sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Bela Vingança (Promising Young Woman)

De: Emerald Fennell. Com Carey Mulligan, Ryan Cooper, Laverne Cox, Molly Shannon, Alison Brie e Alfred Molina. Comédia / Drama, EUA, 2020, 113 minutos.

Um filme em que uma jovem se finge de bêbada em baladas, com a intenção de se vingar de homens assediadores é mais do que necessário nos tempos em que vivemos - e só esse fato já justifica a existência deste Bela Vingança (Promising Young Woman). Mistura de comédia com ares românticos e drama de humor negro, a obra aproveita o vigor de sua temática para construir uma narrativa cheia de virtuosismo, em que o visual de um colorido quase circense, se junta a trilha sonora vibrante e a maquiagem e o figurino carregados de sua protagonista, para formar o combo de uma trama de vendeta que, ainda que não seja tão sangrenta assim como se supunha imaginar, deixa uma importante lição. Na tela, Carey Mulligan surge improvavelmente aterradora como Cassie, uma garota de 30 anos que ainda mora com os pais, trabalha em uma cafeteria e ocupa seus dias infernizando sujeitos que acreditam que vão leva-la para a cama a força, sendo surpreendidos com invertidas que os fazem colocar o "rabinho entre as pernas".

Aliás, o filme da diretora Emerald Fennell (a Camilla de The Crown) já abre com a apresentação do modus operandi de Cassie: sozinha em uma boate, finge estar passando mal depois de um trago, atraindo um hétero qualquer que se oferece para leva-la para casa. Não demora para que a suposta cortesia inicial, se torne o comportamento impertinente: com o contragolpe aplicado, a jovem retorna para casa, onde atualiza um longo caderninho em que mantém anotados quais os assediadores que foram vítimas de sua "lição". Em meio a uma ou outra vingança, Cassie passa seus dias na cafeteria - e é lá que ela estabelece contato com um certo Ryan Cooper (vivido pelo comediante Bo Burnham), um antigo colega de faculdade, que se torna interesse romântico, ao mesmo tempo em que é esquadrinhado pelo ímpeto vingativo da jovem. Será ele também um abusador pronto a se aproveitar dela? Ou será alguém genuinamente interessado em seu amor?

Alternando estilos com uma forma absolutamente orgânica, o filme é capaz de saltar da narrativa de vingança à moda de um Kill Bill, para a comédia romântica açucarada em questão de minutos. Nesse sentido, a inclusão de rimas visuais como aquela em que a protagonista surge comendo uma espécie de doce com recheio de framboesa (que emula o "sangue" de suas vítimas), ou instantes em que Cassie e Ryan dançam em uma farmácia (!) ao som de Stars Are Blind da Paris Hilton funcionam muito bem. Aliás, a obra é pródiga ao apostar no senso de humor como forma de colocar o dedo na ferida a respeito de temas tão atuais e relevantes, como o estupro, a misoginia e o machismo. Enquanto personagens como o de Christopher Mintz-Plasse encarnam o mais patético hétero, branco, com uma autoestima da porra, o filme também dá dicas do que poderia ser o ideal de um comportamento masculino mais aceitável dentro de uma sociedade em que tantas mudanças ocorrem.

Cheio de participações especiais e de atores e atrizes carismáticos - além dos já citados, a obra conta com a presença de Laverne Cox, Molly Shannon, Alison Brie e Alfred Molina -, o filme vai ganhando força conforme se encaminha para o seu pouco previsível final, que conta com uma atitude extrema da protagonista, que alterará definitivamente o curso da história dos envolvidos. Com boas chances de indicações ao Oscar - Mulligan é aposta quase certa, não sendo surpresa também as nominações em categorias como Filme, Roteiro Original e até Diretora -, a película é daquelas que marca a sua posição, mas sem forçar a barra ou soar excessivamente panfletária. Isso não significa que o filme não tome partido. Mas em um País como o nosso, em que uma mulher é violentada a cada onze minutos - sim, acredite -, filmes como Bela Vingança servem, no mínimo, para fazer pensar. E isso não deixa de ser um mérito.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Curta Um Curta - Uma Canção Para Latasha (A Love Song For Latasha)

