terça-feira, 30 de maio de 2023

Cine Baú - O Desprezo (Le Mépris)

De: Jean-Luc Godard. Com Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Giorgia Moll e Fritz Lang. Drama, França, 1963, 103 minutos.

Qual o ponto em que a coisa desanda em um relacionamento? Em que instante a admiração devotada pelo parceiro pode se converter apenas em repulsa? Na trama de O Desprezo (Le Mépris) - clássico de Jean-Luc Godard, disponível na Mubi -, um combo de excesso de ambição financeira aliado a uma certa indiferença, parece ser o que entra na conta para que o casal central, vivido por Brigitte Bardot e Michel Piccoli, entre em crise. O que deixa o amor (ou a consideração pelo outro) em segundo plano. Paul Javal (Piccoli), um roteirista de cinema, está deslumbrado com seu novo trabalho: reescrever uma adaptação para a telona da Odisseia, de Homero, que está sendo filmada por Fritz Lang (que interpreta a si próprio). Quem assina o polpudo cheque da negociação é o histriônico e galanteador produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance). Ele quer que Paul torne a obra mais palatável para o público americano. Menos "europeia" talvez - o excesso de desinibição filosófica parece incomodar Prokosch. Os corpos nus, a poética delirante.

Como bom americano, Prokosch está familiarizado com o conservadorismo de seu público. As famílias de bem, ele sabe, não conseguem lidar com essa liberdade toda. Para Paul é a oportunidade dos sonhos, pelo visto. A ponto de ele sequer se importar quando Prokosch oferece uma carona cheia de segundas intenções a sua bela esposa Camille (Bardot). Mais do que isso, o roteirista faz questão de enviar a jovem no carro do, até então, desconhecido. Demorando a chegar a seu destino - a ideia é que todos tomem juntos um drink para selar o contrato na suntuosa casa do produtor. Ainda que nunca pareça ficar evidente a real intenção de Paul, seu comportamento estranho faz o público acreditar que ele está, de alguma maneira, vendendo seu passe. A moeda de troca? A própria mulher. Que, claramente, é apaixonada pelo roteirista. Quer dizer, ela era apaixonada. Muito - como a longa sequência inicial comprova. Sentimento que se esvaziará de forma inexorável e de forma muito rápida com o passar do tempo.



É uma história de amor? Sim, é uma história de amor. Mas à moda Godard, claro, com todas as trucagens técnicas, que são típicas do diretor - e que vão desde a montagem enigmática, passando pelo uso de cores surpreendente e pelos longos e filosóficos diálogos, até chegar à metalinguagem (com o filme dentro do filme sendo mera desculpa para uma série de discussões que envolvem relacionamentos e suas escolhas, frustrações e sonhos despedaçados). Para Camille pouco interessa o universo exibicionista do cinema. "Delírios de Loucura, de Nicholas Ray, está passando no cinema, gostaria de assisti-lo?" pergunta Paul a uma desinteressada Camille. "Não", ela responde. "Fui eu que escrevi o roteiro", retruca o sujeito. "Eu sei", diz ela, mal mexendo o rosto. De alguma maneira o comportamento submisso mas corajoso da jovem é o de alguém que espera que as decisões importantes em uma relação se encontrem com o que ela deseja. O que faz com que ela se sinta apenas desapontada a cada novo acontecimento. 

As interpretações são cheias de sutilezas, a ponto de a gente quase nem perceber o direcionamento que a trama, levemente vagarosa, está tomando. Em certa altura, Camille pretende surpreender o marido usando uma nova peruca e um vestido luxuoso. Mas ele está apenas interessado na viagem à Capri, a convite do produtor - e que poderá fortalecer a parceria de negócios. Há um apartamento novo, enorme, a ser pago. O trabalho como roteirista deve dar conta. A narrativa avança em meio a longos devaneios em que Camille não consegue explicar exatamente o que ocorreu. Ela apenas despreza o seu marido. Não o ama mais. De um dia para o outro a coisa mudou. Ambos se distanciaram e tudo esfriou. A mera sugestão de sexo é motivo de deboche. As trocas se toram burocráticas, pouco amistosas - a ponto de chegar às agressões mútuas. Físicas e psicológicas. Tudo acompanhado da comovente e quase repetitiva trilha sonora. Que inunda as cenas. Preenche cada canto. Em resumo e o que fica: "quem ama cuida", já diz o chavão. Que, aqui, num filme cabeçudo do Godard, se aplica direitinho.


segunda-feira, 29 de maio de 2023

Novidades em Streaming - Unclenching the Fists

De: Kira Kovalenko. Com Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Arsen Khetagurov e Khetag Bibilov. Drama, Rússia q França, 2021, 97 minutos.

Em uma das primeiras cenas de Unclenching th Fists, que pode ser conferido na Mubi, Zaur (Alik Karaev), o severo pai da jovem Ada (Milana Aguzarova), pergunta a esta se ela está usando perfume. Ela mal havia retornado para casa após um dia de trabalho e responde timidamente que ganhou um frasco de uma colega de trabalho. "Pois coloque fora", solicita o homem, que é obedecido sem muita resistência por Ada (que despeja o líquido fazendo com que seus dedos toquem de leve nele). Nesse sentido não são necessários nem quinze minutos do filme dirigido por Kira Kovalenko - e que venceu a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2021 -, para que saibamos que a protagonista precisa lidar com um pai dominador, que mantém a própria filha em uma espécie de prisão doméstica. Sim, literalmente uma prisão, já que Zaur não apenas mantém a casa fechada, como esconde a chave dos filhos. Fugir poderia ser uma alternativa. Mas para onde ir, estando em uma região isolada no norte da Rússia?

A solução talvez possa vir a partir de uma inesperada visita do irmão mais velho Akim (Soslan Khugaev), que parece ter inaugurado na família o ideal de viver de forma independente (ele fugiu de casa e hoje trabalha em uma cidade vizinha). É claro que para as mulheres sempre será mais difícil e Zaur fará jogo duro diante da presença do primogênito, que dá indicativos de querer levar Ada dali, Figura complexa, Akim é aquele jovem de feições rudes, movimentos sutis e poucas palavras que nos deixam com um sentimento de incerteza: em uma sociedade tão patriarcal como aquela da erma Ossetia do Norte é possível confiar em um homem? Mesmo que seja um irmão? Ainda mais que Akim e Ada possuem ainda um outro irmão, o infantilizado Dakko (Khetag Bibilov), um sujeito que se divide entre a carência opressiva e a hipersexualidade - especialmente quando o assunto é a irmã (quase como um Roman Roy de Succession, mas sem o terno, o dinheiro e a influência).



Ada, é preciso que se diga, foi vítima de um atentado a bomba no passado - o que parece lhe comprometer o funcionamento dos rins (e talvez de outros órgãos). E esse é um componente histórico interessante da trama, já que esse episódio ocorreu realmente em 2004, na Chechênia. E isso amplia inadvertidamente o senso de superproteção do pai, que não lhe permite nenhum tipo e privacidade. Namorar? Ficar na rua até mais tarde? Sair para festas? Nada disso. Não é à toa que quando a protagonista flerta, tudo acontece de forma meio desajeitada com o seu colega de trabalho, o insistente Tamik (Arsen Khetagurov), aquele sujeitinho meio ordinário que concede algumas migalhas de afeto a Ada que, com a autoestima em frangalhos, acredita que aquele jovem imaturo vai poder ser mais responsável afetivamente (só porque fez com ela um sexo meia bomba típico de dois principiantes). Engano total. Nessa região tão afastada, tão distante, parece haver também um tipo de isolamento da alma. Ada não tem a quem recorrer. 

