quinta-feira, 29 de julho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Barton Fink: Delírios de Hollywood (Barton Fink)

Os Irmãos Coen ainda estavam no começo da carreira quando imaginaram essa fábula metalinguística e bizarra, meio que encarnando o modo David Lynch wannabe. Aliás, essa predileção pela estranheza que traz a tiracolo uma crítica ao modus operandi de Hollywood - em que a produção cultural deve, em muitos casos, vir acompanhada de cifras milionárias -, talvez tenha aberto o caminho para que Barton Fink: Delírios de Hollywood (Barton Fink) faturasse a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1991. E, ironia das ironias, tenha sido completamente esnobada no Oscar. A trama nos joga para a Nova York do começo dos anos 40, um espaço fervilhante onde o Barton Fink do título (John Turturro) é um roteirista badalado da Broadway, que teve seu mais recente espetáculo elogiado pela crítica e aclamado pelo público. Por conta de todo esse prestígio, ele é assediado por produtores de Hollywood para que escreva um roteiro para um filme de baixo orçamento sobre... luta livre.

Meio desconfiado e até inseguro sobre o destino da narrativa que deve conceber, Fink se instala em um hotel meio decrépito (o Earle, de Los Angeles) para se dedicar a seu ofício. Só que do recepcionista (Steve Buscemi), passando pelos papéis de parede melancólicos, até chegar aos ruídos meio incessantes e desconfortáveis das instalações, tudo na estalagem parece gerar incômodo. O quadro insípido de uma mulher na parede, em uma praia qualquer não ajuda muito. O calor é sufocante, quase palpável - o suor escorre por todos os poros. E ainda há um vizinho de quarto ainda mais esquisito, um certo Charlie Meadows (John Goodman), um vendedor de seguros de aparência amigável, mas que desperta desconfiança no protagonista. É um contexto em que nada ajuda. Ele não consegue se concentrar. E tudo só piora quando Barton se vê, de maneira meio inesperada, envolvido em um assassinato. O colapso parece quase inevitável!

 

 

Apostando na estranheza como uma espécie de recurso narrativo, aqui os Irmãos Coen transformam Fink em uma marionete, manipulada por produtores caricaturais, figurões da indústria, empresários e outras excêntricas personalidades que lhe orbitarão, sempre exercendo algum tipo de pressão. Da mesma forma, os diretores não parecem muito dispostos a oferecer respostas fáceis para o espectador, deixando muitos questões em aberto - qual seria o conteúdo, por exemplo, da caixa deixada por Meadows à Barton? E qual seria o significado do já citado quadro? Tudo isso parece ser o de menos, já que o parece estar em jogo é a promoção de uma reflexão sobre os mecanismos que envolvem a escrita narrativa. E eu, particularmente, adoro o contraste entre o tipo de abordagem pretendida pelo protagonista em seu suposto filme - algo mais cult, de "arte" - e sobre como suas intenções acabam soterradas pelo ideal de produção de um filme popular, que certamente garantirá bilheteria.

Ainda que não seja o filme mais badalado de Joel e Ethan Coen, Barton Fink certamente pavimentaria o caminho para que o expediente que mistura personagens caricaturais (ou excêntricos), violência engraçada e aleatória, ambientações pouco óbvias e narrativas cheias de surpresas fosse repetido - e basta lembrar de Fargo (1996), E Aí Meu Irmão Cadê Você? (2000) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) para que tenhamos a certeza disso. Só que este filme também tem sua personalidade, trafegando da comédia ao drama, passando pela ficção existencial até chegar ao thriller, com naturalidade. Na realidade somos surpreendidos o tempo inteiro. Tomados pela dúvida. Assim como o papel de parede que se descola e exibe um líquido viscoso que se assemelha ao... sangue. Bom, pode ser que seja sangue. Vai saber. Ou pode ser que apenas estejamos alucinando. E com alguma dificuldade para lidar com os nossos "demônios" internos.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Teouros Cinéfilos - Segredos e Mentiras (Secrets and Lies)

De: Mike Leigh. Com Brenda Blethyn, Marianne Jean-Baptiste, Timothy Spall e Claire Rushbrook. Drama, Reino Unido / França, 1996, 142 minutos.

Vamos combinar que é simplesmente impossível escrever qualquer coisa sobre Segredos e Mentiras (Secrets and Lies) sem começar pela atuação assombrosa de Brenda Blethyn - que só não ganhou o Oscar daquele ano por causa de uma certa Frances McDormand, que foi irretocável em Fargo (1996). Sua Cynthia Rose é uma mulher devastada, que deixa transparecer por todos os poros o seu desequilíbrio emocional. Está no olhar melancólico. Na expressão permanentemente chorosa. No gestual claudicante - os ombros sempre caídos, o pescoço curvado. Na instabilidade constante. Na carência afetiva sem limites, que vem acompanhada da voz sempre trêmula. Tendo como única "companhia" a filha de pouquíssimos afetos Roxanne (a igualmente ótima Claire Rushbrook), vive uma rotina ordinária, daquelas de dar pena. Ela se preocupa com as aparências: a sua própria, a da filha, a do irmão Maurice (Timothy Spall). É uma existência vazia, oca. E que, muito cedo saberemos, pode ter a ver com traumas do passado, segredos jamais revelados, conversas nunca ditas.

À moda daqueles dramas que nos colocam diante de famílias inteiras que pretendem resolver suas pendências na mesa de jantar, aqui temos um exercício de gênero de excelência nesse estilo que, não por acaso, viria a ser coroado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Aliás, poucas vezes eu me senti tão impactado por uma obra com essa proposta, como nesse caso. A sensação é de desconforto permanente, dada a miséria (e a infelicidade) daquele grupo que acompanhamos. Na trama, a optometrista Hortense (Marianne Jean-Baptiste) decide ir atrás de sua família biológica, depois que sua mãe adotiva morre. Após uma e outra ida aos cartórios locais, obtém documentos que podem solucionar o seu caso. Só que há um porém: como mulher negra, ela acha bastante curioso o fato de sua mãe ser uma caucasiana. E, bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber onde esse quebra-cabeças vai dar. E sobre como o desenrolar dos acontecimentos que envolvem esse segredo - um dos muitos que será revelados - será uma bomba-relógio prestes a explodir!

