terça-feira, 30 de julho de 2024

Picanha em Série - The Boys (4ª Temporada)

De: Eric Kripke. Com Antony Starr, Erin Moriarty, Jack Quaid, Karl Urban e Karen Fukuhara. Comédia / Ação / Policial, EUA, 2024, 525 minutos.

Assistindo a quarta temporada de The Boys ficou mais fácil de entender por quê o nerdola reacionário e de extrema direita ficou rasgando o c* em desespero com o que viu. Porque por mais óbvia que fosse a temática da série ou o tipo de crítica que ela faz - algo que fica claro desde, sei lá, a primeira meia hora do episódio piloto -, é na mais recente safra de capítulos que é escancarada toda a cafonice, a hipocrisia, o falso moralismo, a picaretagem e a realidade paralela dos cidadãos de bem conservadores. Aquele mesmo sujeito que vota em Trump - ou Bolsonaro - sob o suposto véu do patriotismo, da higienização étnica e da quebra do status quo e que se retroalimenta da maior quantidade possível de fake news e de produtos genéricos, infantilizados e óbvios, é aqui retratado de uma forma exageradamente caricata, estereotipada e um tanto realista. Em uma sociedade em que marmanjos de quarenta anos de idade reclamam no Twitter sobre o avanço da cultura woke - ou seja lá o que for isso -, enquanto agem como adolescentes tardios que se regozijam com filmes de bonequinho e alimentos ultraprocessados, o tiro (com o perdão do trocadilho) não poderia ser mais certeiro.

Nesse sentido, não deve ser fácil para o nerdola básico que veste orgulhoso a sua camiseta engraçadona, em que se vê algum meme de supremacia branca, ver esse paradigma da luta óbvia do bem contra o mal, do nós ante eles, do heroi de capa virtuoso, loiro, branco e hétero que antagoniza o vilão sujo, periférico, pobre e maltrapilho sendo devidamente quebrado. Aliás, não apenas quebrado, mas ridicularizado. Tudo que envolve, afinal, a megacorporação Vought - que é simplesmente quem "fabrica", literalmente, os herois da série que, como uma espécie de milícia institucionalizada, agem violentamente sob a desculpa de garantir a segurança do cidadão de bem -, é brega, antiquado, retrógrado. As produções para o cinema são em série e maniqueístas. Não há novidade para além da abordagem do "bandido bom é bandido morto", com derivações para histórias motivacionais ou de superação dispostas em um discurso meritocrático que não vai para além do rasinho. Da mesma forma, os programas de TV são inodoros, insípidos e indolores, adotando aquele discurso moderno à moda Idade Média sobre anticomunismo, identidade de gênero, globalismo, grande despertar, Estado profundo, redpillagem e todo o combo que, a exceção dos doidinhos de bairro de redes sociais, ninguém acredita.

 


 

Sim, ao cabo The Boys reforça a ideia até meio clara de que a leitura da Bíblia alternada com visitas ao clube de tiro para, no futuro, poder praticar todo e qualquer tipo de violência meio sádica, não parece combinar. Muitas vezes a abordagem pode soar um tanto hiperbólica ou exagerada, mas, novamente, vendo os extremistas de direita dando piruetas de desgosto nas redes sociais ao perceberem que eles eram muito mais a piada e menos os cidadãos corretos e acima da média que acreditavam ser, é um escárnio pra lá de saboroso. Aliás, pra quem ainda não tinha se dado conta, em termos de vida real, que um sujeito vestido de Batman portando uma motosserra e vociferando um "viva la libertad carajo" ou um outro concedendo a esse primeiro uma medalha de imbrochável e incomível já seria algo ridículo o suficiente (e nada heroico), o Capitão Pátria (o ótimo Antony Starr, que merecia todos os prêmios possíveis por sua caracterização como protagonista) aparece para dobrar a aposta. A vida real muitas vezes pode superar a ficção. Mas as coisas misturadas e com os limites burlados podem ficar mais evidentes, naturalmente.

Aliás, sobre o Capitão Pátria, interessante notar como, a despeito de seu sugestivo nome, ele não deixa de ser uma mera criança mimada com superpoderes, que não hesitará em destruir toda a qualquer pessoa que tente se colocar em seu caminho. Por sinal, é nessa temporada que o ideal de "fuzilar adversário político", de tentar fazer "minorias se curvarem a maiorias" e por aí vai, é levada mais ao pé da letra. Como um sádico em uma escalada de poder, essa é a conversa que parece reger a existência desse sujeito - ainda que os episódios recém lançados evidenciem a perda da autoestima (especialmente por estar envelhecendo) e a necessidade constante de bajulação. Sendo incapaz de perder, o Capitão Pátria encarna o narcisista torpe, xucro, que só sabe conversar na linguagem da violência, do sangue, do raio laser e da morte. Em resumo, um projeto de fascista que se fantasia de super heroi - o que garante que ele seja seguido como um Messias por um séquito de alienados, opacos e que parecem ter sofrido uma permanente lavagem cerebral dos programas de notícias da própria Vought, que mistura Fox News com Jovem Pan, com doses inseguras de teorias conspiratórias sob um véu de suposta isenção.


 

Não por acaso, em certa sequência o Capitão Pátria simplesmente aniquila alguém que ousou lhe questionar, em público, diante do rebanho de rednecks bem alimentados, rosados, brancos e barbudos. "Posso sair na rua e atirar em alguém que eu não perderei votos", afirmou Donald Trump certa vez. É o que acontece nesse instante onde patriotas se regozijam em um tipo de anarquismo difuso que se pauta pelo ódio, pelo preconceito, pela intolerância, pela branquitude e pela heteronormatividade. A suposta diversidade, as causas sociais ou ambientais são apenas fachada - e a Vought sabe trabalhar esses aspectos muito bem. Em resumo, nessa quarta temporada esse combo de escrotidão geral da extrema direita é mais do que ampliado - com os vilões sendo paradoxalmente os mocinhos. Onde, supostamente, estariam os extremistas, os assassinos, os pedófilos, que costumam ser alvos de alguma nova teoria conspiratória em evolução, está justamente quem luta para tentar salvar a democracia. A gente já viu esse filme onde a vida imita a arte. Significa que do outro lado do balcão todo mundo é perfeito, incorruptível, heroico e ético? Não, definitivamente não. Kimiko (Karen Fukuhara), Franchie (Tomer Capom), MM (Laz Alonso), até a Luz Estrela (Erin Moriarty), todos têm esqueletos no armário, traumas do passado, escolhas erradas e arrependimentos e precisam lidar com eles. De arrancada, o controle pretendido pelo grupo liderado por Butcher (Karl Urban) poderia parecer mais vilanesco do que era - ainda mais com o apoio meio torto da CIA. Mas essa impressão se dissipa após meia hora da primeira temporada. E, dali adiante, só resta se divertir. Não apenas com o discurso pretendido e com a alegoria para os tempos que vivemos. Mas também com as sequências engraçadas, sangrentas, excêntricas, histriônicas. Talvez The Boys seja a melhor série da atualidade. Sem que ninguém tenha de ficar berrando num restaurante pra isso.

