, muitas vezes definidos como bom gosto" enfatizou. Não é por acaso que ele mesmo, ao definir o seu estilo musical, o classifica como "pagode indie" - um tipo de música espontânea, sem qualquer trava intelectual e recheada por emanações vivas, cotidianas e eventualmente sofisticadas.

Saboroso de ouvir, o registro tem produção limpa com a voz do artista - que também é advogado e escritor - se sobressaindo em meio a ruídos eletrônicos, cavacos, surdos, pandeiros e muito lalaiá, palminhas e outros efeitos. Basta ouvir o refrão grudentíssimo de Preta (executado num daqueles típicos coros do pagode que não fariam feio em algum registro do Chico Buarque) ou letras irrepreensíveis como a de Tudo no Menu - Eu quero ter uma caminha bem macia / E a gente deita junto nela todo dia / Fim de semana até parece com a Bahia / A gente pode se encontrar - para ficarmos absolutamente arrebatados. Não demora e o preconceito vai se embora num instante. Brant tem dito em entrevistas que Assume Que Gosta e Cola Comigo integrarão, futuramente, uma trilogia. Não faria mal se ele adotasse um estilo tão saturado, cansativo e marcado pelo hedonismo como o sertanejo universitário para jogar alguma luz. É possível falar de amor, sexo e vida cotidiana sem tanto ranço, como comprova esse gracioso álbum.

Nota: 8,5

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Grandes Cenas do Cinema - A Origem (Inception)

Filme: A Origem
Cena: Um pião que gira sem parar. Ou ele para?

Não houve absolutamente nenhum cinéfilo que, ao final de A Origem (Inception), de Christopher Nolan, não tenha se perguntado se Cobb, personagem de Leonardo DiCaprio, estava sonhando ou não na última cena do filme. As teorias são as mais variadas e em uma pesquisa rápida no Google será possível encontrar aqueles que acreditam se tratar de um devaneio e outros que creem estar diante da vida real. Eu mesmo acredito que ele estava sonhando, o que poderia ser comprovado pelos tipos de cortes utilizados na edição das sequências finais (eles mesmos brincam sobre o fato de nunca lembrarmos do começo de nossos sonhos), pelo fato de os filhos fazerem movimentos muito parecidos com aqueles que surgem nos sonhos e, especialmente, pelo fato de não ter havido um "chute", ao menos não visível para nós, que fosse capaz de retirar Cobb da quarta dimensão dos sonhos, onde ele encontrará Saito (Ken Watanabe).

Bom, o filme é uma obra-prima sobre os sonhos, com uma grande capacidade de tornar palpáveis ideias abstratas. E que tem, a meu ver, uma série de cenas antológicas que serão lembradas daqui a alguns pares de anos como algumas das mais inesquecíveis do cinema. E, para mim, a simples imagem do totem utilizado por Cobb - o famoso pião - no último instante, enquanto ele encontra os seus filhos, é daquelas que já tem a sua marca na história da sétima arte. A sequência é um primor de técnica, com a câmera saindo da imagem da família feliz que confraterniza ao fundo, para encontrar em um primeiro plano o pião que gira. E ele gira, tropegamente, para girar mais um pouco, mais um pouco e mais um pouco até que os créditos subam. E a gente fique com aquela cara de "caceta, o que foi que eu vi aqui?".


A questão envolvendo Cobb, a morte de Mal e a relação do casal com os seus filhos são parte importante da trama - e as seguidas "entradas" de Cobb no mundo dos sonhos para atividades de teste, fazem com que, não poucas vezes, realidade e ficção se confundam. Cobb integra uma equipe capacitada a invadir sonhos de pessoas importantes para, com o uso de uma tecnologia inovadora, roubar informações e segredos valiosos que estejam guardados no inconsciente das "vítimas". Após uma ação que não sai como o planejado, Cobb é contratado pelo magnata japonês Saito (Ken Watanabe) para entrar na mente de um herdeiro de um império econômico (vivido por Cillian Murphy) com a intenção de plantar uma ideia que o incentive a desmembrar os negócios da família - o que impediria o monopólio e a falência de outros conglomerados.

