sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Cinema - Jojo Rabbit (Jojo Rabbit)

De: Taika Waititi. Com Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie, Scarlett Johansson e Sam Rockwell. Comédia dramática / Guerra, EUA / Alemanha, 2019, 108 minutos.

Uma das coisas mais divertidas que Jojo Rabbit (Jojo Rabbit) faz é apostar no humor com a intenção de tornar o nazismo uma ideologia ainda mais absurda. E essa sensação é ampliada com a adoção de uma criança protagonista que não apenas é militante e defensora da pureza racial - que vê judeus como inimigos grotescos a serem combatidos -, como ainda tem como amigo imaginário uma espécie de caricata figura do Führer em "pessoa". Sim, se pra você é algo ridículo ver aquele seu vizinho criado a leite com pêra pela avó, que acredita que as dores do mundo são todas por culpa do PETÊ, experimente assistir a um grupo de crianças excitadíssimas com a ideia de participar de uma sessão de queima de livros. Sim, é algo completamente nonsense mas, em partes, é justamente isso que a obra de Taiki Waititi (que também interpreta Hitler) propõe: imaginar, na base do deboche, como seria a preparação (ou doutrinação) de uma massa de crianças alinhadas ao nacionalismo religioso de extrema direita - o famoso "combo nazista".

Nesse sentido, o menino de dez anos Jojo (Roman Griffin Davis), cresceu acreditando que o mundo ideal era o estabelecido pelos defensores do Reich. Desde novo integrando um grupo de crianças voluntárias no Campo Hitler, sofre um grave acidente com uma granada, após sofrer bullying por não conseguir matar um coelho (o que renderá seu novo apelido). Em sua casa, verá seu mundo virar de ponta cabeça quando descobrir, meio que por acaso, que a sua mãe (Scarlett Johansson) mantém uma jovem judia (Thomasin McKenzie) escondida em um cômodo. E será dessa forma que estará estabelecido o conflito: sem entender direito esse contexto, Jojo passará a desconfiar do comportamento da mãe, ao mesmo tempo em que se aproxima da jovem, que se chama Elsa. No campo de treinamento, por ter se ferido, participará de atividades prosaicas como distribuição de panfletos, entre outras.


É um filme que trata da Segunda Guerra com uma pitada de leveza quase surrealista, mas sem deixar de lembrar o espectador dos horrores vividos pelo povo alemão naqueles anos. Não por acaso, a película faz lembrar uma mistura entre o drama alemão Lore (2013) e o clássico italiano A Vida É Bela (1998), com Jojo modificando a sua percepção sobre a vida, sobre o mundo e sobre as pessoas conforme a sua jornada avança. De sua amorosa mãe aprende que o apreço pelas artes ou o simples gesto de dançar e confrontar o status quo não é coisa de "comunista". Já com Elsa, não demorará para compreender que havia algo errado no "desenho" dos judeus feitos pelos nazistas - e não é por acaso que cenas como aquela em que o menino Yorki (Archie Yates) fala que comunistas comem bebês e transam com cachorros se tornam tão rotundamente estúpidas (e até engraçadas). É como se, sei lá, alguém acreditasse em mamadeira de piroca ou no fato de que em algum País socialista, bebês de sete meses são masturbados.

Tendo como uma de suas forças, além da trilha sonora e da estética mais "colorida", o uso de imagens e de seu simbolismo - há uma cena em que as casas literalmente parecem ter olhos que observam -, o filme ainda utiliza o jogo de palavras para fazer a crítica ao debate que parece se estender à modernidade. Em uma formidável sequência, por exemplo, Jojo pede para que Elsa desenhe o que seria a sua casa. Após, ela entrega um desenho da cabeça de Jojo: "é que nós não saímos de suas cabeças nazistas", brinca ela. Ainda que eventualmente a obra soe excessivamente expositiva em seus diálogos - por exemplo, não era necessário DIZER que o capitão Klenzendorf (o sempre divertido Sam Rockwell) talvez estivesse disposto a ajudar Jojo e sua família, afinal a gente já tinha percebido isso com suas atitudes -, o filme se consolida como uma das boas surpresas desse começo de temporada, tendo sua indicação ao Oscar na categoria máxima como um bom "prêmio de consolação". Vale conferir.

Nota: 8,5


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Curta Um Curta - The Neighbors' Window

Um clichê meio batido diz que a "grama do vizinho é sempre mais verde". Mas será verdade mesmo? Será que por trás de vidas perfeitas - como aquelas que vemos no Instagram, por exemplo -, não existem realidades bem mais duras? Sim, a gente sabe que sim. Com toda a certeza. E digamos que o curta-metragem The Neighbors' Window, do diretor Marshall Curry, trabalha exatamente com este "conceito". Na trama um casal de classe média americana com dois filhos e mais um terceiro a caminho é surpreendido pelo jovem casal que mora no prédio em frente e que, sem pudores, ocupa boa parte de seus dias transando desavergonhadamente - sem se preocupar muito com cortinas ou com o fato de que alguém possa estar vendo. Obcecados por eles e pela ideia sexy da juventude descompromissada - algo para eles cada vez mais distante em uma rotina atarefada e com filhos -, eles perceberão mais tarde o fato de que a felicidade pode estar em coisas bem simples (e inalcançáveis para alguns). A mensagem é simplícissima, mas a condução do curta, indicado ao Oscar desse ano, é delicada, divertida e tocante. E há ainda a trilha sonora com música do The National, como a cereja do bolo. Vale conferir.

Lado B Classe A - Modest Mouse (Good News for People Who Love Bad News)

É simplesmente impossível falar de Good News for People Who Love Bad News, quarto álbum de estúdio dos americanos do Modest Mouse, sem citar Float On - seu grande hit. Peça central do registro, a faixa se tornou bastante representativa das pequenas alterações sonoras que já estavam em andamento em The Moon & Antarctica (2000) e que se consolidaram nesse disco. Nesse sentido, houve com o passar do tempo uma espécie de "polimento" dos arranjos, que distanciavam a banda do espectro mais ruidoso de seus primeiros trabalhos. Numa espécie de comparativo, costumo dizer que no começo da carreira, o Modest Mouse era uma espécie de Talking Heads depois de levar um "banho de sujeira" - se é que esse paradoxo é possível. Guitarras mais apressadas, vocais despretensiosos e aos gritos, percussão mais acelerada, produção enfumaçada. Com personalidade, esse aspecto mais cru do estilo caiu no gosto não apenas da crítica, como do público, dando a álbuns como The Lonesome Crowded West (1997) uma aura toda própria de urgência, intensidade e rock.

Mas foi com The Moon & Antarctica que esse ensaio para um rock mais comportado (ou convencional) começou a acontecer. Canções mais melodiosas e econômicas como a sinuosa Gravity Rides Everything - com sua guitarrinha ensolarada - apresentavam uma outra faceta da banda comandada por Isaac Brock. O expediente repatia-se em outras como Dark Center Of the Universe, The Cold Part e a ótima Paper Thin Walls, que eram rockões raiz que misturavam bateria, baixo, banjo, teclado num caleidoscópio musical sem pressa, que apresentava seus elementos aos poucos - o que não significava falta de explosão ou intensidade, como comprovavam músicas como Tiny Cities Made Of Ashes, com seu vocal torto, abafado e sua letra violenta e melancólica. As coisas apenas estavam mais claras, plácidas e possíveis de serem digeridas sem aquele amargor eventual - com idas e vindas bem pontuadas entre aceleração e introspecção. Bom, estava pavimentado o caminho para o disco seguinte, aquele que tinha Float On. E que fez este jornalista se apaixonar de vez.