Nota: 9,0


quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pérolas da Netflix - Matar Jesus (Matar a Jesús)

De: Laura Mora Ortega. Com  Natasha Jaramilo, Giovanny Rodriguez e Juan Pablo Trujillo. Drama / Suspense, Colômbia / Argentina, 2017, 95 minutos.

Assistir ao ótimo Matar Jesus (Matar a Jesús), me fez lembrar de uma outra obra - no caso, o tenso O Filho (2001). E ainda que sejam filmes completamente diferentes entre si, há algo que une ambas as experiências, especialmente no que diz respeito ao exame dos ciclos de violência social, o medo como parte da rotina e quais os fatores que desencadeiam esses sentimentos - muitos deles ligados a traumas do passado e dores que apenas se reproduzem, sem muita explicação. Na produção dos Irmãos Dardenne, acompanhamos um carpinteiro enlutado pela perda do filho em um assassinato mal explicado, que contrata um jovem aprendiz que, mais tarde, descobriremos ser justamente o criminoso do passado. Já na obra dirigida pela colombiana Laura Mora Ortega, e que é baseada em fatos reais ocorridos na sua adolescência, uma jovem se aproxima perigosamente do sujeito que matou seu pai, meio que do nada.

Claro, como eu já disse, são experiências distintas - uma sul-americana, com todos os seus signos e códigos urbanos, de motos e asfaltos com seus barulhos urgentes; outra europeia, com elementos mais contemplativos, num cinema de espaços mais apertados e claustrofóbicos. No cerne esse aspecto de alguém que tem uma informação sobre o passado - e que poderá usá-la como uma forma de obter vantagem. Vingança? Talvez. Mas o caso é que as coisas podem ser mais complexas do que supõe a mera lógica do "bandido bom é bandido morto". No caso de Paula (Natasha Jaramilo), a protagonista de Matar Jesus, ela simplesmente assiste à morte do próprio pai, o carismático professor universitário de Ciências Políticas de Medellín, José Maria (Camilo Escobar), após um ataque perpetrado por uma dupla de sicários em uma moto. Sem uma resposta efetiva da polícia - não há sequer um suspeito, muito menos uma motivação -, Paula fica desalentada ao saber que o caso será arquivado.


 

Isso até uma noite em que Paula vai à boate com amigos. E esbarra justamente com Jesus (Giovanny Rodriguez), o jovem que, de acordo com as suas lembranças (ela pôde ver seu rosto de relance), foi o responsável pelo ato cruel. De forma discreta, ela tenta elaborar um plano para dar cabo do bandido. O que envolve uma aproximação, que avança para um estranho flerte - com um convite para a visita a um ponto mais ermo da cidade. Mas, se você não é um assassino, como você procede? Paula esconde em sua mochila, junto de seus equipamentos de fotografia - prática da qual ela é uma entusiasta -, uma garrafa quebrada. A tática pode dar cabo do rapaz? Sem muita certeza, ela mantém contato com um traficante das redondezas, um tal de Gato (Juan Camilo Cárdenas), que pode lhe ajudar a conseguir um revólver. Mas será que essa proximidade com esse outro espectro da criminalidade lhe fará bem? Até que ponto ela vai, tendo ainda o risco de ser descoberta?

Em meio a policiais corruptos, familiares preocupados e uma violência que parece se avizinhar a todo momento, em cada esquina da turbulenta cidade colombiana, a protagonista tenta juntar a coragem necessária para executar seu objetivo. Mas qual o sentido de continuar esse ciclo sem que tudo piore ainda mais? O delegado local, sugere que ela saia dali. Esqueça tudo o que aconteceu. Mas isso também é viável? Contrastando os figurinos coloridos, as luzes brilhantes da cidade ao anoitecer e as músicas hipnóticas e sensuais, com o cinza dos prédios e a crueza dos cenários de periferia, Laura Mora Ortega esmiuça o tecido social sem apelar para o maniqueísmo barato. Na realidade não há mocinhos e bandidos quando o sistema como um todo está um tanto falido. Quando um lado da cidade sofre de forma chocante com a realidade. Alguém precisará baixar a arma. Dar o primeiro passo. Pensar em algum tipo de redenção. E certamente não será um processo fácil.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - Cigarettes After Sex (X's)

Vamos combinar que, enquanto a imprensa musical (supostamente) especializada bate cabeça na busca por formas de deslegitimar a música feita pelos texanos do Cigarettes After Sex, a banda capitaneada por Greg Gonzalez segue firme no seu propósito de fazer com maestria a sua especialidade - no caso, canções sussurrantes, sensuais, de fim de madrugada à meia luz, que servem como a trilha sonora perfeita em meio a vinhos cheios de taninos e lençois de cetim com milhares de fios. Não, não há nada de diferente em X's - o terceiro registro de inéditas do trio -, que não tenha aparecido antes nos igualmente belos Cry (2019) e no homônimo trabalho de estreia, que veio ao mundo em 2017. Ok, de lá pra cá houve uma pandemia, o mundo mudou, o próprio Gonzalez passou pelo trauma de um rompimento amoroso. A música em si? Segue sofisticada, classuda, sensual e lânguida. Exatamente como aprendemos a amar.