E seus traumas físicos e mentais também são ampliados pelo fato de que o pai, como não poderia deixar de ser, lhe impede de ir ao hospital (e talvez uma cirurgia lhe fizesse se libertar das fraldas que ela precisa usar por causa da incontinência urinária decorrente do atentado). É tudo muito dolorido mas, inacreditavelmente, nada maniqueísta. Sim, é um ambiente constrangedoramente machista e não dá pra negar isso. Mas, em alguma medida, o filme também nos faz lembrar que as pessoas são complexas, ainda que quase que o tempo todo Ada tenha que estar se desviando de algum comportamento mais abjeto dos homens a seu redor. Do irmão, do pai, do colega que flerta, dos outros idosos ou familiares. Ao cabo trata-se de uma experiência que nos faz refletir sobre temas como o papel da mulher na sociedade, as consequências da guerra e o valor da liberdade. A paleta de cores externa pode até ser sóbria, mas contrasta com os ambientes interiores escurecidos e opressivos. A trilha sonora tem tintas melancólicas. A ambientação é árida, envolta em concreto decadente. É um combo que contribui para um senso de claustrofobia quase onipresente. Que faz com que Ada se sinta, literalmente, presa pelos braços do pai. Como atesta uma das melhores cenas.

Nota: 8,0


quinta-feira, 25 de maio de 2023

Picanha.doc - Still: A História de Michael J. Fox (Still: A Michael J. Fox Movie)

De: Davis Guggenheim. Com Michael J. Fox e Tracy Pollan. Documentário, EUA, 2023, 95 minutos.

Existe uma cena em Still: A História de Michael J. Fox (Still: A Michael J. Fox Movie) que dá uma dimensão da forma como o astro da trilogia De Volta Para o Futuro encara, atualmente, o fato de conviver com a Doença de Parkinson. Nela, é resgatada - de forma muito breve - a participação do ator na série Curb Your Enthusiasm, em 2011. É um instante pequeno em que Fox interpreta a si próprio, entregando uma lata de refrigerante a Larry David (na trama do episódio eles são vizinhos). Quando este tenta abri-la ela simplesmente explode na sua cara - e a sua reação indignada é absolutamente hilária. Talvez nem fosse necessária uma explicação sobre como os movimentos espasmódicos incontroláveis, que são típicos de quem sofre da doença, devem ter agitado a lata. Mas de forma debochada, Fox olha pra David com aquele olhar tipicamente foxiano e diz, de forma enternecida: "Parkinson".

É claro que até ser capaz de brincar com sua própria condição, o astro que foi um dos mais incensados dos anos 80, viveu um período de profunda dor e, naturalmente, até de negação a respeito do Parkinson. Quando o diagnóstico lhe foi dado, ele simplesmente não conseguia aceitar. "Eu? Com essa doença de velho?" A ponto de seguir como o protagonista da série dos anos 90 Spin City, sem que seus colegas de trabalho soubessem de sua doença. E toda essa trajetória de ascensão como estrela mirim até a impossibilidade de exercer a profissão que ama, formam a matéria-prima desse excelente documentário dirigido por Davis Guggenheim (de Uma Verdade Inconveniente, 2006). Não dá pra negar que é um filme duro e que nunca minimiza os efeitos devastadores do Parkinson. Mas é, ao mesmo, tempo uma experiência cheia de ternura, de afeto, de bom humor e até de esperança - especialmente no que diz respeito à relação do ator com seus familiares. 



E, para quem cresceu nos anos 80 e 90, e tem De Volta Para o Futuro como uma das trilogias da vida, o documentário também serve como uma justa homenagem a um dos mais cativantes atores daquele período. Dono de um carisma insuperável, Fox demoraria pra "acontecer" no seu meio - o fato de ser baixinho para os padrões sempre se apresentou como uma barreira. E todos os detalhes desses tropeços iniciais, de incertezas e de idas e vindas que culminam em Caras e Caretas, sitcom dos anos 80, são costurados com uma edição ágil, extremamente criativa e dinâmica, e que utiliza cenas das próprias produções antigas gravadas por Fox, para que se estabeleça uma lógica narrativa. Um bom exemplo desse expediente pode ser observado nos flashbacks que contam como o ator conciliou as agendas para gravar o filme de Robert Zemeckis e a série que ele estrelava ao mesmo tempo (usando instantes dos projetos em questão em que ele dorme em cena ou mesmo brinca com o fato de ter que se virar em dois trabalhos).

Para os fãs de Fox é simplesmente impossível ficar alheio e compreender o aparato que o envolve é, de alguma maneira, também dar visibilidade para uma doença complexa e que, muitas vezes, é mal compreendida pelas pessoas em geral. As dificuldades para caminhar, as dores, os sintomas neurológicos que só aumentam (e os estratagemas para escondê-los), a fala embolada, nada impede o fato de percebermos que, por baixo do olhar melancólico, há o mesmo Michael J. Fox de sempre. Bem humorado, sempre com uma tirada pronta pra tirar as pessoas do prumo - nem que seja ao brincar consigo mesmo. Para muitos, esse tom mais espirituoso talvez possa soar apenas estranho ou excêntrico (como assim ele não é o coitadinho que está doente?). Mas já há estudos que mostram que lidar de forma positiva, talvez possa ser o caminho para uma maior aceitação. Isso sem contar o fato que Fox leva completamente a sério o Parkinson, investindo milhões de dólares em um fundo para pesquisas sobre a doença. "Em vinte anos? Ou estarei morto ou curado", brinca em certa altura, respondendo ao documentarista. Michael J. Fox é aquele tipo de presença magnética, inquieta, borbulhante, que sempre estará viva, ao cabo. Que venha a indicação ao Oscar na categoria Documentário.


terça-feira, 23 de maio de 2023

Na Espera - Killers of the Flower Moon (Filme)

Vamos combinar que quando o assunto são os filmes estreando em festivais, nós, os meros mortais, precisamos dar uma segurada na ansiedade. Mais ainda quando estamos falando do novo de Martin Scorsese. Sim, Killers of the Flower Moon mal recebeu o seu primeiro trailer oficial - a obra estreia no Brasil em 20 de outubro, se não houver atraso, devendo ser disponibilizada posteriormente na plataforma da Apple TV. Mas a exibição no Festival de Cannes arrancou elogios fervorosos, além de demorados aplausos - o que fez com que a expectativa fosse arremessada lá para o alto! E o que dizer das notas em condensadores como o Metacritic? Atualmente com 91 pontos somados, a impressão que temos é a de estar diante de uma unanimidade: será que, aos 80 anos, o diretor de tantos clássicos terá atingido um de seus auges criativos?

Bom, ainda é cedo pra saber, mas o que já dá pra cravar sem erro é que a obra larga na frente quando o assunto é o Oscar 2024, dada como praticamente certa em categorias como Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Jesse Plemons), Roteiro Adaptado (do livro de David Grann), além de Edição, Fotografia e, claro, Filme. A trama, é bom lembrar, retorna pra virada do Século 20, em um período em que o petróleo é descoberto em uma região de Oklahoma, o que tornará os membros da tribo indígena Osage os mais ricos do mundo (praticamente da noite pro dia). Só que toda essa riqueza atrairá intrusos brancos que irão manipular, extorquir, roubar e matar os nativos, com os assassinatos em série sendo investigados pelo recém-criado FBI.Um faroeste de 206 minutos dirigido por Scorsese e estrelado por DiCaprio e Robert De Niro, com todo o peso político, social, histórico e cultural que parece emanar desse épico. Definitivamente não tem como dar errado.


Novidades em Streaming - Noites Alienígenas

De: Sérgio de Carvalho. Com Gabriel Knoxx, Chico Diaz, Gleici Damasceno, Joana Gatis e Adanilo Reis. Drama, Brasil, 2022, 89 minutos.

Primeiro filme do Acre a ser distribuído para o País, Noites Alienígenas mostra, de forma sutil, uma história de violência que avança sem muito controle, em uma região repleta de contrastes. Até os letreiros que surgem antes dos créditos finais - que citam o aumento assombroso de casos de assassinato de jovens no Estado, a partir do avanço de facções ligadas ao tráfico de drogas vindas da região Sudeste - a gente fica meio que "caçando" um sentido a mais para aquilo que assistimos. De alguma maneira trata-se de um painel que evidencia a complexidade das relações no Norte, fazendo colidir hábitos e costumes de povos originários com o enfrentamento da violência urbana que parece bordejar o cotidiano de todos ali. Na trama dirigida por Sérgio de Carvalho são três os personagens centrais: Rivelino (Gabriel Knoxx), Sandra (Gleici Damasceno) e Paulo (Adanilo Reis), três amigos de infância que residem na capital Rio Branco.