E se ressentimento pouco é bobagem, impressiona também o fato de ele se espalhar em cada canto da narrativa, até mesmo em sequências que parecem meio fora de contexto - como naquele instante em que Maurice recebe a inusitada visita do antigo dono de seu estabelecimento comercial. Aliás, é uma cena tensa, estranhamente nebulosa. Que parece querer nos fazer lembrar o tempo todo do fato de que, no mundo real, muitas pessoas parecem estar no limite, infelizes, vivendo mergulhadas em um universo de mágoas infinitas. Ironia das ironias, Maurice trabalha como produtor de imagens - e as cenas em que ele incentiva aqueles que fotografa a sorrirem, soa invariavelmente paradoxal. É apenas um instante. Um fragmento. Em que tudo para, em que o frame é congelado. São esquecidos os contratempos, as adversidades, para uma fuga falsa que nos retire por alguns segundos da vida de atribulações. Aliás, o que o próprio Maurice parece também buscar - e que nunca encontra, nem em Cynthia sua irmã desvairada, muito menos em Monica (Phyllis Logan), sua esposa pouco amorosa.

Para além das grandes interpretações, Segredos e Mentiras também utiliza de forma muito satisfatória o seu arcabouço técnico - especialmente no sentido de ampliar o senso de teatralidade, algo típico dos trabalhos de Leigh. Há, por exemplo, um grande investimento em planos-sequência - a longa cena do café, em que Cynthia expõe toda a sua fragilidade diante de Hortense, já pode ser considerada um clássico moderno. O mesmo vale para o sem fim de instantes em que as personagens se veem confinadas em ambientes fechados, claustrofóbicos, com a câmera indo de um para outro rosto, evidenciando suas angústias em cada poro, em cada lágrima, em cada pequena inflexão. Há, no contexto, uma claustrofobia meio generalizada que não parece ser necessariamente de "espaços" e, sim, da alma. Algo que se mostra sempre pronto a ruir, a transbordar, mesmo que os motivos não sejam assim tão gritantes. Ainda assim, é curioso notar como, ao cabo, a experiência ainda se fecha de maneira otimista, nos fazendo lembrar que "família a gente não escolhe". Mas que, se primarmos pela honestidade, pela sinceridade, é possível construir um contexto favorável. E, vá lá, ser feliz.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Tesouros Cinéfilos - O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio)

De: Nanni Moretti. Com Nanni Moretti, Laura Morante, Giuseppe Sanfelice, Silvio Orlando e Jasmine Trinca. Drama, França / Itália, 2001, 99 minutos.

A inegável versatilidade do diretor e ator Nanni Moretti seria posta à prova com o clássico moderno O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio) - uma das mais comoventes experiências cinematográficas sobre dor, luto, perda e memória desse começo de século. Famoso pelas comédias ácidas e verborrágicas, Nanni não costuma ter muitos pudores na hora de fazer a crítica aos políticos (O Crocodilo), à Igreja (Habemus Papam) e aos núcleos familiares conflituosos (Mia Madre). Aqui e ali, o realizador também pincela as suas obras com tintas autobiográficas, apostando também na metalinguagem como recurso. Ele mesmo superou um câncer linfático no passado, o que talvez o faça ver a vida com irreverência e melancolia em igual medida. "Quando escrevo um filme, costumo começar com coisas das quais eu me sinta próximo", afirmou certa vez em entrevista. E, a despeito da tragédia vista aqui, esse contraste também surge nos detalhes, nos pequenos encaixes cotidianos, que saltam da narrativa.

Em uma sequência, por exemplo, o psicanalista Giovanni (Moretti) está na mesa de café com a esposa Paola (Morante) e com a filha Irene (Trinca). O trio debate demoradamente sobre a beleza curiosa da sonoridade resultante do contato de uma raquete de tênis com a bola. Na impossibilidade de dimensioná-lo com precisão, o protagonista replica o barulho com a boca, estalando os dedos na bochecha. É aquele instante cotidiano amistoso e que serve também para delimitar o tipo de relação harmoniosa que existe naquela família - que é completada pelo filho Andrea (Sanfelice). Que por sinal, é o praticamente de tênis oficial. A obra começa alternando momentos aleatórios como estes, com as sessões ocasionais de Giovanni com os seus pacientes, em seu consultório. As queixas são variadas, os medos que sufocam (aqueles que, ao cabo, todos temos). Num certo dia Andrea é acusado pela diretoria da escola de furtar uma peça do museu do educandário. Nada excessivamente comprometedor. Nada que não impeça a vida de seguir seu curso naturalmente.

Só que em um domingo qualquer o protagonista opta por atender um paciente que está tendo uma crise de ansiedade após ter sido diagnosticado com um câncer - enquanto a família se espalha em meio à programas variados no dia de folga. Irene sai de moto, Paola passeia pelo parque, Andrea resolve sair pra mergulhar - e é com esse este último que a tragédia ocorre, sem que haja muito tempo para que o fato seja "digerido" por todos (e pelo espectador). Como se fosse um personagem de Dostoiévski, Giovanni passa a se consumir pela culpa - enxerga o filho em devaneios, em viagens meio absortas, enquanto se esforça para seguir atendendo aqueles que dependem de sua experiência profissional, para que seja mantida alguma qualidade de vida. O pai de família acredita que tudo poderia ter sido diferente se ele não tivesse escolhido quebrar o dia de folga para abrir um espaço em sua agenda para um atendimento. Pior, passa a odiar alguns de seus pacientes. Suas histórias mesquinhas, seus medos patéticos, ignóbeis. Impossibilitado de trabalhar, passa a ser também o marido meio impossível, o pai excessivamente preocupado com Irene. Qualquer ocorrência pode gerar algum tipo de memória desgastante, alguma tristeza inesperada.

E, nesse sentido, Moretti é pródigo em filmar o luto. Ainda que jamais torne demoradamente sufocante ou mesmo insuperável a dor daqueles que acompanhamos, o diretor não deixa de transformar o retorno da perda, como um amplo processo de reconstrução. Especialmente para uma família que estava em tão plena sintonia. Lá pelas tantas, Paola descobre uma carta endereçada ao filho morto: de uma "ficante", uma candidata à namorada. Resolve ir ao encontro da jovem, como forma de expiar o sofrimento, quem sabe. Retirar aquele fardo pesado, de algo que será, para sempre, mal resolvido. E que, aqui e ali, poderá simbolizar algum tipo de recomeço, dentro daquilo que esteja ao alcance. Uma ida à praia. Uma carona despretensiosa. Alguma amizade. Um parque de diversões. Um jantar. Ninguém esquecerá tudo o que aconteceu. Nem deixará de imaginar tudo que poderia ter ocorrido de forma diferente. Mesmo o "acidente" de Andrea nos desperta dúvidas... terá sido um acidente? Uma fatalidade? Uma falha de equipamento? Não há respostas. Aliás, a vida não costuma nos dar muitas respostas. E é aí que também reside a beleza dessa pequena joia do cinema italiano que, não por acaso, faturaria a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2001. De aplaudir de pé.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Pig

De: Michael Sarnoski. Com Nicolas Cage, Alex Wolff e Adam Arkin. Drama / Suspense, EUA, 2021, 92 minutos.