Float On é aquele tipo de música acessível, perdida em meio a vocais que lembram um Danny Elfman do Oingo Boingo (mas mais otimista) e as melodias que conseguem ser ao mesmo tempo soturnas, circenses e primaveris e que tão repetidas mais adiante seriam, por grupos como Kaiser Chiefs, Franz Ferdinand e até Arcade Fire. Precursor destas, o Modest Mouse tornou mais acessível uma das pontas do indie rock - e não é por acaso que é simplesmente impossível fazer a canção desgrudar da sua mente depois de ouvida. Mas é aquele "grude do bem", que gostamos e queremos. Ainda mais com uma letra irresistivelmente otimista, capaz de tratar com deboche as ironias da vida (Eu dei de ré no carro de um policial um dia desses / Ele simplesmente saiu dirigindo, às vezes a vida é legal). Sim, é algo quase ingênuo, mas a vida já não é tão séria? E se apenas uma música consegue nos fazer esquecer isso por um instante que seja, já não faz valer a pena?

Bom, é óbvio que o Good News... não está no Lado B Classe A apenas por Float On - ainda que ela fosse quase suficiente para isso. A verdade é que o disco é uma grande coleção de canções. De momentos mais delicados e até divertidos, como em Bukowski, Blame In On the Tetons e na ótima e derradeira The Good Times Are Killing Me - todas elas estabelecendo um flerte com temas trazidos pela literatura beat (a sujeira do underground, os relacionamentos etílicos) -, a outros mais explosivos e intensos como em Bury Me With It e Dance Hall, a verdade é que se trata de um registro nem sempre homogêneo, com cada peça funcionando isoladamente, que resulta em um grande encaixe geral final. Não aparece em listas de melhores discos internacionais da história, aliás, não é nem o melhor disco do Modest Mouse (continua sendo The Moon & Antarctica). Mas é aquele que tem Float On e que nos faz ficar com os ouvidos mais atentos para cada curva sonora que mistura pouca lógica com acessibilidade. O pop, afinal, também tem lugar no coração dos alternativos. E foi aqui que a banda encontrou ele.



terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Pérolas da Netflix - Klaus (Klaus)

DE: Sergio Pablos. Com Jason Schwartzman, J. K. Simmons e Rashida Jones. Aventura / Comédia / Animação, Espanha, 2019, 98 minutos.

Pode até parecer meio batida a ideia de imaginar uma história que de conta do surgimento da lenda do Papai Noel, mas o filme Klaus (Klaus) faz isso te uma forma tão simples e tocante, que é simplesmente impossível não se emocionar. É o tipo de obra nostálgica, que vai fundo na nossa memória afetiva e que deixa, não é exagero, todo mundo as lágrimas no final da sessão. Aliás, talvez essa seja a animação favorita do público, entre as concorrentes ao Oscar 2020 em sua categoria. Na trama somos apresentados a Jesper (Jason Schwartzman), um filhinho de papai que vive na vida boa e que não quer nada com nada. Isso até o momento em que seu próprio pai, um grande empresário de uma agência postal localizada em alguma região gelada próxima ao Círculo Polar Ártico, lhe dá um ultimato: ou ele se interessa em trabalhar e a conquistar as coisas pelo seu próprio esforço, ou será deserdado. Em resumo: o pai não é adepto da meritocracia e quer que o piá aprenda o valor das coisas (e só esse começo, já dá uma bonificação em pontos à obra).

Bom, ele manda o próprio filho pro famoso c* do mundo: um povoado distante de tudo, uma ilha isolada e melancólica chamada Smeerensburg, onde ele deverá ser carteiro, com meta de cartas e tudo. A chegada ao local já é tenebrosa, com as habitações e o ambiente como um todo surgindo num espectro fantasmagoricamente abandonado, de cidade isolada - o e desenho de produção nessa parte é não menos do que fabuloso. Pior ainda: no local os moradores não são nada amistosos, com os dois clãs - os Ellingboe e os Krum -, vivendo em pé de guerra. Nesse cenário inóspito, nada acolhedor, Jesper tentará iniciar o seu ofício, sem muito sucesso. A situação se modificará um pouco quando ele descobrir, em uma ponta da ilha, um misterioso carpinteiro de nome Klaus (J. K. Simmons). Em sua casa, uma grande coleção de brinquedos de madeira será a chave para que as primeiras cartas apareçam, em uma das sequências mais desconcertantes e comoventes do ano.


Falando assim, talvez não seja possível dar a dimensão da forma como o filme transcorre. Tudo aquilo que envolve a "existência" do Papai Noel - o por quê de suas roupas, os motivos de entregar os presentes à noite, como surge o trenó (ou a famosa risada) em sua vida -, vai se descortinando em nossa frente de forma orgânica, fluída, sem pressa. Aliás, esse Klaus que inicialmente surge como uma figura misteriosa, introspectiva, aos poucos vai dando lugar a um sujeito afável, de bom coração (a despeito de sua enorme estrutura física). Não demora para que os habitantes, cheios de rivalidades e mesquinharias, sejam contaminados pelas crianças, que estão encantadas com os brinquedos. A cidade fica mais bonita, ganha mais cor, mais vida (num belo trabalho de fotografia e de iluminação, diga-se), as brigas começam a escassear e... bom, não seria um filme se não houvesse um arco dramático para complicar tudo - e ele surge no formato de moradores mais antigos, conservadores, antiquados, que estão, vejam só, insatisfeitos com tudo aquilo.

Com um traço de desenho meio cartunesco (que lembra alguns filmes noventistas da Disney, em 2D), Klaus nos faz rir e chorar ao mesmo tempo em que traz importantes lições de moral sobre amizade, busca da felicidade e prazer nas coisas simples da vida. A jornada de Jesper pode até ser previsível - sai de postulante a playboyzinho para um sujeito que aprende a encarar as dificuldades da vida, com o apoio dos amigos e com superação de diferenças. E assistir a uma obra tão delicada em um mundo tão duro como o que vivemos, é algo para lavar a alma. Sim, a gente sabe que não vai ganhar o Oscar. Mas o "Oscar" desse filme tem sido a resposta do público, que não termina mais de se maravilhar. Especialmente com a solução encontrada para um dos maiores mistérios de Natal - o que assistimos na última sequência da película. É magistral.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Músicas Gêmeas - Michael Jackson x Justin Bieber

Quem acompanha a carreira do astro Justin Bieber sabe que, desde sempre, ele é uma espécie de Michael Jackson wannabe. Quando ainda criança, aparecia em programas de TV imitando as danças e coreografias do Rei do Pop e fazendo côveres de suas canções - e mesmo o timbre de sua voz sempre foi a perfeita emulação de cantor de Thriller. Só que é provável que não haja na carreira inteira de Bieber uma "homenagem" tão absurdamente escancarada quanto aquela feita na canção First Dance, gravada com o rapper Usher. Absolutamente TUDO na música - melodia, tempo, batida, performance vocal - é igual a You Are Not Alone do Michael Jackson (que é uma composição do R. Kelly). Na internet, tentei encontrar algo que mencionasse essa coincidência, ou mesmo algo sobre algum processo que estivesse correndo, mas não achei. Fica o registro de mais duas Músicas Gêmeas.