Criativo do ponto de vista artístico, Rivelino é um postulante a rapper apaixonado por grafite que ganha a vida vendendo drogas na boca mantida por Alê (o veterano Chico Diaz). As perspectivas são absurdamente poucas, a ponto de o jovem procurar os integrantes de um grupo criminoso mais bem organizado para tentar ampliar seus negócios. O que dá uma dimensão do baixíssimo senso de oportunidade do local. Nas ruas, entre idas e vindas, parece haver um saudável apelo para as artes - com os desenhos do jovem sendo espalhados de forma quase amadora, assim como são os encontros de hip hop. Quais os caminhos então? Para Paulo, um viciado em drogas, a situação é ainda pior já que ele parece estar sempre na "fissura". Pai de um filho de Sandra, vive na dependência química zanzando pela vila em maio a súplicas por dinheiro ou empreendendo pequenos furtos que sustentem seu vício.


Já Sandra, a jovem mãe negra que parece a única disposta a uma vida mais regrada - sonha em ser estudante de medicina enquanto se ocupa como caixa de um supermercado - encontra uma espécie de refúgio nas batalhas poéticas conhecidas como slam. De alguma maneira esse é um filme sobre complexidades, contrastes, potências e choques. Paulo, por exemplo, parece renegar a sua ancestralidade ao funcionar quase como uma caricatura do viciado. Por outro lado, Rivelino parece viver às turras com a mãe Beatriz (Joana Gatis), ao mesmo tempo em que sonha com uma vida melhor. Ao cabo essa é uma experiência sobre incertezas e sobre realidades fragmentadas - são muitos os personagens, inúmeras as vivências e uma carga emocional forte que parece colocar frente à frente ancestralidade e o progresso. Progresso mesmo? É um tipo de complexidade meio diluída em nuances.

Noites Alienígenas venceria cinco prêmios Kikito no Festival de Gramado do ano passado - além de Filme Brasileiro (batendo Marte Um, 2022), Melhor Ator para Gabriel Knoxx, Melhor Ator Coadjuvente para Chico Diaz, Melhor Atriz Coadjuvante para Joana Gatis e prêmio da crítica, além de uma Menção Honrosa para Adanilo. E para além do "filme-favela" essa é uma experiência que flerta com o realismo fantástico, ao colocar a suposta invasão alienígena como uma espécie de alegoria para a submissão das minorias, muitas vezes subjugadas e até escravizadas em contextos de opressão. Os povos indígenas estão ali, funcionando como um espectro que delimita - com seus hábitos, costumes, tradições. Sendo invadidos não apenas pelas facções do crime, mas também pelas igrejas evangélicas que avançam como um câncer especialmente em épocas de bolsonarismo. Nesse sentido, a cobra que se instala lentamente ainda no começo do filme talvez não esteja ali por acaso: ela é um símbolo. Uma metáfora pra esse cenário de tensionamento. E de disputas de poder.

Nota: 7,5


segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Copa (Butão)

De: Jamyang Lodro, Orgyen Tobgya, Lama Chonjor e Nethen Chokling. Comédia, Butão / Austrália, 1999, 89 minutos.

"O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes", já diria a frase atribuída ao ex-treinador da seleção italiana Arrigo Sacchi. Mas talvez para um grupo de monges isolados em um monastério tibetano talvez ela seja a mais importante mesmo. De todas. Ou ao menos é assim quando o assunto é a Copa do Mundo. E na realidade pouco importa se o Butão, o Nepal ou mesmo a Índia não estão na disputa. Para os protagonistas de A Copa (Phörpa), essa saborosa comédia butanesa tida como o primeiro filme gravado no país asiático na história, o que vale é conseguir assistir as partidas de futebol. Ver Ronaldo, Zidane, Roberto Baggio e outros ídolos da época. O ano é 1998 e a efervescência do maior torneio parece estar por toda a parte. Sensação amplificada pelo sem fim de pôsteres dos ídolos do futebol, que estão espalhados pelo quarto do jovem noviço Orgyen (Jamyang Lodro).

Na obra dirigida por Khyentse Norbu - que foi assistente de direção de Bernardo Bertolucci na época que o italiano gravou O Pequeno Buda (1993) e que é um respeitado lama - acompanhamos as peripécias de Orgyen, que sempre dá um jeito de fugir da abadia a noite, para tentar conseguir assistir ao máximo de jogos possíveis. Durante as longas sessões de orações na eterna busca por elevação, o pequeno parece mais interessado em saber quem joga, os horários e outros detalhes, o que ele faz em troca de bilhetes com outros interessados. Sendo sempre observados com certo distanciamento por Geko (Orgyen Tobgyal), que espera que os noviços possam se preocupar com assuntos mais espiritualizados do que banalidades como o futebol (e eu que sou colorado deveria seguir pelo mesmo caminho). Como forma de ampliar o senso de compromisso do pupilo, Geko coloca em suas mãos outros dois meninos, que chegam refugiados do Tibete. Mas como não ser contagiado pela febre?


O caso é que num filme como esse a gente não leva em conta apenas a paixão pelo futebol, mas também o amor pelo cinema. O Butão, tido tantas vezes como um dos países mais felizes do mundo, levaria 104 anos produzir o seu primeiro filme. E a gente nota, aqui e ali, uma e outra inevitável imperfeição - de olhadas pra câmera que não eram pra ocorrer até posicionamentos incorretos na hora da tomada. Mas tudo é absolutamente superado pelo carisma do elenco central. Lodro, com suas caretas expressivas, é simplesmente cativante, e no terço final da obra a gente já está numa torcida alucinada para que ele não apenas consiga realizar o sonho de assistir à final da Copa - após um desdobre em Geko (que, ao cabo, também guarda em segredo certo fanatismo pelo esporte) -, como ainda desejamos que tudo dê certo em relação a promessa de reaver um relógio empenhado, que é parte de uma negociação tensa para que uma simples TV com antena parabólica enferrujada possa ser obtida para ver o jogo.

É uma obra tão simples, tão econômica, como costumam ser as obras asiáticas, com seus fiapinhos de história cheios de sentido, que a coisa toda quase pende pra ingenuidade. Mas é meio difícil ficar alheio. Ou não se comover. Há um instante em que Orgyen toma um banho de banheira e, sob suas vestes, está uma camiseta canarinho com o número nove e o nome de Ronaldo. Em épocas tão equivocadas no que diz respeito ao senso de patriotismo, não deixa de nos dar uma pontinha de orgulho saber que naqueles anos 90 agora tão distantes, o futebol brasileiro gerava tamanha euforia. A propósito do contexto político, social e cultural da região, Norbu não deixa de fazer um aceno, especialmente na abordagem indireta que envolve a ocupação chinesa dos países do entorno. De alguma forma o destemido esforço de Orgyen na tentativa de quebrar o status quo ou a ordem dominante, talvez funcione ainda como uma alegoria que coloca frente a frente tradição e modernidade, obsolescência e contemporaneidade. Ou mesmo a ponta fraca enfrentando destemidamente a mais forte. Tá no Mubi. E vale conferir.


sexta-feira, 19 de maio de 2023

Novidades em Streaming - Os Cinco Diabos (Les Cinq Diables)

De: Léa Mysius. Com Adèle Exarchopoulos, Sally Dramé, Swala Emati, Moustapha Mbengue e Daphné Patakia. Drama / Suspense, França, 2022, 104 minutos.

Vicky (Sally Dramé) é uma menininha de oito anos com uma habilidade especial: por meio de cheiros, de aromas, ela consegue viajar no tempo. E assim vivenciar experiências do passado de uma forma meio mágica. Quase mística. É como se o conceito de memória olfativa fosse ampliado algumas vezes. E, não bastasse esse dom, ela tem um comportamento de verdadeira devoção quando o assunto é a sua mãe Joanne (Adèle Exarchopoulos), uma instrutora de natação. A premissa de Os Cinco Diabos (Les Cinq Diables) não dá pra negar, é curiosa. E te captura de uma forma quase instantânea. Na trama, mãe e filha residem em uma pequena cidade montanhosa que está ao redor de um enorme lago gelado (o Les Cinq Diables do título original). E é nele que Joanne, acompanhada da filha, tem o hábito de nadar. Mas não por muito tempo, pra não sofrer de hipotermia - Vicky fica a seu lado, fazendo soar um apito após vinte minutos.