Categoria muitas vezes ignorada pelos fãs de cinema, o documentário em curta-metragem pode reservar boas surpresas - e é justamente esse o caso do comovente Uma Canção Para Latasha (A Love Song for Latasha). Disponível na Netflix e dirigido por Sophia Nahil Alison, o filme de apenas 19 minutos deverá ser um dos indicados ao Oscar em sua categoria - e só esse fato já justificaria conferi-lo. A história super bem montada e com efeitos sonoros e visuais surpreendentes conta a história real da Latasha do título, uma jovem negra que foi assassinada pela dona de uma loja de departamentos em Los Angeles, no dia 15 de março de 1991, após a mulher achar que - pasmem - ela estaria roubando uma garrafa de suco de laranja. Mais um dos tantos "casos isolados" de racismo estrutural que, como outros, resultam em crimes de ódio e de intolerância - aliás, casos que tem aumentado nos dias atuais, com grupos supremacistas brancos se sentindo legitimados por figuras políticas abomináveis como o ex-presidente norte americano Donald Trump. Narrada por uma amiga de infância, a história comove e evidencia o absurdo da impunidade, já que a assassina jamais foi presa.

Livro do Mês - Norwegian Wood (Haruki Murakami)

Editora Alfaguara. Tradução Jefferson José Teixeira, 1987, 362 páginas.

Norwegian Wood foi o meu primeiro contato com a literatura fluída do japonês Haruki Murakami. E, admito, devorei as mais de 350 páginas em menos de uma semana, já ficando com aquele gostinho de quero mais. A moda de outros escritores que espalharam dilemas, incertezas, anseios e inseguranças do universo juvenil em suas páginas - casos de J. D. Salinger em O Apanhador no Campo de Centeio e F. Scott Fitzgerald em O Grande Gatsby, pra ficar em apenas dois exemplos -, aqui o autor parte de um evento trágico (no caso o suicídio de um adolescente de 17 anos) para revirar as memórias daqueles que ficaram: no caso, o protagonista Toru Watanabe, que era melhor amigo do jovem e a bela Naoko, a ex-namorada do falecido. Um reencontro entre os dois despertará uma paixão bem ao estilo das paixões adolescentes: difusa, muitas vezes complicada e, neste caso, ainda preenchida por uma espécie de dilema ético. Acolher a ex-namorada do melhor amigo pode ser uma fuga nesse momento. Mas desejá-la como como Watanabe nunca desejou nenhuma outra, será o certo?

Enquanto "enfrenta" o seu dilema, o protagonista vive a vida como um outro adolescente qualquer: estuda teatro, convive com amigos excêntricos da universidade - entre eles o exótico Nazista (sim, o apelido do rapaz é por conta de sua mania de organização), com quem divide o quarto - e trabalha meio período em uma loja de discos. Aliás, um parêntese: o livro é pincelado por um sem fim de referências culturais diversas, de obras e autores famosos, passando por filmes e canções e, sim, o livro leva esse título por causa da canção dos Beatles. E, sinceramente, é uma delícia acompanhar os descaminhos dos personagens, vendo seu estado de espírito sendo traduzido por uma música entoada no violão, ou por uma memória aleatória envolvendo, por exemplo, as letras de People Are Stranger do The Doors ou Up On the Roof dos Drifters. No fim é um elemento que dá cor a narrativa, tornando-a mais sedutora, mais próxima de quem lê.

Em suas andanças, Toru acaba se aproximando de uma encantadora, divertida e sexy colega de faculdade: a jovem Midori. Midori é o completo oposto de Naoko: tudo que a ex-namorada do amigo (e seu maior interesse romântico) tem de, obviamente, taciturna, fragilizada e de introvertida, a colega tem de vibrante, de primaveril e jovial. Sem papas na língua - as sequências em que falam com naturalidade (e curiosidade) sobre sexo, masturbação, fetiches, entre outros, estão entre as melhores -, Midori não tem vergonha alguma em verbalizar a sua paixão pelo protagonista. Aliás, ela dedica um carinho que pega Watanabe de surpresa, deixando-o indeciso entre esses dois "amores". Só que a paixão por Naoko parece falar mais alto, mesmo que ele sequer faça ideia se algum dia será correspondido. Enquanto convive no universo de incertezas, Toru anda pra lá e pra cá com o amigo intelectual Nagasawa, que se ocupa de utilizar sua inteligência para seduzir garotas com o objetivo de levá-las para a cama.