Um filme com o Nicolas Cage interpretando um sujeito solitário, levemente obeso, com os cabelos compridos e a barba por fazer, que mora sozinho em uma casa isolada no deserto do Oregon com a sua... porca. Porca que, não tardará, será sequestrada, sem que saibamos o seu paradeiro. Vamos combinar, desde que Pig, projeto do diretor estreante Michael Sarnoski foi anunciado, os fãs do "astro" ficaram agitados. E não é para menos. Famoso pela carreira com muito mais baixos do que altos, Cage tem aqui uma oportunidade de redenção - que ele agarra, é preciso que se diga. A obra gira toda em torno do sujeito e da verdadeira via crúcis que ele empreende na busca de seu animal. Mas se engana quem pensa que, aqui, encontraremos o arco narrativo clássico do homem que sofre algum tipo de violência ou abuso e parte para uma jornada de vingança contra seus agressores, com tiro, porrada e sangue sendo veículo de redenção. O clima é muito mais taciturno, cheio de simbolismos, com uma melancolia latente.

E admito que, de alguma forma, essa quebra de expectativas foi o que mais me agradou. Seria muito cômodo entregar para os fãs aquilo que o hype provavelmente previa: ver Cage como o ermitão embrutecido que geraria uma trilha de violência por onde passasse. Mas essa mesma violência surge em cena não apenas como uma metáfora inesperada (naquela sequência que parece emular uma espécie de Clube da Luta de funcionários de restaurantes), como ela reaparece de forma dolorida nas memórias do próprio protagonista. Acompanhado do jovem Amir (Alex Wolff), Rob (Cage) se revela, de forma quase tópica, como uma figura de passado relevante - ele era chef de um restaurante em Portland -, que se torna recluso após a ocorrência de uma tragédia. Partir em busca de sua porca - que lhe auxiliava na colheita de trufas que ele comercializa para o próprio Amir -, será chafurdar em um passado doloroso, em que memórias serão reviradas e em que perdas precisarão ser superadas.


Ao cabo, trata-se de um filme que nem sempre será fácil, já que ele parece se valer do estranhamento como uma espécie de "virtude". Sim, a porca, Cage cabeludo e soturno, as paisagens isoladas, a condução de fluidez vagarosa, tudo parece contribuir para esse clima meio excêntrico, de quebra-cabeças que necessita ser montado. Nesse sentido, a obra eventualmente parece formada por instantes episódicos, por atos isolados e quase fragmentados que, organizados como uma colcha de retalhos, permitirão ao espectador tirar as suas conclusões. É aquele tipo de obra aberta, que não possui uma lógica de começo meio e fim estabelecida. Do começo do filme - e do estabelecimento de seu dilema central -, à conclusão, o que acompanhamos é um homem que confrontará aquilo que, emocionalmente o devasta, enquanto reúne forças na intenção de, vá lá, se redimir. A briga, assim, não é externa, contra aqueles que lhe violam. É interna, contra aquilo que aflige as entranhas.

Alguns exagerados já estão considerando a possibilidade de Cage ser indicado ao Oscar na próxima premiação - e, nunca é demais lembrar que Hollywood adora uma boa história de "redenção" entre seus astros, que podem sair do ostracismo (ou da decadência) para, em pouco tempo, se tornarem figuras requisitadas e de altos salários. Foi assim com Robert Downey Jr., Michael Keaton e Mickey Rourke, pra ficar em três exemplos. Se Cage conseguirá sair das frequentes nominações ao Framboesa para voltar a ser cotado para o mais famoso carecão dourado do cinema, ainda não temos como saber - e nunca é demais lembrar que o astro já faturou a estatueta de Melhor Ator em 1996, pelo clássico cult Despedida em Las Vegas (1996). E, vamos combinar, a entrega dele neste papel é realmente comovente, uma vez que evita a caricatura, apostando em nuances, olhares e outros cacoetes que formam a personalidade complexa desse protagonista - e que ajudam a tornar o filme melhor do que, aparentemente, ele poderia ser.


quarta-feira, 21 de julho de 2021

Podcast do Picanha Cultural #8 (Segunda Temporada) - Filmes Sobre Grandes Amizades

Ontem, 20 de julho, foi o Dia do Amigo - aquela data em que você homenageia aqueles que, em muitos casos, são mais família do que a própria família (e que fazem você passar vergonha nas redes sociais). E, foi pensando nisso, que resolvemos fazer um apanhadão de filmes que tenham as grandes amizades como parte do arco narrativo. Lembra do Tom Hanks chorando copiosamente o desaparecimento da sua BFF Wilson em Náufrago (2001)? É um bom ponto de partida para que imaginemos o que simboliza uma relação desse tipo. De clássicos como Thelma e Louise (1991), passando por obras oitentistas como Clube dos Cinco (1985), até chegar em filmes mais atuais, como, Eu Te Amo, Cara (2009) não foram poucas as películas que investiram em pessoas que, em muitos casos, possuíam personalidades distintas mas que, ali adiante, encontrariam afinidades, se aproximariam. É tipo a minha amizade com o Bernardo e com o Henrique: jamais imaginei nutrir simpatia por alguém que gosta de Emo. E cá estou! Aceitando de boas as diferenças. Bora dar play que tá divertido!


Picanha em Série - Hacks

De: Desiree Akhavan, Lucia Aniello e Paul W. Downs. Com Jean Smart, Hannah Einbinder e Carl Clemons-Hopkins. Comédia, EUA, 2021, 310 minutos.

