quinta-feira, 30 de março de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Grande Lebowski (The Big Lebowski)

De: Ethan e Joel Coen. Com Jeff Bridges, John Goodman, Steve Buscemi, Philip Seymour Hoffmann e Juliane Moore. Comédia, EUA / Reino Unido, 1998, 117 minutos.

Uma das minhas cenas favoritas de O Grande Lebowski (The Big Lebowski) acontece ainda no comecinho do filme, quando os capangas do homônimo do nosso querido "Dude" (Jeff Bridges) invadem sua casa querendo saber informações sobre a sua mulher e sobre as dívidas que ela teria contraído com gente grande, importante e perigosa. "E eu lá tenho cara de ser casado? Vocês não encontraram a tampa do vaso levantada quando chegaram aqui?" Sim, esse tipo de humor meio antiquado, eventualmente sexista, pode soar ultrapassado hoje em dia. Mas para o protagonista cai como uma luva. Espécie de hippie pacifista sem grandes pretensões, Dude só quer ficar de boas fumando um, bebendo e jogando boliche com seus parceiros Walter (John Goodman) e Theodore (Steve Buscemi). Só que agora ele está metido nesse rolo, meio sem entender direito o que tá acontecendo. E o pior: ainda sai com o seu tapete todo mijado pelos invasores.

Sim, parece meio estranho mas é justamente esse "ataque" ao tapete - parte de uma decoração tão bizarra quanto melancólica de sua casa -, que motiva Dude a ir atrás de Jeffrey Lebowski (David Huddleston) para cobrar dele alguma providência. Recebido com toda a pompa em sua mansão pelo empregado Brandt (Philip Seymour Hoffmann), o sujeito leva uma carraspana do milionário. E pra não ficar por baixo, leva um outro tapete pra casa, numa negociação sem nenhuma lógica. Só que a coisa não para por aí, já que a esposa de Jeffrey, a bela Bunny (Tara Reid), é sequestrada, com o ricaço vendo em Dude a oportunidade de resgatar sua amada. Dude é um vagabundo sem muitas perspectivas que aceita US$ 20 mil pela tarefa de entregar uma mala cheia de dinheiro aos criminosos. E, bom, esse é um filme dos Irmãos Coen, que recém saíam de sua bem sucedida empreitada com Fargo: Uma Comédia de Erros (1996). Então, é só aguardar (e se divertir) com as coisas saindo totalmente de controle.

Aliás, vamos combinar que essa fase anos 90 da dupla de realizadores é aquela que imprimiria seu DNA - com os filmes indo no limite entre o humor delirante (e cínico) e o suspense caótico, um tipo de combinação que seria uma das marcas registradas dos Coen. Apostando no contraste entre a existência simplória de Dude e de seus comparsas e a vida movimentada e violenta de seus algozes, a obra vai de lá para cá entre partidas de boliche ridículas e perseguições movimentadas. O que faz com que a comédia brote justamente do inusitado. Um bom exemplo desse expediente pode ser observado, por exemplo, no comportamento do trio de capangas alemães que aparecem na casa de Dude para interrogá-lo. Após dizerem não "acreditar em nada", o protagonista afirma se tratarem de niilistas, o que acrescenta um componente sofisticado e filosófico onde talvez pudesse haver apenas a mais pura bobajada.

E o que dizer de John Turturro como o temido e provocativo Jesus Quintana, que, com seu temperamento agressivo, promete ser o horror dos jogadores de boliche no campeonato local que está por vir? Por sinal, a cena em que ele aparece é tão inesperadamente engraçada, coreografada de uma forma tão inusitada, que quase funcionaria como uma esquete isolada. A propósito, a coleção de personagens distintos também seria uma das marcas da obra, merecendo destaque a filha de Lebowski, Maude (Juliane Moore), espécie de artista experimental/feminista, que entra na história para tornar tudo ainda mais complicado do que já estava. Não tendo sido tão bem recebido assim na época de seu lançamento, O Grande Lebowski possui, atualmente, status de cult, com os figurinos do protagonista e mesmo seu comportamento idiossincrático sendo replicados mundo afora (inclusive em encontros temáticos e anuais, que ocorrem nos Estados Unidos). Para uma obra de baixíssimo orçamento, não deixa de ser um feito e tanto.


terça-feira, 28 de março de 2023

Pitaquinho Musical - Lana Del Rey (Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd)

Vamos combinar que, a cada lançamento da Lana Del Rey os fãs jamais se decepcionam, porque ela simplesmente entrega tudo - e não é diferente com o recente Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd. E eu não sei se é exagero de minha parte, mas eu fico particularmente feliz em viver em uma época em que posso acompanhar uma artista tão completa. Lana é música, mas também é outras artes. É poesia, cinema, literatura, dança. Suas letras longas, interpretadas de forma lenta, por vezes sussurrada, sem pressa, parecem compor a trilha sonora de algum filme alternativo que será exibido no Festival de Sundance - e que foi baseado em uma obra cultuada da literatura beat. É romântico, mas elegíaco, sexy, mas vulnerável - às vezes até na mesma música, como fica claro no single A&W, que consegue colocar na mesma letra a inocência da infância e a sensualidade da vida adulta.


Com 16 músicas e quase 80 minutos de duração, o nono trabalho de Lana pode ser um exercício meio excessivo para o ouvinte ocasional. Mas, ao cabo, esse é um disco para quem gosta desse universo de romances estranhos, tortos e ocasionalmente enfumaçados, com a artista posando de femme fatale aqui, para ali adiante ressurgir melancólica e niilista do jeitinho que amamos. Seja refletindo sobre perdas familiares (Fingertips) ou sendo nostalgicamente apaixonada (Sweet) a cantora sempre soará autêntica e cheia de personalidade, sendo imprevisível mesmo quando a coisa toda pareça meio óbvia. Há uma fluidez típica em sua sonoridade, mas que não evita algum tipo de estranhamento - como no caso da já citada A&W. E há ainda as participações, casos de Father John Misty e Jack Antonoff, que convertem canções como Let The Light In e Margaret em verdadeiras preciosidades que ficam seguramente entre as melhores do ano. Não há muito o que falar: apenas ouvir.

Nota: 9,5


Novidades em Streaming - Compartimento Nº 6 (Hitti Nro 6)

De: Juho Kuosmanem. Com Seidi Haarla e Yuri Borisov. Drama / Romance, Finlândia / Estônia / Rússia / Alemanha, 2021, 107 minutos.

Já dizia o escritor Henry Miller que "o destino de alguém nunca é um lugar e sim uma nova forma de olhar as coisas". Sim, parece frase extraída de algum livro de autoajuda, mas o caso é que a sentença se encaixa de maneira bastante adequada à trama de Compartimento Nº 6 (Hitti Nro 6) - filme que estreou recentemente na Amazon e foi o representante da Finlândia na edição do Oscar do ano passado. Essa, ao cabo, é daquelas obras pequenas que evidenciam o poder transformador dos pequenos encontros, dos acasos meio inesperados e de como a vida não ocorre seguindo necessariamente uma lógica. Na trama, a protagonista Laura (Seidi Haarla) pega um trem em direção ao Círculo Polar Ártico, na intenção de estudar petróglifos - pinturas rupestres em rochas e paredes de cerca de 10 mil anos que registram fatos e mitos do passado.

É evidente que essa busca por elementos de um passado menos "evoluído" estabelecerão um diálogo direto com a forma como se comporta o russo Ljoha (Yuri Borisov), com quem Laura compartilhará o vagão durante os longos dias de sua jornada. Ljoha é o arquétipo do homem rude, mal educado, meio xucro. Quando Laura entra no compartimento - um cubículo de dois por dois - seu desconforto é palpável: entre uma mordida e outra em uma salsicha que ele come com as mãos e uma tragada no cigarro, ele questiona sem nenhuma cerimônia se "ela está indo vender o corpo" no destino (isso, usando um linguajar menos chulo do que o dele). Esse começo é desastroso. Laura tenta de todas as formas trocar de vagão, ficar em qualquer outro lugar - sendo desencorajada pela agente ferroviária (que também é meio grosseira). Na parada do trem em São Petesburgo ela quer retornar, desistir. Mas também não recebe a devida acolhida de sua namorada Irina (Dinara Drukarova).

Todo esse contexto forçará a protagonista a coabitar o mesmo espaço com uma pessoa que, muito provavelmente, ela não suportaria ficar uma hora ao lado. E, bom, não é demais lembrar que nem sempre a primeira impressão é a que vale: aos poucos, com mais calma, Laura "aprenderá" a conviver com Ljoha. Descobrirá que ele é um mineiro solitário que está viajando a trabalho. Parará com ele na casa de uma amiga - uma senhora com uma gata -, onde passará a noite em meio a risadas e conversas divertidas, descompromissadas. Investigará uma cidade gelada em busca de uma bebida alcoólica, sempre na companhia de Ljoha, sendo amistosamente bem recebida por um grupo de um bar. Na realidade esse filme me fez pensar em muitas daquelas frases clichê que a gente vê por aí, como "a gente nunca sabe a dor do outro" ou mesmo "a felicidade pode estar nas pequenas coisas". É uma obra que se não chega a ser um tratado aprofundado sobre o tema, deixa a sua marca. Emociona. Comove. Nos faz sorrir.

Tecnicamente, trata-se de uma obra que utiliza a sua ambientação de forma inteligente: há calor humano, em alguma medida, no interior do trem, como um contraponto aos cenários gélidos que se apresentam do lado de fora. A trilha sonora com Voyage Voyage do Desireless parece quase óbvia em sua melodia e letra sobre viagens e destinos inesperados, mas acaba combinando de maneira inescapável. Há um quê de Os Amantes do Círculo Polar (1998) na história toda, convertida em um road movie invernal nunca tão bonito esteticamente quanto uma obra estrelada por Julie Delpy e Ethan Hawke, mas inadvertidamente honesta, sincera, crua. As pessoas são complexas afinal. Jamais fechadinhas em caixas. E a vida é como esses trens que vão e vêm, com suas chegadas, partidas, histórias, curiosidades. Sonhos, desejos, medos e anseios. É sobre isso. E tá tudo bem.