 

Aliás, o número de streamings nas plataformas de áudio não mentem. O coletivo é um fenômeno de reproduções digitais - por mais monocórdico ou introspectivo que o grupo possa, eventualmente, soar. Isso não significa que não haja intensidade, emoção, ou algo mais poderoso nos versos. Mas o vocalista explica que o seu canto, especialmente nesse terceiro disco, vem de um "lugar de vulnerabilidade". "E eu gosto de coisas que me façam sentir gentil, especialmente se é música íntima. Eu estou canto de uma forma mais quieta porque é assim que você falaria com alguém se você estivesse abraçando a pessoa, segurando-a o mais próximo possível, falando nesses tons realmente silenciosos. É como uma carta de amor", explicou o músico em entrevista ao site Independent. O resultado é uma coleção de canções sobre a complexidade dos relacionamentos, românticas mas profundas, cheias de idas e vindas e bons refrãos, como comprovam as ótimas Silver Sable, Hideaway e Dark Vacay.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader)

De: Jamie Babbit. Com Natasha Lyonne, Clea Duvall, Cathy Moriarty e RuPaul Charles. Comédia / Romance, EUA, 1999, 85 minutos.

Se em pleno 2024 o conceito de cura gay parece um tanto bizarro - a despeito do moralismo barato dos reacionários da extrema direita, e de seu pânico permanente diante de qualquer coisa que fuja da heteronormatividade -, no final dos anos 90 esse tipo de assunto talvez fosse menos comentado. O que, de forma paradoxal, amplia a potência desse divertidíssimo Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader) - obra da diretora Jamie Babbit que se ocupa de parte dos clichês ligados a preconceitos propagados pelos "cidadãos de bem", para convertê-los em uma coleção de piadas debochadas. Dos cenários multicoloridos - com destaque para o rosa que, como diria a tal ministra, é a cor que as meninas usam -, passando pelos figurinos cafonas, até chegar aos diálogos caricatos, no cerne da experiência parece haver uma profunda crítica ao conservadorismo torpe e ao comportamento antiquado de uma parcela da sociedade.

Sim, a preocupação com a sexualidade alheia como uma espécie de mecanismo para lidar com as próprias frustrações quando o assunto é a intimidade, não é exclusividade dos extremistas de direita de hoje, que seguem figuras patéticas como Bolsonaro, Milei ou Trump. No passado, aliás, a situação era ainda pior, com os tais acampamentos para terapias de conversão sendo efetivamente levados a sério - como supostos espaços de cura para gays e lésbicas que, a partir de uma série de atividades, seriam capazes de reencontrar os seus caminhos (uma balela, aliás, sempre ligada à Igreja, a Cristo e ao seu provável ódio a qualquer ser de padrão desviante, como acreditam os religiosos mais fanáticos). E é pra um desses espaços que a jovem Megan Bloomfield (uma Natasha Lyonne bem novinha, antes do sucesso em Orange Is the New Black) - uma loirinha padrão que, de quebra, é líder de torcida - é enviada pelos pais, após ela dar alguns sinais de que, talvez, goste de pessoas do mesmo sexo.


 

Aliás, os tais sinais podem até ser estereotipados, mas são genuinamente engraçados. "Você tentou nos fazer comer tofu", afirma a mãe de Megan, enquanto esta é inquirida, como se a mera sugestão ao veganismo pudesse ser um indício de (des)orientação sexual. Na mesma sequência, o pai da jovem aponta para um cartaz de Melissa Etheridge e uma pintura de Georgia O'Keefe também como sinais de um certo pendor ao gayzismo - o mesmo valendo para as fotos de mulheres de biquíni mantidas no armário da escola. "Você sequer gosta de me beijar" reforça Jared (Brandt Wille), o namorado padrão da garota (e de fato ela não gosta). Toda essa intervenção é acompanhada de perto por Mike (RuPaul Charles, em um papel que só amplia o caráter iconoclasta e de autoironia do projeto), um ex-gay que agora trabalha na clínica apropriadamente chamada de True Directions, e que será um dos responsáveis pela recondução de Megan à heterossexualidade.

Tudo é exagerado e kitsch, com as etapas da suposta conversão de Megan - num esforço coordenado pela diretora meio fascistoide Mary Brown (Cathy Moriarty) - só a afastando mais da tal redescoberta de sua identidade de gênero. A ideia do espaço é a de promover uma série de tarefas - que envolvem desde meninos rachando lenha e meninas simulando a vida de donas de casa -, que as devolveria a esperada orientação sexual. Claro que a coisa vai dar errado, ainda mais quando Megan conhece a estudante Graham Eaton (Clea Duvall), uma garota cheia de personalidade e que parece mais confortável com seu lesbianismo, por quem ela se apaixonará. Orbitando as duas, uma série de outros jovens também participam do processo que, a cada novo acontecimento, só se mostra mais sem sentido - e é meio bizarro pensar que milhares de jovens foram enviados a esse tipo de acampamento em décadas passadas. Repudiado pela crítica na época do lançamento - aliás, como qualquer filme mais ousado de décadas anteriores -, o projeto, primeiro filme dirigido por Babbit, receberia anos depois status de cult (sendo exibido atualmente na Mubi). Vale redescobrir.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Novidades em Streaming - A Filha do Palhaço

De: Pedro Diógenes. Com Lis Sutter, Demick Lopes, Jupyra Carvalho e Jesuíta Barbosa. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.

"Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Afirma que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: 'O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.'O homem se desfaz em lágrimas e, após um tempo, diz: 'Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci." Vamos combinar que o trecho acima, extraído de Watchmen - em um dos tantos instantes comoventes protagonizados pelo personagem Rorschach -, virou meio que um lugar comum, sendo replicado a todo momento na internet. Especialmente na era do meme, a figura do palhaço triste - alguém que, supostamente, deveria fazer uma plateia rir, mas que não consegue lidar com sua própria dor -, se torna uma caricatura quase óbvia. Fácil. Sendo reproduzida de forma meio literal no ótimo A Filha do Palhaço, do diretor Pedro Diógenes e que está disponível para aluguel no Now.