Eu confesso a vocês que tenho assistido poucas séries - dado o investimento de tempo necessário pra que acompanhemos esse tipo de produção. Mas fui atraído por Hacks não apenas pelo hype, mas também por ser uma comédia da HBO Max de apenas 10 episódios, de cerca de meia hora cada. Ou seja, algo relativamente tranquilo pra quem gosta de maratonar algo no final de semana. E, sinceramente, eu não paro de me impressionar com a HBO, já que Hacks é simplesmente espetacular. Da sua premissa, passando pelas piadas (e pelo roteiro engenhoso), tudo é divertido e leve, deixando espaço para algumas reflexões sobre temas como, feminismo, papel da mulher na sociedade, busca desenfreada pelo capital e conflitos geracionais. Indicada ao Emmy, Jean Smart dá vida a Deborah Vence, uma veterana comediante de formato stand up que, próxima dos setenta anos de idade, precisar oxigenar a sua carreira, que parece estar em decadência. É aí que ela contrata, meio a contragosto, a jovem Ava (Hannah Einbinder), com a intenção de atualizar o seu repertório de piadas. E, bom, se essa premissa por si só já é ótima, imagina o resto!

Como de praxe nesse tipo de produção, essa será a história a respeito de duas pessoas que são completamente opostas uma da outra que, aos poucos, se aproximarão, estabelecendo algum tipo de amizade. Sim, Deborah se torna a "patroa" meio involuntária de Ava, uma jovem meio petulante que, nos dias atuais, seria aquela cruza entre as gerações Z e millenial. Desse contraste, brotam algumas das grandes sacadas de Hacks. Mas também muitos momentos emocionantes - como aquele em que, no terceiro episódio, a jovem resgata materiais antigos da veterana (guardados em um porão), para se dar conta do pioneirismo desta em um universo povoado não apenas por homens, mas por homens misóginos, toscos e abusivos. Sim, Ava, como muitas jovens, tem o ímpeto de mudar o mundo, tornando-o um espaço mais adequado para as mulheres. Só que ela parece esbarrar apenas na "força do discurso", enquanto a sua atual empregadora, por mais eventualmente espalhafatosa que ela possa parecer, exercitaria esses ideias na prática, nos ainda ultraconservadores anos 70.

E isso, no fim, fará com que elas percebam que, sapatos de salto alto e tênis street a parte, elas não são assim tão diferentes. E admito que vê-las, em uma das primeiras sequências juntas, atacando uma a outra com as mais bárbaras agressões em formato de piadas irônicas (e baixas) é um dos grandes instantes da temporada. E que dá conta dessas semelhanças entre ambas. As épocas são diferentes mas, ao cabo, as intenções seguem as mesmas. E, conforme Ava mergulha no universo de Deborah, a jovem passa a mudar também o olhar para si, para os seus comportamentos e hábitos. Sim, pagar boletos, tomar café da manhã e utilizar hashtags pode ser cringe para essa as novas gerações. Mas vergonha alheia MESMO é ficar perguntando se o restaurante oferece leite de soja com o objetivo de pagar de ambientalista. Oi? Soja? E, nesse sentido, a série é certeira em seus comentários sociais, deixando espaço para a critica à "militância de sofá", representada pelo jovem que questiona comportamentos do passado, mas que os reproduz no presente (ainda que, sob outros formatos).

Alternando momentos engraçadíssimos, com outros mais comoventes, a série ainda é perspicaz ao se apropriar das mais variadas referências culturais para fazer graça - e, eu particularmente adoro a metalinguagem como característica. É o caso, por exemplo, do momento em que alguém revela o fato de certa pessoa estar trabalhando em um filme do Richard Linklater, mas que o resultado disso só será sabido em 12 anos. Fora isso há espaço para citações à Thelma e Louise (1991), Liberace, Selena Gomez que surgem de forma natural, enquanto a dupla central convive com outras figuras que influenciam diretamente em suas vidas - caso do ótimo assistente de Deborah, Marcus (Carl Clemons-Hopkins), do produtor Jimmy (Paul W. Downs) e da filha da comediante DJ (Kaitlin Olson). E, no mais, eu dispensaria a destrambelhada Kayla (Megan Stalter), que parece ter sido escalada apenas pra fazer o papel da "gordinha atrapalhada". Renovada para a segunda temporada, a série abocanhou diversas indicações ao Emmy, entre elas na categoria Série de Comédia. A premiação ocorre em 19 de setembro e, não vamos negar, já tem a nossa torcida!

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Intocáveis (Intouchables)

De: Eric Toledano e Olivier Nakashe. Com François Cluzet, Omar Sy e Audrey Fleutor. Comédia dramática, França, 2011, 112 minutos.

Quem acompanha o Picanha de perto talvez possa se surpreender um pouco com a grande quantidade de feel good movies, de obras com arcos narrativos edificantes ou de filmes em que predomina a visão de mundo mais otimista diante das dificuldades, que tem aparecido nesse humilde site. E, confesso a vocês, essa é uma decisão meio deliberada: sim, não esquecemos as obras alternativas, de mais profundidade, ou que se apoiem em discussões políticas, sociais e culturais mais relevantes. Mas, por outro lado, os tempos seguem pesados e, muitas vezes, especialmente no final de semana, só queremos relaxar, curtir, (tentar) sorrir. E, para que objetivos como estes sejam atingidos, obras como a francesa Intocáveis (Intouchables) seguem, com o perdão do trocadilho, intocáveis. Penso que não haja quem não goste desse filme. E os motivos não são poucos, indo do elenco carismático - François Cluzet e Omar Sy têm uma entrega comovente -, passando pelo roteiro baseado em fatos reais (e, certamente, recheado de licenças poéticas), até chegar ao desfecho satisfatório.

É, ao cabo, uma história sobre amizade, que se apoia no bom e velho clichê que coloca frente a frente duas pessoas de personalidades completamente opostas que, aos trancos e barrancos, aprenderão a conviver e a se respeitar. Um clássico do gênero, diga-se. Aqui, o filme começa com o desempregado Driss (Omar Sy) indo até a casa do ricaço tetraplégico Philippe (François Cluzet), com o objetivo de conseguir uma assinatura que lhe viabilize acessar o programa de auxílio desemprego fornecido pelo Estado. Sim, de saída a ideia dele nem é trabalhar e, sim, apenas vencer a burocracia que lhe exige uma documentação. Só que Philippe, tratado por Driss sem nenhum tipo de comiseração que a cadeira de rodas lhe poderia despertar, tem a sua atenção chamada justamente por este fato. O homem, de péssimos modos por sinal, não age com compaixão. Quer apenas o papel assinado. Pra sair logo daquela imponente mansão que lhe distancia da sua realidade. Só que ele sai de lá com uma oportunidade. Um inesperado trabalho. Que, na real, ele nem queria.