Nota: 8,0


segunda-feira, 27 de março de 2023

Novidades em Streaming - Ela Disse (She Said)

De: Maria Schrader. Com Zoe Kazan, Carey Mulligan, Patricia Clarkson, Andre Braugher e Samantha Morton. Drama, EUA, 2022, 129 minutos.

"Por quê você tocou os meus seios ontem? Por que eu estou acostumado." Em uma das sequências mais repugnantes do drama Ela Disse (She Said) ficamos chocados com a naturalidade com que Harvey Weinstein assediava suas vítimas. Na gravação vazada pela modelo Ambra Gutierrez transparece toda a angústia de quem, nos jogos de poder dos bastidores de Hollywood, era a ponta mais fraca no que dizia respeito aos casos de violência sexual. Que em 05 de outubro de 2017 viriam à tona no que seria um dos maiores escândalos da história do cinema. E que encorajaria dezenas de mulheres a se unirem a movimentos como o #metoo e Time's Up. Denunciar abusadores, ao cabo, não é tarefa fácil. Ainda mais quando envolve gente importante, milionária, que é capaz de comprar o silêncio, sabotar carreiras de jovens artistas em ascensão, manipular a imprensa e até mesmo burlar o sistema jurídico por meio de acordos de confidencialidade nada justos para quem sofre com o trauma.

E é por isso que, ao trazer à tona esse assunto, é preciso valorizar a coragem não apenas de quem produz, dirige e atua num filme desses, mas também quem se debruçou sobre o tema para fazer jornalismo de verdade - e aqui merece aplausos a dupla de jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, do The New York Times. Confrontar poderosos dá trabalho. Gera angústia, medo, ansiedade. E exige bravura. Ainda mais quando o que está em jogo é o objetivo de interromper um ciclo quase infinito de violência. A investigação jornalística cairia como uma bomba no mundo do cinema. Dando voz às vítimas - que iam de assistentes à candidatas a atriz (inclusive famosas, como Gwyneth Palthrow e Ashley Judd que interpreta a si própria). De alguma maneira é uma obra dolorida mas inspiradora - assim como são outras experiências viscerais de jornalismo, que fazem emergir escândalos, como no caso de clássicos como Todos os Homens do Presidente (1976) ou filmes recentes como Spotlight: Segredos Revelados (2015).


Interpretando Kantor e Twohey, Zoe Kazan e Carey Mulligan se parecem tanto em seus objetivos, seus ideais que, em certa altura do filme, elas brincam com o fato de estarem vestindo um figurino praticamente idêntico - um plácido vestido branco na altura dos joelhos (que forma uma espécie de alegoria para a busca incessante de algum tipo de paz, em um contexto onde parece haver apenas machismo, misoginia, patriarcalismo e abusos, claro). Empreendendo uma verdadeira via crúcis, a dupla de jornalistas se empenha em reunir entrevistas, documentos, relatórios e outras evidências que dêem estofo para a reportagem que estão produzindo. Os relatos de assédio envolvendo Weinstein remetem ao começo dos anos 90. Muita gente parece estar envolvida - de advogados à representantes de comissões trabalhistas. Mas nem todo mundo parece disposto a revirar novamente esse vespeiro. O medo paralisa. Tudo indica que o assunto é grave. Sério. Mas há a dificuldade de juntar elementos que corroborem a tese.

Ao cabo, trata-se daquele tipo de filme  - brilhantemente dirigido por Maria Schrader, do ótimo O Homem Ideal (2021) - que vai crescendo conforme as verdades vão sendo descortinadas. No papel da dupla de editores Rebecca Corbett e Dean Baquet, a onipresente e talentosa Patricia Clarkson e o sempre carismático Andre Braugher se apresentam como figuras ao mesmo tempo afetuosas e empáticas, mas atentas às implicações geradas por uma matéria dessa envergadura. Os bastidores são tensos e respingam para as vidas pessoais das jornalistas, que não conseguem dar atenção direito para marido ou filhos (são muitas as cenas em que tarde da noite elas estão sentadas em frente a um notebook na sede do Times, com todas as luzes do entorno desligadas). O que sugere o esforço da dupla em concretizar a sua tarefa. Para quem é jornalista de (ou em) formação trata-se de um filme obrigatório. São muitas as sequências de salas fechadas, de diálogos potentes, de menos pirotecnia e mais texto. É uma obra que brilha nos pormenores - em seu figurino discreto, em sua sóbria fotografia estilo anos 90, em sua trilha sonora classuda, cortesia de Nicholas Britell. Detalhe importante: a esnobada no Oscar não apaga a importância e a relevância do projeto. E de como ele foi fundamental para conter um dos maiores predadores sexuais dessa indústria cheia de homens velhos, engravatados e poderosos que acham que podem fazer o que quiserem, apenas por terem dinheiro e influência.

Nota: 8,5


quarta-feira, 22 de março de 2023

Novidades em Streaming - Alcarràs

De: Carla Simón. Com Jordi Pujol Dolcet, Ainet Jounou, Josep Abad, Xenia Roset e Berta Pipó. Drama, Espanha, 2022, 120 minutos.

Agricultura familiar x agronegócio. Êxodo rural x sucessão. Tradição x modernidade. São muitos os antagonismos que surgem, sutilmente, no bucólico Alcarràs - vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2022 e enviado da Espanha para a mais recente edição do Oscar, que está disponível na plataforma Mubi. Dirigido por Carla Simón - do igualmente belo Verão 1993 (2017) - esta é daquelas obras em que até parece que não tem muita coisa acontecendo, mas que ganha força justamente por apresentar as complexidades da vida no campo (e das relações familiares dentro desta) de forma extremamente orgânica, naturalista. Aliás, poucas vezes assisti a um filme sobre as dificuldades (e burocracias) que envolvem a rotina de uma família de produtores - no caso, os Solé - que fosse tão realista. É época da safra de pêssego em uma pequena propriedade da Catalunha e todos, de avós a netos - além de peões - estão ocupados com a colheita.

Mas essa rotina idílica, ainda que exaustiva, não demorará a ser quebrada: arrendatários das terras que ocupam, os Solé não possuem nenhuma documentação que comprove a posse dos lotes que usam pra cultivar as frutas - que teriam sido concedidas pelo proprietário em uma espécie de troca de favores que remonta ao período da Guerra Civil Espanhola. Sem a formalização eles perdem qualquer possibilidade de barganha quando o filho do dono anuncia o desejo de retomar o terreno (após a morte do pai) para a instalação de uma usina de energia fotovoltaica (com dezenas de placas solares). De mãos atadas, o patriarca da família, Rogelio (o veterano Josep Abad), tenta todo o tipo de negociação possível - o que envolve cestas de produtos orgânicos oferecidos como presente e até mesmo a entrega de figos de uma figueira antiga que teria sido plantada pelos antepassados. Tudo em vão. Ao que tudo indica aquela será, de fato, a última safra. Restando esperar, em meio a série de pequenas lutas (e mesmo disputas) familiares ou não.



Ao cabo, o que vemos aqui é uma verdadeira colcha de retalhos, com a câmera indo e vindo de um personagem à outro dessa numerosa família. Não bastasse o enorme "pepino" que eles precisam resolver, no foro íntimo também haverá uma série de tensões, de discussões, de brigas que levarão a situação ao limite - muitas delas protagonizadas por Quimet (Jordi Pujol Dolcet), que encarna o agricultor esforçado, com sua onipresente camisa xadrez, de forma absurdamente realista. Aliás, se alguém me dissesse que ele é, de fato, fruticultor, eu acreditaria. Já a sua irmã Gloria (Berta Pipó) precisa lidar com o marido meio magalão Cisco (Carles Cabos), que mantém uma dúzia de pés de maconha escondidos em meio a um milharal, que é cultivado em parceria com Roger (Albert Bosch), o filho mais velho de Quimet. Há ainda outras duas filhas, a adolescente Mariona (Xenia Roset), além da pequena e graciosa Iris (Ainet Jounou), que movimentam a narrativa com as suas preocupações comezinhas, meio típicas da juventude (uma dança que deve ser realizada na festa local ou mesmo brincar com os primos).

Muita coisa acontece e Quimet ainda precisa lidar com uma série de protestos por melhores preços aos agricultores, num movimento que parte da Cooperativa da qual a família faz parte. Nesse sentido, o realismo não reside apenas nas cenas do pomar, da colheita, do manejo, da irrigação e da rotina, com tratores e outros equipamentos (a verossimilhança é incrível). É nos pormenores que a experiência ganha força, nas conversas que vão pelos cantos, nos acontecimentos que saem das frestas e na necessidade de que haja, ao cabo, um mínimo de senso de união para que todos possam sair bem dos percalços - e talvez seja por isso que a sequência de galinhagem a beira da piscina, durante um almoço de família, seja tão emocionante. Ao cabo a gente passa, aos poucos, a se importar com todos aqueles que vemos - trata-se afinal de um coletivo de pessoas complexas, de personalidades múltiplas, nunca óbvias. Meio que não se sabe o que esperar para além do sacrifício cotidiano, que precisa lidar com a tecnologia e com a modernidade que bate à porta (e que tenta lhes envolver, o que também fraturará a aliança familiar). Contemplativa, vibrante, ensolarada e autêntica, mas que utiliza seu microcosmo para uma análise mais ampla da sociedade, a obra funciona mais ou menos como os painéis solares que geram tanta discórdia - reservam energia, resgatando-a de onde nem parece haver. Um achado.