Para conter os efeitos do frio na pele, a professora utiliza um produto - uma espécie de creme selante. Que é espalhado no corpo da mãe pela filha. A sobra dessa pasta, Vicky coloca dentro de um vidro (uma etiqueta indica que aquele é o frasco com os cheiros da mãe). Após mais algumas alquimias, que envolvem outras misturas, a pequena inala o conteúdo do pote. E desmaia. Sendo justamente esse o instante em que ela consegue viajar para o passado. E será em meio a esses sonhos bastante realistas, que Vicky descobrirá como uma tragédia abalaria a vida não apenas de sua própria mãe, mas também de seu pai, o o bombeiro Jimmy (Moustapha Mbengue), e também da irmã deste, a tia Julia (Swala Emati). E tudo piorará quando Julia chega, depois de um longuíssimo hiato, para uma visita à família. O que ocorrerá a contragosto de Joanne. Com uma série de segredos vindo paulatinamente à tona, a cada nova viagem no tempo da menina. Que andará pra lá e pra cá com sua coleção de aromas.

Claro, a tragédia familiar está no cerne da narrativa. Mas, nas entrelinhas, a diretora Léa Mysius aproveita o seu bem costurado roteiro para jogar alguma luz em temas que envolvem preconceitos diversos relacionados à gênero ou a raça. Jimmy é um homem negro ao passo que Joanne é branca. E Vicky endeusa a mãe de uma forma quase comovente - o que pode ser visto já nas primeiras sequências, onde ela repete os movimentos da mãe na beira da piscina. Na escola, a garotinha sofre bullying dos colegas, por conta de seu cabelo e de seu tom de pele. "Cabelo de bombril" gritos os outros estudantes, enquanto lhe agridem. Com tudo ficando ainda mais difícil quando Vicky descobre que a mãe tem uma espécie de paixão mal resolvida no passado. E que não era bem vista pelo pai de Joanne, Jean-Yvon (Patrick Bouchitey). E há ainda a misteriosa Nadine (Daphné Patakia), que trabalha com Joanne, e que possui uma deformação no rosto. O que teria ocorrido no passado envolvendo a todos ali? Parece complexo, mas não é.

Sem muita pressa, Mysius utiliza sua câmera contemplativa em meio a idas e vindas no tempo, e paisagens deslumbrantes e etéreas, que fazem com que a jornada jamais seja cansativa - ainda que a ambientação como um todo seja mais vagarosa. Há um ponto positivo na trilha sonora que, ao mesmo tempo em que é econômica, é efetiva (sendo ainda o ponto alto o uso da canção Total Eclipse of the Heart, da Bonnie Tyler, que dá aquele quezinho de nostalgia que a gente sempre adora e que desde já se insere como uma das grandes sequências de karaokê dos últimos anos). São contrastes interessantes que vão para além do óbvio elementar do fogo x água, que grita pelos cantos. Em linhas gerais trata-se de uma experiência que quase clama por uma revisão assim que sobem os créditos finais - e que pode ser eventualmente frustrante para aqueles que preferem as coisas mais bem explicadinhas. Mas esse é daqueles projetos que são como aromas que nos remetem ao passado: e que nos fazem viajar sem nem saber direito pra onde.

Nota: 8,5


terça-feira, 16 de maio de 2023

Pitaquinho Musical - Mahmundi (Amor Fati)

Se há algo que podemos perceber no quarto trabalho da cantora e compositora Mahmundi é a existência cada vez mais clara de uma personalidade própria - uma espécie de "cara" pra sua música. Que faz com que o material seja de fácil identificação. Quem acompanha a artista desde o começo da carreira talvez já esteja habituado com as suas melodias aconchegantes, que alternam instantes solares e otimistas com momentos mais poéticos e profundos. Aqueles que aguardam insistentemente por grandes novidades ou revoluções a cada novo disco desse ou daquele artista talvez não vejam nada de mais nessa nova leva de canções que misturam, como de praxe, MPB, pop, rock, soul e jazz. Mas ao mesmo tempo parece ser esse mesmo sentimento de familiaridade que torne a experiência com Amor Fati tão agradável. Não há grandes invenções. Apenas música boa.



E quando apertamos o play não são necessárias muitas curvas para que já estejamos ambientados ao novo projeto - com todo o estoicismo evocado pelo título. Como se fosse uma carta de apresentação, Amanhã é Mahmundi raiz, com toda a sofisticação, efeitos eletrônicos econômicos, guitarrinha primaveril, refrão grudento (Amanhã quando a gente acordar / Me pergunto como é que vai ser / Ela me levou pro céu / Eu não quero mais descer). Misturando a filosofia de Nietzsche, com David Lynch e comédias românticas noventistas - como ela revelou em entrevista à Revista Noize - a cantora explica que o conceito de amor ao destino parece ser uma espécie de linha guia do disco. Um bom exemplo que resume esse expediente pode ser encontrado em Sem Necessidade - parceria com o gaúcho Taguá Taguá. É o tipo de música que flui redondinha, que flerta com a psicoldelia e que nos faz abrir aquele sorriso.

Nota: 8,0


Novidades em Streaming - Air: A História por Trás do Logo (Air)

De: Ben Affleck. Com Matt Damon, Ben Affleck, Jason Bateman, Viola Davis e Chris Tucker. Drama, EUA, 2023, 115 minutos.

Sim, esse é aquele tipo de filme que muito provavelmente vai cair nas graças de marqueteiros, coaches e de empreendedores que acordam às cinco da manhã para trabalhar enquanto os outros dormem. Será citado nas palestras de influenciadores que incentivam a meritocracia. Que defendem que o sucesso só depende de você. Mas fora tudo isso não dá pra negar: Air: A História por Trás do Logo (Air) é um excelente entretenimento! A obra dirigida por Ben Affleck - que pode até não ser lá grandes coisas como ator, mas que como diretor até que se sai (já tem até Oscar em categoria principal no currículo) - está disponível na Amazon Prime e conta a história de como a Nike saiu de uma marca bastante modesta no segmento de tênis para praticantes de basquete, para simplesmente a maior do ramo. Deixando a Converse e a Adidas no chinelo. A cartada? Um contrato polpudo com um certo Michael Jordan que, no começo dos anos 80, dava mostras que ia ser o maior de todos no esporte. Talvez em qualquer esporte.

Até o ano de 1984, a Nike era apenas a terceira colocada no mercado de calçados para basquete - sua marca estava muito mais atrelada aos praticantes de corrida. Na época já existia o famoso logo - de forma muito rápida Phil Knight (o próprio Affleck) explica que ele funcionava como uma espécie de "onomatopeia visual" para o som. O Just do it já era o slogan, com todas as suas controvérsias e ambiguidades. Mas ainda faltava um movimento mais ousado. Que evitasse, inclusive o fechamento da Divisão de Basquete. E que, ao cabo, pudesse elevar a marca a um outro patamar. Na trama acompanhamos um caçador de talentos do esporte chamado Sonny Vaccaro (Matt Damon), que é incumbido pelo diretor de marketing Rob Strasser (Jason Bateman) a localizar aquele que possa ser o novo porta-voz dos tênis do segmento de basquete da Nike. Uma tarefa inegavelmente complicada.

O draft de 1984 apontava para Jordan como uma opção, mas havia um problema: apaixonado pela Adidas, o atleta parecia já estar com os dois pés na marca alemã. E, pior do que isso, como lembra um dos diretores (e atual vice-presidente da empresa) à época Howard White (Chris Tucker, num retorno afetuoso, já que ele é amigo pessoal de White), "homens negros não praticam corrida". Ou ao menos não praticavam naquele época. O que também baixava as expectativas quanto a possibilidade de contar com o futuro astro. E ainda havia, naturalmente, um terceiro ponto: em baixa na Divisão de Basquete, como poder contar com um futuro atleta de ponta com um orçamento modesto. Claro que a estratégia elaborada por Sonny e seus companheiros - com suas idas e vindas e discussões de bastidores em salas de escritório fechadas - será um dos atrativos. O que envolverá a aproximação, especialmente da mãe de Jordan, Deloris (Viola Davis, com aquela cara de possível nominada como Atriz Coadjuvante no próximo Oscar).