A trama é bastante simples, mas é daquelas que mexe com a gente. E que coloca em primeiro plano o contraste entre o riso e o choro, a alegria e a melancolia - como uma espécie de exercício de vida real bastante eficiente, de fácil identificação. Na abertura acompanhamos Renato (o ótimo Demick Lopes), um humorista que está no palco de um bar caracterizado como Silvanelly - uma drag queen meio desbocada, que faz aquele tipo de piada de tiozão. E que costuma arrancar gargalhadas dos fãs de programas como A Praça É Nossa. Com seu figurino multicolorido, maquiagem carregada e trejeitos exagerados, Silvanelly - que foi inspirada na Raimundinha, personagem interpretada pelo falecido Paulo Diógenes e que era bastante popular no Nordeste -, encerra sua apresentação em meio a aplausos tímidos e pouca empolgação. Só que, para Renato, o que era pra ser uma noite como qualquer outra, acaba virando de ponta cabeça com a chegada inesperada de sua filha, Joana (Lis Sutter).


 

E não demorará para que percebamos que essa é a típica história de tentativa de reconciliação entre pai e filha - apartados, no passado, por uma série de motivos. Cheia de dúvidas, a figura discreta de Joana entra de forma inesperada no mundo que contrasta cores exuberantes e sombras enevoadas de seu pai - que habita um apartamento minúsculo que, em alguma medida, escancara uma trajetória de luta e de superação de dificuldades. Aliás, dificuldades que só se apresentarão maiores - especialmente em uma sociedade ainda tão preconceituosa e intolerante como a nossa - a cada nova descoberta a respeito da trajetória do homem. O que teria motivado um abandono mais de uma década atrás? Há espaço para o perdão? Como lidar com esse vazio, esse lapso na conexão entre pai e filha que, agora distantes, tentam se aproximar mesmo tendo poucos vínculos? Com delicadeza, entre silêncios e tensões, esses nós serão aos poucos desatados. Sempre sem pressa, de forma comedida.

Hábil, o diretor converte a experiência com a obra em uma grande colagem de instantes delicados sobre um pai que busca se reaproximar - ainda que de maneiras meio tortas. Difícil não se emocionar quando o sujeito consegue, a pau e corda, uma TV de tubo meio antiga para que Joana possa se entreter assistindo algum filme em DVD (num daqueles paradoxos curiosos que envolvem pessoas oxigenadas em termos ideológicos, mas que parecem ultrapassadas quando o assunto é tecnologia). Ou quando a jovem defende o pai, em um episódio de homofobia. Joana vai para a casa do pai, sem que a mãe saiba. Aliás, mente pra ela a respeito de sua viagem. E descobre um universo culturalmente fervilhante - de teatro, de música, de literatura, de dança, de vida. A arte humaniza, aproxima. Une até mesmo aqueles que estavam afastados. Como fica claro no nostálgico momento em que a música Tô Fazendo Falta - clássico da virada do milênio na voz da Joanna -, é entoada pelos dois. Ao cabo, essa é uma obra sobre decisões nem sempre acertadas, arrependimentos e busca por redenção. Um conjunto que se torna ainda mais complexo para quem está à margem da sociedade.

Nota: 8,5


terça-feira, 16 de julho de 2024

Cinema - Clube dos Vândalos (The Bikeriders)

De: Jeff Nichols. Com Jodie Comer, Austin Butler, Tom Hardy, Michael Shannon e Mike Faist. Drama, EUA, 2023, 116 minutos.

Assim que finalizei Clube dos Vândalos (The Bikeriders) confesso a vocês que fiquei me perguntando a respeito do sentido desse filme ter sido feito - e, sim, eu tenho consciência plena de que a apreciação de um produto cultural não depende necessariamente disso. Não é preciso encontrar significado em tudo, especialmente quando o assunto é arte. Aliás, mais do que isso, a interpretação de cada pessoa dependerá de sua bagagem, experiências, vivências. Só que, aqui, rolou meio que uma sensação de vazio - e que talvez tenha a ver com o fato de que essa história ser excessivamente estadunidense. Ok, antes de os clubes de motociclistas funcionarem como uma espécie de antessala da extrema direita - no Brasil, em muitos casos, esses coletivos envolvem sujeitos bem nascidos que se reúnem para passeios "radicais" com suas Harley, enquanto reclamam do comunismo e das políticas sociais do governo Lula -, eles tiveram um embrião. E a minha dúvida era: esse tipo de comportamento sempre foi assim?

A resposta da produção dirigida por Jeff Nichols - de Loving (2016) -, parece ser: sim, sempre foi assim. Talvez com uma perspectiva um pouquinho diferente, mas sim. Quando surge nos anos 60, o Clube dos Vândalos - que existiu de verdade - era, sim, um grupo de adeptos da liberdade e da velocidade, que se reunia para conversas rasas, cervejadas, discussões acaloradas e brigas sem sentido. Mais ou menos como os bolsonaristas nos dias de hoje. Mas no seu embrião parecia haver uma espécie de código de conduta que, aqui e ali, foi se perdendo conforme a coisa foi crescendo. E gerando filiais nos mais variados estados norte-americanos. Que é quando a coisa descamba, a violência aumenta e o espírito aventureiro, à moda Sem Destino (1969), rock'n roll e contracultura, se esvai. E é justamente essa narrativa que é contada, em estilo documental, por Kathy (Jodie Comer), que conhece o integrante dos Vandals, Benny (Austin Butler, no modo James Dean das ideia), para se casar com ele apenas cinco anos depois.


 

A história é contada, em um arroubo metalinguístico, pelas lentes do fotógrafo Danny Lyon (Mike Faist, uma das estrelas do recente Rivais), que acompanha não apenas Kathy em seu relato, mas também os integrantes remanescentes do próprio grupo - entre eles o fundador Johnny (Tom Hardy, que entrega muito no papel do sujeito xucro, mas com algum senso de compaixão) e seu braço direito Brucie (Damon Herriman), que são orbitados ainda por outros integrantes da gangue, como o mal encarado Zipco (Michael Shannon) e o almofadinha Cal (Boyd Holbrook). Com idas e vindas no tempo, a narrativa contempla os desafios do grupo em se manter sólido, ao passo em que são desafiados por jovens supostamente rebeldes, que pretendem a todo o custo tomar o seu lugar de liderança - especialmente depois do surgimento de um sujeito irascível conhecido apenas como The Boy (Toby Wallace), que ameaça o grupo.