Nota: 8,5


segunda-feira, 20 de março de 2023

Novidades em Streaming - Babilônia (Babylon)

De: Damien Chazelle. Com Margot Robbie, Brad Pitt, Diego Calva, Jean Smart e Flea. Comédia / Drama, EUA, 2022, 188 minutos.

Caótico. Mágico. Intenso. Apaixonante. Bombástico. Poético. Dá pra usar uma série de adjetivos sem muito medo de errar quando o assunto é Babilônia (Babylon) - mais recente obra de Damien Chazelle (de La La Land: Cantando Estações, 2016). Levemente esnobado na cerimônia do Oscar desse ano, o filme oferece uma experiência hiperbólica, maximalista e metalinguística, tendo como pano de fundo a Hollywood dos anos 20 e o percurso feito por seus astros e estrelas em um cenário de transição do cinema mudo para o falado. E tudo em meio a eventos políticos diversos, como o entre guerras e a Quebra da Bolsa de Nova York em 1929 que, de alguma maneira, se refletiria nas preferências do público do período. Não é demais lembrar que o cinema mal engatinhava mas, numa espécie de alegoria de quem finalmente chega a "vida adulta", acompanharemos uma história de ascensão e de posterior queda, de alternância de poder, de preconceitos, de sonhos e de expectativas alcançadas (ou não).

No começo tudo parece ser diversão quando mergulhamos com todos os sentidos possíveis em uma festa luxuosa e luxuriosa em uma mansão de um grande executivo da indústria. É nesse local que seremos apresentados, na medida do possível, a três figuras que serão peça central na narrativa: Jack Conrad (Brad Pitt), talvez a maior estrela de Hollywood no auge do cinema mudo mas que, já com algum tempo de estrada, começará aos poucos a experimentar certo ostracismo, Nellie LaRoy (Margot Robbie), uma desinibida e confiante aspirante a atriz que deseja alcançar o estrelato e que entra de penetra no local e Manny Torres (Diego Calva), um garçom de celebridades que, no fundo, também almeja algum tipo de oportunidade na indústria. Entre idas e vindas e encontros e desencontros a obra evidenciará como sonhos podem se tornar realidade na mesma velocidade em que a máquina moedora que orbita o universo das celebridades sempre parecerá pronta para triturar a sua próxima "vítima".


Criticado por um certo excesso, o filme tem nesse aspecto, na realidade, um de seus grandes méritos. Por quê em matéria de bastidores, tudo parece ser abundante quando o assunto são as produções de cinema - seja no que diz respeito às vidas pomposas, passando por escândalos (ou mesmo apoio) da imprensa sensacionalista - aqui simbolizada pela jornalista de entretenimento Elionor St. John (Jean Smart) -, até chegar às festas regadas a muito álcool, sexo, drogas e outras loucuragens. Indo de lá para cá, de um cenário a outro, acompanharemos o trio central em suas jornadas pessoais, sendo sempre orbitados por outras figuras - diretores, executivos da indústria, produtores -, todos com seus interesses. Se cruzando aqui e ali, Joseph, Nellie e Manny funcionarão como fio condutor, tendo de lidar com carreiras pessoais que desmoronam, sentimento de fama passageira e, acima de tudo, histórias de vida extraordinárias que, de alguma maneira, também dependerão do aleatório, do inusitado, do estar no lugar certo, na hora certa, pra acontecer.

Repleto de citações a artistas da época - e mesmo o fictício trio central parece embasado em astros reais (a história mais conhecida seria a de Nellie, supostamente inspirada em Clara Bow) -, a obra ainda é um prodígio em seu equilíbrio entre diversão, drama e tensão. Se numa das primeiras sequências somos surpreendidos, por exemplo, com o instante em que um elefante evacua na cara de um motorista, mais adiante perceberemos como a infelicidade se apropriará da alma de Joseph, quando ele notar que, com o advento do cinema falado, seus dias de glória chegarão ao fim, na mesma velocidade com que o sol se põe (pra ficar numa metáfora que aparece no próprio filme). Tecnicamente soberba, a produção é um exagero comovente de cores, de música, de figurinos, de cenários grandiosos, que quase ultrapassam os limites entre ficção e realidade. Aqui, o que vale é o espetáculo, quase como uma rima perfeita do que é o cinema em si. É meio difícil resistir a tudo isso. Quase impossível não ficar hipnotizado durante as mais de três horas de duração do projeto. Ele pode até perder o foco aqui e ali, se desviar do caminho esperado em alguma medida. Soar meio longo espichado em um ou outro momento. Mas tudo faz parte desse cenário de enormidades. Talvez seja o grande injustiçado do Oscar. Ou vai ver fui eu que me envolvi demais.

Nota: 8,0


sexta-feira, 17 de março de 2023

Livro do Mês - Gosma Rosa (Fernanda Trías)

Devo confessar que, enquanto lia Gosma Rosa, da uruguaia Fernanda Trías, só conseguia pensar no quanto o livro havia sido certeiro como alegoria para um mundo que precisa lidar com o rescaldo de uma pandemia. Afinal, todos os elementos estavam lá - da névoa avermelhada que simboliza o perigo, dos infectados que precisam permanecer em quarentena, da sensação de isolamento mesmo em uma grande cidade. Do abandono de qualquer esperança. Da necessidade de se apegar a qualquer fiapo de afeto para que não percamos a nossa humanidade. Ou mesmo a empatia. A romancista, ao cabo, havia lido a tragédia da covid-19 como uma metáfora perfeita dos nossos tempos. Mas aí eu resolvi pesquisar um pouco mais e descobri que a obra havia sigo gestada antes do surto da doença. Aliás, quando a Organização Mundial da Saúde decretou oficialmente a pandemia, Trías já comemorava três meses de seu celebrado lançamento.

Ainda é incerto inferir que a vida imitando a arte (ou o contrário) tenha dado um gás a mais para que a publicação alcançasse um público maior. Mesmo assim ela tem tido mais visibilidade, com direito a premiações internacionais e até entrada em listas de prestígio como a de 10 Melhores Livros de 2020 do New York Times. Lançada por aqui pela editora Moinhos, a obra tem chamado a atenção como uma novela que fica no meio do caminho entre uma distopia clássica à moda de 1984 ou Fahrenheit 451 e um romance catástrofe no estilo dos de J.G. Ballard. "Com uma arquitetura sutil de camadas e mecanismos, e sempre intensa e evocativa, a publicação atravessa os gêneros (ciência, ficção, distopia, ecocatástrofe) e se instala em um território único, à borda do horror, mas sem se submergir desse abismo: um espaço desolador, mas não livre de esperança" resume o crítico literário Ramiro Sanchiz, na orelha do livro.



Em alguma medida é o cataclismo ambiental que conduzirá o mundo à ruína - e a forma como a autora descreve a mortandade de peixes como evento inaugural em uma praia do Sul dos Estados Unidos é tão cheia de detalhes, tão realista, quanto perturbadora. Não há muita explicação plausível pro episódio, que não seja a ação humana. No romance, é possível perceber que já é meio tarde e sobreviver nesse cenário é tentar coletar os cacos em meio a uma rotina que envolve toques de recolher governamentais (especialmente em áreas de risco) e a ausência de uma alimentação em qualidade e quantidade - a "gosma rosa", na realidade, é uma espécie de embutido gelatinoso e industrializado que é fornecido pelo Estado à população, para que esta não morra de fome. Fora o problema da infecção em si, que poderá entrar por qualquer frestinha, pelo vento, como um "redemoinho picante e ácido", que descamará a pele, gerando um mal estar generalizado como uma gripe muito forte. "Não esqueça sua máscara" lembrarão os avisos do Ministério da Saúde vindos pela TV. Ironia das ironias.

A protagonista (sem nome) se ocupa de cuidar do pequeno Mauro, um menino que parece ter algum tipo de síndrome que faz com que ele coma sem parar (inclusive objetos). Já o ex-marido Max, está em uma ala do hospital conhecida como os crônicos - daqueles sem muita solução, sem piora nem melhora, num estado meio permanente, como que aguardando algo que nunca chega. Orbitando o trio central há ainda Leonor, a irascível mãe da protagonista, uma senhora de difícil trato que torna tudo ainda mais complexo nesse dolorido universo de caos - os livros nunca lidos, as conversas incompletas ou nunca ditas. E como grande personagem há ainda a opressora cidade portuária ocupada por algas rosas e tóxicas que surgem junto ao vento vermelho, como se fossem um outro tipo de materialização da natureza à moda The Last of Us. Há um sentimento permanente de desalento, de opressão, quase uma claustrofobia permanente que evoca uma cidade (e um mundo) doente, individualista, cheio de privações - e que só poderá encontrar algum tipo de paz nas relações. "Para mim, o mais importante era explorar os laços afetivos, toda a gama cinzenta de relações humanas complexas e, ao mesmo tempo, construir um pano de fundo distópico”, resumiu a autora em entrevista ao Estado de Minas

quinta-feira, 16 de março de 2023

Novidades em Streaming - A Queda (Fall)

De: Scott Mann. Com Grace Caroline Currey, Virginia Gardner e Jeffrey Dean Morgan. Suspense, EUA / Reino Unido, 2022, 107 minutos.

Poucas coisas são tão satisfatórias para o fã de cinema do que ser surpreendido positivamente por algum filme que tu não dava absolutamente nada. Não sei se foi uma certa ressaca pós Oscar, mas resolvi dar play nesse A Queda (Fall), obra escapista sobre duas jovens que resolvem escalar uma torre de TV abandonada de cerca de 600 metros de altura, em um local meio isolado no deserto. Ok, o subgnênero dos suspenses com pessoas em situação limite tentando lutar de todas as formas por sua sobrevivência, não chega a ser exatamente uma novidade - as variedades são infinitas indo de clássicos modernos como Náufrago (2000), passando pelos filmes catástrofe estilo Independence Day (1996) até chegar às produções dignas de festivais, como O Regresso (2016). Pra quem gosta do estilo há fartura de opções e certamente o filme de Scott Mann não deve decepcionar - ou vai ver eu que me envolvi demais, provavelmente por ter um medo absurdo de altura.