Recheado de citações culturais ligadas à época, a obra é um deleite em matéria de desenho de produção, com telefones "móveis" gigantescos, carros e figurinos com o DNA dos anos 80 (que Matt Damon parece vestir com uma pontinha de orgulho, inclusive no que diz respeito à barriga levemente saliente). A trilha sonora, então, é um espetáculo a parte, indo do kitsch nostálgico com ZZ Top e REO Speedwagon, passando por clássicos da época como Money for Nothing do Dire Straits (aliás, a abertura do filme é sensacional!) e Born in the USA, do Bruce Springsteen, até chegar a alternativos meio inesperados, como o Violent Femmes (e Blister in the Sun era figurinha fácil nas rádios descoladas da época). Divertida e com um carisma sem fim, a obra explora um pouco mais da figura considerada, até bem pouco tempo atrás, bastante misteriosa de Knight, um dos fundadores da corporação. Prestando ainda uma linda homenagem à Jordan e a seus familiares que, com a criação de um verdadeiro ícone do estilo, viriam a contribuir com centenas de crianças e jovens que sonham em seguir os passos do ídolo.

Nota: 8,0


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Tesouros Cinéfilos - Lucky

De: John Carrol Lynch. Com Harry Dean Stanton, David Lynch, Tom Skerritt, Ed Begley Jr. e Yvonne Huff. Drama, EUA, 2017, 88 minutos.

 

- As amizades são essenciais para a alma.

- Mas elas não existem.

- Amizades?

- Não. Almas.

 

Uma homenagem em vida, que quase funciona como um justo obituário. É mais ou menos esse o sentimento quando assistimos Lucky - único filme até hoje dirigido por John Carrol Lynch e que está disponível na Mubi. Estrelada por Harry Dean Stanton na borda dos 90 anos a obra possibilita, sem apelar para sentimentalismos ou excessos, uma reflexão sobre a finitude. Ao cabo, o fato de que vamos morrer talvez seja a nossa única certeza. E como se lida com isso quando já vivemos o bastante? Como encaramos de frente o inevitável ocaso de nossa existência? Para Lucky, o protagonista dessa pequena joia do cinema alternativo, a resposta talvez esteja em sessões de ioga matinais, palavras cruzadas para exercitar o cérebro e programas de variedades na TV. Mente sã em corpo são? Talvez, já que Lucky fuma uma carteira de cigarros por dia desde a juventude e não abre mão de sua dose diária do drink Bloody Mary no boteco local, onde ele coloca as conversas em dia com os amigos.

Só que em certa manhã, essa rotina cheia de afeto consigo mesmo - Lucky é um solteirão solitário, afinal, como muitas vezes lembra no decorrer da história (o que não significa que não tenha se apaixonado) - é quebrada, quando o protagonista, de forma meio inesperada, desmaia. O médico lhe prescreve uma bateria de exames que lhe fazem constatar: a saúde não poderia estar mais em dia. "Aliás, para alguém que fuma aos 90 anos e há tanto tempo, é uma surpresa que o seu pulmão esteja intacto", afirma o Dr. Christian (Ed Begley Jr.). Coração? Qual nada, se fosse pra ter um infarto, ele já teria acontecido quando mais novo. Pressão arterial? De um guri. O caso é que Lucky, um veterano de guerra, está apenas ficando velho. Cada vez mais velho. E algumas funções poderão falhar aqui e ali. E, é isso mesmo. Não tem muito o que fazer que não seja aceitar esse diagnóstico. Essa sina.

 


A meu ver esse não deixa de ser um dos aspectos mais criativos da obra de Lynch - que mesmo não tendo nenhum parentesco com David Lynch (Veludo Azul, 1986) recrutou o segundo, que dirigiu Stanton em Twin Peaks, para integrar o elenco da obra -, já que poucas vezes se assistiu a um filme sobre a perspectiva da morte não por doença, por tragédia ou por qualquer outro colapso. E sim da morte pela morte, porque, ao cabo, ela vai acontecer. E a Lucky restará viver enquanto é tempo, fazendo aquilo que lhe dá prazer - sejam às conversas jogadas fora no bar, as longas caminhadas em direção ao mercado e até os atos de impaciência que são legítimos para um idoso um tanto ranzinza. Simples em sua estrutura, tecnicamente econômica, direta em sua mensagem, a produção não pretende nenhum tipo maior de revolução. Há aqui e ali metáforas sobre a longevidade das tartarugas (ou cágados?) ou sobre a solidão na terceira idade. Pequenas alegorias que reforçam aquilo que está sendo dito (sem dizer).

Com mais de 100 obras no currículo, entre filmes e séries, Stanton talvez não tivesse a fama de outros gigantes contemporâneos octogenários ou nonagenários. Mas sempre representou, para quem lhe dirigiu, uma presença sólida de elenco - com suas feições rudes, sua polidez seca, seu comportamento imprevisível, enigmático. De Alien: O Oitavo Passageiro (1979), a Paris, Texas (1984), passando ainda por um sem fim de faroestes de início de carreira, o ator viria a falecer, numa daquelas coincidências do destino, poucos dias antes de Lucky estrear nos cinemas. Há um quê de comovente naquilo tudo, que se amplia quando ele dá uma espiadinha final para o público, numa inesperada quebra de quarta parece nos últimos segundos. Sentimento que é ampliado conforme se espalham os melodiosos acordes de I See a Darkness, de Johnny Cash, que estabelecem um diálogo orgânico com a trama. Profundo, delicado, debochado, até comovente. Esse filme é diminuto apenas no tamanho. Por que ele é maior do que parece.


terça-feira, 9 de maio de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Piano (The Piano)

De: Jane Campion. Com Holly Hunter, Anna Paquin, Sam Neill e Harvey Keitel. Drama / Romance, Nova Zelândia / Austrália / França, 1993, 121 minutos.

Filme que romantiza um aparente caso de abuso sexual? Ou obra sobre uma jovem em busca de emancipação - o que ela fará por meio de sua paixão pela música? Produção machista que apenas perpetua o ideal do patriarcado? Ou longa feminista sobre uma mulher que não aceita a condição que lhe foi imposta? Confesso a vocês que é meio difícil ser definitivo, quando o assunto é o clássico moderno O Piano (The Piano), lançado em 1993. Dirigida por Jane Campion - do recente (e ótimo) Ataque dos Cães (2021) - a obra costuma dividir opiniões na hora de uma análise mais atualizada de suas temáticas. Trata-se ao cabo de um filme dos anos 90, com o DNA daquela década e que, de quebra, ainda tem a sua trama ambientada no começo do Século 19. Era um período certamente difícil para as mulheres. E, de uma forma meio inevitável, essa condição é evidenciada em sua narrativa. Para o twitter, talvez seja passível de cancelamento. Um tipo de incômodo que talvez se estenda para parte da audiência.

De qualquer maneira não se pode negar que se trata de uma grande produção. Que é, do ponto de vista técnico, praticamente impecável. Cenários, fotografia, figurino, trilha sonora. Tudo funciona para essa espécie de imersão em uma Nova Zelândia absolutamente rural bucólica, úmida, lodosa (a terra pantanosa se espalha por toda a parte) - local para onde está migrando a viúva Ada McGrath (Holly Hunter). Acompanhada da filha Flora (Anna Paquin), a moça foi vendida pelo pai em um casamento arranjado com um certo Alisdair Stewart (Sam Neill), um negociante endinheirado com mais ou menos ZERO atrativos. Traumatizada por eventos ocorridos em sua infância, Ada se recusa, desde os seis anos de idade, a falar. Sua "língua oficial" é a música. A arte. Que é expressada por ela por meio de um antigo piano de madeira feito a mão. E que, na chegada ao País da Oceania será motivo de discórdia: afinal, como carregar um enorme piano mata adentro?