Nas minhas poucas experiências com Pessoas com Deficiência (PCDs) - e o meu trabalho na extensão rural me possibilita isso -, muitas vezes ouvi a queixa de que a privação não é sinônimo de incapacidade. Um cego, por exemplo, não está impedido de "ver" de outras formas, seja por meio de cheiros, texturas, sons. O mesmo valendo para pessoas que possuem algum tipo de limitação dos movimentos, como no caso de Philippe. Nesse sentido, ele não deixou de existir como sujeito - e é assim que Driss, mesmo sem nenhuma experiência, lida com ele. Em uma noite em que o cadeirante sofre uma forte e dolorida crise de dor, por exemplo, Driss o leva para um passeio pela madrugada de Paris, para respirar um pouco de ar, para se enxergar como alguém que vive. E para se acalmar. A terapia é a mais correta? Não temos como saber. Philippe toma, certamente, uma série de medicamentos. Como complemento, Driss lhe entrega amizade, companheirismo, compreensão, paciência. À moda dele: brigando, as turras, rindo e chorando. E conforme a película avança, vamos combinar, é impossível conter as lágrimas.

Sim, a gente sabe que Intocáveis talvez seja um filme cheio de imperfeições, de inconsistências de arroubos que tornam mais poética do que é, a vida de um homem que só pode movimentar do pescoço pra cima. Mas é quando assistimos a este tipo de material que conseguimos exercitar a empatia, a compaixão. De olhar o outro para que, no fim, também possamos olhar para nós próprios. Para nossas vidas, cheias de anseios, de desejos, de inseguranças, de medos e frustrações. E se Philippe, preso a uma cadeira de rodas, tem tudo o que o dinheiro pode pagar, Driss, por outro lado, vive naquele lado de Paris menos glamoroso, em que imigrantes se acotovelam em conjuntos habitacionais superpopulosos - e Eric Toledano e Olivier Nakache não se eximem de exibir esse tipo de contraste. Sim, a luta de Driss por uma vida melhor não o impede de enxergar as discrepâncias existentes no modelo em que está inserido. Mas naquele instante, ali, naquele recorte, ele apenas quis tornar as coisas mais possíveis para Philippe. Ele pode andar, usar os braços, as pernas, ir para onde quiser. A "riqueza" do imigrante, ao final, é outra, é maior. É uma coisa que o dinheiro dificilmente paga. E é por isso que sorrimos tanto quando os créditos sobem.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Grandes Cenas do Cinema - Thelma & Louise (Thelma & Louise)

De: Ridley Scott. Com Geena Davis, Susan Sarandon, Harvey Keitel, Brad Pitt e Michael Madsen. Drama / Aventura / Ação, EUA, 1991, 130 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS]

Impressa para sempre no coração de qualquer cinéfilo, a cena final de Thelma & Louise (Thelma & Louise) é um marco não apenas visual, mas também simbólico. Estafadas, violentadas, perseguidas - pela polícia, por namorados/maridos escrotos, pelo contexto social patriarcal que junta ocupações patéticas e rotinas simplórias -, as protagonistas vividas de forma inesquecível por Geena Davis e Susan Sarandon se jogam de carro, em um desfiladeiro no Grand Canyon. Como uma espécie de medida extrema que visava a interromper o ciclo de violências a que estavam submetidas, a morte parece ser a única (e dolorosa) solução. Forte, impactante e surpreendente, o filme dirigido por Ridley Scott apresentou para uma geração ainda desacostumada com a pauta feminista, uma obra que tinha como fio condutor a luta pelo respeito a igualdade entre os gêneros. Nas aparências, um road movie aventuresco. Nas suas entranhas uma experiência potente, que desafiava as convenções.

E, de alguma forma, confesso que rever esse clássico noventista, que mal completou 30 anos de seu lançamento, me arrancou um sorriso. Sim, há uma melancolia generalizada que permeia toda a narrativa - e o o escaldante e arenoso Sul dos Estados Unidos parece contribuir de forma decisiva para essa sensação. Mas assistir Sarandon e Davis derrubando um por um os seus obstáculos - subvertendo a lógica e assumindo o protagonismo em sua literalidade (de arma na mão, sem medo de explodir miolos de sujeitos toscos, machistas, misóginos e de estupradores em potencial) - torna a experiência curiosamente atual. Em um momento político, cultural e social em que a masculinidade frágil é simbolizada por líderes inseguros e que não escondem a sua aversão às mulheres, o salto de carro para o abismo adquire um caráter quase messiânico. Diante de situações extremas, atitudes extremas. Que certamente levaram plateias embasbacadas para fora do cinema, enquanto os créditos subiam.

Mas Thelma & Louise, a despeito do "panfleto político" também segue inesquecível como narrativa de ação e aventura. O filme começa com as duas amigas - Thelma, uma dona de casa de vidinha ordinária (Davis) e Louise, uma garçonete sem muitas perspectivas (Sarandon) - com a intenção de fazer uma viagem de final de semana (ocasião em que terão uma espécie de folga do MUNDO em meio a pescarias, risadas e cumplicidade). Só que a coisa começa a sair do controle quando elas param em um bar típico daqueles do Sul dos Estados Unidos (no Estado do Arkansas), cheio de rednecks imbecilizados, que misturam religião, armas, motos e comportamento provinciano em igual medida. Depois de dançar e flertar com um desses sujeitos - um certo Harlan (Timothy Carhart) -, a ingênua Thelma vê a coisa sair do controle. Pior, só é salva de um estupro depois que Louise mata o homem que violentaria a sua amiga. Tudo no estacionamento do local.