Sim, enquanto eu mal e mal chego perto do parapeito do meu apartamento que fica no quarto andar, Becky (Grace Caroline Currey) e Hunter (Virginia Gardner) encarnam duas viciadas em adrenalina - aliás, o filme já abre com a dupla, acompanhada do namorado de Becky, Dan (Mason Gooding), dando aquela abusada da sorte ao escalar uma montanha altíssima e íngreme. Depois que um acidente estilo Risco Total (1993) - a imperdível aventura com Sylvester Stallone - acontece, Becky passa por um doloroso processo de luto, que dura quase um ano em meio ao alcoolismo e à letargia. Abandonando de vez o alpinismo ela tem dificuldade em se reerguer - condição que é reforçada pelo difícil relação que tem com o pai, James (Jeffrey Dean Morgan, o nosso "querido" e eterno Negan, de The Walking Dead). Isso até o momento em que Hunter reaparece com a desculpa perfeita: escalar a torre de TV vai ser uma forma de não apenas expiar a dor, mas também a oportunidade perfeita para largar as cinzas de Dan, lá das alturas.



Claro, a gente sabe que as coisas vão sair errado e filmes desse tipo funcionam mais ou menos como comédia românticas - o durante é importante e é ele que vai definir o quanto nos envolveremos com a narrativa. Óbvio também que filmes do gênero não costumam ter muita força nos diálogos, ou nas costuras que envolvem o roteiro - há, aqui e ali, as pontas soltas eventuais, tipo, Hunter não deixou nenhuma pista para absolutamente ninguém do que ela ia fazer? E, sendo alpinistas tão experientes, não valeria a pena dar uma verificada num nível mais profissional na estrutura que elas pretendiam escalar? Não são necessários nem meia dúzia de passos escada acima para que constatemos o quão enferrujada está a antena, com parafusos soltos, degraus que escapam e sensação total de abandono. É tipo as duas e o mundo - e Deus, e sabe-se lá mais o quê. Uma corda. Um drone. Algumas garrafas de água e o celular. Nem comida elas levam direito.

Maaas, dito tudo isso, o filme é tensão do início ao fim, especialmente pela composição de cenários e pelo aparato técnico, que confere um realismo excruciante à experiência. Não foram poucos os momentos em que virei a cara, enquanto alguma das duas estava pendurada apenas por uma corda, tentando de toda a forma retomar o rumo (e tudo piora quando a escada simplesmente desmancha sobre seus pés após elas chegarem ao topo). Ao cabo, trata-se de uma experiência sufocante, o que é ampliado pelo fato de Hunter ser uma espécie de Youtuber que, justamente, publica vídeos com desafios nas alturas, como forma de alimentar as redes (e entreter seus 60 mil seguidores). Com tomadas impressionantes, laterais, travellings giratórios, de cima para baixo, de lado, o filme também tem méritos pela excelente fotografia - que amplia a sensação de desalento - e até mesmo pela maquiagem (observe como a pele das meninas vai se "alterando" conforme os dias de contato intermitente com o sol ocorrem). Com direito a algumas improváveis surpresas a obra funciona como um espetáculo aterrorizante, que dá vida a um dos nossos maiores medos. Um dos meus pelo menos. Tá disponível na Amazon Prime e vale demais.

Nota: 8,0


Pitaquinho Musical - Rubel (As Palavras, Vol. 1 & 2)

Tim, Bernardes, BK, Bala Desejo, Milton Nascimento, Liniker, Luedji Luna, Xande de Pilares. Quem olha pra diversidade de estilos das participações especiais do terceiro álbum do fluminense Rubel, pode afirmar seu caráter heterogêneo mesmo antes de uma audição mais atenta de As Palavras, Vol. 1 & 2. Pensado como um projeto que busca ampliar os horizontes para além dos limites da MPB, o trabalho parece olhar com mais carinho para os versos, para as frases, para as letras, utilizando-as como âncora para uma análise mais profunda do Brasil atual. "Eu acho o meu trabalho, e de algumas vertentes da música brasileira, comportados demais, sabe?", destacou em entrevista para a Revista Rolling Stone, citando como exemplo o diálogo com o funk, estabelecido em PUT@RIA, canção de título autoexplicativo.



Aliás, os mais "puristas" poderão estranhar toda essa diversidade que pode ser conferida no disco - uma cacofonia de fragmentos, de vozes e de estilos que se mesclam e promovem um encontro entre o forró, o pagode, o hip hop, a eletrônica, spoken words, o funk e, claro, a MPB. Pode até soar confuso em uma primeira audição. Talvez até estranho, especialmente para quem se acostumou às ambientações mais populares (ainda que sofisticadas), que marcariam canções como Partilhar ou Quando Bate Aquela Saudade. Mas, ao cabo, Rubel mostra que não está estagnado. Que não está preso no mesmo lugar. Que pode misturar, ousar, utilizar referências literárias, apostar em releituras classudas (como de Assum Preto, de Luiz Gonzaga). Isso sem ignorar o lado político. E contemporâneo. Isso significa olhar para o futuro, mas sem renegar o passado. Buscando diálogo com o turbilhão de informações que rege os dias de hoje.

Nota: 8,0


terça-feira, 14 de março de 2023

Picanha em Série - The Last of Us (1ª Temporada)

De: Craig Mazin e Neil Druckmann. Com Bella Ramsey, Pedro Pascal, Gabriel Luna, Murray Batlett e Nick Offerman. Drama / Ficção científica, EUA, 2022, 522 minutos.

A história diz que nem Pedro Pascal nem Bella Ramsey, os astros que protagonizam The Last of Us, jogaram o jogo em que a série da HBO Max - que teve seu último episódio divulgado no mais recente domingo - é baseada. Então nesse caso, eu não tenho receio de afirmar que também não joguei o game, assistindo apenas alguns fragmentos de gameplayers meio espalhados (algo que também não tenho muita paciência). Nesse sentido estou apto a analisar o programa? Olha, se levar em conta que a maioria dos livros e quadrinhos em que os filmes são baseados eu não li, acho que sem problemas. Por que aqui eu não estou pra comparar um com o outro - e talvez isso até elimine algum tipo de vício inevitável de quem conferiu os dois. E, bom, desde a primeira dezena de temporadas de The Walking Dead que eu não acompanhava um drama pós-apocalíptico - que, aqui, envolve uma severa infecção fúngica que converte os seus hospedeiros em zumbis, resultando (surpresa!) no colapso da sociedade.

Ok, não há exatamente nada de novo nisso - e o próprio jogo de videogame já é um sucesso de dez anos de existência. Mas admito que em um cenário de humanidade ainda recolhendo os cacos de uma dolorosa pandemia, não deixa de ser interessante (re)elaborar as ideias em torno dessa temática. Como seria, afinal? A trama já abre de uma forma muito impactante com dois cientistas alertando, décadas atrás, sobre a possibilidade de bizarras mutações fúngicas que só seriam possíveis em um cenário de aquecimento global (e olha o aceno para a nossa atualidade aí). Corta para 2003 e o bicho já tá começa literalmente a pegar, com o surgimento das primeiros casos de Cordyceps e o caos tomando conta de uma cidadezinha do Texas (onde mais?). Em meio ao tumulto Joel (Pascal) terá de enfrentar a dor de ver o assassinato da própria filha Sarah (Nico Parker) em circunstâncias bastante traumáticas. Pesado é pouco. E tá só começando.


Corta para 2023 e Joel está em uma zona de quarentena em Boston, onde integra uma espécie de órgão de Governo (a Fedra). Após seu irmão Tommy (Gabriel Luna) tentar entrar em contato, o protagonista é enganado pelos Fireflies (Vagalumes), que se opõem ao Governo, numa negociação envolvendo uma bateria. A solução para que ele possa ter acesso a um caminhão que o leve até seu irmão? Conduzir a jovem Ellie (Ramsey), até um outro ponto do País na intenção de, quem sabe, produzir uma cura, já que a jovem parece ser imune a doença. É nesse ponto que a aventura da série em si começa. Com bem menos zumbis por metro quadrado do que em The Walking Dead e um foco muito maior nas relações e nas conexões humanas. Basta pensar, por exemplo, no "polêmico" (e comovente) terceiro episódio, onde um flashback exibirá a tocante relação entre Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett) e sua tentativa desesperada de sobrevivência - e mesmo de tentar levar uma vida normal - em meio ao caos. Emocionante, o episódio nos faz lembrar da importância da amizade, do amor, do afeto, de compartilhar momentos.

Claro que todos esses componentes não funcionariam tão bem se não fosse todo o aparato técnico que contribui para o clima de tensão proposto - com destaque para o desenho de produção que, a meu ver, é um dos pontos altos (e os cenários apocalípticos são tão bem elaborados, que a série me fez ter vontade de jogar o jogo, sendo que a última vez que peguei em um controle foi para zerar Resident Evil 4 do Play 2 - Candy Crush não conta). A fotografia que se alterna entre o escurecido - nas cenas noturnas -, e o levemente onírico, nos instantes de placidez (como no citado episódio 3) ou diurnos, também mexem com os sentimentos, o mesmo valendo para a trilha sonora. Mas, ao cabo, sobreviver aqui, é quase como uma alegoria bastante humana, afinal, quem não tem suas dores, traumas, arrependimentos? Coisas que poderia ter feito diferente e talvez não fez? Em um mundo devastado parece haver um maior espaço para esse tipo de reminiscência. Dessa necessidade de um certo senso comunitário. De se juntar por um bem maior - e o fortalecimento da amizade de Joel e Ellie estará no centro da narrativa como uma espécie de símbolo de tudo isso. Os próximos passos? A segunda temporada, já renovada, talvez ajude a determinar. Estamos no aguardo.