Em linhas gerais, o que o filme parece querer mostrar é como um coletivo pode simplesmente descambar se não estiver bem estruturado, organizado, talvez até com um estatuto bem consolidado, com tudo piorando em tempos de guerras (como a do Vietnã) e de incertezas sobre o futuro. Com tudo correndo meio solto não foi difícil de a coisa sair de um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são eventualmente misóginos e beberrões para um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são ainda mais misóginos e beberrões. Ao cabo, a motociata se converteria em um espelho extraído de Mussolini, para ser reconfigurado nos dias atuais como símbolo de uma extrema direita frustrada com os avanços do mundo. O que era contracultura e Born to Be Wild, do Steppenwolf nos anos 60, hoje em dia é preconceito, intolerância, óculos escuros, masculinidade tóxica e bandanas com os dizeres Make America Great Again. Se foi isso que Nichols quis mostrar, eu não consigo ter certeza. Entre a excêntrica camaradagem, os dentes podres, o ronco do motor e o barro e os homens que pretendem estuprar uma mulher em um bar a luz do dia, ou que quase decepam o pé de um suposto rival não parece haver muita diferença. É tudo meio parecido. Sem muito espaço para contradições.

Nota: 6,0


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Cinema - Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani)

De: Paola Cortellesi. Com Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Emanuela Fanelli e Romana Vergano. Drama / Comédia, Itália, 2023, 118 minutos.

Em uma das tantas cenas cheias de significados de Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani) está uma em que a sofrida protagonista Delia (Paola Cortellesi, que também dirige o projeto) está na fábrica de guarda-chuvas em que ela presta serviço. Seu chefe, um sujeito de modos rudes, a incumbe de ensinar o ofício a um jovem iniciante, que não parece muito satisfeito com o salário miserável que receberá no local. Conversa vai, conversa vem, Delia descobre que o rapaz vai ganhar mais do que ela - mesmo ela estando há três anos no local. Ao confrontar o patrão sobre o por quê disso, a resposta é direta, seca: "oras, porque ele é homem". Em linhas gerais esse é o tipo de instante que nos permite ter mais certeza a respeito do tipo de discussão que a diretora propõe: o de que o amanhã só poderá ser melhor se, em uma sociedade patriarcal, machista e misógina, forem aproveitadas todas as oportunidades que envolvam o futuro político, social e cultural de uma nação.

Na trama, o cenário é o ano de 1946, em uma Itália que pretende se reerguer no pós Segunda Guerra, em um cenário de devastação que era resultado da derrocada do fascismo. Delia é a mulher de meia idade típica do passado, que subsiste como uma dona de casa inferiorizada e insatisfeita, que é humilhada permanentemente pelo marido brutalizado e supostamente traumatizado pelo conflito - seu nome é Ivano (Valerio Mastandrea). E que, já na abertura do filme, desfere um tapa no rosto de Delia, ainda na cama, após um "bom dia" não bem recebido. As frustrações de Ivano - que parece ser aquele homem pequeno, conservador, fracassado e adepto da violência como moeda de troca - se espalham em outros integrantes masculinos da família, como é o caso do sogro Ottorino (Giorgio Colangeli), um decrépito e acamado idoso que, em meio a abusos à própria nora e certo saudosismo de Mussolini (como ocorre com o "cidadão de bem" médio), subsiste em meio a gritos e palavrões destinados a qualquer pessoa.


 

Delia sabe que, nesse cenário, sua vida talvez não mude. Ela já está próxima dos 50 anos e, a cada momento em que consegue escapar de casa para a realização de algum tipo de trabalho extra que lhe confira alguma renda - além da fábrica de guarda-chuvas, ela realiza costuras para lojas chiques e atua como enfermeira para famílias ricas -, ela vai juntando dinheiro, que pretende destinar a sua filha pós-adolescente Marcella (Romana Vergano). Grana para estudar? Nada. Estudar não é coisa para as mulheres - ao menos é o que pensam os homens da família de Delia. Seu sogro chega a lhe alertar de que ela "é uma boa esposa, só tem de aprender a ficar calada". O dinheiro servirá para a aquisição de um belo vestido de noiva, especialmente depois de Marcella conhecer Giullio (Francesco Centorame), um jovem bem nascido filho de um empresário da cidade. Mas será esse, de fato, o melhor "amanhã" para Marcella? Ser a dona de casa supostamente bem casada, que repetirá um ciclo?

Uma carta que chega a Delia de forma meio inesperada, poderá representar um despertar. Além desse bilhete, a protagonista tem em seu entorno uma improvisada rede de apoio, que lhe ajuda a alterar a sua percepção sobre o mundo - além da melhor amiga, a feirante Marisa (Emanuela Fanelli), há o vizinho e mecânico de automóveis Nino (Vinicio Marchioni) e o soldado afroamericano William (Yonv Joseph). Os temas envolvendo quebra de padrões, papel da mulher na sociedade e luta contra a opressão têm inegável impacto, que parece ampliado se levarmos em conta a fotografia em preto e branco, que torna o cenário mais áspero. Ainda assim há um quê de otimismo em relação ao futuro, especialmente quando se leva em conta o papel transformador da participação das mulheres na vida pública (de forma coletiva, organizada e buscando o melhor para si). É uma obra afetuosa e realista, que dialoga muito com o presente, e que foi a mais assistida da Itália no ano passado. Em um País que parece disposto a abraçar novamente o fascismo, como indicam algumas pesquisas de opinião, é um alento. 

Nota: 8,5


terça-feira, 9 de julho de 2024

Novidades em Streaming - Evidências do Amor

De: Pedro Antônio Paes. Com Sandy, Fábio Porchat, Evelyn Castro, Larissa Luz e Fernanda Paes Leme. Comédia / Romance, Brasil, 2024, 100 minutos.

Vamos combinar que a ideia por trás de Evidências do Amor é muito boa, afinal de contas a música de José Augusto que seria eternizada na voz da dupla Chitãozinho e Xororó, talvez seja, ao lado de Amigo Punk, da Graforreia Xilarmônica, a mais conhecida do País. E basta ir para uma festa com karaokê - qualquer festa, independente do tema -, e não vai demorar para que alguém se aventure nos versos pegajosos da canção, sem vergonha alguma de desafinar. É um verdadeiro Hino, adaptado para outros gêneros musicais - do pagode ao axé, passando pelo metal e até pelo rap (como fica claro já na sequência inicial, em que uma ótima montagem percorre os mais variados espaços onde a música é executada nos mais diversos estilos). Aliás, o karaokê em si é o ponto de partida dessa carismática comédia romântica dirigida por Pedro Antônio Paes. E que tem Evidências como elemento central.