E essa é a deixa para que as duas "batam em retirada". Em meio a planícies do Texas, do Novo México e do Arizona, a intenção será a de fugir para o México. Tentando passar despercebidas pela maioria das pessoas (e pela polícia). Na jornada conhecerão outras figuras que parecem impregnadas àquele contexto - um jovem cauboi (Brad Pitt em começo de carreira), um caminhoneiro babaca, com uma inexplicável autoestima hétero, um policial que parece figurante dos Simpsons. Além dos namorados/maridos, empenhados em "resgata-las" daquele idílio. E há a polícia, claro. Que tem apenas a informação de que um assassinato aconteceu. Mesmo que este tenha sido em legítima defesa. Ao cabo, trata-se de uma obra também sobre amizade - e sobre quais os limites destas -, que nos prende, em meio a cenários tão opulentos quanto desoladores. Não por acaso, o filme receberia seis indicações ao Oscar - com Callie Khouri tendo faturado a estatueta pelo seu bem amarrado roteiro. Simplesmente inesquecível.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Novidades em Streaming - Nem Um Passo Em Falso (No Sudden Move)

De: Steven Soderbergh. Com Don Cheadle, Benício Del Toro, Brendam Fraser, Kieran Culkin, Dave Harbour e Ray Liotta. Drama / Comédia  Policial, EUA, 2021, 115 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Steven Soderbergh não pode se queixar de sua versatilidade, afinal de contas, ele trafega muito bem nos mais variados estilos - seja no "drama de tribunal" (Erin Brockovich), passando pela ficção científica nem tão distópica assim (Contágio), até chegar ao noir moderno que mergulha no mundo do contrabando de drogas (Traffic). Isso sem contar a trilogia dos "homens e um segredo", o tipo de obra que reuniu elenco estelar abordando o universo dos roubos mirabolantes. E foi apenas mais recentemente que ele enveredou para a comédia farsesca naquele estilo que cruza Guy Ritchie com Irmãos Coen - e que mistura violência estilizada com senso de humor excêntrico. Foi assim com Logan Lucky: Roubo em Família (2017) e também com A Lavanderia (2019), com o expediente se repetindo neste Nem Um Passo Em Falso (No Sudden Move), um dos destaques da recém chegada plataforma de streaming HBO Max.

A trama é um pouco enrolada e pode exigir do espectador um pouco mais de atenção para, em meio a tantos personagens que vão surgindo, conseguir conectar os pontos. Ainda que na realidade haja um fio condutor, quando voltamos no tempo, mais precisamente para a cidade americana de Detroit, no ano de 1955. É lá que dois criminosos do "baixo escalão" - no caso Curt (Don Cheadle) e Ronald (Benicio Del Toro) -, são recrutados por um chefão de identidade desconhecida para roubar um documento de grande importância (e que parece ter informações confidenciais a respeito da política local). Só que já no começo as coisas saem do controle quando a morte de um terceiro participante - um certo Charley (Kieran Culkin, o irmão de Macaulay) - ocorre, de forma meio inesperada. Pra não se ver em maus lençóis a dupla bola uma estratégia bastante arriscada pra tentar sobreviver. E, bom, a partir daí temos o nosso filme.


Mais divertidas e curiosas do que as inúmeras reviravoltas que ocorrerão no transcorrer da narrativa - com grandes parte das personagens tentando passar a perna umas nas outras -, é ver a quantidade absurda de astros que Soderbergh reuniu. E não dá pra negar que tudo vai ficando melhor conforme os atores vão entrando na história. De saída temos Brandan Fraser com quase 200 quilos (ele está fazendo um outro filme em que vive um sujeito com obesidade mórbida), encarnando o motorista da dupla - e que pouco revela sobre o seu contratante. Depois temos Ray Liotta como uma espécie de chefão porra louca (sim, ele se presta bem pra esse papel com aquela cara de ALUCINADO). Há ainda Dave Harbour (o eterno Jim Hopper, de Stranger Things), que é o cidadão comum que se torna bode expiatório justamente por ter informações privilegiadas. Isso sem falar em Julia Fox (Joias Brutas), Jon Hamm (Mad Men) e Miranda Richardson (Harry Potter), além das participações especialíssimas, que não vou nem comentar pra não estragar a surpresa de quem assiste.

Como não poderia deixar de ser nesse tipo de obra, não são poucos os instantes em que sorrimos quase involuntariamente, diante do absurdo. As piadas não são apenas visuais - o que é a MÁSCARA usada pelos bandidos? -, com muitas delas surgindo no texto, que é fruto do bem amarrado roteiro de Ed Solomon (Truque de Mestre). Adultério, traições, vinganças e outras picaretagens de todos os tipos vão surgindo conforme a dupla central avança em seu propósito, com o desastre sendo praticamente uma certeza. Utilizando a câmera grande angular como recurso narrativo, Soderbergh parece fazer questão de ampliar a profundidade de campo - o que gera também um certo desconforto nas sequências em que a ação ocorre no interior de casas, prédios e outros. O mesmo valendo para os infinitos contra-plongées, que focam os personagens de baixo para cima, o que os torna proporcionalmente maiores do que são (e que serve, provavelmente, para reforçar o ar de perigo daquele contexto em que estão envolvidos). Ao cabo, trata-se de uma obra em formato de quebra-cabeças, que pode te fazer ter vontade de reassisti-la assim que os créditos sobem. Ainda assim é uma sessão curiosa, engraçada e palatável. Vale conferir.

Nota: 8,0

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Cine Baú - Conta Comigo (Stand By Me)

De: Rob Reiner. Com Jerry O'Connell, Will Weaton, Corey Feldman, River Phoenix, Kiefer Sutherland e Richard Dreyfuss. Comédia dramática / Aventura, EUA, 1986, 89 minutos.

"Nunca mais tive amigos com o aqueles que tive aos 12 anos. Mas, por Deus, quem tem?" Dita quase ao final do filme pelo sensível Gordie (na fase adulta, vivido por Richard Dreyfuss), a sentença acima serve quase como um resumo da ideia geral que norteia a narrativa do clássico infanto-juvenil Conta Comigo (Stand By Me), do diretor Rob Reiner. Amigos verdadeiros, leais, com todas as suas virtudes e defeitos, erros e acertos, Gordie teve no início da adolescência. Mais do que isso: foi com eles que viveu uma aventura que marcaria as suas vidas para sempre. Era o caudaloso verão de 1959, na cidadezinha de Castle Rock, povoado de pouco mais de 1,2 mil habitantes no Estado do Oregon. Em uma tarde de tédio em que jogos de cartas se misturam com tragadas aleatórias em cigarros evidentemente impróprios para crianças, um afobado Vern (Jerry O'Connell) chega à casa na árvore para contar a novidade: há um cadáver nos arredores e eles podem descobrir onde ele está. Antes das autoridades, da polícia, da imprensa e de outros interessados.