Nota: 8,5


segunda-feira, 13 de março de 2023

10 Considerações Sobre a Cerimônia do Oscar 2023

1) Vamos combinar que, em linhas gerais, foi um Oscar sem muitas surpresas. Por mais que houvesse algumas dúvidas na hora de decidir quem venceria nessa ou naquela categoria, na maioria dos casos deu a lógica. Ou muito perto disso. Por exemplo, em Atriz talvez muita gente acreditasse - eu, entre eles -, que Cate Blanchett poderia faturar sua terceira estatueta da história por Tár. Mas a real é que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo cresceu muito na reta final. O que se refletiu em muitas das principais premiações - como Ator Coadjuvante (Ke Huy Quan), Atriz Coadjuvante (Jamie Lee Curtis), além de Roteiro Original e Filme (pros Daniels) e, claro, Michelle Yeoh (como Atriz).

2) Aliás, o Dalenogare falou no canal dele que uma das grandes quebras de paradigmas da vitória de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo envolve a modalidade de campanha - algo que tem a ver com a janela de lançamento. Nos Estados Unidos, o filme dos Daniels estreou no final de março do ano passado. E foi crescendo durante a temporada, com o boca a boca, aumento do número de salas de exibição e uma trajetória que iniciou modesta e que foi se fortalecendo. E tudo com investimentos baixos. Algo parecido já havia ocorrido com Parasita. O que liga um sinal de alerta para as produtoras e meio que embaralha a lógica que estabelecia como fundamental, para efeitos de Oscar, lançar um filme próximo da temporada de premiações - em dezembro ou janeiro. Será mesmo? Nesse sentido, será que não vale a pena a visibilidade de um ano inteiro? 


3) Nesse sentido, ponto pra A24 também. A produtora foi a recordista de indicações nesse ano, com 18, sendo 11 somente pra Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (que, aliás, abocanhou sete estatuetas). A Baleia abocanhou outros dois troféus, para Brendan Fraser (Ator) e para Maquiagem e Penteados. A A24 tem pouco mais de dez anos de existência. E é objeto de um verdadeiro culto por parte dos fãs de cinema, sendo quase sempre sinônimo de qualidade. Se tiver A24 no projeto pode ir na fé.

4) Sobre o Brendan Fraser eu posso até ter torcido o nariz pra A Baleia - e até mesmo achado meio exagerada a atuação dele no filme. Mas não dá pra negar que esta é uma bela história de volta por cima. De astro de filmes de aventura à vítima de abusos sexuais tendo como resultado uma carreira praticamente sepultada, não dá pra negar que ver a sua vitória foi um dos mais comoventes instantes da premiação. Aliás, havia muitos estreantes entre os indicados nas categorias de interpretação e ver a alegria genuína destes na hora de receber o prêmio foi simplesmente sensacional. Ke Huy Quan, por exemplo, citou a mãe, recordando o fato de ter estado em um campo de refugiados no passado. E como cereja do bolo da vitória do ator vietnamita: o prêmio ser entregue por Harrison Ford, com quem ele contracenou em Indiana Jones, quando era um menino de apenas 12 anos.

5) Com a premiação polarizada entre Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e Nada de Novo no Front foram inúmeras as produções que saíram de mãos abanando. Aliás, filmes que chegaram com força à reta final da temporada, casos de Os Banshees de Inisherin, Os Fabelmans e até mesmo Elvis, que contou com uma campanha massiva da Warner. Todos zerados!


6) Ainda que o Oscar estivesse menos representativo no que diz respeito à pessoas negras ou a mulheres - nenhuma diretora foi lembrada -, há que se considerar a vitória de Entre Mulheres na categoria Roteiro Adaptado, como um excelente prêmio de consolação. Especialmente para uma obra que tinha um baixo número de nominações.

7) Sobre representatividade, há que se destacar o fato de Michelle Yeoh, de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, ter sido a primeira asiática da história a vencer um Oscar. Outra conquista valiosa foi a da figurinista Ruth Carter, que alcançou o bicampeonato com o trabalho na continuação de Pantera Negra, se tornando assim a primeira negra a alcançar o feito em quase cem anos de entregas do carecão dourado. E, por fim Naatu Naatu realmente superou Lady Gaga e Rihanna na busca por melhor canção. Um pontinho "lateralizado" na busca por diversidade.

8) Pra quem participou dos bolões houve uma série de barbadas, como nos casos das categorias Animação (Pinóquio de Guillermo Del Toro), Filme em Língua Estrangeira (Nada de Novo no Front), Documentário em Curta-Metragem (Como Cuidar de Um Bebê Elefante), Efeitos Visuais (Avatar) e Som (Top Gun: Maverick). Tanto que no Bolão improvisado que participei com o amigo Henrique, a derrota foi por apenas um pontinho. Em favor dele.


9) Tô até agora em dúvida sobre se o In Memorian cometeu uma gafe em deixar vários nomes conhecidos de fora ou se isso faz parte de um tipo de critério de seleção da Academia, na hora de exibir os nomes no telão. Por que, vamos combinar, por mais que Triângulo da Tristeza não tenha ganhado nemhuma estatueta, foi no mínimo esquisito ver a jovem Charlbi Dean, que morreu de forma trágica aos 32 anos e que é uma das protagonistas do filme de Ruben Östlund, ausente da homenagem póstuma. Sim, Lenny Kravitz tocando foi bacana e tal, mas achei essa ausência, especificamente, extremamente deselegante.

10) E só pra não deixar passar batido, em linhas gerais foi uma cerimônia ótima, dinâmica, bem conduzida. Gosto do estilo de Jimmy Kimmel nas piadas - aquela coisa de dar a cutucada mas não ser exagerado. Entre as melhores piadas, adorei ele brincando sobre o fato de James Cameron ter sido ignorado na categoria ator: "O que eles acham que ele é, uma mulher?" Ou sobre as chances de briga estarem consideravelmente maiores, já que eram cinco os irlandeses indicados: "Temos muita diversidade, já que temos astros de todos os cantos de Dublin", completou. Por mim, pode continuar na apresentação numa boa.

E que venha a próxima temporada!

sexta-feira, 10 de março de 2023

Apostas Oscar - 2023

Finalmente está chegando a premiação mais aguardada pelos fãs de cinema - o Oscar rola no próximo domingo (12/03), a partir das 20h com transmissão no canal TNT e também pela HBO Max. Como sempre acontece, a gente não conseguiu assistir a 100% das produções indicadas mas, de qualquer maneira, a gente arrisca aqui os nossos palpites, apostando em quem gostaríamos que ganhasse - e em quem achamos que efetivamente vence. Boa leitura e boa sorte pra todo mundo nos seus bolões!



FILME

Eu particularmente gosto demais quando a principal categoria da noite chega meio indefinida e desde que o sistema de votação mudou, com os integrantes da Academia selecionando ou seus preferidos em um sistema de escala - do décimo colocado ao primeiro, estabelecendo uma média geral - a impressão que dá é a de que tudo pode acontecer. Na corrida geral e levando-se em conta as premiações prévias, a impressão que se tem é a de que Os Banshees de Inisherin e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo estão numa disputa meio que "cabeça a cabeça", com uma leve vantagem para o segundo (que cresceu muito na reta final, amparado especialmente pela ideia de diversidade, que foi reforçada desde a conquista de Parasita). Os Fabelmans e Nada de Novo no Front correm por fora e o caso é que qualquer coisa que acontecer vai ser legal.

Quem gostaria que ganhasse: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (mas vou saltar do sofá se Nada de Novo no Front faturar)

Quem ganha: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo


DIRETOR

Aqui os Daniels, de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dão um pulinho na frente por terem vencido o prêmio do Sindicato dos Diretores, o que sempre pode ser um bom balizador. Só que também não podemos perder de vista que Martin McDonagh, de Os Banshees de Inisherin é uma espécie de queridinho dos votantes - ele lança poucos filmes, mas sempre alcança grande visibilidade. Ah, e correndo por fora ainda tem um tal de Steven Spielberg, não sei se vocês já ouviram falar.

Quem gostaria que ganhasse: Ruben Ostlund (seria muito diferente ver o diretor de Triângulo da Tristeza ter de improvisar um discurso meio que do nada!)

Quem ganha: Daniel Kwan e Daniel Scheinert, por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo


ATOR

O sindicato dos Atores premiou Brendan Fraser pelo seu esforço no horroroso A Baleia - e, em caso de bolão, essa seria a aposta mais segura. Só que o problema do astro que renasceu com essa obra é o filme mesmo, que é uma bomba (sempre tem aquele pequeno problema que se chama ESTRÉIA e aí as pessoas passam a perceber qual é a real em um projeto). Se na reta final isso vai ser suficiente para que Colin Farrel, por Os Banshees de Inisherin ou Austin Butler por Elvis (que ganhou o Bafta) alcancem uma virada, só a noite de domingo nos dirá. Talvez uma das categorias mais complicadas para o bolão.

Quem gostaria que ganhasse: Austin Butler, por Elvis

Quem ganha: Brendan Fraser, por A Baleia


ATRIZ

Tudo indicada a vitória de Cate Blanchett por Tár - ela enfileirou uma série de conquistas nas prévias, entre elas o Bafta. Mas Michelle Yeoh por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo meio que embaralhou de última hora a disputa, ao faturar o prêmio do sindicato. Cate já tem duas estatuetas no armário e Michelle nunca havia sido indicada antes, apesar de ter uma carreira longa e de prestígio. E aí? Vocês se arriscam a dizer qual das duas a Michelle Williams estará aplaudindo nas primeiras fileiras?