É uma trama nem sempre fácil de acompanhar e que provavelmente exigirá dos cinéfilos mais umas duas ou três revisões para uma plena compreensão daquilo que se assiste. Cobb conta com uma equipe - seu braço direito Arthur (Joseph Gordon-Levitt), a arquiteta Ariadne (Ellen Page), o mestre dos disfarces Eames (Tom Hardy) e o químico Yusuf (Dileep Rao) - para colocar o plano em prática. Em meio a execução, a imagem de Mal ressurge para "assombrá-lo", devendo ele recorrer ao pião como uma forma de compreender se está no mundo real ou não. A película é um espetáculo visual e sonoro (a gente nunca mais escuta a música Non, Je Ne Regrette Rein da Edith Piaf da mesma forma), não por acaso tendo sido premiada nas categorias Fotografia, Efeitos Visuais e Edição e Mixagem de Som, fora as outras indicações. Mas fora as premiações e o estupendo roteiro original, repleto de conceitos intrigantes e bem organizados, será a provocação final, aquela sobre o pião que roda, a que gerará as mais variadas conclusões. O que dá conta do potencial da cena, inesquecível desde o instante em que foi concebida.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Cine Baú - A Noite dos Desesperados (They Shoot Horses, Don't They?)

De: Sidney Pollack. Com Jane Fonda, Michael Sarrazin, Susannah York e Gig Young. Drama, EUA, 1969, 129 minutos.

Parece inacreditável que um filme como A Noite dos Desesperados (They Shoot Horses, Don't They?) tenha sido lançado há 50 anos - muito antes da explosão dos reality shows e de crises profundas como as que vivemos hoje, com altas taxas de desemprego e muita informalidade no mercado de trabalho. Sim, de alguma forma a película de Sidney Pollack - uma das primeiras de sua carreira - junta os dois assuntos. O ano é 1932 e os Estados Unidos vivem os reflexos da depressão, provocada pela quebra da Bolsa de Valores em 1929. Em meio a um cenário de desolação - e que denota uma profunda crise em uma sociedade sem nenhuma empatia -, sujeitos abonados tem uma ideia genial para ganhar dinheiro (especialmente da entorpecida Classe Média): reunir mais de uma centena de casais em um salão fechado, fazendo com que eles participem de uma maratona de dança, até que apenas um se sagre o vencedor.

As semelhanças com as indefectíveis "provas do líder" do Big Brother são de embasbacar: conforme os dias avançam (sim, dias), alguns casais vão desistindo, permanecendo na disputa alguns poucos que sonham em faturar a bolada de US$ 1.500 com o objetivo de mudar de vida - caso da dupla formada por Gloria (Jane Fonda) e Robert (Michael Sarrazin). O que fica claro é que há um desespero por qualquer coisa que possa representar uma guinada - o que se percebe nas filas de pessoas que buscam preencher os requisitos para participar do jogo (que tem torcida em tempo real, sendo apresentado em uma espécie de picadeiro improvisado). Ninguém pode parar de dançar: ritmos lentos se alternam com outros mais agitados e cada dupla pode descansar por intervalos de 10 minutos a cada turno em que a maratona ocorre. Há fornecimento de comida, assim como cuidados médicos. É uma prisão improvisada, em uma condição extenuante.



É mais do que evidente o fato de percebermos aquele microcosmo (o filme se passa TODO dentro do salão em que ocorre a competição) como um reflexo metafórico de nossa sociedade. Lá estão pessoas desesperadas, se submetendo a condições desumanas para tentar ganhar algum dinheiro - ou até mesmo uma oportunidade no cinema, como no caso da deslumbrada Alice (Susannah York) - enquanto os ricaços ou os bem sucedidos aplaudem, gargalham e torcem pelo sucesso de algum daqueles desaventurados. Alguém aí pensou na relação entre patrão e operário? O título original - tomado do livro de Horace McCoy - é uma brincadeira sugestiva sobre o sacrifício de animais - muitas vezes os cavalos são mortos, se possuem alguma doença incurável ou que interrompa a lucratividade. Eles não atiram em cavalos, atiram? é uma reflexão proposta já na abertura da película. Sim, atiram. É só você não ter mais serventia nessa "selva".

Pollack se tornaria muito mais famoso por outros filmes, mais tarde - casos de Tootsie (1982), Entre Dois Amores (1985) e A Firma (1993). Mas A Noite dos Desesperados é o que pavimentou o caminho para que ele alcançasse um outro patamar. É uma obra que permanece atual, é curiosa, diferente, instigante - ainda que propositalmente arrastada em alguns momentos (o que reforça de forma orgânica a passagem do tempo em um ritmo distinto para aquelas pessoas). E mesmo em um único cenário, a construção impressionante de cenas como as das "corridas", é um verdadeiro atestado de qualidade para essa pequena joia. Indicada em nove categorias na cerimônia do Oscar de 1970, o filme ganhou apenas uma estatueta: a de coadjuvante para Gig Young (sério, quando acaba o filme a gente já não aguenta mais a empolgação irritante dele). Mas ainda assim a obra será para sempre lembrada como uma película de ruptura, sem possibilidade de final feliz, ao estilo de outras do período - caso de Perdidos na Noite (1969) que foi lançada no mesmo ano.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Cinema - O Retorno de Ben (Ben Is Back)

De: Peter Hedges. Com Julia Roberts, Lucas Hedges, Kathryn Newton e Courtney B. Vance. Drama, EUA, 2018, 102 minutos.