Bom, essa é a deixa para que Gordie e Vern partam ao lado do intempestivo Teddy (Corey Feldman) e do durão Chris (River Phoenix) para tentar localizar o corpo. Avançando junto a um trilho de trem, percorrerão alguns bons quilômetros em dois dias, superando uma série de desafios - entre eles o dono pouco amistoso de um ferro-velho, e um local pantanoso povoado por sanguessugas. Fora o próprio trem que, mais de uma vez, se apresentará como um risco, sendo marcante a sequência em que o quarteto resolve atravessar uma ponte sem nenhum guard rail disponível. Trata-se ao cabo de uma jornada meio incerta, que terá o amadurecimento como destino. Ao procurar um corpo desfalecido o grupo, como num paradoxo, encontrará a "vida". Sairá para o mundo, mais ou menos como fizeram os jovens fugitivos do clássico literário Todos os Belos Cavalos de Cormac McCarthy.

Com ótimas interpretações do elenco central, a obra também aproveita as paisagens tão bucólicas quanto hostis do Oregon, para transformá-las no cenário idealmente inóspito para a aventura que acompanhamos. Do rádio que insiste em tocar canções antigas enquanto um locutor faz uma agradável narrativa genérica sobre o cotidiano local, chegando aos garotos mais velhos (e bastante maldosos) que praticam bullying e também estão em busca do cadáver, tudo contribui para o sentimento de nostalgia que rege a trama. Não por acaso, é praticamente impossível não se identificar com os diálogos meio sem sentido, mas inacreditavelmente apropriados dos quatro - com destaque pra sequência em que, em volta da fogueira, eles tentam decidir o que exatamente é o Pateta (já que o Mickey é um rato, o Donald é um pato e o Pluto é um cachorro). O mesmo valendo para a sequência que envolve um concurso de "comer torta" (aquele momento metalinguístico que parece um tipo de Stephen King dentro de um Stephen King).

Com uma única indicação para o Oscar, na categoria Roteiro Adaptado - o filme, aliás, entra na leva das boas adaptações da obra de King (ao lado de Um Sonho de Liberdade e Louca Obsessão, por exemplo) -, a obra se tornaria cultuada pela geração que cresceu nos anos 80, e que se acostumou com produções em que jovens quebravam a rotina indolente para viver algum tipo de aventura. Expediente desse tipo se repetiria em outros filme da Sessão da Tarde, casos de Curtindo a Vida Adoidado (1986), Os Goonies (1985) e mesmo produções menores, como a inesquecível Os Herois Não Tem Idade (1984). Talvez o sabor de nostalgia também tenha a ver com isso. Com o fato de que as produções ficaram "grandes" demais para uma análise mais íntima, mais direta e mais conectada com os anseios, desejos, medos e sonhos do pré-adolescente comum.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Podcast do Picanha #7 (Segunda Temporada) - Melhores do Primeiro Semestre

Sim, a gente sabe que vocês adoram listas de melhores - nós também gostamos MUITO - e é por isso que resolvemos fazer uma relação dos grandes lançamentos desse primeiro semestre de 2021. Sim, a pandemia continua, a vacinação avança devagar, mas a vida segue e, não dá pra negar, as artes continuam nos ajudando a enfrentar esses dias de tanta provação. Filmes, discos, músicas, séries, livros, podcasts, o que quer que seja. Que dialogam ou não com os nossos tempos. Que servem para entreter - como o álbum Esperança da Malu Magalhães -, ou para refletir, caso do ótimo Solução de Dois Estados do escritor gaúcho Michel Laub. E, como não poderia deixar de ser num caso como esse, houve muuuuita discussão. Muita mesmo! E do clima de discordância foi que brotou um dos melhores episódios dessa temporada - que, pra melhorar mais, contou com a participação do nosso ex-futuro-parceiro de Picanha, Henrique Oliveira. Bora clicar porque segundou e ainda dá tempo de se atualizar. Até mesmo porque essa segunda metade de ano promete! 


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - The Strokes (Is This It)

Vou abrir esse texto com uma confissão: por mais que a gente saiba que o tempo passa rápido - e ele tem passado voando, mesmo em meio à pandemia - me parece meio difícil aceitar que já faz 20 anos que a banda The Strokes lançou o, agora icônico, Is This It. Vinte anos! Vinte anos que as Torres Gêmeas seriam derrubadas. Vinte anos que a doença da Vaca Louca surgia como um excêntrico boato que comprometeria as importações de carne brasileira. Duas décadas de uma embrionária internet bastante lenta, ainda discada - utilizada com mais intensidade após à meia-noite. Vinte anos da morte de Jorge Amado e da primeira edição da Casa dos Artistas. É incrível pensar que, naqueles anos, nos preparávamos para o momento em que Lula seria alçado à presidente, ao mesmo tempo em que o Brasil venceria a sua última Copa do Mundo. E, nós, éramos um grupo de pós-adolescentes que iam para a finada Lupus Land ao som de Last Nite, The Modern Age, Someday e outras. Sim, o álbum chegaria ao mundo no dia 27 de agosto de 2001. Meu pai, o seu Ènio, tinha 40 anos. Hoje sou eu que tenho essa idade.

Os tempos eram tão outros que quem me mostrou o disco de Julian Casablancas e companhia pela primeira vez foi o Rodrigão - aliás, o amigo Rodrigo Macedo da Silveira me honra com a sua amizade até hoje. Sabe-se lá porque, naqueles anos, ele era uma espécie de referência quando o assunto eram as novidades culturais. Bem mais velho do que a gurizada que iniciava a faculdade de Jornalismo na Univates - e, consequentemente com mais acesso, com mais recursos financeiros -, era ele quem nos falava dos filmes, dos discos, dos shows previstos e do que mais estivesse rolando no período. Hoje, com a situação completamente invertida pelas vicissitudes da vida, essa condição é motivo de chacota e a piada costuma ser justamente essa: a de que a última vez em que o Rodrigão nos apresentou algo realmente novo, que representaria um legítimo ponto de ruptura, foi com o Is This It. As caixas de som do Santanão nunca mais seriam as mesmas. Nem os ouvidos da vizinhança enquanto nos esgoelávamos entoando Last Nite num inglês meio macarrônico, que replicaríamos mais tarde no show no Pepsi On Stage.