Só que Toru só pensa em Naoko. E depois de um breve envolvimento entre os dois ela some, deixando-lhe uma carta em que explica que está em uma espécie de casa de repouso junto às montanhas de Kyoto. Não é exatamente um hospital, mas um local que poderá contribuir para o tratamento de seus traumas psicológicos. No local os pacientes se ocupam com atividades corriqueiras que vão de cuidados com a horta e com os animais, passando por aulas de música até chegar à caminhadas junto a natureza. Tudo parece leve - sensação ampliada pela atitude amistosa de Reiko, a colega de quarto de Naoko que, a despeito de ter quase o dobro da idade de ambos, deixa ambos à vontade. A cada visita de Toru à Naoko as incertezas aumentarão. Ela se recuperará? Valerá a pena mesmo investir em um relacionamento com a ex-namorada do falecido melhor amigo? Midori não seria uma aposta mais segura? O que fazer afinal da vida, que avança inexoravelmente? Sem respostas fáceis, Murakami nos conduz com maestria por essa narrativa tão fascinante quanto nostálgica. Vale conferir.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Novidades no Now/VOD - Eu Me Importo (I Care a Lot)

De: J. Blakeson. Com Rosamund Pike, Dianne Wiest, Peter Dinklage, Elza Gonzalez e Alicia Witt. Suspense / Comédia, EUA, 2020, 118 minutos.

A despeito do hype preciso ser sincero: não consegui me conectar com esse Eu Me Importo (I Care a Lot) - uma das novidades da semana na Netflix. Sério, não rolou. Não deu mesmo. Aliás, eu tenho um sério problema com aqueles filmes que parecem querer misturar Guy Ritchie com Irmãos Coen de uma forma meio forçada: eu pego ranço já na origem. Aqui, a história rocambolesca - por mais que a premissa até seja divertida - não emplaca. A farsa soa apenas absurda. As situações se tornam apenas extravagantes. O senso de humor é difuso. E as interpretações de praticamente todo o elenco, de quebra, ainda são constrangedoras, beirando a canastrice. Em linhas gerais a obra é quase uma alucinação que se pretende um suspense de "máfia" com boas doses de humor negro. Só que o problema é que você não se assombra - como seria esperado em um thriller - e muito menos dá risada. Aliás, a obra gera um efeito ainda pior no cinéfilo, que é a indiferença: a gente apenas torce pra que tudo acabe logo.

Quem me acompanha aqui no Picanha sabe que eu dificilmente "pego pesado" nas resenhas: sou apenas um jornalista que gosta de cinema, metido a ter um site pra escrever sobre as obras que assisto. Aliás, não são poucos os textos em que, inclusive, tento fazer algum tipo de defesa àquelas películas não tão bem quistas. Mas o caso é que no filme do diretor J. Blakeson (do fraco A 5ª Onda) não há muita salvação. Pra vocês terem ideia, a trilha sonora é ruim. É invasiva, exagerada. Não parece se comunicar decentemente com a narrativa. Às vezes a impressão é a de estarmos assistindo algum tipo de peça publicitária de alguma empresa da área de tecnologia. Até detalhes como o figurino das personagens parecem pensados à moda "miguelão": sequer há uma lógica no estilo de roupas usado, por exemplo, pela protagonista vivida pela Rosamund Pike, que a meu ver não consegue transmitir o suposto poder que ela deveria emanar TAMBÉM pelas suas vestes.

Na trama, Pike é Marla Grayson, uma espécie de trambiqueira que trabalha como guardiã legal de idosos que não podem se cuidar sozinhos. Na realidade se trata de um golpe que ela aplica com o auxílio da namorada Fran (Elza Gonzalez) e da médica dra. Karen (Alicia Witt), que repassa ao Estado os casos desses pacientes - de preferência velhinhos com bastante dinheiro. Uma vez assumida a condição de cuidadora, a picareta organiza todo um sistema em que se apodera dos bens dos idosos, tudo com o aval jurídico, impedindo inclusive, em muitos casos, os próprios familiares de poderem ver as "vítimas". E quando a aposentada de cerca de 70 anos Jennifer Peterson (Dianne Wiest) surge na mira das trapaceiras, ela parece o alvo perfeito: sem marido, sem filhos e com um caso de demência em estágio inicial. Mas o problema é que Jennifer não é o que aparenta: com um passado nebuloso (e criminoso) a velhinha se tornará a antagonista perfeita nesse cabo de guerra entre as duas, com direito a ligações com a Máfia Russa e com crimes diversos como falsificação, roubo e evasão de divisas.