Na trama, a médica Laura (Sandy, em excelente atuação) encontra por acaso o desenvolvedor de aplicativos Marco Antônio (Fábio Porchat, em uma entrega meio Fábio Porchat das ideias), em uma noite de festa. Ainda desconhecidos e, por uma enorme coincidência, solicitam ao mesmo tempo uma ficha para cantar no karaokê o clássico sertanejo. Claro que tudo não vai passar de uma desculpa para que Evidências se torne, como não poderia deixar de ser, a música de suas vidas. Especialmente depois de o casal se apaixonar, a despeito de suas diferenças - Marco Antônio é mais palhação, naquele estilo adolescente tardio que a gente vê em filmes do Adam Sandler, sempre com uma piadinha na ponta da língua, ao passo que Laura é mais centrada, a ponto de ter deixado meio de lado uma promissora carreira de cantora para se dedicar à medicina. Eles se gostam, óbvio. O tempo passa. Mas a coisa cansa. Desanda. E Laura resolve terminar com Marco Antônio por mensagem de celular, semanas antes do casamento, que já tinha data marcada.

 


 

Um salto temporal faz a história avançar um ano no tempo. Marco Antônio está bem no trabalho. Aliás, a frustração vivida no relacionamento faz ele criar um aplicativo que visa justamente facilitar a logística de casais que estão se separando. A rotina segue mais ou menos tranquila, entre cornetas matinais envolvendo a síndica do seu condomínio, Júlia (Evelyn Castro, que consegue ser naturalmente engraçada, o que é sempre um mérito), e o ideal de seguir em frente. Só que, em certo dia, o sujeito entra em um elevador em que o sistema de som - conectado a uma rádio popular - anuncia Evidências como a próxima canção a ser executada. Marco Antônio desmaia. E entra numa espécie de looping temporal em que ele volta no tempo para reviver algum acontecimento com a ex. E sempre será uma memória triste. Desconfortável. Em que ele não consegue enxergar com clareza os problemas. E o fato de Laura precisar lidar, muitas vezes, com a sua pior versão.

Ao cabo, essa curiosa mistura nacional de Feitiço do Tempo (1993), com Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) é a famosa história de segunda chance, que costuma costurar as comédias românticas. Há espaço para tentar novamente? A gente já viu milhares de vezes a mesma narrativa, mas o fato de ser uma obra brasileira, que ainda se utiliza da popularidade de Evidências para a criação de uma mescla de ficção científica com sátira romântica torna tudo absolutamente prazeroso. Porchat pode ser meio histriônico em alguns momentos, mas tem um ótimo timing pra comédia, isso é inegável - e são muitas as sequências aparentemente improvisadas que funcionam bem (especialmente as com Evelyn, sua parceira de Porta dos Fundos). Já Sandy tem aquele estilo corpóreo meio retraído, que forma um bom contraponto à expansividade de Marco Antônio. É óbvio que não vai mudar o mundo. Mas tem seu charme. E quando sobem os créditos, a gente nem percebe que o tempo passou. Assim como já se passaram 35 anos do lançamento de Evidências. Que segue sendo amada não apenas no Brasil. Mas no mundo. E nessa loucuuuura!

Nota: 7,0


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - The Decemberists (As It Ever Was, So It Will Be Again)

Quem acompanha a carreira dos americanos do The Decemberists, sabe que a banda andava devendo um álbum realmente bom desde, ao menos, o ótimo The King Is Dead (2011). Claro que a peteca nunca caiu, mas o aceno para um pop mais convencional nos trabalhos recentes - como no caso do pálido I'll Be Your Girl (2018) -, parece ter decepcionado os fãs mais antigos, que estavam acostumados àquele folk barroco que mais parecia saído da trilha sonora de alguma peça de teatro épica, em que narrativas grandiosas e melancólicas em igual medida pareciam o ponto de encontro perfeito entre florestas, cavaleiros, criaturas mágicas, fantasmas e caramanchões, com os aspectos mais mundanos da existência humana. Aliás, um tipo de união meio rara que sempre fez o som do coletivo soar único, quase no limite entre as melodias ensolaradas dos Beach Boys e os temas sombrios de um REM fase Automatic for the People (1992).

 

 

Aqui, esse expediente luminoso mas soturno, carnal mas abstrato, pode ser percebido já na abertura, com Burial Ground, uma canção com o DNA do Decemberists, de construção onírica e refrão pra cantar junto. Já Long White Veil pode ser uma música sobre a morte - ainda que de forma alegórica -, mas que possui uma polidez festiva irresistível, que acompanha uma letra sobre luto e superação (Eu casei com ela, eu a carreguei / No mesmo dia eu a enterrei). Claro que, aqui e ali, os temas lúgubres se sobrepõem, ainda que sempre com aquele brilho meio literário, como no caso da sombria Don't Go to the Woods e suas cordas pungentes, que se alternam com o acordeão comovente. Ou de The Black Maria, com a sua fluidez ondulante, conduzida pelos vocais luminosos de Colin Melroy. Ok, precisava terminar com uma música de quase 20 minutos, num flerte exagerado com o progressivo? Talvez não. Mas no nono álbum em mais de vinte anos de estrada, eles se dão ao direito.

Nota: 8,0


Tesouros Cinéfilos - I Saw the TV Glow

De: Jane Schoenbrun.Com Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Danielle Deadwyler e Fred Durst. Drama / Terror, EUA, 2024, 100 minutos.

Pra quem cresceu nos anos 90, como é o meu caso, pode ser meio estranho não pensar no componente alienante que pode vir atrelado à tela de TV - com seus programas de gosto eventualmente duvidoso e sua atual oferta praticamente infinita. E, eu lembro como se fosse hoje, do dia em que a MTV adentrou a casa da minha família - e, simplesmente, de uma hora pra outra era possível assistir à Tonight, Tonight do Smashing Pumpkins, talvez um dos videoclipes mais bonitos da história (e que, em alguma medida, tem conexão com I Saw the TV Glow, essa tão falada joia do cinema alternativo), em uma tarde de verão qualquer, da cidade de Lajeado, lá pelo ano de 1996. O canal musical era só uma das opções advindas da TV a cabo, que possibilitaria assistir produções juvenis como Dawson's Creek, Friends ou Buffy A Caça Vampiros. O mundo da televisão, afinal, era maior do que previa o programa dominical. Ou os limites da vizinhança na cidade pequena.