Quem gostaria que ganhasse: Cate Blanchett, por Tár

Quem ganha: Cate Blanchett, por Tár


ATOR COADJUVANTE

Aqui talvez esteja uma das maiores barbadas da noite pra quem vai participar dos bolões: Ke Huy Quan por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo faturou uma boa quantidade de premiações prévias, entre elas a do Sindicato - algo que nem a vitória de Barry Keoghan no Bafta pode alterar. Além de tudo, nessa categoria tem aquela história de volta por cima que a Academia ama, já que Quan foi um ator mirim de sucesso e, depois, meio que deu uma desaparecida (ao menos das grandes produções). Aqui pode ir na fé que não tem erro.

Quem gostaria que ganhasse: Ke Huy Quan, por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

Quem ganha: Ke Huy Quan


ATRIZ COADJUVANTE

A sequência de Pantera Negra foi um dos filmes que não consegui (ou não quis mesmo) assistir até o dia de hoje e, ao que tudo indica ela deve levar a premiação - até pelo seu prestígio, reforçado pelo prêmio da crítica. Só que tem um detalhe: Jamie Lee Curtis por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo levou o prêmio do sindicato. Já Kerry Condon, que adoraria ver ganhar, pegou o Bafta. O que gera um certo suspense na coisa toda, não podemos negar.

Quem gostaria que ganhasse: Kerry Condon, por Os Banshees de Inisherin

Quem ganha: Angela Bassett por Pantera Negra: Wakanda pra Sempre


ANIMAÇÃO

Pinóquio de Guillermo Del Toro venceu o Annie, um dos principais balizadores da categoria e tudo indica que vai ser ele mesmo, dado o espero e o carinho do diretor com o projeto - e vamos combinar que é, de fato, um filmaço. As vitórias no Bafta, no Critics Choice e em outras premiações também parecem ser grandes credenciais que praticamente dão como certa a vitória. A pulguinha atrás da orelha? Marcel the Shell With Shoes On vencer a categoria Filme Independente no mesmo Annie. Já Gato de Botas 2 tem o carinho do público. Ainda assim, acho que tudo isso é insuficiente.

Quem gostaria que ganhasse: Pinóquio de Guillermo Del Toro

Quem ganha: Pinóquio de Guillermo Del Toro



ANIMAÇÃO EM CURTA METRAGEM

Dos três que assisti o que mais me apaixonei foi O Menino, A Toupeira, a Raposa e o Cavalo que, além de ter uma forte campanha da Apple TV+ por trás - ela comprou os direitos, tem ainda o envolvimento de gente grande da Indústria. É um projeto afetuoso que, de quebra, ainda faturou o Annie de Produção Especial. Só que Ice Merchants, que ainda não vi e que tá sendo bem falado, conquistou o prêmio de Melhor Curta-Metragem, no mesmo Annie. Só que, detalhe: O Menino, A Toupeira, A Raposa e O Cavalo não estava indicado. Ao cabo, essa é sempre a famosa categoria "embola bolão".

Quem gostaria que ganhasse: O Menino, A Toupeira, a Raposa e o Cavalo

Quem ganha: Ice Merchants


ROTEIRO ORIGINAL

Ainda que o roteiro de Os Banshees seja absolutamente original, o fato é que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo faturou o prêmio do Sindicato. Ele está na frente por causa disso? Em partes, já que o Bafta foi pro primeiro. É tudo tão nebuloso aqui que até as vitórias de Tár, ou mesmo do excêntrico Triângulo da Tristeza não estão descartadas. Ah, e tem o Spielberg no meio. Sei lá também. Boa sorte pra vocês nas apostas.

Quem gostaria que ganhasse: Triângulo da Tristeza

Quem ganha: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo


ROTEIRO ADAPTADO

Aqui talvez esteja o prêmio "consolação" pra Entre Mulheres, que faturou o prêmio do Sindicato, além do Critics Choice. O Bafta foi pra Nada de Novo no Front. Em ambos os casos eu não li o material fonte, então é aquela coisa: aposta a distância, levando-se em conta o que as prévias indicam.

Quem gostaria que ganhasse: Nada de Novo no Front (até mesmo porque é um filmaço)

Quem ganha: Entre Mulheres


CURTA LIVE ACTION

Sinceramente essa sempre é uma das categorias mais complicadas, inclusive, de encontrar os indicados - e aí haja paciências para os "caminhos alternativos". O único que está disponível nas plataformas de streaming é o Le Pupille, que pode ser conferido no Disney+. Disney, mais forte campanha, mais obra simpática, com tema relevante. Parece uma combinação impossível de errar. Em uma categoria que normalmente decide bolões. Só que An Irish Goodbye levou o Bafta.

Quem gostaria que ganhasse: Le Pupille

Quem ganha: Le Pupille


DESENHO DE PRODUÇÃO

Babilônia venceu na categoria Desenho de Produção pra Filmes de Época no Sindicato, além de outros prêmios, como o Critics. Isso o coloca na frente na corrida - e vamos combinar que todo aquele caos que conferimos no filme só se torna crível por conta desse esforço de recriar a Hollywood dos anos 20 e 30 (e é o maior mérito da produção). Elvis, e o perfil sempre festivo, maximalista e espalhafatoso de Baz Luhrman correm por fora. Assim como Nada de Novo no Front, que nos faz sentir efetivamente num campo de batalha. É uma categoria boa, divertida. Que pode surpreender.

Quem gostaria que ganhasse: Babilônia

Quem ganha: Babilônia


FIGURINO

Elvis pula na frente por ter vencido premiações prévias como o Bafta e o prêmio do sindicato - e vamos combinar que o trabalho de Catherine Martin é soberbo. Só que não se pode descartar uma vitória de Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, já que Ruth Carter chega com a credencial de já ter vencido o prêmio pelo filme anterior. Por fim, ainda há a possibilidade de Babilônia ser prestigiado em mais categorias técnicas. Ou seja: tudo indefinido.

Quem gostaria que ganhasse: Elvis

Quem ganha: Pantera Negra: Wakanda Para Sempre




DOCUMENTÁRIO

Vou ter de admitir a vocês que não assisti ao All the Beauty and the Bloodshed, que parece ser o favorito, ainda que não tenha ido tão bem assim nas premiações prévias - o que pode sugerir certa perda de força na reta final. O Bafta e o prêmio do Sindicato foram para Navalny, que tem força especialmente em meio a campanha antiguerra (e anti Putin também). Dos que assisti ia gostar demais de ver o Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft levando o prêmio pra casa - e a vitória no sindicato dos diretores dá aquela pontinha de esperança.

Quem gostaria que ganhasse: Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft 

Quem ganha: Navalny


DOCUMENTÁRIO EM CURTA-METRAGEM

Mais uma categoria destruidora de bolões e aqui o meu palpite leva em conta o fator Netflix, que adquiriu os direitos de Como Cuidar de Um Bebê Elefante e O Efeito Martha Mitchell. A diferença em favor do primeiro: a obra é puro carisma. Quase irresistível.

Quem gostaria que ganhasse: Como Cuidar de Um Bebê Elefante

Quem ganha: Como Cuidar de Um Bebê Elefante


MELHOR SOM

Um filme de guerra, contra um filme de ação/aventura, contra um musical. Com direito a premiações prévias meio distribuídas (inclusive com distribuição de estatuetas no Motion Picture Sound Edition). Toda a minha admiração pra quem for capaz de cravar essa vitória!

Quem gostaria que ganhasse: Nada de Novo no Front

Quem ganha: Top Gun Maverick


FOTOGRAFIA

Nas premiações prévias tudo indica que a decisão ficará entre Elvis e Nada de Novo no Front - e vamos combinar que ambos os filmes dependem muito da fotografia pra estabelecer algum tipo de diálogo entre o que vemos em cena. Tár e Império da Luz - que envolve o fator Roger Deakins - correm por fora. Ou seja, sem certeza de nada.

Quem gostaria que ganhasse: Nada de Novo no Front

Quem ganha: Elvis


EDIÇÃO

Vamos combinar que um filme como Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ser um completo desastre, se não fosse a excelente edição - e os prêmios no Bafta e em outras premiações prévias consolidam um certo favoritismo. Os demais correm por fora com uma leve vantagem pra Top Gun: Maverick, que também executa um excelente trabalho de montagem - sendo inclusive parte importante da narrativa (basta lembrar dos lindos flashbacks bem costurados). No mais, outra coisa seria zebra.

Quem gostaria que ganhasse: Top Gun: Maverick (acho que seria uma forma de prestigiar a obra)

Quem ganha: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo 


EFEITOS VISUAIS

Avatar: O Caminho da Água faturou tudo quanto é prêmio nas prévias e é difícil a estatueta fugir das mãos da equipe de James Cameron. Talvez aqui esteja uma das quase raras barbadas da noite.

Quem gostaria que ganhasse: Avatar: O Caminho da Água

Quem ganha: Avatar: O Caminho da Água



MAQUIAGEM

Muito se falou sobre a maquiagem de A Baleia e, sim, dava um trabalhão danado converter o Brendan Fraser em um sujeito de quase 300 quilos. Mas não percamos de vista o fato de que Elvis também envolveu uma série de transformações corporais, além de ser mais completo e permanente durante todo o filme nesse quesito (inclusive com mais variações). Nas premiações prévias, como sindicato e Bafta, deu Elvis.

Quem gostaria que ganhasse: Elvis

Quem ganha: Elvis


FILME EM LÍNGUA ESTRANGEIRA

O Bafta foi pra Nada de Novo no Front. Já o Globo de Ouro foi pra Argentina 1985. Só que o fato de o primeiro ter recebido diversas outras indicações, inclusive de melhor filme, pesa muito. Deve ser o vencedor, em muita margem pra erro. Em tempo, essa é sempre uma categoria de filmes maravilhosos e ia achar simplesmente emocionante ver The Quiet Girl ou Close vencendo.