E eu vou ser sincero novamente com vocês: quando vi a trama e as primeiras resenhas (algumas positivas) para o filme, eu fiquei bastante empolgado. Mas a forçação em tudo me jogou lá pra baixo: a indecisão em ser um filme de comédia ou uma obra policialesca - ainda por cima com ZERO charme e carisma -, ajuda a colocar a experiência a perder. A gente não consegue gargalhar, por exemplo, em uma sequência em que Peter Dinklage surge seminu ouvindo música ambiental enquanto se exercita com argolas. Assim como não nos assombramos quando alguma das personagens é atacada por algum mafioso. Isso sem falar no auge do diálogo caricato, quando Pike vira pra sua antagonista para proferir o indefectível "eu nunca perco" em uma discussão. [ALERTA DE SPOILER]: E é ao adotar um desfecho meio O Pagamento Final (1993) - em que um sujeito aleatório em aparição episódica surge no final para assassinar a protagonista à moda Benny Blanco -, que o sentimento fica ainda menos redentor. Fica parecendo aquela coisa meio Deus Ex-Machina de quem não sabia direito como concluir a história. Pra mim foi a mais completa decepção. Em um filme que eu esperava muito mais.

Nota: 2,5

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Novidades no Now/VOD - Relatos do Mundo (News of the World)

De: Paul Greengrass. Com Tom Hanks, Helena Zengel, Elizabeth Marvel e Bill Camp. Drama / Aventura, EUA, 2020, 118 minutos.

Faroeste dirigido pelo Paul Greengrass, protagonizado pelo Tom Hanks e com uma história sobre uma amizade improvável em meio as planícies poeirentas do Texas: assim é Relatos do Mundo (News of the World), que é aquele típico filme de estrutura clássica, que deve agradar cinéfilos de todos os tipos. Aliás, eu gostei demais. Até mesmo porque há um componente de valorização do jornalismo na narrativa, que me pegou de jeito. Na trama, Hanks é o capitão Jefferson Kyle Kidd, um veterano de guerra que ganha a vida percorrendo pequenas cidades do Sul dos Estados Unidos, onde faz leituras de notícias dos principais periódicos do País. Os tempos são turbulentos naquele 1870 pós Guerra da Secessão e tantos os jornais quanto a alfabetização das pessoas não deixam de ser uma espécie de novidade. Em suas andanças ele se depara com uma jovem de nome Johanna (Helena Zengel) que está perdida, após seu comboio ter sido atacado. 

Criada por índios da tribo Kiowa após ter sido raptada anos antes, a menina de cerca de dez anos não fala nada de inglês, não tem memória de sua família biológica e tem um comportamento inicialmente hostil, sempre reativo. Os documentos que estão com ela dão conta da existência de familiares em um povoado cerca de 650 quilômetros distante de onde Kidd se encontra. Após um começo complicado envolvendo as burocracias do Estado para resolução do caso, o capitão resolve assumir a tarefa de conduzir Johanna até o local onde estão seus tios. No meio do caminho seguirá com o seu ofício, enquanto enfrentará obstáculos em sua jornada. Por obstáculos leia-se homens interessados em comprar ou raptar a jovem, o que possibilitará uma boa dose de cenas de ação, que certamente acertarão em cheio os corações dos saudosos fãs de westerns.


Ainda assim, em linhas gerais o clima é muito mais contemplativo do que movimentado. A quase total ausência de diálogos mais fluídos entre a dupla de protagonistas faz com que a evolução da amizade e a aproximação entre eles se dê de forma pouco apressada, com uma evolução tópica, quase episódica. Nesse sentido, a cada vez que Kidd salva a dupla de algum perigo iminente, Johanna vai se afeiçoando de seu bem-feitor - e confesso que fiquei bastante impressionado com a caracterização de Helena Zengel, ainda mais levando-se em conta o fato de que ela está em tela praticamente o tempo todo em tela com um ator da envergadura de Tom Hanks (que, aliás, empresta o seu habitual carisma para a entrega de mais um personagem executado com competência e elegância, o que deve lhe dar mais uma indicação ao Oscar para a coleção).

Abusando dos planos aéreos e de outros recursos técnicos como a fotografia amarelada e a trilha sonora bem pontuada, Greengrass transforma Relatos do Mundo em uma obra de aparência simples, mas de execução eficiente. Discutindo aqui e ali temas que refletem nos dias atuais - caso da polarização política, da luta por direitos e da importância da literatura (e das artes como um todo) como uma espécie de fuga da alienação -, o diretor ainda acrescenta um componente "místico" em uma das mais belas sequências da narrativa, quando um grupo de índios surge em meio a uma tempestade de areia, para subverter a lógica mocinho x bandido que tanto vimos nos clássicos muitas vezes maniqueístas de John Ford. Sim, porque na modernidade, é simplesmente impossível ignorar os avanços sociais alcançados, mesmo na hora de contar histórias que se passam 150 anos atrás. O que faz com que essa obra tão correta, tão bem executada, tão retilínea, ganhe uns pontinhos a mais.