Cinema - Um Lindo Dia na Vizinhança (A Beautiful Day In the Neighborhood)

De: Marielle Heller. Com Matthew Rhys, Tom Hanks, Susan Kelechi Watson e Chris Cooper. Drama, EUA, 2019, 109 minutos.

Um filme gentil sobre um personagem gentil: é simplesmente isso que Um Lindo Dia na Vizinhança (A Beautiful Day In the Neighborhood) é. E não teria como ser diferente em uma obra que traz a figura real de Fred Rogers (Tom Hanks, em papel que lhe uma indicação ao Oscar na categoria Ator Coadjuvante), um antigo apresentador de TV que ficou no ar por mais de 30 anos com um programa educativo voltado ao público infantil, em que ensinava com voz amena e modos contidos a importância de valores como generosidade, empatia e respeito às diferenças. Fred Rogers era praticamente um santo vivo na terra e conseguiu o milagre de ter uma forte audiência com seu programa meio brega, povoado por animais de pelúcia, reis e rainhas, maquetes coloridas, objetos cênicos simplíssimos e trilha sonora com temas edificantes. Tudo exibido pelo canal PBS - que seria tipo a TV Cultura dos Estados Unidos. Se aqui no Brasil Fred era pouco conhecido, na Terra do Tio Sam ele era uma verdadeira lenda.

E esse sentimento é ampliado pela entrega comovente de Tom Hanks ao papel. Já na sequência inicial, que mostra o preâmbulo de um dos mais de 1.700 programas feitos por Rogers, o espectador já compreende o tom adotado pelo show. Com uma serenidade enternecedora - sensação ampliada pelo tom de voz plácido e monocórdico -, o apresentador mostra um painel de fotos que servirá para abordagem do "tema do dia": o perdão. Em uma das fotos aparece o jornalista Lloyd Vogel (Matthew Rhys) que, na realidade, é o protagonista. Empregado da Revista Esquire, Vogel sempre foi famoso pelo seu cinismo e por investigar a fundo a vida de seus biografados. Meio à contragosto vai ao encontro de Rogers, para escrever um pequeno artigo de 400 palavras sobre o apresentador numa espécie de especial do periódico. Bom, não teríamos um filme se os seguidos encontros entre a dupla não transformassem a vida de ambos - especialmente de Vogel, que tem uma relação difícil com o pai (Chris Cooper), ao passo que tenta ela mesmo equilibrar as "funções" de trabalhador e pai.


É um filme que se estabelece sem nenhuma pressa, com um tipo de fluidez narrativa que pode irritar alguns desavisados, justamente pelo excesso de lentidão - ainda que esse padrão vise a fazer uma espécie de ponte entre o modelo adotado por Rogers em seu programa e o seu comportamento na vida real. Não por acaso, não são poucas as sequências em que Vogel "tenta" fazer a sua entrevista, mas acaba abandonando a ideia pelo simples fato de não conseguir arrancar nenhuma resposta controversa ou nada aparentemente mais relevante de seu biografado. Aliás, não levará muito tempo para que o jornalista perceba as mudanças em sua perspectiva, que ocorrerão a partir de cada entrevista ou contato com Rogers. E não deixa de ser tocante constatar essas pequenas evoluções comportamentais em pequenos gestos e ações do dia a dia, como no instante e que Vogel simplesmente pede a sua esposa Andrea (Susan Kelechi Watson) para que sentem em meio a uma caminhada, com a intenção de discutir com mais calma um assunto importante.

Alguns críticos têm falado que uma pessoa tão perfeita assim não existiria e que o filme peca por não acrescentar mais camadas à figura de Rogers, o que poderia ser feito com a adição de suas fraquezas, inseguranças ou ambiguidades (ainda que uma cena ao piano, quase ao final, de conta disso de uma forma bastante inovadora). Utilizando os próprios cenários do programa de TV de Rogers para fazer a transição entre cenas de uma forma criativa e lúdica, Um Lindo Dia na Vizinhança é aquele filme do "bem", que aposta numa fotografia em tons pasteis que flerta com o kitsch e que só não tem uma trilha sonora mais brega porque lá pelas tantas aparece a música The Promise da Tracy Chapman. E há o roteiro cheio de suavidades, como no instante em que Rogers e Vogel conversam em um restaurante, com o apresentador sugerindo um exercício ao jornalista - em uma das mais belas sequências cinematográficas do ano. Singelo, agridoce, lúdico e eventualmente onírico, o filme da diretora Marielle Heller (Poderia Me Perdoar?) serve como o complemento perfeito para o ótimo documentário Won't You Be My Neighborhood - esta sim uma obra que vai um pouco mais a fundo na carreira de Rogers.

Nota: 8,0

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Cinema - O Escândalo (Bombshell)

De Jay Roach. Com Charlize Theron, Nicole Kidman, Margot Robbie, John Lithgow e Allison Janney. Drama, EUA, 2019, 109 minutos.

Dada a relevância da temática, O Escândalo (Bombshell) tinha tudo para ser um dos grandes filmes do ano, mas o resultado é apenas ok, afinal de contas, vamos combinar que não dá pra tratar com deboche (e até com uma leve inclinação para a passação de pano) o caso real de assédio sexual envolvendo o CEO da Fox News Roger Ailes (John Lithgow, embaixo de toneladas de maquiagem). Foi em 2016 que o episódio - que, confesso a vocês, desconhecia - veio à tona, após uma série de denúncias feitas por jornalistas que trabalharam no canal. Sim, a ideia de que efetivamente existam os repulsivos "testes do sofá" é tão antiga quanto a própria TV. Mas são poucas as jornalistas que tem a coragem de levar acusações adiante, reunir provas e enfrentar exaustivas horas de tribunal que podem, em uma sociedade tão machista como a nossa, ainda por cima comprometer as suas carreiras. E, nesse sentido, a intenção da película é nobre, claro.

Só que a abordagem é o que não funciona tão bem. Há um tom geral bastante ameno na discussão de um tema tão pesado: as quebras de quarta parede, o reforço de estereótipos, as piadinhas fora de hora e até as eventuais tentativas de justificar (pasme) o comportamento de Ailes, tornam o resultado quase oposto. Só que apesar da confusão estabelecida pelo diretor Jay Roach (que esteve à frente da série Entrando Numa Fria e comandou bobagens como Um Jantar Para Idiotas), que parece nunca saber exatamente se está fazendo um drama ou uma comédia, o seu ótimo elenco feminino ainda segura as pontas, o que evita o projeto de naufragar completamente. A começar por Nicole Kidman, que transforma a sua Gretchen Carlson na porta-voz quase isolada na luta contra o patriarcalismo que, em canais de TV tão conservadores como a Fox News (é a Globo News americana, aquele canal assistido pelas famílias geriátricas votantes do Trump), é perpetuado há décadas.