Sim, eu peço desculpas a vocês pelas eventuais licenças poéticas, mas os textos desse quadro costumam ter essa verve bastante particular, sendo inevitavelmente recheados por subjetividades. Falar, afinal de contas, sobre como os Strokes equilibrariam a urgência do rock'n roll tocado sem firulas, que emulava aquilo que os Rolling Stones e o Velvet Underground já faziam há bastante tempo, talvez seja chover no molhado. Exagero na paixão desenfreada? Talvez. Lembro de ter passado por algum tipo de arrebatamento musical poucas vezes na vida. Talvez quando escutei o Nevermind, do Nirvana, ainda na minha infância. Mais tarde com o OK Computer, do Radiohead. Vá lá. Outros discos me emocionaram - casos do Modern Vampires of the City do Vampire Weekend, do Boxer do The National e do Deserter's Song do Mercury Rev. Juro, não foi o caso aqui. Mas ouvir um rock com menos invencionice, menos programação eletrônica, com aquele clima garageiro, enquanto My Sacrifice do Creed tocava nas rádios, com aquela pompa de quem fazia algo grande (mesmo sem fazer), era quase um alívio. 

E talvez não tenha sido por acaso que tantas bandas tenham aproveitado o hype para dar uma oxigenada nesse padrão como um todo. De Franz Ferdinand, passando pelo The White Stripes até chegar ao Arctic Monkeys, a "moda" do coletivo de terninho descolado comprado no brechó e do cabelo cuidadosamente desgrenhado, por alguns anos, faria a alegria das festas dos cursos de Comunicação Social mundo afora. Para o desespero dos puristas que, naqueles dias, ainda acreditavam  no rock "de verdade" como uma criação do Led Zeppelin ou do The Doors. Cantar, afinal, sobre frustrações amorosas e dores cotidianas ao som de baixo, guitarra e bateria com um vocalzinho enfumaçado, meio "bêbado", convenhamos, parecia não ser nada de mais. Mas era uma forma, vá lá, de resgate, de algo que parecia ter se perdido no decorrer dos anos 90. Algum tipo de nostalgia pulsante que, paradoxalmente, nos conectava ao mundo tecnológico, computadorizado e apressado que viria dali pra frente. A gente teima muitas vezes em voltar para o passado - muitas vezes fazendo isso de forma errada. "De muitos modos eles sentirão falta dos bons e velhos tempos / Algum dia, algum dia" entoaria Casablancas em tom quase premonitório no começo de Someday, até hoje uma das favoritas. Ele estava certo?

terça-feira, 6 de julho de 2021

Cinemúsica - Clube dos Cinco (The Breakfast Club)

De: John Hughes. Com Emilio Estevez, Anthony Michael Hall, Molly Ringwald, Judd Nelson e Ally Sheedy. Comédia dramática, EUA, 1985, 97 minutos.

Acho que poucas vezes na história do cinema, um filme ficou tão "amarrado" à sua trilha sonora, como no caso de Clube dos Cinco (The Breakfast Club) - o libelo adolescente dirigido por John Hughes (Curtindo a Vida Adoidado) e que era figurinha fácil na Sessão da Tarde três décadas atrás. Sim, basta que ouçamos os primeiros acordes do clássico Don't You (Forget About Me) do Simple Minds - que até hoje toca com assiduidade nas rádios com programação light -, para que nos recordemos dessa pequena joia sobre cinco adolescentes que, de castigo em um sábado qualquer, precisam escrever juntos uma redação de mil palavras que lhes alivie da punição. Completamente diferentes entre si, os cinco quase não sobrevivem à prova da quebra de estereótipos tão comuns em filmes do gênero, sendo representados pelos arquétipos do atleta (Emilio Estevez), do bad boy (Judd Nelson), da patricinha (Molly Ringwald), do nerd (Anthony Michael Hall) e da esquisitona (Ally Sheedy).

Os problemas de cada um variam das dificuldades de relacionamento com os pais, passando pelas inseguranças típicas da juventude (a longa discussão sobre virgindade dá um indicativo a respeito da supervalorização do tema), até chegar naquele anseio de mudar esse mundo careta, conservador e anacrônico no qual eles estão inseridos (em que adultos com roupas como as do Barry Manilow decidem como eles devem agir). Iconoclasta em muitas etapas - ainda que, atualmente, alguns instantes possam soar meio datados -, o filme já abre com uma inesquecível sequência em que cada um dos cinco jovens chega à contragosto na escola, enquanto a canção que norteia a película vai ocupando nossos ouvidos. Em cada corte da montagem inicial, um pequeno fragmento que dá conta do tipo de vandalismo que o educandário precisa lidar (lixeiras viradas, pichações aleatórias, prédios depredados). E um diretor linha dura (Paul Gleason), que trata de enquadrá-los.

Analistas como a crítica da Revista Empire Joanna Berry destacam que um dos grandes méritos do filme, é o de "finalmente mostrar adolescentes como realmente falam e pensam". Nesse sentido, não há muito espaço para concessões. Para começar o linguajar chega a ser perversamente chulo, com direito a sugestões que aludem a agressões sexuais, que rapidamente derivam para a verbalização generalizada de ressentimentos. Especialmente no início a relação é truncada. E, assim será por um bom tempo, já que cada um deles têm motivo para estar de cara com a situação. Será lá pelo meio do filme, em meio a uma tentativa frustrada de fuga, que culminará em uma sessão coletiva de maconha (o volume de fumaça gerada é típica dos filmes de humor que brincam com a situação), que os ânimos começarão a ser apaziguados. Com cada um ouvindo mais do que falando, compreendendo um ao outro, e percebendo que podem ser muito mais parecidos do que suas vestimentas ou preferências musicais fazem parecer crer.

É uma mensagem simples de aceitação do diferente, que parece ser ecoada pelo lirismo perfeito da música do Simple Minds, com sua costura ambiguamente radiofônica e classuda, que é complementada pela letra etilicamente romântica - Eu estarei dançando sozinho, você sabe, baby / Me conte seus problemas e dúvidas. No livro Música Pop no Cinema, o jornalista precocemente falecido de covid-19 Rodrigo Rodrigues lembra que a canção foi escrita exclusivamente para a obra, após outros artistas como Pretenders, Billy Idol e Brian Ferry declinarem do convite. O resultado? O coletivo inglês que circulava discretamente pelos inferninhos, sem fazer muito barulho, foi catapultado para o estrelato graças ao sucesso comercial da música (tocada à exaustão naqueles efervescentes anos 80). Já, para o público, permanece até hoje na "retina" a imagem esmaecida de Judd Nelson na conclusão da obra, com o braço erguido e óculos escuros - um adolescente vitorioso, que parece ter conseguido levantar a cabeça para encarar o mundo de frente. Inesquecível.