Quem gostaria que ganhasse: Close

Quem ganha: Nada de Novo no Front


CANÇÃO ORIGINAL

As prévias estão meio distribuídas e fica a dúvida: Naatu Naatu de RRR conseguirá surpreender e superar o prestígio de Rihanna e Lady Gaga, que concorrer por Pantera Negra: Wakanda Forever e Top Gun: Maverick respectivamente?

Quem gostaria que ganhasse: Naatu Naatu (RRR)

Quem ganha: Naatu Naatu (RRR)


TRILHA SONORA ORIGINAL

O fator John William pode pesar em favor dos Fabelmans na reta final, mas ainda considero que a trilha sonora de Nada de Novo no Front nos possibilite um verdadeiro mergulho nesse cenário de guerra proposto pelo filme. Mas não devemos descartar Babilônia, até porque o aparato técnico da obra é justamente o forte dela.

Quem gostaria que ganhasse: Nada de Novo no Front

Quem ganha: Nada de Novo no Front


Boa premiação pra todos nós, galera!

quinta-feira, 9 de março de 2023

Pitaquinho Musical - Kali Uchis (Red Moon In Venus)

Falar de paixão, de amor (e de tesão) quando o assunto é música pode até ser um lugar comum. Mas não para Kali Uchis. Afinal de contas, tem que ter muita autoestima e senso de preservação para se libertar de uma pessoa sem ficar ressentido ou amargo - como ela faz, por exemplo, no single I Wish You Roses (Mas se você e meu coração algum dia forem em caminhos diferentes / Vou me certificar te dar essas bênçãos, pois elas são tudo o que tenho), que integra seu envolvente terceiro trabalho, Red Moon In Venus. Aliás, a lua vermelha em Vênus é a deixa para um registro que mistura, em sua trajetória, desejo, desgosto, fé e honestidade. "Muitos astrólogos acreditam que a lua de sangue pode fazer as emoções girarem e foi isso que senti que esse trabalho representa", explicou a artista no material de divulgação.


O resultado é uma diversidade de composições poéticas que mesclam dores e alegrias, sempre banhadas com uma ambientação cósmica, quase etérea. Misturando R&B, afrobeat, disco music, soul, pop e psicodelia, Uchis é pura classe mesmo quando seus versos soam bastante realistas no que diz respeito aos relacionamentos. Ainda assim, não significa que o amor não está em alta. Ele vai e vem e ondula sempre amparado pela voz sussurrante da artista. Um bom exemplo disso pode ser encontrado na noventista Blue, com seu refrão pegajoso, quase como uma súplica (Por que qual o objetivo de todas as coisas do mundo se eu não tenho você?). Vulnerabilidade, confiança, desejo, querer escapar para algum lugar onde apenas se possa ficar "chapado" com quem você ama. Para a artista o amor é uma experiência completa. E só se vive ela mergulhando de cabeça.

Nota: 8,5


quarta-feira, 8 de março de 2023

Curta Um Curta - O Menino, A Toupeira, A Raposa e o Cavalo (The Boy, the Mole, the Fox and the Horse)

"Vocês me conhecem por completo, né? Sim. E vocês ainda me amam? Ainda mais."

Um dos projetos mais afetuosos, gentis e carismáticos lançados nesse ano. Assim pode ser resumido O Menino, A Toupeira, A Raposa e o Cavalo (The Boy, the Mole, the Fox and the Horse), animação em curta-metragem que é uma dos favoritas ao Oscar desse ano em sua categoria. Visualmente bela, a obra dirigida por Peter Baynton e que está disponível na Apple TV+, acompanha um menino que se vê perdido em um amplo descampado coberto por neve, no meio do nada. De forma meio inesperada ele faz amizade com uma amistosa toupeira apaixonada por bolo, que lhe auxiliará na tentativa de encontrar o caminho de casa. No trajeto, eles enfrentarão uma série de obstáculos, como frio, tempestades, sensação de isolamento e até "inimigos" que surgem em meio à natureza.


Absolutamente adocicada, otimista e cheia de lições sobre amadurecimento, a obra trem sido criticada por parte do público que tem considerado meio exageradas as diversas frases de autoajuda que surgem no decorrer da narrativa e que parecem escritas por algum tipo de coach. Só que não podemos perder de vista que, ao cabo, trata-se de uma obra infanto-juvenil que é baseada em um livro do escritor Charlie Mackesy. E, vamos combinar, a construção se dá de forma tão delicada e singela que é simplesmente impossível não se sentir tocado pela experiência. Em certa altura o menino chora e pede desculpas ao cair durante uma cavalgada com seu amigo cavalo. Ao que este retruca, reanimando-o: "As lágrimas caem por uma razão. Elas são a sua força e não a sua fraqueza". Sério, é impossível não se comover. Dos curtas de animação que vi, é meu favorito na luta pela estatueta dourada.


Cinema - Entre Mulheres (Women Talking)

De: Sarah Polley. Com Claire Foy, Jessie Buckley, Rooney Mara, Ben Whishaw e Frances McDormand. Drama, EUA, 2022, 104 minutos.

Existe uma sequência ao mesmo tempo sutil e consistente na hora de evidenciar o tipo de violência que sofrem as mulheres que protagonizam Entre Mulheres (Women Talking) - obra que está em cartaz nas salas do País e é uma das indicadas à categoria Melhor Filme no Oscar que ocorre no próximo domingo. Nela, Greta (Sheila McCarthy), uma das anciãs do grupo, retira a sua prótese dentária da boca, afirmando que tem dificuldade em se adaptar à ela, por esta ser "muito grande". Seria uma sequência despretensiosa, talvez, não fosse um flashback que a mostra aos prantos, com a boca ensanguentada. Aliás, um dos méritos de Sarah Polley (do ótimo Longe Dela, 2006) na construção da narrativa é o de não apostar necessariamente na violência gráfica exibida o tempo todo, para fazer valer o seu argumento. Nessa comunidade o histórico de agressões está em um segundo plano, mas ele é motivo central. Ele existe. E é preciso fugir. Ou ficar e lutar.

Confesso que não tinha lido muito sobre a obra até assisti-la e admito que fui pego de surpresa quando, lá pelo meio do filme aparece um carro de som alertando os moradores da localidade para que saiam de casa para responder ao censo. Detalhe: censo de 2010. Sim, por que quando a história começa - sob o lembrete de ser "um exercício de imaginação feminina" - temos a impressão de que iremos acompanhar algum tipo de narrativa que remonta ao passado. Ao século 18 ou 19, ou a alguma período em que as mulheres estavam em plena luta por direitos iguais. Mas não é demais lembrar que em 2010 - ou mesmo em 2023, nesse tempo em que coachs redpillados com masculinidade frágil, ganham a vida sendo misóginos - o debate sobre feminismo e equidade de gênero segue em alta. A trama de Entre Mulheres, aliás, toma por base o texto original de Miriam Toews que se baseia em eventos reais que envolveram uma comunidade cristã da Bolívia.


Aliás, a religião aqui é peça chave na condução da narrativa. No começo do filme, após a denúncia de mais um episódio de abuso sexual contra as mulheres de uma comunidade fechada, sem praticamente nenhum contato com o mundo exterior, as moradoras do local se reúnem em um celeiro para uma espécie de votação em que determinarão o que farão dali pra frente, quando o homem que foi preso provisoriamente, retornar ao convívio delas. Conforme os diálogos avançarem, perceberemos que perdoar será um exercício mais do que necessário para que seja garantida a misericórdia divina. O medo move todas ali. Mas é preciso construir uma ideia de forma coletiva. Em vinte e quatro horas. Antes que tudo volte a ser como era. Com os episódios de estupro, torturas, incesto, pedofilia e outros tipo de violência, voltando à "rotina".  Ao cabo, trata-se de uma obra sobre o poder do diálogo. E sobre a importância da representatividade. Como construir uma comunidade mais justa e igualitária onde às mulheres possam alcançar direitos básicos como poder ler? Escrever? Participar das decisões? Votar? Pensar de forma coletiva?

Com um elenco soberbo, o filme evolui em meio a diálogos ternos, impactantes e em alguns momentos até divertidos que evidenciam ainda a importância da sororidade e do respeito às diferenças como forma de alcançar um objetivo maior. Salomé (Claire Foy), por exemplo, é mais impetuosa e está de saco cheio das coisas como acontecem ali. Já Mariche (Jessie Buckley) tem dificuldade em estabelecer uma linha limite entre a submissão ao marido e a reparação desejada, tendo ainda duas filhas pra criar. Por outro lado Ona (Rooney Mara) sugere uma certa independência de quem se pretende mãe solo de um filho que sequer foi desejado. São muitas e diversificadas vozes que são completadas por exemplo com a traumatizada Mejal (Michelle McLeod) e pela não binária Melvin (August Winter). Todas colocando no papel os prós e contras de ficar e lutar ou simplesmente deixar o passado pra trás, subir nas carroças e buscar uma nova vida em outro local. "Sua história será diferente da nossa" relembra a narradora ainda no começo do filme. E reconfigurar papeis em tempos tão reacionários e conservadores como os nossos, deve ser um movimento permanente. E, assim esperamos, sem retrocessos.

Nota: 8,0


segunda-feira, 6 de março de 2023

Cinema - Tár

De: Todd Field. Com Cate Blanchett, Nina Hoss, Sophie Kauer, Némie Merlant e Mark Strong. Drama, EUA, 2022, 158 minutos. 

Em uma das tantas ótimas sequências de Tár, a maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett) discute longamente com Max (Zethphan D. Smith-Gneist), um dos seus alunos no conservatório Julliard sobre a possibilidade de reger uma obra de Johann Sebastian Bach. De forma meio envergonhada, tímida - o que é explicitado pela insistência de seu movimento de pernas (que sugere certo nervosismo) -, Max se enche de coragem para dizer à Lydia que não possui nenhum interesse em Bach. "Honestamente como uma pessoa de cor, não binária, eu diria que a vida misógina de Bach torna meio impossível para mim levar sua música a sério". Lydia na sequência debocha do assunto lembrando que, sim, Bach deixou 20 filhos para o mundo. Assim como um volume considerável de composições. O que a faz questionar em seguida o que as suas prodigiosas habilidades no leito conjugal teriam a ver com sua arte. Bach, que nasceu em 1685 e talvez seja um dos mais importantes compositores e regentes da história, é, aparentemente o mais novo cancelado. Vamos subir a hashtag #bachmisogino no Twitter!