Após ser demitida do canal ao dar um aceno a pautas mais progressistas em seu programa matinal - mais ou menos como se a Ana Maria Braga começasse uma campanha contra o porte de armas aqui no Brasil -, Gretchen processa Ailes por assédio sexual. A sua luta ganhará apoio mais tarde, ainda que divida a opinião pública e a própria redação, que tem na figura da jovem Keyla Pospisil (Margot Robbie) sua principal expoente. Ambiciosa, conservadora, integrante da família de bem - ainda que bissexual -, deseja um posto em algum programa de relevância do canal, o que ela não conseguirá sem a famosa contrapartida. Aliás, sobre isso, é no mínimo questionável a opção da direção de câmera na cena em que Ailes abusa da jovem, já que a sequência seria muito mais impactante se optasse por enquadrar apenas as expressões e as reações do rosto de Margot, diante do episódio absolutamente grotesco que estava vivenciando.

De qualquer maneira o filme tem alguns méritos e o primeiro é levar ao conhecimento do público esse episódio tão absurdo. Há ainda uma crítica bem engendrada nas entrelinhas sobre o comportamento beligerante e machista de Trump (aliás, vamos combinar que o Bolsonaro faz IGUAL), especialmente em sua relação com a imprensa - e, pior, com as mulheres na imprensa. Ele seria eleito naquele ano, aclamado pelo público da Fox News, o que não faria as mulheres esmorecerem, já que a luta ganha força quando outra jornalista, a experiente Megyn Kelly (Charlize Theron) se alinha a causa. No fim, trata-se de uma obra que coloca frente a frente um polo mais fraco e outro mais forte nesse ecossistema cheio de homens engravatados, que são as grandes corporações. O resultado final nos deixa com um meio sorriso, já que esse tipo de luta inglória precisa ainda de muitos outros passos para que o respeito comece efetivamente a prevalecer, especialmente em ambientes competitivos como os canais de televisão, que mentém a crença fetichista de que apenas mulheres bonitas devem ter espaço diante das câmeras.

Nota: 6,5

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Cine Baú - Alma em Suplício (Mildred Pierce)

De: Michael Curtiz. Com Joan Crawford, Ann Blyth, Zachary Scoot, Jack Carson e Bruce Benett. Drama, EUA, 1945, 111 minutos.

Vamos combinar que, em 1945, não era muito comum ver mulheres independentes e empoderadas como protagonistas no cinema - especialmente em filmes noir, em que as femme fatales muitas vezes se dobravam a algum capricho relacionado a relações extraconjugais complicadas, tóxicas ou cheias de conflitos de interesses. E só este fato já transforma Alma em Suplício (Mildred Pierce) em uma obra que se mantém atual e que merece ser revisitada. Quem interpreta a Mildred do título original é Joan Crawford - em papel que lhe rendeu o seu único Oscar. A trama começa com um assassinato em uma casa de praia isolada, com o morto caindo e balbuciando o nome de Mildred. Mais tarde, na delegacia, o detetive encarregado chega a conclusão, a partir de algumas pistas, que o assassino é Bert (Bruce Bennett), ex-marido de Mildred que, motivado por ciúme, teria cometido o crime. Bom, não teríamos um filme se a resolução fosse simples assim, né?

É na própria delegacia que uma resignada Mildred resolve contar uma história que inicia quatro anos atrás, na época em que ela decide se separar de Bert, especialmente pelo fato de ele estar desempregado. Acostumada a vida de dona de casa, com as duas jovens filhas tendo tudo do bom e do melhor, a protagonista sai atrás de emprego. Após conseguir uma colocação como garçonete, junta uma grana, complementa renda vendendo bolos, pega um empréstimo e conta com o apoio do amigo corretor de imóveis Wally Fay (Jack Carson) - um galanteador que não perde a oportunidade de cortejar Mildred -, para comprar o imóvel em que funcionará seu restaurante. Com espírito empreendedor, amplia seu negócio - que se torna uma franquia -, ao passo que se aproxima do bon vivant Monte Beragon (Zachary Scott) que, bom, nessa altura do campeonato já sabemos que é o sujeito que morre no começo do filme.


Parece meio confuso, mas o roteiro absolutamente engenhoso (escrito por Ranald Macdougall), cheio de idas e vindas no tempo, alterna o relato atual de Mildred na delegacia, com um sem fim de cenas em flashback, que vão sendo saborosamente apresentadas ao espectador. Por meio delas, saberemos que a relação de Mildred com a sua filha mais velha, a ambiciosa Veda (a ótima Ann Blyth, que talvez também merecesse o Oscar e eu não assisti A Mocidade é Assim Mesmo, que deu a estatueta a Anne Revere), não é nada boa. Veda não aceita o trabalho da mãe - ela considera trabalhar em restaurante coisa de "subalterno" -, ao mesmo tempo em que tenta seduzir Monte, que é candidato a namorado da Mildred. Rodeada por vários homens, também assistiremos uma Mildred que não se "dobra" pra qualquer cantada barata, especialmente pelo fato de ser uma mulher que não necessita de um homem para sobreviver, que paga suas contas, que vive, que sorri e que sofre (como no triste episódio da morte de sua filha mais nova). O romance não tem lugar de protagonismo aqui. E o que vemos é uma mulher forte que, mais tarde, arcará com as consequências de seus atos.

Espetacular também na parte técnica, Alma em Suplício é um primor na fotografia que aposta no uso de contrastes e reflexos, com sombras nas paredes e nos rostos das personagens, além de imagens que surgem em espelhos sendo utilizadas de forma orgânica para reforçar a tensão. Já a trilha sonora (de Max Steiner), conduz a narrativa com fluidez, sendo capaz de sair dos acordes festivos para os mais tensos com naturalidade (e na mesma sequência). Com ótimos diálogos - a personagem Ida (Eva Arden) tem alguns dos melhores (e ela é até mais feminista do que Mildred) -, o filme não cede espaço para o otimismo, com o desfecho sendo bastante amargo e servindo para que a protagonista descubra que amor incondicional de mãe pode servir apenas para a consolidação de filhos mimados. Ainda que tenha perdido o Oscar para o ótimo Farrapo Humano (1945), a obra do versátil Michael Curtiz (Casablanca, A Canção da Vitória) costuma figurar em inúmeras listas, como no caso da do livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Um filme fundamental.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Novidades em DVD/Now - Quem Você Pensa Que Sou (Celle Que Vous Croyez)

De: Safy Nebbou. Com Juliete Binoche, Nicole Garcia, François Civil e Guillaume Gouix. Drama, França, 2019, 101 minutos.

Em tempos tão tecnológicos como os nossos, é muito provável que não haja pessoa nesse mundo que não tenha experimentado a delícia de ficar horas conversando com alguém - ainda mais se esse alguém for especial - pelas redes sociais. A escolha das frases bem pensadas antes de enviar, o uso de emojis, as palavras ditas (e até as não ditas) e a observação atenta da tela enquanto o "digitando" persiste em aparecer. É algo que todo mundo faz. Ou já fez. E que a protagonista do filme Quem Você Pensa Que Sou (Celle Que Vouz Croyez) também faz. Mas com uma "pequena" diferença. Claire (Juliete Binoche) é uma mulher de 55 anos que, após o divórcio, é aparentemente acostumada a se relacionar com homens mais novos. Homens mais novos que, em muitos casos, não querem muito compromisso - como é o caso de Ludo (Guillaume Gouix), que termina o caso com Claire de forma bastante abrupta (e até grosseira).