Como forma de conseguir levar o instrumento até a propriedade onde residirá, Ada faz uma oferta ao misterioso vizinho de Alisdair, George Baines (Harvey Keitel) - operando no modo sedutor de meia idade. Influenciado pela cultura maori da ilha, George é o sujeito de modos embrutecidos, mas de coração bondoso - com direito a tatuagens típicas das tribos da região no rosto. O homem se oferece para trazer o piano, mas com uma condição: a de que Ada seja sua professora de música. E é claro que não é necessário ser nenhum adivinho para saber que essa relação próxima, meio que aos trancos e barrancos, resultará não apenas em uma bela amizade. George ficará fascinado com a música tocada por Ada. Na realidade ele ficará fascinado por Ada como um todo. Como parte da negociação entre eles está a promessa de que ele lhe devolverá o piano. Mas desde que ela ceda aos seus encantos. Cada vez mais. Indo de um mero toque de peles descompromissado ao encontro fortuito na cama. Pelados. O ponto que, enfim, gera tanta polêmica. E que poderia deixar o militante do twitter de cabelos em pé.

Ao cabo, eu não estou aqui pra passar pano e confesso que também me incomodei com algumas sequências. Mas tentei não perder de vista que George estava realmente apaixonado por Ada. E que talvez fizesse tudo por ela. Duzentos anos atrás, na Nova Zelândia rural. E, como disse alguém em um fórum da internet, entre um casamento forçado com uma pessoa que não se ama e a paixão tórrida e controversa com um homem que parece estar comprometido emocionalmente - e não apenas sexualmente - fica-se com o segundo. Entre o péssimo e o ruim, enfim, vocês sabem. Talvez hoje em dia, O Piano fosse um filme que não funcionasse tão bem, carecendo de alguns ajustes na narrativa - especialmente para contemplar o povo disposto a achar misoginia e machismo em tudo quanto é canto (não dá pra relaxar). Mas como obra de época, o filme de Jane Campion segue como uma experiência classuda, sensual e poderosa sobre uma mulher hesitante, enigmática e habilidosa que procura o melhor não apenas para si, mas para sua filha (que aliás, tem papel fundamental na trama). Holly Hunter e Anna Paquin receberiam, com justiça, o Oscar por suas caracterizações. Tornando uma série de momentos - especialmente os do impactante terço final - inesquecíveis. Vale demais recordar.


segunda-feira, 8 de maio de 2023

Tesouros Cinéfilos - Dogville

De: Lars Von Trier. Com Nicole Kidman, Paul Bettany, Lauren Bacall, Chloë Sevigny, Patricia Clarkson e Stelan Skarsgard. Drama, Dinamarca / Reino Unido / Suécia / França / Alemanha, 2003, 178 minutos.

All the way from Washington
Her bread-winner begs off the bathroom floor
We live for just these twenty years
Do we have to die for the fifty more?

All night
He wants the young American
Young American, young American, he wants the young american

(Young Americans - David Bowie)

"Uma explosão ideologicamente apocalíptica contra os valores americanos". Foi dessa forma que a revista Variety resumiu a experiência com Dogville, do dinamarquês Lars Von Trier, na época de seu lançamento, em 2003. Divisivo quando exibido no Festival de Cannes, excêntrico em sua forma, mas potente na análise da natureza humana eventualmente violenta, que muitas vezes emerge de uma sociedade hipócrita, mesquinha e intolerante, o filme romperia com qualquer lógica, sendo amado e odiado em igual medida. Filmada em um único cenário - totalmente teatral, com direito à chão preto, pinturas e letreiros com giz no chão e paredes e portas de mentirinha - a obra acompanha a rotina modesta dos provincianos moradores de Dogville, uma cidadezinha do interior do Colorado, que fica na encosta de uma montanha.

Esse cotidiano ordinário entre plantações de maçãs, sino da igreja que toca, mineração e produção de artesanato é quebrado com a inesperada chegada de Grace (Nicole Kidman) uma jovem que está fugindo da máfia, que estava em seu encalço. No local Grace é recebida por Tom (Paul Bettany), um aspirante a escritor que nunca concretiza a sua obra e que, aparentemente, funciona como uma espécie de líder espiritual do povoado. É ele o responsável por reunir os moradores em encontros para tomadas de decisão coletivas. E uma delas envolve um grande dilema: dar abrigo a Grace ou não? Protegê-la daqueles que lhe perseguem? Grace até sugere seguir pelas montanhas mas é impedida, sob alegação de o caminho ser espinhoso demais. Sem muita alternativa ela fica no local. É acolhida pelo "amável" povo de Dogville - apesar de seu ceticismo. A ideia é promover uma experiência de duas semanas com a jovem para, então, uma decisão final: ela vai ou fica. Enquanto isso, ela aproveitará o tempo ocioso para uma espécie de contrapartida: oferecer serviços aos cidadãos.




Ok, tudo começa mais ou menos bem nesse ideal imaginado. Grace trabalha para os moradores, recebendo abrigo e comida. Só que quanto mais a polícia se aproxima do povoado interessado em saber do paradeiro da jovem, mais incomodados os habitantes de Dogville - tão corretos, tão honestos, tão íntegros, tão decentes - ficarão. E, consequentemente, maior será o preço para que ela permaneça. O que envolverá uma série de violências que passarão a ser perpetradas - de abusos psicológicos e sexuais, até escravagismo e tortura. Não haverá chance de escapatória para Grace e quanto mais ela tentar fugir daquele ambiente inóspito, pior será. E mais agressivos se tornarão os "honrados" moradores de Dogville. O que, ao cabo, levará todos ali a uma espécie de degradação moral e coletiva, que coloca o dedo na ferida do imperialismo, funcionando justamente como uma metáfora que quebra o ideal do sonho americano, ao passo que faz a crítica das relações dos Estados Unidos com países estrangeiros.

Sim, a xenofobia pode ser o aspecto mais gritante em tempos de ex-presidente que pretendia construir um muro para que mexicanos não alcançassem a Terra do Tio Sam. Mas das questionáveis políticas de guerra, passando pelo patriotismo e pela religiosidade difusos, até chegar ao comportamento conservador e patriarcal do cidadão de bem norte americano, nada parece fugir do radar de Von Trier - por mais controverso que ele seja. Ou, vá lá, talvez justamente por ser tão controverso. Vinte anos depois, com reestreia no Mubi, a obra segue sendo uma experiência rica, curiosa, iconoclasta e provocativa, que bebe na fonte do teatro de Bertolt Brecht e que leva ao limite os ideais do Movimento Dogma 95 - que buscava um cinema puro, orgânico, sem usos de truques de imagens, luzes artificiais e outras supostas superficialidades. Vale resgatar.


sexta-feira, 5 de maio de 2023

Pitaquinho Musical - Everything But The Girl (Fuse)

"Você canta para curar o coração partido? / Ou você canta para começar a festa?". Sim, a letra de Karaokê, canção que fecha Fuse do Everything But the Girl, pode até aludir a uma noite aleatória de um bar de São Francisco, onde os clientes se alternam entre a energia vigorosa de Elvis Presley e a sutileza poética de Bob Dylan. Ainda assim não deixa de ser interessante notar como os versos combinam direitinho com aquilo que encontramos desde sempre nas entranhas da música proposta pelo duo britânico Tracey Thorn e Ben Watt. Inferninhos lotados que contrastam com as esquinas solitárias, uma festa fritada às 17h com o sol a pino paradoxalmente alto, ter alguém em casa pra amar mesmo após uma madrugada intensa e hedonista. Há, ao cabo, um quê de orgânico e tecnológico em igual medida na coisa toda.

 


Nesse sentido, é possível afirmar que as canções da banda evocam justamente essa paisagem contrastante em que a festa acontece, enquanto os instantes de introspecção ecoam internamente. "Eu gosto do escuro / Eu gosto do humor" lembra Thorn nos versos da já citada Karaokê. "Eu sinto sua falta / Como os desertos sentem falta da chuva" já cantava a dupla na dançante (dançante?) e triste (triste?) Missing, seu maior hit. É a escuridão que se une às melodias hipnóticas. É o movimento e a contemplação. É cantar para sarar as feridas. Ou para celebrar. O EBTG ficou 24 anos sem lançar um novo trabalho - o último havia sido Temperamental (1999). E quando voltou, voltou como se nunca houvesse saído. Sem afetações. Sem invencionices. Sem forçar a barra tentando soar como algo que eles nunca foram. Apenas fazendo música. Mesclando gêneros. De forma orgânica. Fluída. Linda como sempre. Os fãs agradecem.