Tudo bem que, como obra de amadurecimento, esse é só um componente que chama a atenção na produção dirigida por Jane Schoenbrun - que funciona como veículo ideal para um exame da adolescência como um período de descobertas e de limites, em que as coisas podem ser mais sombrias (ou menos luminosas). Ainda mais para a comunidade LGBTQIA+, que parece ser o público-alvo mais claro do longa - por mais que o assunto seja universal. Sensorial, quase onírica, a produção já abre como um plano médio de uma rua asfaltada pintada por um giz de tons neon, que se somam a trilha sonora enevoada, que, mais adiante juntará nomes como Caroline Polachek, Yeule e Phoebe Bridgers. Quando nos deparamos com o jovem Owen (Justice Smith) à frente da TV, já estamos absorvidos por aquele universo de ruas pacatas e de jardins encharcados da cidadezinha do subúrbio, que é invadida pelas cores vivas que saltam da TV. Owen fica simplesmente obcecado por uma série de TV chamada The Pink Opaque, exibida sempre nos sábados de noite, a partir das 22h30 - e que sua mãe simplesmente não o deixa assistir, porque ele é obrigado a ir dormir mais cedo.


 

Movido pela intenção de simplesmente assistir a série - que parece unir uma série de elementos e lugares-comuns típicos das produções adolescentes dos anos 90, com seu maniqueísmo macabro e amizades juvenis esparsas -, Owen acaba por fazer amizade com a melancólica Maddy (Brigette Lundy-Paine), uma garota do nono ano, que surge na escola com o maior objeto de desejo de todos: uma espécie de guia de episódios de The Pink Opaque. De todas as temporadas. Juntos, eles assistem às escondidas um dos episódios, com Maddy passando a gravar em uma fita VHS todos os demais. Uma pequena subversão que os conecta durante algum tempo, até o dia em que Maddy simplesmente desaparece. No mesmo dia em que a série, que envolve duas jovens telepaticamente conectadas enfrentando monstrengos sobrenaturais legítimos da cultura nerd - como um sorvete gigante e supostamente assustador -, tem um encerramento abrupto e trágico. Fora outros traumas, muitos deles ligados à família - e seu conceito normativo.

Quem já está mais habituado a linguagem dos filmes da A24 vai encontrar ali os pontos de conexão, que envolvem temas, como, identidade de gênero, arte como veículo universal de formação, sensação de pertencimento, incertezas quanto ao futuro e mesmo nostalgia do que não se viveu. Num resumo bem resumido - e nada definitivo -, o filme parece nos querer dizer que crescer não é fácil, amadurecer é pior - especialmente se você for um jovem queer, que opta por permanecer fechado em uma concha como uma espécie de fuga de uma sociedade preconceituosa e pródiga em decidir sobre a sexualidade alheia. Em certa altura, quando Owen pergunta para seu pai se ele pode assistir The Pink Opaque, o homem, vivido por um quase irreconhecível Fred Durst (sim, o vocalista do Limp Bizkit), questiona: "esse programa não é de mulherzinha?". Se ajustar aos padrões e as expectativas sociais pode ser complicado. Assim como não é fácil "matar" alegoricamente um eu que não existe, para fazer nascer outro. Mas ainda estará em tempo, como o filme nos lembra de forma não tão sutil. Pode dar vontade de gritar - e talvez seja necessário. rasgar o peito. Deixar sair. Como se fosse uma espécie de limpeza da alma. E que nos permitirá, assim, ver os limites da ficção serem finalmente ultrapassados. Para que a realidade se imponha. Vale demais.


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tesouros Cinéfilos - Rosetta (Rosetta)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Émilie Daquenne, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet e Anne Yernaux. Drama, Bélgica / França, 1999, 94 minutos.

"Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não vai cair na rotina. Eu não vou cair na rotina. Boa noite." É mais ou menos na metade de Rosetta - obra dos irmãos Dardenne que venceria a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1999 (uma surpresa, aliás, já que o favorito era o Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar) -, que a protagonista vivida pela ótima Émilie Daquenne tem uma espécie de epifania, que faz com que ela fale sozinha. Na modesta casa de Riquet (Fabrizio Rongione), deitada na cama, ela divaga sobre ter encontrado um emprego, ter feito uma amizade, ter agora uma vida normal. Como se fosse uma espécie de mantra, ela repete as frases como se, ao verbalizá-las em voz alta, elas pudessem ter mais força. Afinal de contas, tudo que a jovem deseja é uma rotina repetitiva. É ter um dia a dia como o de qualquer outra pessoa.

Só que ela simplesmente não consegue - e quem acompanha a filmografia dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sabe que seu cinema bastante cru e sem firulas é daquelas que aborda as mazelas humanas, os contrastes sociais, a dureza do mundo e a hipocrisia da sociedade de forma direta e um tanto naturalista. Nas suas obras não costuma haver a problemática espetacularização da pobreza ou da miséria - com arroubos estilísticos e aparatos técnicos hiperbólicos que servem como mera distração para aquilo que efetivamente interessa. Em uma produção como Rosetta não há muito espaço para respiro. A câmera seca está sempre grudada no rosto e no corpo da protagonista - aliás, por vezes ela parece quase confusa, trêmula, como se fosse um objeto invasivo, a atrapalhar a ação. A impressão que se tem em muitos casos é a de se estar assistindo um documentário, tamanho o realismo das imagens, a veracidade das sequências (dramáticas, violentas, caóticas).