Pra tentar se reaproximar do rapaz, Claire cria um perfil falso no Facebook. Por meio dele, adiciona o fotógrafo Alex (François Civil) que, num primeiro momento, deveria ser apenas o caminho para que a protagonista pudesse contatar Ludo. No perfil de Claire, um outro nome: Clara. E fotos e informações misteriosas de uma garota uns 30 anos mais jovem completam o combo. Por ser professora universitária das áreas de literatura e letras, Claire tem um ótimo, inteligente e envolvente papo. E não demora para que Alex fique verdadeiramente interessado na pessoa com quem divide noites e mais noites de conversas divertidas, amenas, safadas. Só que, lógico, Claire não conseguirá manter essa mentira por muito tempo: as pessoas precisam viver no mundo real e o maior desejo de Alex será conhecer a "jovem". E, para nós, que acompanhamos essa jornada, estará estabelecido um ótimo suspense, que bebe na fonte de séries como Black Mirror e de filmes como Ela (2013).


Estruturalmente, o filme é narrado como se fosse uma grande sessão de terapia. Será para a doutora Catherine (a sempre ótima Nicole Garcia), que Claire falará de suas angústias. E de quais estratagemas utilizou para tentar "driblar" o seu novo amigo que, conforme os dias passavam, tinha mais e mais desejos de proximidade. E, pior ainda: sobre como essas estratégias (quase) resultaram em tragédias que poderiam ter modificado a vida de todos os envolvidos na história, para sempre. E, por mais que encaremos Claire como a suposta figura "vilanesca" da história, por ter mentido tão descaradamente, é simplesmente impossível não deixar de compreender a dor de uma mulher que, agora na meia idade, foi abandonada pelo marido, ao passo que a juventude (e o consequente despertar do desejo das demais pessoas), foi ficando para trás. Nesse sentido, a obra do diretor Safy Nebbou é hábil ao conferir complexidade às suas personagens - e a gente fica o tempo todo desejando com todas as forças que o final possa ser o mais feliz possível (especialmente para o "casal" central).

Equilibrando momentos singelos - como aquele em que Claire fala da sensação de alegria de ver a luz verde (que identifica uma pessoa online) acesa -, com outros mais divertidos, como naquele instante em que a protagonista admite desconhecer o Instagram, o filme tem a sua força mesmo nos momentos mais dramáticos (e são tantas as reviravoltas, que a gente acaba surpreendido o tempo todo). Discutindo uso de redes sociais, a solidão na terceira idade, a carência afetiva que muitas vezes nos invade e a idealização do amor, o filme nos apresenta a uma Juliete Binoche mais uma vez arrebatadora. Despida de qualquer vaidade, aparece muitas vezes como uma mulher devastada para, minutos depois, surgir rejuvenescida pelas oportunidades trazidas pela vida e pelas redes sociais (e sempre com a câmera grudada em seu rosto). E o trabalho que ela executa a partir de simples expressões faciais a partir daquilo que ela está lendo na tela (como todos nós fazemos, por sinal), é não menos do que verossímil. É um filme que pode até soar meio exagerado em alguns momentos mas que, minimamente, nos faz refletir. E que ainda nos deixa com a pulga atrás da orelha ao final da última cena.

Nota: 8,5



segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Curta Um Curta - Kitbull

A gente já está acostumado a se emocionar com os filmes da Pixar, mas o que essa pequena obra-prima de apenas nove minutos - e que está indicada ao Oscar na categoria Curta Metragem de Animação - consegue, é algo comovente! Pegue dois protagonistas que muitas vezes estão à margem da "sociedade dos animais domésticos" -, no caso um gato preto (com fama de azarento) e um pit bull (com fama de violento). Junte uma incrível história de superação e de busca de felicidade em meio ao inóspito cenário das rinhas envolvendo cães e, bom, temos este Kitbull que, não é exagero dizer, é um dos grandes filmes do ano. A técnica de animação, tão simples quanto convincente - merecem destaque as reações e expressões dos bichinhos -, é não menos do que sensacional. Otimista até dizer chega, a obra mantém a esperança em um cenário de ódio e de desolação que se estende, em muitos casos, também aos animais. Melhor separar o lenço de papel. Especialmente se você não tiver um coração de pedra. Valerá cada segundo.


Cinema - Os Miseráveis (Les Misérables)

De: Ladj Ly. Com Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga e Issa Perica. Drama / Policial, França, 2019, 101 minutos.

"Meus amigos, lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: há sim, maus cultivadores". Essa frase do escritor Victor Hugo resume a essência do cinema caótico estabelecido em Os Miseráveis (Les Misérables), ainda que pouco tenha a ver com o clássico literário protagonizado por Jean Valjean. Quer dizer, ao menos em partes, já que temas caros ao autor - as injustiças sociais, o abuso de autoridade, a falta de perspectivas das camadas mais vulneráveis -, parecem se espalhar em cada frame da película. Assim como ocorre com outros filmes franceses, este lança um olhar para o lado menos glamouroso de sua romântica capital. Paris está lá e é apresentada em seu esplendor já na primeira cena, quando a Torre Eiffel surge como cenário de fundo para a catarse coletiva vivida pelos franceses em meados de 2018, quando sua seleção foi campeã de mundo de futebol. Mas o futebol, a gente sabe, é uma alegria efêmera. E a vida, com todos os seus percalços, continua. Deve continuar.

Assim que passa o preâmbulo do filme, somos apresentados aos integrantes de uma Brigada Anti-Crime que atua na periferia parisiense - mais precisamente no distrito de Montfermeil. Trata-se de um local com grande miscigenação cultural e racial, com muçulmanos, ciganos, nigerianos e os próprios franceses convivendo em um contexto de pobreza, em prédios atabalhoados de gente. Stéphane (Damien Bonnard) é o novato, que está chegando para trabalhar na delegacia local. Sofre bullying de seus colegas de "front" - os veteranos Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga), que utilizam métodos pouco convencionais em suas abordagens. Algo que é estabelecido na forma agressiva com que interpelam três jovens adolescentes que, supostamente, poderiam estar em posse de drogas. A tensão é latente. Parece haver alguma raiva guardada, que é extravasada em tudo e em cada comportamento. Sempre agressivo e desconfiado, Chris parece uma pilha de nervos pronta a explodir.


O estopim desse cenário de crise permanente vivida nesse dia se dá quando um filhote de leão desaparece do circo local. Esse acontecimento prosaico provoca um choque entre dois grupos locais - a gente percebe que o sumiço do leão é a desculpa para a discussão de algo maior -, que quase resulta em tragédia. Tudo piora quando os policiais descobrem que o responsável pelo sumiço do leão é o pequeno Issa (Issa Perica). Bom, uma confusão envolvendo jovens e crianças do bairro que se revoltam com a forma opressiva com que a polícia trata do caso, resulta em um tiro de bala de borracha no rosto de Issa. E como se tudo já não estivesse beirando o colapso, a cena estapafúrdia ainda foi gravada por um outro menino que, sabe-se lá como, possui um drone que utiliza para filmar os prédios da vizinhança. Sim, poe parecer meio confuso, mas o resumo da ópera é: abuso policial + revolta dos adolescentes + tiro no ROSTO de uma criança. E a brigada iniciando a partir disso, uma verdadeira via crúcis para tentar encobrir o caso.