Nota: 8,0

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Nomadland

De: Chloé Zhao. Com Frances McDormand, David Strathairn, Bob Wells e Linda May. Drama, EUA, 2020, 108 minutos.

Em uma das tantas belas sequências do maravilhoso Nomadland - um dos filmes favoritos a faturar a premiação máxima no Oscar, que ocorre em 25 de abril -, um grupo de pessoas tem uma conversa aleatória sobre assuntos amenos, durante um almoço. Em dado instante uma das participantes mostra à protagonista Fern (Frances McDormand) uma tatuagem em que se lê a frase "lar é só uma palavra ou é algo que você carrega com você?" Extraída da letra da canção Home Is a Question Mark, dos britânicos do The Smiths, a sentença diz muito sobre a opção narrativa da diretora Chloé Zhao. Afinal de contas, seria muito cômodo em um filme sobre nômades involuntários - muitas vezes idosos - a escolha pelo caminho da demonização do capitalismo ou do sistema que exaure o trabalhador até a sua velhice, colocando-o como um refém financeiro de bancos, de imobiliárias e de empresas de seguro. Sim, tudo isso está lá. Mas o que a diretora pretende, com seu belo líbelo sobre a liberdade de escolha - ainda que por linhas tornas -, é questionar esses padrões, essas convenções sociais que nos estabelecem como verdadeiros escravos até o ocaso de nossas existências.

Mesmo para nós brasileiros, não é novidade que a crise imobiliária de 2008 desmantelou o sistema financeiro norte-americano - e filmes como o ótimo A Grande Aposta (2015), de Adam McKay mostram esse evento com um didatismo quase irresistível. Aqui, o ponto de partida é a mesma crise, que fez com que uma indústria com quase 90 anos de tradição, fechasse suas instalações em uma pequena (e gelada) cidade do Estado de Nevada. Isso pra ficar num exemplo. Fern é remanescente dessa "quebra": desempregada, teve que sobreviver a base de bicos e de subempregos (como em um galpão da Amazon), que pudessem garantir o mínimo de renda enquanto os boletos chegavam. Depois de perder o marido, as dívidas com a hipoteca fizeram com que perdesse também a casa. Nada disso aparece no filme com clareza e acho que aí está parte da mágica da obra: vamos descobrindo os detalhes sobre a condição de vida dos nômades aos poucos, em pequenas doses, conforme a narrativa avança. E, curiosamente, sem "coitadismo".

Quando Fern está oficialmente deixando Nevada para trás - mesmo que temporariamente -, há uma melancolia em seu olhar (e admito que dificilmente poderia haver atriz melhor do que a Frances McDormand para encarnar essa mulher de gestos tão duros quanto sutis). Só que a descoberta de um mundo para além do esquema casa/trabalho/filhos/casa/trabalho coloca a película em outra perspectiva. Por que o caso é que muitas vezes a gente simplesmente esquece do valor das coisas simples. De uma boa amizade. De uma conversa aleatória e simpática com um desconhecido. Da nossa plena capacidade de resistir diante das adversidades. Da empatia e do apoio do ombro amigo - mesmo que seja de um estranho. Da natureza e de sua capacidade única de nos arrebatar. Seu verde, os pássaros, o chiado das águas. Quando a protagonista chega ao Arizona, num acampamento mantido por Bob Wells - uma espécie de campo de treinamento para nômades iniciantes -, a sua vida se transforma.

Aliás, há um discurso de Wells sobre sermos escravos do dólar, sobre sermos burros de carga que trabalham até o fim da vida, que demarca bem a posição adotada pelo filme. Naquele local reina o espírito comunitário. Todos se ajudam, se apoiam. E não demora para que nos emocionemos com o relato de uma senhora que afirma ter perdido o marido às vésperas de sua aposentadoria, após ele ter passado a vida juntando dinheiro para adquirir um veleiro que jamais viria a usar. É possível ser feliz com pouco? Ou sem dinheiro? Sem uma vida de luxos, de conforto ou de tecnologia? Sem uma casa? Num universo de incertezas? Por mais que a obra pareça questionar o tempo todo as convenções sociais, ela jamais deixa de reconhecer o valor das memórias afetivas que podem estar relacionadas, por exemplo, aos objetos que temos em nossos lares ou mesmo a importância de uma boa cama ou um chuveiro - ou mesmo uma van bem equipada. Mas o que talvez a gente perceba com o filme são as outras possibilidades. Há uma cena em que a idosa Swankie se maravilha com um por do sol alaranjado em meio ao cenário desértico. Ou que a própria Fern se maravilha em um cenário idílico. Quando paramos, em nossas rotinas, para prestar atenção nisso?