 

Aliás, aqui o filme já abre com uma Rosetta aflita que circula por corredores apertados daquilo que parece ser uma pequena indústria não se sabe bem de quê. Em tom de súplica, a jovem "foge", mas, curiosamente, para dentro do local de trabalho. Ela não quer sair dali. Quer ficar. Tem uma mãe alcoólatra pra lidar, uma existência miserável em um trailer improvisado e precário em que volta e meia falta tudo (de gás a luz), e um monte de contas para pagar. Independência? Individualidade? Esquece. A vida de Rosetta se resume a um cubículo fechado, que só é desocupado quando sua mãe se prostitui como forma de quitar dívidas. Ou pra manter o vício em bebidas. A caminhada de Rosetta na abertura do filme é simbólica, alegórica. É longa, deprimente, entre escadarias infinitas e espaços opacamente iluminados. "Eu quero ficar", implora, enquanto seu chefe explica que seu período de experiência terminou e ela não mais trabalhará ali. Um tumulto acontece, a polícia é chamada, todos vão ao chão.

Essa será a deixa para que os Dardenne, como de praxe, examinem a precariedade do universo do trabalho, exatamente como fariam outras vezes, mais adiante, em obras doloridas como O Filho (2001) ou Dois Dias, Uma Noite (2014) - o primeiro sobre um sujeito que contrata um jovem que supostamente assassinou seu filho, o segundo sobre uma mulher que empreende uma via crúcis para preservar seu emprego, após retornar de uma licença saúde. Em Rosetta, a protagonista está sempre apressada pra lá e pra cá, em uma busca desenfreada por alguém que simplesmente lhe permita trabalhar. Que lhe assine uma carteira. Que lhe confira dignidade. Ou alguma qualidade de vida. Que lhe ajude a amenizar as cólicas recorrentes, a solidão retumbante, o desalento comovente. É uma obra dura em que as brigas são mundanas e as metáforas gritam, como no instante em que a jovem joga fora peixes dados como um "presente" à mãe, para tentar pescar no lago do entorno as suas próprias carpas. "Não somos mendigas", argumenta. Evidentemente, em obras assim não há muita solução para além da resignação, diante da completa falha do capitalismo nem tão tardio. Se a gente ri no final, se é que ri, é de nervoso.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Cinema - A Grande Fuga (The Great Escaper)

De: Oliver Parker. Com Michael Caine, Glenda Jackson e Danielle Vitalis. Drama / Comédia, EUA / Reino Unido, 2023, 97 minutos.

"Você está bem? Não, não estou, estou muito velha". Vamos combinar que o subgênero dos filmes com idosos sendo carismáticos e ranzinzas não chega a ser uma novidade e, em linhas gerais, é um formato que em muitos casos agrada tanto o público quanto a crítica. Afinal de contas todos nós iremos envelhecer - e lidar com todas as decorrências da proximidade do ocaso da existência é algo demasiadamente humano. Assim, quando A Grande Fuga (The Great Escaper) abre e nos deparamos com um Michael Caine já com 90 anos, com a aposentadoria já anunciada, diante de uma praia plácida em um dia acinzentado, com as ondas do mar em sua fluidez natural, é meio que impossível não pensar na vida e nos seus ciclos, nas idas e vindas e voltas, mas também na chegada em um ponto final. Ali, ainda naquele preâmbulo, parece que não pensamos tanto no filme que assistiremos, mas em tudo o que passou. Ainda mais quando se trata de um grande ator como Caine - um astro premiado, duas vezes agraciado com o Oscar, e certamente um dos maiores de sua geração.

Nesse sentido é meio difícil não ficar enternecido ainda nos primeiros segundos da produção dirigida por Oliver Parker que, para simplesmente acontecer, contou com um grande esforço físico não apenas de Caine, mas também da ótima Glenda Jackson que, com mais de 40 produções no currículo como atriz, viria a falecer meses depois deste, que seria oficialmente o seu último trabalho. Então todas essas circunstâncias parecem nos deixar mais predispostos a atenuar as eventuais críticas ao projeto, ou mesmo relevar a forma condescendente com que, em muitos casos, os velhos são tratados nos filmes. Quando Irene, a personagem de Glenda, afirma que não está bem porque está muito velha, a gente se comove com a honestidade da sua expressão severa diante dessa dura constatação. Ainda assim não deixa de ser divertido perceber como são delas as melhores tiradas, como no instante em que uma enfermeira lhe pergunta se está bem, pra ela responder de forma áspera e gentil em igual medida um "na minha idade você está basicamente ferrada", seguida de um "o médico já me disse pra eu não iniciar livros longos".


 

Ao lado de Bernard Jordan, o personagem de Caine, com quem é casada há mais de cinquenta anos, Irene é a habitante de uma tranquila casa de repouso do Reino Unido. Só que Bernard está inquieto. O ano é 2014 e se aproxima a data da comemoração dos 70 anos do Dia D, que marca a chegada dos aliados à Normandia - ele, um veterano da Marinha Real Britânica que estava no front naquele 1944, em plena Segunda Guerra Mundial. Impossibilitado de participar das festividades por não ter conseguido um convite antecipadamente, Bernard é incentivado por Glenda a simplesmente ir até o local por conta própria. No caso, fugir até a França, em segredo. Baseada em fatos reais, a história tem um componente a mais de dramaticidade, já que a saúde de Glenda não anda das melhores - o que é evidenciado pelo seu comportamento nostálgico, investigando cartas e documentos do passado, ou mesmo discos e outros itens que funcionarão como a ponte para uma série de bonitos flashbacks sobre como ela e Bernard se conheceram nos anos 40.

Em alguma medida esse é um filme de fácil digestão. Ou melhor, é muito simples de se gostar. Não há um grande aparato técnico ou estripulias excessivas - aliás, por recomendação médica, Caine só podia trabalhar cinco horas por dia, mas Parker afirma que, se dependesse do ator, ele se ocuparia durante as 24 horas do dia. Talvez como uma forma de estender um pouco mais aquela que, muito provavelmente, será a sua última vez diante das câmeras. Na fuga para a Normandia, Bernard é identificado pela imprensa, após uma temporada de encontros com antigos fuzileiros e comandantes, em meio a bebedeiras e memórias do passado. E se torna uma espécie de microcelebridade local, após a hashtag #thegreatescaper ser subida no Twitter. O que não deixa de ser uma grande ironia - talvez uma alegoria para a fuga daquilo que nos destina - e também uma forma a mais de homenagear um grande astro, que esteve no elenco de clássicos variados, como Hannah e Suas Irmãs (1987), Regras da Vida (1999) e O Americano Tranquilo (2003). 

Nota: 7,5