É um filme caótico, anárquico, desordenado, com homens acoados tentando ganhar qualquer coisa no grito. Ninguém parece conseguir falar sem que seja na ameaça, na bala ou com bastões e armas na mão. A França miscigenada, cheia de pessoas de etnias diversas, de outras religiões e povos, parece não saber como conviver harmoniosamente e o filme parece mandar um sinal para o mundo a respeito da explosão de ódio, de intolerância e de preconceitos diversos, que surge a todo instante no formato de comportamentos xenófobos ou racistas. É uma obra urgente, concisa, que "dá na cara" do espectador. Que lembra que violência gera violência e que não se alcança paz de verdade apenas assistindo juntos a uma partida de futebol. Nesse sentido, poucas vezes se viu um filme tão complexo e tão cheio de camadas na análise do comportamento de seus personagens. Quem afinal são os violões? Os mocinhos? Como reagir em uma vida em que a miséria é a rotina e a burguesia se refestela à distância? Não são perguntas fáceis e o diretor estreante Ladj Ly não oferece respostas fáceis - e nem respiros possíveis, ainda que a última cena da película pudesse nos fazer acreditar em algum tipo de caminho possível, em uma pausa dramática que remete aos poucos instantes de bondade.


Bom, são tantas as virtudes do filme que ele faturou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em um empate com Bacurau. Tecnicamente, a câmera está sempre no rosto de seus personagens, quase como um documento, sem nunca estabelecer verdadeiramente algum deles como mais relevante (como se o ator principal fosse a própria massa). Já a edição de som também confere urgência, funcionando de forma orgânica, reforçando inclusive aspectos da própria violência. Para nós, brasileiros, é impossível não pensar em filmes como Tropa de Elite (2007) ou Cidade de Deus (2002), em que somos também jogados no meio do caos da periferia - assim como é para Stéphane, que tenta manter um mínimo de sanidade em meio a bagunça desse dia. Mas que também compreenderá em algum momento os métodos pouco ortodoxos de seus colegas, no contexto em que se encontram. A obra foi indicada ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira. Não fará frente ao incensado Parasita (2019), certamente. Mas a nominação é justa.

Nota: 9,0

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Lançamento de Videoclipe - Real Estate (Paper Cup)

O ano mal começou e a gente já tá na expectativa pelos grandes lançamentos musicais de 2020! Já no primeiro trimestre, nomes como Grimes, Destroyer, Tame Impala, Caribou e Moby devem disponibilizar os seus novos álbuns. Já o Real Estate, uma das bandas "favoritas da casa", não apenas anunciou a data de lançamento de seu novo registro, The Main Thing - dia 28 de fevereiro, pelo selo Domino -, como ainda disponibilizou um clipe para o primeiro single, a ótima Paper Cup. Como quase sempre ocorre nos vídeos dos americanos, o clima bem humorado e as melodias primaveris fazem um contraponto para a melancolia que transparece nos vocais de Martin Courtney. Mas no caso dessa música, parece haver uma diferença: um pouco mais de "barulho", ao menos num comparativo com as emanações litorâneas que se sobressaiam em seus trabalhos anteriores. Será um novo caminho criativo? É aguardar para ver!


Pérolas da Netflix - Perdi Meu Corpo (J'ai Perdu Mon Corps)

De: Jéremy Clapin. Com Hakim Faris, Victore Du Bois e Patrick D'Assumçao. Animação / Drama / Fantasia, França, 2019, 81 minutos

Acho que já falei isso mais de uma vez aqui nas resenhas: muitas vezes a gente fica buscando grandes interpretações nos filmes que assistimos, quando o melhor mesmo é viver a experiência e curtir. Sentir o que a obra está te passando. De que maneira ela mexe contigo. Mesmo que aquilo que vemos não seja óbvio ou escancarado na nossa cara. A lindíssima animação francesa Perdi Meu Corpo (J'ai Perdu Mon Corps) talvez seja uma obra sobre perdas. Sobre a busca tão demasiadamente humana pela felicidade. Sobre seguir em frente após algum tipo de experiência traumática. Sobre dores que todos nós temos - e o mundo é cruel demais e temos de encará-lo todos os dias, no final das contas. Enfim, ela é uma dessas obras nem sempre fácil de ser digerida. Eventualmente amarga. Com uma trilha sonora absurdamente envolvente, daquelas que fica na nossa cabeça assim que sobem os créditos, em meio a nossa tentativa de dar sentido ao que vimos. E que, como eu disse, talvez nem sempre careça de sentido.

A história é narrada em duas partes distintas. Em uma delas, uma mão decepada (sim) foge de um laboratório de dissecação e enfrenta uma série de perigos pela cidade, na busca por encontrar seu corpo original. Em outro segmento, somos apresentados ao jovem Naoufel (Hakim Faris), um entregador de pizzas de vida nada fácil que, em meio a uma noite de merda no trabalho, acaba "conhecendo" (vocês compreenderão as aspas quando assistirem) a jovem Gabrielle (Victore Du Bois). Bom, ele fica verdadeiramente obcecado pela garota, se oferecendo para trabalhar na antiga marcenaria mantida pelo tio dela - o que seria uma forma de manter a proximidade. Em uma terceira e última parte assistimos a uma série de flashbacks da juventude de Naoufel, de sua relação com os amorosos pais e sobre como uma tragédia mudou a sua vida para sempre.


Essas três narrativas em algum momento irão se encontrar, em uma obra que é puro lirismo e sensibilidade. Há metáforas espalhadas por todo o canto da história e a presença persistente de uma mosca, pode ser a chave para explicações relacionadas ao nosso destino - e sobre como podemos fazer para tentar dribla-lo. Nem tudo é fácil de compreender, como já dito, mas as pistas espalhadas aqui e ali nos levam a refletir sobre culpa, insegurança e medos, com a mão cortada recebendo um significado maior no terço final da história. Bom o próprio diretor Jéremy Clapin afirmou em entrevistas à imprensa que o filme é um conto de fadas moderno e urbano sobre destino e resiliência. "Ele nos diz que, para mudarmos as coisas, devemos nos surpreender, ousar fazer algo diferente o que nos afastaria do óbvio, do comum", explicou. É o caso de Naoufel, que parece estar o tempo todo nesta busca "libertadora", que lhe retire das amarras do destino.

A obra tem um traço um pouco mais duro, cheio de contrastes entre o claro e o escuro e, definitivamente, trata-se de uma animação adulta. A grande quantidade de imagens de mãos pegando, tocando, encostando em pessoas e objetos dá um sentido menos figurado para a expressão "perder a mão". Mas isso é o menos importante. Naoufel queria ser pianista. Queria ser astronauta. Se tornou motoboy, mudou de emprego. Conheceu uma garota. Seguiu tentando. Pensou em algo diferente. Inusitado. E talvez só tenha conseguido se livrar daquilo que lhe previa o destino, quando agiu na intenção de fugir desse. Perdi meu Corpo foi indicado ao Oscar na categoria Melhor Animação e já faturou uma série de prêmios internacionais - entre eles o da crítica de Los Angeles em sua categoria. Se isto o credencia para voos maiores para a mais cobiçada estatueta do cinema? É aguardar pra ver. Ano passado Homem Aranha no Aranhaverso fez essa dobradinha. Não surpreenderia.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Cinema - Entre Facas e Segredos (Knives Out)

De Rian Johnson. Com Daniel Craig, Jamie Lee Curtis, Ana de Armas, Michael Shannon e Toni Colette. Comédia / Drama / Suspense, EUA, 2019, 131 minutos.