No centro da trama de O Retorno de Ben (Ben Is Back) está um dos maiores medos de pais/mães mundo afora: a de ver seu filho envolvido com drogas. Especialmente as drogas pesadas. E junto com elas todas as consequências do vício, que vão desde a destruição completa da saúde do usuário até o envolvimento com companhias que certamente não são as melhores. Ben (Lucas Hedges) é o filho que está em tratamento em uma clínica de desintoxicação e que resolve, as vésperas do Natal, fazer uma surpresa para a mãe Holly (Julia Roberts). A alegria absolutamente genuína em ver o filho, imediatamente contrasta com a preocupação. Não demora para que saibamos que Ben já passou por várias recaídas (tendo comprometido outras datas festivas), o que faz com que Holly esconda os medicamentos que possui em casa, que possam funcionar como gatilho, e faça ao filho um pedido quase suplicante: a de que ele não saia do seu raio de visão nas próximas 24 horas.

Bom, é óbvio que isso não vai dar certo e, assim como ocorre quando assistimos a um filme de suspense/terror, já sabemos de antemão que o "vilão grotesco" não tardará a aparecer, como se fosse uma emanação sobrenatural que surge para abalar as estruturas da família. Ben parece inicialmente disposto: está há 77 dias sem usar drogas e tem consciência de sua condição (a ponto de procurar uma "terapia de grupo improvisada", quando pensa que pode estar sofrendo com alguma tentação). Mas os "tentáculos" de um usuário de drogas são compridos e não demora para que traficantes descubram que Ben está na área. O resultado: o cachorro da família desaparece - ao melhor estilo daqueles avisos ameaçadores -, o que faz com que mãe e filho mergulhem em uma desesperada jornada de busca noite adentro, em uma espiral vertiginosamente mais perigosa conforme a película avança.


A propósito, o diretor Peter Hedges (o pai de Lucas) é hábil na construção da atmosfera do filme, imprimindo algum tipo de suspense até mesmo onde ele pareceria não existir. A cena em que Ben brinca "atrás" da cama com o cachorro, surgindo como se estivesse desmaiado, é um exemplo disso. O mesmo valendo para a sequência em que o jovem cria, de improviso, uma barulhenta canção ao lado dos irmãos mais novos. Há uma tensão permanente no ar: a gente sabe que algo está próximo de ebulir/explodir e ficamos só aguardando este momento acontecer. A exemplo do que ocorre com o pai vivido por Steve Carrel no ótimo Querido Menino, é algo que escapa completamente do controle de Holly. Ela tenta de tudo. Acredita piamente na recuperação do filho para apenas constatar, mais tarde, em uma das mais comoventes sequências, as suas falhas. Se é que ela falhou.

O filme não aponta dedos e o uso de drogas é um severo problema de saúde pública em qualquer parte do mundo: Ben surge como uma pessoa afável com os irmãos, faz piada com a mãe e reconhece o fato de que esta deve ficar longe dele pelo perigo que ele representa. Em um filme assim, a solução para a questão só seria possível com um final meio utópico, a moda daqueles que víamos nos anos 90. Mas não: as pequenas vitórias sempre serão celebradas, assim como a persistência em ficar "limpo". Mas até quando? Julia e Hedges emocionam - aliás, Julia está especialmente inspirada como essa mãe dedicada - nesse embate deles com eles mesmos. E o gosto amargo no final é o da certeza da dor que rodeia os familiares impossibilitados de salvar seu filho, diante de um algo tão devastador.

Nota: 8,0

Na Espera - Era Uma Vez Em... Hollywood (Filme)

Ainda é cedo para falar das premiações do ano que vem, mas se tem um filme que tá "fedendo a Oscar" é o Era Uma Vez Em... Hollywood (Once Upon A Time In Hollywood), mais recente empreitada do diretor Quentin Tarantino, que estréia por aqui no dia 15 de agosto. O elenco por si só é um espetáculo e ver nomes como Brad Pitt, Leonardo DiCaprio, Margot Robbie, Al Pacino, Kurt Russel, Michael Madsen, Tim Roth, Dakota Fanning e Emile Hirsch em uma trama sobre um ator de televisão e seu dublê tentando fazer carreira cinematográfica em meio a eventos que culminaram nos assassinatos praticados por Charles Manson e companhia, certamente será uma atração a parte.