Pode até soar como tema menor dentro de uma obra tão cheia de floreios, de magnitude e de volúpia como é o caso dessa, mas a atual cultura do cancelamento e as decorrentes campanhas de ódio que se instalam com facilidade galopante nas redes sociais com o intuito de destruir reputações, parece estar no cerne do filme de Todd Field - do ótimo (e distante) Pecados Íntimos (2006). O assunto, aqui e ali, retorna à narrativa, seja em meio a uma discussão prosaica sobre Schopenhauer, que teria jogado uma mulher da escada no passado (!) - "não está claro se essa falha pessoal seria relevante para o seu trabalho", recorda Andris (Julian Glover), espécie de mentor intelectual de Lydia -, ou seja em meio a um debate sobre Gustav Mahler que, com seu comportamento machista, talvez tivesse barrado a ascensão de sua própria esposa, Alma, à época. Exemplos de artistas com vidas pessoais no mínimo questionáveis e obras de arte irretocáveis não faltam. O que fica como legado? Pelo que eles serão lembrados no futuro? No frigir dos ovos, Lydia afirma a Max que a música feita por homens brancos e heterossexuais de antigamente também podem gerar sublimação. Elevação. Especialmente quando os novos condutores conferem à essas composições a sua personalidade.


Só que o problema para a própria Lydia Tár é que ela não está vivendo no Século 17. Ou não está tentando cavar um espaço em meio a uma sociedade tão abissalmente patriarcal como a de outrora. Nesse sentido, caberia a ela participar mais ativamente dessa discussão? Levantar essas bandeiras? Ou fazer como na conversa com Max? No decorrer de pouco mais de duas horas da obra, perceberemos não apenas a complexidade da experiência humana - com suas virtudes, falhas e múltiplas facetas. Quando começa, o filme leva mais de cinco minutos lendo a impecável biografia da maestrina, repleta de feitos notáveis e de grandes contribuições para as artes, para a cultura, para a educação, para o mundo. Com direito até mesmo a apresentações gratuitas durante a pandemia. Mais adiante, nos depararemos com seus desvios de caráter, suas fraquezas morais, que sugerirão uma personalidade egocêntrica que, talvez, esteja utilizando de sua fama para agir como uma verdadeira predadora sexual, que coopta jovens musicistas, descartando-as a seu bel prazer (ou conforme ela se sinta satisfeita de alguma forma). O que, em tempos de redes sociais fervorosas e campanhas permanentes de ódio pode significar facilmente a ruína.

Não, não estou passando pano, mas de alguma forma nunca fica claro se Lydia Tár agia como agia (não me cancelem por ter dúvida, por favor, também não sei se Bach era mesmo misógino). Há uma montagem em vídeo com o claro propósito de lhe prejudicar. Comportamentos ambíguos - especialmente como resposta a uma tragédia. Só que Field constroi esse ambiente de tensão crescente de forma sutil, inteligente, sem muita pressa. Ocupando os espaços aos poucos. Preenchendo a tela. Há, por exemplo, os barulhos discretos e crescentes que vão surgindo na casa da protagonista, que poderiam sugerir, de forma alegórica, uma espécie de rima para aquilo o burburinho de sua alma. Há túneis geometricamente infinitos, que parecem sem saída. Ambientes claustrofóbicos, fechados. Tudo acompanhado de uma elogiável tapeçaria linguística, uma grande eloquência poética, que faz com que realizemos um verdadeiro mergulho nos bastidores da arte (seus trejeitos, políticas, investidores, burocracias, jogos de interesse). E há ainda as interpretações, com destaque para Blanchett que, talvez, fature seu terceiro Oscar da carreira. Ao cabo, é uma experiência intensa, daquelas que reverbera e que sai para além dos limites do seu meio. E que talvez chegue às redes sociais. Lydia Tár foi cancelada! Vocês se lembram disso? Ou só da música dela? Pesquisem. E tirem suas conclusões. 

Nota: 9,0


sexta-feira, 3 de março de 2023

Picanha.doc - Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft (Fire of Love)

De: Sara Dosa. Com Katia Krafft, Maurice Krafft e Miranda July. Documentário, Canada / EUA, 2022, 93 minutos.

"Prefiro uma vida curta e intensa a uma longa e monótona". (Maurice Krafft)

Se tem uma coisa meio mágica nos documentários indicados ao Oscar - que, inevitavelmente, são os que atraem a atenção de um público maior -, é a possibilidade de tomar contato com histórias que nem sempre são tão conhecidas. Ao menos para nós, brasileiros. E é exatamente esse o caso de Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft (Fire of Love), que está disponível na plataforma Disney+. Na trama acompanhamos parte da fascinante história de Katia e Maurice, dois cientistas que se veriam unidos por uma paixão em comum: os vulcões. Com uma rica coleção de imagens de arquivo - que podem até não ter tanta qualidade, mas que são invariavelmente impressionantes -, o filme da diretora e roteirista Sara Dosa captura a rotina de ambos, indo no limite entre o perigoso e o poético, entre o ousado e o majestoso. Num tipo de investigação que, de alguma forma, também serve como uma espécie de metáfora para a natureza eventualmente curiosa do ser humano. 

O caráter praticamente indomável e imprevisível dos vulcões não significará jamais um limite para a dupla. Que se aproximará bastante desses "organismos" em busca de fragmentos de rochas, restos de cinzas, gases e de outros materiais para estudo. Como foram pioneiros na captura de imagens de vulcões em erupção, o resultado é uma verdadeira coleção de rios de lava, explosões pirotécnicas, crateras gigantescas e nuvens voluptuosas de fumaça que formam uma espécie de balé tão onírico quanto inesperado. Diante de um cenário em que a maioria das pessoas tentaria se afastar, eles se aproximam, com seus equipamentos, barracas e outros. O que os converteria em figuras bastante populares entre os anos 60 e 80, com diversas aparições em programas de TV, documentários produzidos e outros registros produzidos. Aliás, fundamental nos tempos atuais, o trabalho dos Krafft serviu para chamar a atenção dos riscos que envolvem as comunidades existentes em regiões com vulcões ativos.



Um bom exemplo disso envolve a conhecida Tragédia de Armero, na região de Tolima, na Colômbia, no ano de 1985. Na ocasião o vulcão Nevado del Ruiz entrou em erupção após quase 70 anos de dormência e, ainda que as autoridades locais tenham sido alertadas para os riscos, os fluxos piroclásticos resultariam na morte de mais de 23 mil pessoas, com os deslizamentos de lava, terra e outros detritos alcançando cerca de 50 quilômetros por hora. O segundo desastre vulcânico mais mortal da história, diga-se. E por mais traumático e dolorido que o episódio tenha sido, ele serviu para chamar a atenção do mundo para a importância do trabalho dos vulcanólogos, de geólogos e de químicos. O que ampliaria o investimento em sistemas de alerta e eventuais planos de evacuação, quando necessários. Com esse "dedinho" de ciência também tendo a participação do casal, com sua infinita coleção de registros.

Apostando em uma espécie de alegoria entre o calor o amor, entre o ardor e a paixão, o filme registra Katia e Maurice como espíritos independentes que, ainda que cheios de diferenças, se uniriam em volta de estudos de estruturas geológicas imponentes, como os vulcões Mauna Loa, Stromboli, Santa Helena e mesmo o Unzen, no Japão, que lhes tiraria a vida em 1991, após serem surpreendidos por uma inesperada mudança na direção do vento e do clima no dia de sua erupção. Com trilha sonora de Nicolas Godin (da dupla francesa Air) e narração da multiartista Miranda July, a obra foca no legado dos Krafft, de forma bem humorada e até tensa - como no instante em que Maurice resolve navegar sobre uma lagoa de ácido sulfúrico a bordo de um bote. Curioso, experimental e eventualmente filosófico o filme surpreende também por nunca soar enfadonho, excessivamente didático ou cansativo. Vae conferir. 


Curta Um Curta - Haulout

Quais os caminhos para abordar os impactos das mudanças climáticas no mundo de forma sutil, mas envolvente? Talvez o pequeno documentário em curta-metragem Haulout, que está disponível no Youtube, possa ser parte da resposta. Um dos indicados em sua categoria para a edição do Oscar desse ano, o filme dirigido por Maxim Arbugaev e Evgenia Arbugaeva nos joga para uma região remota do Ártico - uma espécie de praia gelada -, onde conhecemos um solitário biólogo marinho (seu nome também é Maxim), que monitora as atividades do local. De maneira inesperada ele verá a sua cabana envolta por milhares de morsas, que procuram algum refúgio diante do aumento da temperatura na região. Muitas delas morrerão.


Se já não bastasse o sentimento desalentador de isolamento, a ocorrência tornará tudo ainda mais claustrofóbico. Praticamente impedido de sair de sua habitação, Maxim passará a ser acompanhado em sua rotina pelos animais barulhentos que, devido a temperatura inadequada do oceano, não conseguem sair dali. É uma obra dura que mostra como a natureza cobra seu preço. E de como provavelmente estamos em uma corrida contra o relógio na tentativa de refrear os desastres ambientais. Quase não há diálogos. As sequências são gélidas, palpavelmente frias. Até mesmo doloridas em alguma medida. Um desavisado poderá achar tudo apenas estranho, ou inusitado. Mas o letreiro do final dará conta de esclarecer. Tão contundente quanto trágico.