Você certamente já viu essa história mais de uma vez no cinema ou na literatura: alguém morre em um determinado cenário e todos aqueles que estavam naquele ambiente passam a ser suspeitos em um eventual crime. De Assassinato no Expresso do Oriente de Agatha Christie ao divertido filme 8 Mulheres (2002), de François Ozon, foram muitos os suspenses que brincaram com a capacidade investigativa de seu público, espalhando pistas, oferecendo improváveis reviravoltas e possíveis culpados que mais adiante serão descartados (ou não). Aliás, não é por acaso aquela antiga expressão que diz que o "culpado é sempre o mordomo", o que já estabelece no nosso imaginário o eventual cenário de alguma grande mansão, frequentada por um grupo excêntrico de possíveis figuras ambiciosas ou talvez de novos ricos, cheios de motivações escusas para surpreender a todos com algum tipo de golpe meio inesperado. Alguém morre. De surpresa. E o culpado não tardará a aparecer.

Esse tipo de narrativa - tão convencional quanto divertida -, é replicada no ótimo Entre Facas e Segredos (Knives Out), do diretor Rian Johnson.(Star Wars: Os Últimos Jedi). Johnson reuniu um elenco estelar para contar a história por trás do misterioso assassinato do escritor de novelas policiais Harlan Thrombey (Christopher Plummer), justamente na madrugada em que ele comemorou o seu aniversário de 85 anos. Isso significa que praticamente toda a família de Harlan - filhos, noras, genros e netos, a governanta e até uma enfermeira que ajudava a ministrar seus medicamentos -, passam a ser suspeitos no caso. A cada entrevista feita pelo detetive Benoit Blanc (Daniel Craig, em aparição hilária), as potenciais motivações de cada um vão se descortinando na tela - assim como uma série de segredos que envolvem adultério, insatisfação com a forma com que são gerenciados os negócios da família ou mesmo o testamento escrito pelo velho, que poderá ter deixado alguém de fora.


Cheio de idas e vindas no tempo, o filme será contado com uma série de bem montados flashbacks, que vão dando pistas do que pode ter acontecido na noite em que Harlan morre. Ana de Armas, que interpreta a enfermeira Marta Cabrera, tem papel central na narrativa, uma vez que é a última pessoa a estar no quarto do escritor, antes de seu corpo ser descoberto com um corte no pescoço (tudo leva a crer que ele se suicidou). Isto despertará a ira dos filhos do anfitrião, especialmente de Linda (Jamie Lee Curtis) e de Walter (Michael Shannon), sendo que este último teve uma pequena discussão com Harlan na mesma noite. Outros parentes, como o genro Richard (o divertido Don Johnson) e a nora Joni (Toni Colette) também surgem na trama com alguma "pendenga" envolvendo o morto. O que significa que, bom... tudo pode acontecer e, como já dissemos, quase todos que estavam na casa são suspeitos.

Ainda que tenha algumas metáforas visuais meio óbvias - a da "estátua de facas" chega a ser quase ostensiva -, a obra é pura leveza na alternância entre momentos de humor, de drama e de suspense. Óbvio, como em qualquer trama do tipo, há um verdadeiro festival de reviravoltas, ainda que nenhuma delas seja necessariamente ofensiva ao espectador (achei elas, inclusive, bem plausíveis, ainda que, aqui e ali, haja uma ou outra coincidência um pouco mais exagerada). A idosa que faz a mãe de Harlan (!) se torna uma espécie de alívio cômico - e o mais divertido é que a atriz K. Callan é seis anos mais NOVA que Plummer -, ao passo que Chris Evans surge pela primeira vez em um papel mais ambíguo, quase vilanesco - no caso como um neto que pode ter as suas motivações para algo escuso. Tudo para tornar a narrativa, que passa de raspão por um outro tema político e necessário na Era Trump (xenofobia, imigração, neonazismo), ainda mais frenética (ainda que nunca complexa). Um grande passatempo, que vale ser conferido.

Nota: 8,0

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Na Espera - A Mulher Na Janela (Filme)

Baseado no best seller do escritor A.J. Finn, A Mulher Na Janela (The Woman in the Window) é, definitivamente, um dos filmes mais aguardados de 2020. E não é para menos! Pra começar, a obra, sobre uma mulher solitária que sofre de agorafobia e que passa seus dias em meio a garrafas de vinhos, sessões de cinema clássico e observações prosaicas da vizinhança, foi filmada por Joe Wright. E, vamos combinar que o diretor de Desejo e Reparação (2007) e O Destino de Uma Nação (2016) sabe como ninguém criar a ambientação entre o clássico e o elegante para a composição de suas histórias. Depois, tem o elenco estelar de nomes como Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh e Gary Oldman, além de Amy Adams que, aparentemente, se despe de qualquer vaidade para encarnar a desleixadA doutora Anna Fox - e, acreditem, desde já já estão apostando nela como uma das prováveis indicadas para o Oscar de 2021!


O trailer parece respeitar bastante o material original, gerando um clima de suspense até maior do que aquele que encontramos no livro - que considero bom, ainda que não concorde com todas as escolhas feitas pelo autor na condução da narrativa. A trama bebe na fonte de clássicos como Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, a partir do momento em que a protagonista acredita ter visto um assassinato ocorrido no prédio em frente ao de onde ela mora. Acho que vem coisa boa por aí e, aqui no Picanha, já estamos Na Espera pela estreia do filme, que ocorre no dia 14 de maio de 2020.

Novidades em DVD/Now - Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day In New York)

De: Woody Allen. Com Timothée Chalamet, Elle Fanning, Selena Gomez, Liev Schreiber, Jude Law, Diego Luna e Cherry Jones. Comédia / Drama, EUA, 2018, 92 minutos.

Eu não posso ser injusto com o Woody Allen: se ele faz um filme que, por uma hora e meia, me diverte de forma descompromissada, como vou falar mal? Como vou dizer que não gostei ou que é o mais do mesmo, por mais que... talvez seja realmente mais do mesmo? Pois o caso é que achei Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day In New York), mais uma obra adorável do diretor - e, sim, as portas estão abertas para vocês, caros leitores, iniciem o ranço (se assim desejarem). Na trama, tudo aquilo que a gente vê desde SEMPRE nos filmes de Allen: personagens neuróticas, relacionamentos amorosos complicados, trilha sonora com standards de jazz, cenários graciosos da Big Apple, toneladas de referências culturais que a gente identifica justamente porque não possuem nenhuma profundidade, excentricidades, idiossincrasias, enfim, busca da felicidade talvez. Especialmente em um mundo que não tem nenhuma lógica. Que é urgente e caótico. Assim como é uma grande metrópole.

O que tem diferente? Bom, talvez o fato de este filme acenar com um pouco mais de força para os millenials da classe média, com seus white people problems, relacionamentos líquidos (Bauman já virou um clichê, aliás) e formas excêntricas de (tentar) ganhar dinheiro. Bem nascido, o protagonista Gatsby (Timothée Chalamet) estuda em uma renomada e bucólica faculdade de artes, enquanto utiliza suas habilidades no pôquer para faturar uma boa grana - ele ganhou US$ 20 mil em um torneio recente. A sua namorada é a jovem Ashleigh (Elle Fanning), estudante de jornalismo da mesma Instituição, que conseguiu marcar uma entrevista com o renomado diretor Roland Pollard (Liev Schreiber), que está finalizando um novo filme em Nova York. Ambos pretendem aproveitar a passagem pela "cidade que nunca dorme", para curtirem um dia a dois. Ao menos era o que eles pretendiam... antes de se desencontrarem.