Construindo a obra - que é baseada no livro de Jessica Bruder - como uma experiência nostálgica, bucólica e engrandecedora, Zhao inunda o filme com instantes de grande beleza estética, o que é fortalecido pela fotografia granulada e empalidecida, completada por uma trilha sonora que jamais soa invasiva ou excessiva. Utilizando-se de um coletivo de pessoas que não são atores de verdade, a diretora amplia o caráter documental do projeto, transformando Fern em uma quase observadora participante de um filme que, por um milésimo, não é, de fato, um documentário. É daqueles filmes que, por mais que partam de uma situação desalentadora - no caso o descaso do sistema econômico e mesmo o abandono completo do Estado a sua população -, estamos o tempo todo com um sorriso no rosto, porque há aqui e ali um otimismo palpável, um espírito gregário, um idealismo comovente. Não é que não haja solidão. Não é que não haja frio ou tristeza. Ou saudade e memória. Mas há esperança em meio aos destroços. O que, em tempos tão sombrios como os que vivemos, certamente nos mantém otimistas.

Nota: 9,0

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Novidades no Now/VOD - Malcolm & Marie

De: Sam Levinson. Com Zendaya e John David Washington. Drama / Romance, EUA, 2020, 106 minutos.

Aqueles que tiverem saco pra uma DR de casal de mais de uma hora e meia têm mais chance de gostar desse Malcolm & Marie - filme que estreou na última sexta-feira (05/02) na Netflix. Por se passar em um único ambiente, a obra do diretor Sam Levinson (de Euphoria) depende quase que exclusivamente da força de seus diálogos. E das interpretações de seus protagonistas - no caso Zendaya e John David Washington. Sim, porque fazer filmes em tempos pandêmicos é recorrer a um recurso já muito utilizado no passado, seja em clássicos como Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? (1966), seja em projetos mais recentes, caso de Deus da Carnificina (2011). Hoje em dia todo o mundo está confinado. Então há uma identificação quase metalinguística com aquilo que acompanhamos: no caso a ruína de um relacionamento já instável e que parece precisar do menor motivo para desmoronar completamente. Em tempos de covid, o número de divórcios aumentou. Malcolm e Marie poderiam facilmente engrossar essa estatística.

Na trama, o casal que dá nome à obra está retornando de uma bem recebida noite de estreia de um filme dirigido por Malcolm. O que deveria ser uma madrugada de celebração, vai se transformando em um vertiginoso drama em que mágoas e ressentimentos vêm à tona conforme as horas avançam. Marie reclama que Malcolm sequer lembrou de seu nome durante os agradecimentos em seu discurso. Especialmente pelo fato de o seu elogiado projeto ter sido inspirado - ao menos em partes - na vida pregressa da companheira (uma ex-usuária de drogas, que luta diariamente para manter a sanidade mental). Ego? Falta de atenção? Toxicidade? Os argumentos de parte a parte nos levam a uma verdadeira montanha russa de emoções em que, a cada instante, somos jogados para um dos lados - e admito que o roteiro é bastante inteligente ao fazer com que não tomemos partido, necessariamente (por mais que as alegações de Marie quase sempre soem convincentes).

Com uma excelente trilha sonora, uma irresistível e bem adequada fotografia em preto e branco e um ótimo uso dos planos-sequência, a obra aproveita a infinita discussão do casal para tecer uma série de comentários sociais relevantes a respeito do racismo na indústria e sobre o vazio da crítica cinematográfica. Em um dos mais histriônicos momentos, Malcolm lê a crítica (favorável) de um jornal de Los Angeles, ao mesmo tempo em que ataca o texto pelo simples fato de a interpretação dada a sua obra não ser aquela pretendida por ele. Nas entrelinhas, a pergunta que fica é sobre se Barry Jenkings (de Moonlight) seria relevante como um William Wyler, se não centrasse tanto a sua câmera para o preconceito estrutural. As pessoas se importariam? Os filmes seriam elogiados? Seriam considerados autênticos? Por que um diretor negro não pode, simplesmente, fazer um filme sobre uma ex-viciada tentando superar seus problemas? E um diretor branco, pode dirigir negros sem ter "lugar de fala"?