O trailer não revela muito: o que podemos ver é que há um charme retrô na fotografia - que mescla os tons pasteis que vigoraram no final dos anos 60 com outras sequências em preto e branco -, o bom humor de sempre (visto nos sugestivos diálogos) e uma trilha sonora que certamente fará a festa dos fãs de música pop. E há uma garotinha falando para o personagem de DiCaprio que aquela é a melhor interpretação que ela já viu - em uma espécie de piada metalinguística que sempre diverte quando o assunto é o vencedor do Oscar por O Regresso (2016). Bom, por aqui nem precisamos dizer que já estamos Na Espera!

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Cinema - Minha Obra-Prima (Mi Obra Maestra)

De: Gastón Duprat. Com Guillermo Francela, Luis Brandoni e Raúl Arévalo. Comédia, Argentina / Espanha, 2018, 101 minutos.

Em sua ainda curta filmografia o argentino Gastón Duprat se especializou em obras que utilizam a mesquinhez e a afetação do universo das artes como o cínico contraponto para uma Argentina dolorosamente decadente, provinciana e cheia de contrastes. Foi assim com o espetacular O Homem ao Lado (2011) e também com o recente e divertido O Cidadão Ilustre (2017) - ambos dirigidos em parceria com Mariano Cohn. É assim também com Minha Obra-Prima (Mi Obra Maestra), que chega agora aos cinemas. No filme assistimos a uma improvável dupla de amigos: de um lado o amargo pintor Renzo Nervi (Luis Brandoni) que já foi bem sucedido, mas hoje não consegue vender quadro algum - seus traços são considerados retrógrados, ultrapassados. De outro o galerista Arturo Silva (Guillermo Francella), que tenta valorizar a obra de Nervi, a despeito da personalidade abusadamente presunçosa e prepotente do artista.

Como forma de tentar dar um upgrade na carreira de Nervi - que está perdendo espaço para artistas mais modernos e inovadores -, Arturo consegue para ele um contrato com uma importante corporação argentina. A tarefa? Pintar uma grande tela de dois por um metro, que resuma o espírito empreendedor da família contratante. Só que é lógico que tudo vai por água abaixo: Nervi não tem paciência com o mercado, é vaidoso e considera que ele, como artista, deve definir os termos da empreitada. Pior de tudo, ainda sofre um gravíssimo acidente pouco depois da catastrófica vernissage de lançamento da peça, que lhe faz perder parte da memória (e também a disposição para viver). Arturo, claro, não abandona o amigo - apesar das absurdamente hilárias discussões entre ambos - e vê na compra dos quadros de Nervi e na consequente valorização desses após a sua morte, uma alternativa de se reerguer na carreira de negociante. "A necrofilia da arte tem adeptos em toda a parte", já diria Gilberto Gil.



Repleta de ótimas surpresas, a película de Duprat é não apenas um verdadeiro tratado sobre a amizade, mas também uma obra-prima que vai no limite das discussões a respeito daquilo que tem real valor no mercado da arte. Com sequências que funcionam como pequenas esquetes, o filme salta de uma situação para outra divertindo e nos emocionando. Se em uma cena prosaica vemos Arturo analisando pessoas que circulam por Buenos Aires, observando suas vestes e seus modos como se estivesse diante de um quadro, em outro assistimos o mesmo Arturo, no hospital, apresentando antigas fotos ao amigo convalescente - que poderão lhe reavivar a memória. Os estereótipos do universo das artes - o crítico arrogante, o estudante universitário que sonha em se expressar pelas artes, o consumidor fútil - estão todos lá e formam um combo que, olhado a distância, funciona como uma espécie de microcosmo da sociedade e de suas diferenças que se tornam mais amplas no contexto em que estão inseridas.

É um filme leve, que traça paralelos divertidos e que não se ocupa em aprofundar a personalidade de cada uma daquelas figuras que vemos em cena. Todos, enfim, estão tentando ser pessoas melhores... mas a que preço? Não seria a ambição desenfreada um dos motivos de tanto mal-estar em nossa sociedade atual? Duprat não oferece respostas e centra nos diálogos e nos constantes embates entre os protagonistas, uma de suas forças. "Não abra a boca se não for para melhorar o silêncio", lembra Nervi a certa altura da película, citando uma frase atribuída a Beethoven. Mas o que dizer de personagens que estão o tempo todo "quebrando o silêncio" para agir de forma inescrupulosa e inconsequente? Nesse panorama do universo das artes só há espaço para o pessimismo e para a amargura, resumidos em quadros que ninguém se interessa, vendidos a preços exorbitantes e produzidos por artistas excêntricos. Mas a gente jura: é impossível não gargalhar.

Nota: 8,5