Tentar imaginar como será o amanhã talvez seja um dos mais divertidos exercícios possibilitados pelas artes. O pintor Leonardo Da Vinci viveu entre o final do século 15 e o começo do 16 e, ainda assim, em meio a seu material de arquivo, foi possível encontrar desenhos de helicópteros, robôs e tanques de guerra, que só surgiriam muito tempo depois. Julio Verne e outros escritores - como Isaac Asimov, Aldous Huxley, George Orwell e Arthur Clarke - também arriscaram "testemunhar" o futuro por meio de suas obras que, em muitos casos, apresentavam distopias pessimistas no que dizia respeito a relação entre homem e tecnologia. O cinema também já assombrou o mundo e seus espectadores com uma infinidade de grandes filmes repletos de reflexões existencialistas, de análises sobre a condição humana na pós-modernidade e a respeito dos limites possíveis para a inteligência artificial. De 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), passando por Blade Runner (1982), até chegar no recente Interestelar (2014), não foram poucos os autores que roteirizaram obras de ficção científica que estabeleciam diálogo direto com aquilo que ainda estava por vir.
Mas e se o futuro já for agora? Se ele já estiver acontecendo bem debaixo do nosso nariz e talvez não tenhamos ainda percebido? É possível dizer que é esta a impressão que temos ao assistir ao magnífico Ela (Her), de Spike Jonze. A trama nos apresenta a Theodore (Phoenix), um sujeito solitário, de modos discretos, que passa os seus dias entre o seu apartamento de mobília modesta e o trabalho, em que executa a tarefa de escritor de cartas (de amor, de congratulações, de pedidos de desculpas) para terceiros. Com dificuldade para superar o término do relacionamento com a divertida Catherine (Mara), Theodore utiliza salas de bate-papo - como aquelas antigas, do Uol - para tentar algum tipo de interação com novas pessoas, com a intenção de buscar um novo relacionamento, ou mesmo algum tipo de "válvula de escape" para as noites mais isoladas.
A situação muda de figura quando ele compra e instala em seu computador um novo sistema operacional de inteligência artificial. É a partir dele que "nasce" Samantha (Johansson), que não apenas lhe ajudará nas tarefas do dia a dia - lembrando de reuniões, ou mesmo revisando as cartas escritas -, como também lhe servirá de "ombro" amigo, ouvindo confidências, dando conselhos e fazendo o sujeito sorrir de qualquer bobagem dita com sua voz rouca, simpática e onipresente. Evidentemente, não demora para que Theodore passe a sentir algo a mais pelo programa de computador que evolui a todo instante e, como uma espécie de mulher perfeita (e invisível), lhe acompanha a todos os lugares ou mesmo em seu apartamento, dando opiniões, interagindo e... transando. Aliás, será essa última e, aparentemente, improvável situação, que elevará o relacionamento a um outro patamar, com o protagonista mais seguro a respeito de suas escolhas, se sentindo mais vivo e feliz.
E se você ainda não viu o filme e está achando tudo isso muito estranho, é preciso que se diga que é justamente o naturalismo com que Jonze trata o relacionamento entre homens e máquinas - afinal de contas, ele já não existe em um modo bastante avançado? - um dos pontos altos da película. Algo reforçado, por exemplo, pelo piquenique de "casais" realizado a certa altura da obra. Da mesma forma o diretor, que também escreve o roteiro, resiste a (óbvia) tentação de transformar Theodore em um sujeito esquisitão, introspectivo ou isolado do mundo que, vivendo a margem da sociedade, encontraria satisfação em sua vida apenas por meio de relacionamentos abstratos ou não palpáveis. Ao contrário, o sujeito tem amigos - caso da designer de jogos Amy (Adams) ou o colega de trabalho Paul (Pratt) - ainda que as suas interações não sejam necessariamente expansivas.
Adotando um desenho de produção (e um figurino) que faz um contraponto perfeito entre a metrópole ultratecnológica e digital com as roupas e objetos retrô - afinal, nunca sabemos quando será a vez das calças cintura alta masculinas retornarem - Jonze ainda estabelece diálogo, em Ela, com uma série de questões caras a modernidade. Assim, no que diz respeito a forma como nos relacionamos com a tecnologia, o caso é que, a sensação de solidão, o individualismo e o desencanto completo na pós-modernidade, parecem ser questões sempre presentes no filme e que nos fazem pensar nele por muitas horas depois. E quais os limites para um relacionamento? Não possuir um corpo para tocar, abraçar, beijar, nos impede de amar? É possível definir isso? É por essas e outras questões que essa pequena obra-prima moderna - que não faria feio como uma versão estendida de um episódio de Black Mirror - é um verdadeiro Tesouro Cinéfilo. A obra não acaba quando termina - aliás, tudo fica em nossa mente. Inclusive a trilha sonora exuberante, robusta e melancólica desenhada e executada pela Karen O, do Yeah Yeah Yeahs. Fundamental.