Recheando a obra com estas divagações, Levinson acrescenta um pouco de profundidade a uma interminável discussão que poderia soar apenas ególatra e até irritante. Há, aqui e ali, um pouco de exagero e, confesso, acho que muitos dos espectadores teriam abandonado o barco de uma relação - especialmente após sequências devastadoramente agressivas, como a da banheira. Ninguém suporta tanto ataque. Especialmente se a união é frágil ou rasa. Nesse sentido alguns instantes soam apenas artificiais - e me irritou bastante as idas e vindas, intercalando momentos falsamente amorosos (ou de acolhimento) com outros da mais profunda afronta. Ainda assim, parafraseando a escritora brasileira Elvira Vigna, em tempos pandêmicos foi o "que deu para fazer em matéria de história de amor". Especialmente com duas pessoas confinadas. Discutindo a relação. Tentando superar diferenças. E se suportando. Por mais que na vida real a coisa seja diferente. Se é que é tão diferente assim.

Nota: 7,0

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Picanha.doc - As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead)

De: Kirsten Johnson. Documentário, EUA, 2020, 89 minutos.

Em cinema não há o que "não haja" e foi pensando nisso que a documentarista Kirsten Johnson criou essa fábula curiosa, excêntrica e singular que reflete sobre tempo, memória e morte de uma forma estranhamente divertida e invariavelmente melancólica. Imaginar a morte do próprio pai octogenário em situações aleatórias. Várias vezes. E repetidamente. Foi a ideia meio estapafúrdia que resultou em As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead), filme disponível na Netflix e fortíssimo candidato a uma das vagas em sua categoria no Oscar desse ano. Há um sentido por trás da ideia. Ou ao menos parece haver. Sofrendo do Mal de Alzheimer, o idoso vê a sua memória esvanecer. Fazer o filme foi a forma encontrada pela filha para expurgar os efeitos da doença, enquanto ele ainda está consciente. Afinal de contas a dolorosa doença degenerativa que deteriora as funções cerebrais fazendo com que haja perda de memória e de linguagem, também promove uma espécie de morte aos que padecem da enfermidade.

Assim, olhando de fora, a trama pode soar apenas esquisita. Mas a ousadia e a leveza com que tudo é conduzido faz com que nos apaixonemos a cada frame. E, por mais que as mortes em si sejam um atrativo a parte - há desde tombos em escadarias até um acidente fatal envolvendo a queda de um aparelho de ar condicionado -, o que faz a película valer a pena é o resgate da importância do cultivo dos laços familiares, especialmente a partir do reconhecimento de que, ao cabo, todos nós chegaremos um dia ao ocaso de nossa existência. Kirsten resolve fazer o filme quando seu pai é diagnosticado com Alzheimer, o que obrigará o idoso a ir morar com ela. Decisão que ela toma após ter também perdido a mãe para essa tão misteriosa doença - e as poucas imagens que a documentarista possui de sua genitora, rendem alguns dos mais emocionantes momentos.

E por mais que não sejam poucos os instantes em que lacrimejamos, o caráter nonsense do projeto faz com que as gargalhadas sejam tão presentes quanto o choro. A bizarra conversa com um dublê que interpretará Dick nas cenas mais perigosas, por exemplo, funciona como uma homenagem ao próprio cinema, ao passo em que transforma as manobras feitas pelo "idoso falso" em verdadeiros exercícios acrobáticos e de ampla elasticidade. Já a morte em que Dick tem seu pescoço acidentalmente perfurado por um operário, no meio da rua, beira o delírio tarantinesco com sangue (falso, claro!) jorrando para tudo quanto é lado pela jugular. Há uma preocupação constante com o bem-estar do ator principal. Um carinho, um afago, uma palavra de conforto. É como se Kirsten fizesse questão de lembra-lo o tempo todo, em meio as memórias esfaceladas, de que aquilo é apenas um filme. Aliás, alguém lembra ainda no começo que "coisas estranhas acontecem em filmes".