Nota: 8,5


Cine Baú - A Noite (La Notte)

De: Michelangelo Antonionni. Com Jeanne Moreau, Marcelo Mastroianni, Monica Vitti e Vincenzo Corbella. Romance / Drama, Itália / França, 1961, 122 minutos.

Vamos combinar que se há um sentimento que pode ser bastante incômodo quando o assunto são os relacionamentos, este é a indiferença. É a gente simplesmente não se importar mais com o outro, independente do que aconteça. E esse parece, ao cabo, ser o trágico destino do casal central que protagoniza o clássico de Michelangelo Antonioni, A Noite (La Notte), que estreou recentemente na Mubi. Segunda parte daquela que se tornaria conhecida como a Trilogia da Incomunicabilidade Humana - completada por A Aventura (1960) e O Eclipse (1962) -, a obra ampliaria o aspecto agonizante de uma relação amorosa desgastada. Condição reforçada pelos silêncios doloridos, pelos desencontros permanentes e pela tentativa desesperada de se reconectar a uma paixão que parece ter se perdido na rotina, no tédio e no vazio existencial. Mais difícil do que encerrar etapas talvez seja persistir em algo que, intimamente, todos sabem já ter chegado ao fim.

E é por isso que a obra de Antonioni talvez seja tão comovente. E tão incômoda. Quem já conviveu com algum casal que já acabou mas ainda não percebeu - daqueles que insistem em ficar juntos, mesmo sabendo que separados talvez fossem mais felizes - sabe como é. Pode ser que você mesmo seja essa pessoa. Que tentou até onde foi possível, sendo infeliz na companhia de alguém. Aqui o casal central é vivido por Marcelo Mastroianni e Jeanne Moreau. Ele, um escritor de certo renome chamado Giovani Pontanno, que está lançando um novo romance, que parece ter sido bem recebido pela crítica. Ela, a filha de um sujeito abastado, uma enigmática mulher chamada Lidia, que lhe acompanha em sessões de autógrafos enfadonhas e em outras atividades intelectuais. E conforme os eventos do filme - muitos deles pequenos, fortuitos - forem se descortinando, perceberemos cada vez mais a falta de conexão. O que os afasta de forma irremediável.

Lídia, por exemplo, não consegue sentir prazer genuíno em apenas acompanhar Giovani em seus compromissos. Num deles foge e, após vagar meio aleatoriamente pelas ruas, vai parar no bairro de Milão onde moravam como recém-casados. O silêncio é interrompido quando ela presencia uma briga sangrenta de gangues. Que é seguida por uma série de lançamentos de pequenos foguetes em um campo. É tudo bastante alegórico, sendo possível estabelecer nessas ocorrências ocaionais, uma correlação com o que a jovem sente. Onde ela busca algum tipo de fiapo de nostalgia, talvez estejam apenas os sentimentos conflitantes. Não há mais nada ali. O dia prossegue com o casal indo parar em um bordel onde assistem a uma hipnotizante performance erótica. Mas não há tesão que una os dois. Não há aquela conversinha safada que poderia derivar da experiência. Alguma promessa de calor que avance pela madrugada. Há apenas o enfado, a melancolia, a monotonia e o aborrecimento.

Na tentativa de conferir algum movimento a sua noite, a dupla vai parar em uma festa de um ricaço, um certo senhor Gherardini (Vincenzo Corbella). Afastados, cada um vai para um lado. Giovani se aproxima da insinuante filha do anfitrião, no caso a jovem Valentina (Monica Vitti) - ambos flertarão sobre um enorme tabuleiro de xadrez improvisado, em mais uma daquelas metáforas quase óbvias que envolvem o jogo das paixões. Em outro ponto, Lídia, talvez meio oprimida pela solidão vagueia como um espectro, se aproximando aqui e ali de outros convidados, dançando, tomando banho de chuva, vivendo. O beijo de Giovani em Valentina pouco lhe mobilizará - ela o flagra de uma estrutura elevada da casa. Ela mesma parece ter segredos que envolvem um homem moribundo em um hospital (que talvez fosse seu amante). De alguma maneira muita coisa acontece, com os personagens saltando de eventos em eventos, de encontro em encontro, como se estivéssemos em uma espécie de A Doce Vida (1960) - com toda a mesquinharia das elites -, só que num espectro muito mais sombrio.

Paradoxalmente charmosa e sexy, esta é uma obra sobre um casamento próximo do fim, que aposta muito mais no não dito do que no dito. A chave está nas sutilezas, nos olhares discretos, nos movimentos de corpo econômicos, ondulantes, pouco expansivos. Tudo parece comunicar nesse universo de incertezas que só será plenamente revelado quando do raiar do dia, na clássica sequência no campo de golfe. A banda toca um sinuoso jazz à distância que preenche todo o ambiente. "Tenho vontade de morrer porque já não te amo mais", comenta uma Lídia suplicante, antes de iniciar a leitura de uma carta de amor em voz alta. "Quem escreveu?" pergunta Giovani. "Você", responde Lídia consternada, naquele instante que eternizaria a dor de um casal sôfrego que passa uma madrugada de prazer hedonista, estando quilômetros de distância separados. Esnobado em premiações como o Oscar ou o Festival de Cannes, o filme ressurgiria mais tarde como a ponte perfeita entre A Aventura e O Eclipse, inclusive antecipando temas atualíssimos, que envolvem desde a fugacidade do amor, passando pelo sentimento de solidão (mesmo acompanhado) até mesmo a futilidade da burguesia. É impecável.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Cine Baú - Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios)

De: Pedro Almodóvar. Com Carmen Maura, Antonio Banderas, María Barranco, Rossy de Palma e Julieta Serrano. Comédia dramática, Espanha, 1988, 89 minutos.

O estilo multicolorido, histriônico e farsesco de Pedro Almodóvar talvez tenha tido o seu primeiro grande ato com o clássico moderno Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios). A obra, afinal, com sua narrativa novelesca e verborrágica, pendendo para o absurdo, daria fama internacional ao espanhol - especialmente após a indicação ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira, na cerimônia de 1989. Ok, o filme até não faturaria a estatueta dourada - naquele ano havia um certo Pelle, O Conquistador (1988), melodrama que estava cativando o mundo -, mas pavimentaria o caminho para que Almodóvar se estabelecesse como um dos mais originais realizadores do cinema. Suas produções, atualmente, são aguardadas, comentadas. Atraem fãs no mundo todo. Costumam ser pontos altos em festivais. Aqui no Picanha mesmo esse já é o sexto texto sobre um filme do diretor. Um dos favoritos da vida, enfim.

Mulheres... é baseada, como não poderia deixar de ser, em uma peça de teatro - no caso, A Voz Humana, de Jean Cocteau. E isso explica também os motivos de grande parte da ação se passar no espaço imenso da luxuosa cobertura onde reside Pepa (Carmen Maura, que trabalharia um sem fim de vezes com Almodóvar). Na obra, Pepa atua como dubladora de filmes estrangeiros - é mais ou menos famosa no seu meio, a ponto de ser reconhecida nas ruas. Ainda no começo do filme, ela recebe um recado por telefone do seu amante Ivan (Fernando Guillén), que é seu colega de trabalho. Ele a está abandonando, pede para que ela arrume as malas dele, sem muita explicação. O que fará com que ela se desespere e tente, de todas as maneiras, descobrir os motivos disso. O que envolverá um sem fim de esforços entre ligações telefônicas, andanças pela cidade, recados e outras tentativas. Todas elas frustradas, em alguma medida.

