De: Mahamet-Saleh Aroun. Com Achouackh Abakar, Rihane Khalil Alio, Youssouf Djaouro. Drama, Chade / Alemanha / Bélgica / França, 2020, 89 minutos.
No ano passado fez burburinho nos meio alternativos o filme Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020), sobre uma jovem adolescente que enfrentava uma verdadeira via crúcis para tentar interromper uma gravidez indesejada - que era resultado de um episódio de violência. E se já era difícil pra protagonista de uma obra que se passa nos Estados Unidos - onde as leis sobre o aborto variam de Estado para Estado, evidenciando uma certa esquizofrenia sobre o assunto -, imagina como não é em um País pobre da África. Especialmente em uma nação fortemente influenciada pela religião muçulmana, como é o caso do Chade. Assim, como no citado hit do cinema independente, em Lingui (Lingui) - o enviado do País ao Oscar desse ano -, o tema descriminalização do aborto está no centro da narrativa, colocando novamente os desígnios (ou os supostos planos) de Deus de um lado e a ciência ou mesmo a capacidade de decisão sobre o corpo de outro.
Sim, no Chade a prática do aborto é crime em qualquer circunstância. Até mesmo médicos que facilitam o processo podem ser incriminados, amargando cinco anos ou mais na cadeia. Assim, quando Amina (Achouackh Abakar) descobre que Maria (Rihane Khalil Alio), sua jovem filha de apenas 15 anos está grávida, resta apenas a clandestinidade como caminho. Aqui e ali, Amina percorre as ruas arenosas do subúrbio de N'Djamena determinada a encontrar quem faça o procedimento. Isso sem que os islâmicos que as rodeiam fiquem sabendo. Inconformada por não poder ir a escola a adolescente esconde, inicialmente, o segredo da própria mãe. Por vergonha, por medo - e a violenta reação da mãe ao saber da gravidez talvez explique o receio. Mas, mais adiante Amina e Maria perceberão que somente a partir da uma grande rede de sororidade conseguirão "enfrentar" a questão.
Amina, assim como Maria foi mãe aos 15 anos. Resultado de uma violência que a retirou do convívio da família e da comunidade religiosa. Taxada como impura por ter tido uma filha fora de um casamento - esse tipo de absurdo misógino que só é possível nos países mais conservadores (pra não dizer reacionários) -, a mulher vive à margem da sociedade, em uma habitação modesta, onde empreende produzindo peças de artesanato com restos de pneus. Caminho seguido também pela filha - e as cenas delas perambulando pelas ruas, tentando comercializar uma peça que seja de suas produções, são devastadoras. Buscando reunir o dinheiro para realizar o procedimento às escondidas, a dupla descobre, a muito custo, uma espécie de enfermeira clandestina que pode fazer o aborto. O medo é constante. As dúvidas permanentes. O surgimento de Fanta (Bryia Gomdique), a irmã de Amina, atrapalha. Mas também ajuda. As mulheres unidas, afinal, são a única possibilidade de mudança nesse cenário patriarcal.
Ao cabo trata-se de uma obra dolorida, mas que mantém um certo otimismo ao mostrar qual o caminho. Ou onde reside uma pontinha de esperança, que seja. Dirigido com maestria pelo sempre ótimo Mahamet-Saleh Aroun (do também excelente Um Homem que Grita, de 2010), é um filme que nos faz refletir sobre o absurdo de, em pleno ano de 2022, ainda haver a completa incapacidade de se discutir esse tema como ele realmente é: uma questão de saúde. Que envolve empatia, respeito ao outro, a seu corpo e suas decisões. Especialmente quando estamos diante de casos de violência - não só física, mas psicológica. Há uma cena em Lingui em que um sacerdote se recusa a um simples aperto de mão a Amina. Obrigando-a ainda a se cobrir (ela apenas estava com vestes de "ficar em casa"). O mundo precisa evoluir. E experiências cinematográficas como esta nos ajudam a, nem que seja, refletir. É um mérito da arte. Provocar, ousar, questionar. Pra alegria de quem curte cinema.
Nota: 8,5