Mantendo a câmera sempre próxima do rosto de seus atores, a diretora acaba, assim, captando uma série de sentimentos e emoções que são transmitidos apenas com o olhar, com suspiros desencantados e pela consciência da finitude que se avizinha. Dick, que 30 anos atrás sobreviveu a um ataque cardíaco, jamais esconde que ama viver, por mais que autorize, de forma jocosa, sua filha a lhe aplicar uma eutanásia em caso de invalidez irreversível. São instantes que comovem mas ao mesmo tempo nos arrancam sorrisos pela naturalidade com que o tema da partida é tratado. Não há, assim, motivos apenas para tristezas, o que é comprovado pela deliciosa sequência em que Dick vai ao encontro de uma antiga namorada da infância. O que rende alguns dos melhores e mais divertidos diálogos. As Mortes de Dick Johnson é a prova viva de que qualquer ideia, se bem trabalhada, pode ser convertida em filme. E a leveza comovente do documentário é de lavar a alma. 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Novidades no Now/VOD - A Escavação (The Dig)

De: Simon Stone. Com Carey Mulligan, Ralph Fiennes, Lily James, Archie Barnes e Ben Chaplin. Drama, Reino Unido, 2021, 112 minutos.

Transformar uma história com ares grandiosos em algo mais íntimo talvez seja a chave para o "sucesso" desse A Escavação (The Dig) - uma das novidades da semana no catálogo da Netflix. É um filme que parte de um grande evento - no caso a descoberta do gigantesco parque arqueológico de Sutton Hoo, na Inglaterra, às vésperas do começo da Segunda Guerra Mundial -, para narrar a trajetória das pessoas envolvidas no episódio. Assim, por mais que o filme se ocupe do esplendor da revelação em si, o que rende ótimas tomadas aéreas e cenas variadas que mostram um barco intacto do Século VI e outros elementos e objetos que compõem a necrópole, interessa muito mais a forma com que escavadores, pesquisadores, museólogos e a família da dona das terras se relacionaram com esse fato. É nos vínculos (afetivos) entre os envolvidos que a obra do diretor Simon Stone ganha força, se tornando uma honesta experiência cinematográfica capaz de amarrar passado, presente e futuro com desenvoltura e elegância.

E eu confesso que não estava esperando muito. Mesmo. Por mais que os nomes de Carey Mulligan e Ralph Fiennes chamassem a atenção, pensava que a sessão pudesse soar meio modorrenta ou excessivamente contemplativa. Mas não. Na trama, Mulligan é a jovem viúva Edith Pretty que, interessada por arqueologia, contrata o experiente escavador Basil Brown (Fiennes) para explorar parte da área localizada em sua propriedade. O que inicia como um descompromissado e modesto trabalho vai se tornando algo maior, conforme as descobertas daquilo que realmente existe no terreno vão se descortinando. Em 1938 o nome da Hitler e os avanços da Alemanha Nazista já eram uma realidade: mas ali, naquele cenário bucólico, idílico, a batalha passa a ser outra quando entram em cena interessados ligados ao Governo, ao Museu Britânico, ao departamento de obras, entre outros. O que resultará em uma série de discussões sobre o destino do material encontrado no sítio arqueológico.

Filmada com grande apuro técnico, a obra faz lembrar um filme do Terrence Mallick sobre arqueologia. E confesso que a "homenagem", com a câmera fazendo idas e vindas em meio ao cenário pastoril, complementada pelas narrações em off, pelas plantações, pelo entardecer, pela chuva e pelo barquinho, com a fotografia da natureza verde-acinzentada sendo palpável - tudo elementos típicos do modus operandi do diretor de Uma Vida Oculta (2020) -, funcionam direitinho. É uma escolha acertada para uma obra que não requer pressa para evoluir, já que as próprias cenas da escavação em si, que sugerem certa delicadeza (observem o uso do pincel, de uma forma quase gentil), não exigem nenhum tipo de urgência. E mesmo os personagens acrescentados à narrativa, vão sendo colocados de forma tópica, orgânica, o que dá fluidez e organiza a obra para que nada pareça desconectado. É, ao cabo, o famoso filme que dá gosto de assistir.

Imprimindo, como já dito, força nos pequenos arcos dramáticos - um grave acidente que ocorre no sítio arqueológico, a severa doença de um dos protagonistas, a relação do filho de Edith com Brown (vivido pelo carismático Archie Barnes) -, a película aproveita o conceito de escavação para estabelecer uma metáfora com a importância da preservação da memória (e da história), cruzando-a com outros temas, como astronomia, fotografia, passagem do tempo e, claro, o absurdo da guerra. Discutindo, aqui e ali, temas como machismo, adultério e homossexualidade, a obra aposta na sutileza para fazer justiça ao nome de Basil Brown, que por muito tempo permaneceu como uma figura abnegada em sua área de conhecimento. Nesse sentido, o filme baseado no livro de John Preston, com toda a sua poesia subjacente, não deixa de ser uma bela homenagem.

Nota: 8,0