E como se já não bastasse a tragédia particular que envolve a vida de Pepa, ela ainda receberá em sua casa a visita de sua amiga Candela (María Barranco), que está em fuga após ter descoberto que seu namorado teria ligações com grupos terroristas xiitas. Temendo ser presa ela pede asilo. Só que Pepa está colocando o apartamento à venda. Sendo que um dos interessados é justamente Carlos (um jovem Antônio Banderas), filho de Ivan, que aparece acompanhado de Marisa (Rossy de Palma, outra colaboradora habitual do diretor). O rebu todo se torna ainda maior quando a protagonista descobre a existência de uma terceira mulher na vida de Ivan, no caso a advogada Paulina (Kiti Manver), sendo que é com ela que o sujeito pretende fugir para Estocolmo. Com o caos sendo completo com o surgimento de Lucía (Julieta Serrano), ex-mulher de Ivan que está em um hospital psiquiátrico e, bem, aparentemente planeja matá-lo.

Bom, é claro que todos esse contexto bizarro de idas e vindas e de uma profusão imensa de personagens e de personalidades são apenas uma boa desculpa pra um sem fim de situações bizarras, excêntricas e engraçadas envolvendo todos ali. Apostando em coincidências como forma de unir os pontos - pessoas que se conhecem, eventos aleatórios que aproximam uns aos outros -, Almodóvar converte a obra em uma experiência tão anárquica quanto humana. De uma entediada Marisa que descobre um gaspacho na geladeira e resolve beber o produto - sem saber que ele está "batizado" com soníferos -, chegando ao instante em que um técnico que conserta telefones e um policial se confrontam, nada parece apenas jogado no roteiro, sem que haja um propósito. E é justamente esse senso de organização da narrativa que a torna tão única, bem ao estilo intenso que marcaria a obra do diretor. Pra quem ainda não está tão familiarizado com a filmografia do espanhol, esta pode ser uma bela porta de entrada. Só que se prepare: uma vez acessada essa porta, não haverá mais volta!


terça-feira, 2 de maio de 2023

Novidades em Streaming - Império da Luz (Empire of Light)

De: Sam Mendes. Com Olivia Colman, Colin Firth, Micheal Ward e Toby Jones. Drama / Romance, EUA / Reino Unidos, 2022, 114 minutos.

Em uma das cenas mais constrangedoras de Império da Luz (Empire of Light), Hilary (Olivia Colman) é chamada por seu chefe Ellis (Colin Firth) de esquizofrênica. O que se segue é uma sequência meio Oscar bait, com a personagem em surto - o que envolve uma série de revelações comprometedoras. Só que, enquanto assistia ao mais recente projeto do diretor Sam Mendes - do excelente 1917 (2019) - tinha a impressão de que esquizofrênico era o filme. Afinal, é uma obra sobre racismo? Sobre machismo? Ou ela versa a respeito da política desastrosa de Margaret Thatcher? Estão no centro da narrativa os riscos do extremismo de direita? Ou é um filme que está falando sobre empatia na hora de conviver com pessoas com problemas psiquiátricos? E se já não bastasse a tentativa de meio que abraçar esse amontoado de assuntos de inegável importância, ainda tem o pano de fundo sobre a importância do cinema. Das artes. E das possíveis transformações possíveis por meio dela.

Vejam bem, eu não tenho nenhum problema com filmes que tentam capturar a nossa atenção, inserindo uma quantidade maior de temas em sua estrutura. Isso pode ser bom, se bem executado. Só que se você quer falar de racismo, me parece um pouco rasa uma sequência em que Hilary entrega à Stephen (Michael Ward), após este ter sido brutalmente agredido por um grupo de skinheads que participavam de uma motociata (sim, a vida imita a arte), um disco dos britânicos do The Specials, banda famosa por ter integrantes brancos e pretos. "Brancos e pretos se juntando, é o que torna tudo normal", comenta a personagem de Colman enternecida. É sério mesmo que uma discussão tão importante vai ser reduzida ao chavão do "eu não enxergo cor aqui"? E, ok, esse poderia ser um recorte dentro da narrativa, mas o problema é que o assunto praticamente some no restante do tempo. É sobre isso que estamos falando? Sobre skinheads, Margaret Thatcher e os tempos de intolerância?



Alguém poderá afirmar - e tudo bem quanto a isso - que tanto Hilary quanto Stephen são almas isoladas em busca de algum tipo de conforto mútuo, de empatia, até de amor (ou de amizade). O que torna compreensível a aproximação entre ambos. Ela é a gerente do cinema, que á abusada sexualmente (e psicologicamente) por seu chefe. Uma mulher solitária que, entre uma consulta e outra com o psiquiatra, tenta se adaptar aos medicamentos com lítio. Os motivos de ela lutar contra o uso dos fármacos? Talvez o momento. Os motivos de ela se insurgir contra a misoginia em um ato meio isolado durante a narrativa? Não sei, pareceu mais um elemento perdido lá no meio. É um filme sobre o machismo? Ou foi só a inserção de mais um assunto importante no meio do nada? Qual a história, afinal, de Hilary? Qual o seu passado? O que lhe move? São temáticas e contextos importantes que parecem estar sempre no meio do caminho. Do quase.

Em mais uma sequência meio constrangedora ela tem um surto quando está passando um dia na praia com Stephen. Aos berros ela destroi os castelos de areia construídos por eles. É um projeto que discute a fragilidade do ser humano - sua solidão, suas dores nunca pronunciadas, seus segredos dificilmente verbalizados -, a partir da alegoria do castelo que, tão facilmente, cai? Sei lá, a meu ver esse é um filme apenas estranho - como é estranho o comportamento de Hilary que, sim, talvez tenha esquizofrenia, tenha transtorno bipolar ou outro problema psicológico qualquer e que talvez seja resultado do ambiente tóxico que a envolve. Mas, não sei, é uma obra sobre isso? Sobre pessoas com gostos musicais questionáveis? Sobre pais que abandonam filhos (mais um tema que surge meio perdido lá no meio)? E se não bastassem tantas decisões questionáveis, o filme ainda se encerra com a leitura de um poema. Enquanto os créditos subiam só conseguia pensar no desperdício generalizado de talentos - do diretor aos atores, passando pelo diretor de fotografia (o oscarizado Roger Deakins) até chegar a dupla Trent Reznor e Atticus Ross, responsáveis pela trilha sonora. Não é à toa que flopou na temporada.

Nota: 3,0


Pitaquinho Musical - Jessie Ware (That! Feels Good!)

Vamos combinar que, quando o assunto é música, poucas coisas podem ser mais prazerosas do que ver um artista que gostamos se reinventando. Afinal, estabelecer diálogo com outras sonoridades ou mesmo percorrer outros caminhos, não deixa de ser uma forma de sair do lugar comum ou da zona de conforto. Nesse sentido, quem acompanha a carreira da Jessie Ware sabe que, da artista que apostava em canções de ambientações mais etéreas, recheadas por melodias mais evocativas - quase num encontro entre o pop e o new age - pouco restou. De um certo desgaste do estilo em projetos bastante pessoais como Glasshouse (2017) ao revival da disco music em What's Your Pleasure? (2020), concluído em plena pandemia, o que conferimos foi um processo transformador. Que, agora, com That! Feels Good!, o quinto trabalho de estúdio, parece ser o ponto alto de maturação. Quase como se fosse um renascimento.



Partindo exatamente de onde parou no projeto anterior - que tornavam as pistas de dança com seus globos espelhados, gelo seco e hipnose luxuosa, algo palpável - a cantora e compositora investe numa nova leva de canções que não apenas prestam tributo a artistas do final dos anos 70 e início dos 80, como conferem personalidade a um gênero que, aqui e ali, poderia soar apenas nostálgico. Promovendo um encontro entre o Chic e a Chaka Khan, Ware converte músicas como Pearls em verdadeiras joias - com o perdão do trocadilho -, com direito a letrinha debochada (Agite até que as pérolas caiam / Deixa pra lá, deixa eu dançar) e refrão extremamente pegajoso. O expediente se repetirá em diversos outros momentos mágicos como Free Yourself, Beautiful People e Begin Again sempre com aquela pegada leve, divertida, sem se levar a sério demais. "Eu ouvi meus fãs e meus novos fãs e quis levar esse universo de groove adiante" comentou no material de divulgação. Os fãs agradecem!

Nota: 9,0