A meu ver o que o filme pretende (se é que pretende algo) é mostrar que a vida não é feita de começos, meio e fins bem definidos e tudo aquilo que a gente programa pode se modificar a qualquer momento. Claro, há um pouco de exagero nisso tudo, mas, especialmente em uma cidade como Nova York, não será impossível encontrar por acaso um astro do cinema como Francisco Vega (Diego Luna) ou se ver em meio a uma filmagem de um curta-metragem feito por um amigo e que tem a participação da irmã de uma ex-namorada da infância (vivida por Selena Gomez). Nem tudo é o que parece na vida e esse amontoado de pequenos e imprevisíveis recortes - que transformam esse "dia de chuva nova-iorquino" em uma série de fragmentos tortos, nem sempre exatos -, está aí para nos mostrar que, na atualidade, em um mundo tão urgente, tecnológico e individualista, devemos aproveitar ao máximo as nossas existências (muitas vezes tão mesquinhas e pequenas) para sermos felizes. Buscar a felicidade. Woody Allen falou sobre isso tantas vezes -  no nostálgico Meia Noite em Paris (2011), no romântico Para Roma com Amor (2012). E sempre encontrar uma forma nova de fazer. E de nos divertir.

Com pouca inovação no que diz respeito ao estilo - há, aqui e ali, algum plano sequência melhor elaborado ou uma ou outra fotografia mais primaveril ou cinzenta para ressaltar um ou outro estado de espírito -, a obra se vale do roteiro leve cheio, de diálogos rápidos, cortantes e de situações inusitadas (como na "mini esquete" em que o irmão de Gatsby não suporta a risada de sua noiva), como uma de suas grandes forças. A revelação feita pela mãe de Gatsby (a sempre ótima Cherry Jones) quase ao final é um reforço das ideias gerais do "imprevisível como matéria-prima", que se espalham pela película, conferindo ao projeto um pouco mais força do que ele vinha tendo até então. Mas, de qualquer maneira, o objetivo de Allen sempre será se divertir com o inusitado - e nunca fazer um filme cabeçudo. Quer um exemplo? Na cena em que Ashleigh conhece Francisco Vega, ela afirma que a sua colega de quarto considera ele a melhor coisa que já surgiu desde a pílula do dia seguinte. Sério, eu não consigo ficar alheio a uma boa piada escrita por esse idoso de 84 anos.

Nota: 8,0

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Sete considerações Sobre os Indicados ao Oscar

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas divulgou os indicados ao Oscar na manhã desta segunda-feira (13/01) e, nós, do Picanha, fazemos algumas considerações sobre!

1) Primeiro de tudo, muito felizes pela indicação da Petra Costa na categoria Documentário pelo irretocável Democracia em Vertigem. Nas bolsas de apostas ele não aparecia como uma possibilidade certa - inclusive ele corria por fora. Mas essa categoria costuma surpreender. Não por acaso, o grande favorito, inclusive para ganhar a estatueta dourada, o incensado Apollo 11, ficou de fora. Isso abre brecha até mesmo para sonharmos com voos maiores para a obra. Por quê não?


2) Coringa foi o filme com o maior número de indicações - 11 no total -, seguido por Era Uma Vez em Hollywood, O Irlandês e 1917 com 10. E, assim, a gente já pode trabalhar com a possibilidade de estes serem os grandes favoritos para a premiação que ocorre no dia 9 de fevereiro. Lembrando que Era Uma Vez faturou o Critcis Choice Awards na noite de ontem e 1917 ganhou o Globo de Ouro na categoria Filme Drama na semana passada. Talvez com isso eles estejam um pouco na frente dos demais na corrida.

3) Um filme em língua estrangeira tem que ser MUITO BOM para conseguir seis indicações ao Oscar - que é o caso do espetacular Parasita. Deve ser o vencedor fácil na categoria Filme em Língua Estrangeira (já podem marcar no bolão). Na mesma categoria, confesso que fiquei triste em não ver o filme do Senegal, o soberbo Atlantique, entre os indicados. Acho que surpresa MESMO ali, foi a presença do documentário Honeyland da Macedônia. Aliás, as duas indicações tornariam o filme o favorito para a categoria Documentário? É cedo para dizer.

4) Uma surpresa do a presença da Kathy Bates entre as indicadas na categoria Atriz Coadjuvante - por seu papel em O Caso Richard Jewell. Ainda sobre as atrizes, não foram muitas vezes na história que uma mesma atriz foi nominada na categoria principal e como coadjuvante, que foi o feito alcançado por Scarlett Johansson neste ano. Ela concorre por História de Um Casamento e Jojo Rabbit.


5) E, no fim das contas, o tão badalado Frozen 2 ficou de fora na categoria animação. Tinha apressadinho dando como certa a vitória do filme da Disney na noite da premiação. Não vai rolar.

6) Outra forma de dizer que "tem Brasil no Oscar" são as indicações para o filme Dois Papas. Dirigido por Fernando Meirelles, deu à Jonathan Pryce uma nominação na categoria Ator e para Anthony McCarten para Roteiro Adaptado. Ainda sobre os roteiros originais, gostei da lembrança de Entre Facas e Segredos nesta categoria. É um filme muito divertido!

7) O Farol foi lembrado na categoria Fotografia. Gostamos!

A lista completa de indicados pode ser vista no link do El País!

E, agora é aguardar a premiação que ocorre na noite de 9 de fevereiro!

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Cinema - Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu)

De: Céline Sciamma. Com Noémie Merlant, Luàna Bajrami, Adèle Haenel e Valeria Golino. Drama/Romance, França, 2019, 121 minutos.

A paixão é um dos sentimentos mais fascinantes e contraditórios que a raça humana pode experimentar. Quando nos encantamos por uma pessoa, imediatamente criamos expectativas e idealizações em nossa mente e, por mais provavelmente errado que estejamos, é isso que torna aquilo que sentimos - e imaginamos - perfeito. Com todo o entusiasmo e a graça de se encontrar apaixonado existe também o seu efeito colateral: a ausência da pessoa amada causa angústia, dor, os minutos passam numa velocidade impressionantemente reduzida e a sensação de dependência torna-se quase patológica. Até que ponto vale a pena alimentar este sentimento que consome tanta energia de nossos corpos e dias? E mais, é possível evitar quando este se aproxima? Se num acaso do destino cruzamos e compartilhamos momentos com alguém, vale a pena deixar de se entregar às custas de evitar um sofrimento futuro, ou a beleza das memórias geradas compensam qualquer sacrifício?

Essas e muitas outras reflexões me vieram à mente no belíssimo e sensível Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu), escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma (Tomboy). Na trama, que se passa no século 18, a pintora Marianne (Merlant) é contratada por uma condessa (Golino) para ir até uma ilha pintar um retrato da filha Héloïse (Haenel), que está prometida em casamento para um rapaz italiano. Acontece que o retrato deverá ser feito sem ela saber, pois será enviado ao futuro marido - casamento este que, diga-se de passagem, vai contra o interesse de Héloïse. Com isso, Marianne é apresentada como companheira de passeios e, aos poucos, a amizade das duas se fortalecerá culminando no sentimento acima descrito. Junta-se a elas a jovem governanta Sophie e temos o núcleo central deste filme com ecos do cinema bergmaniano.


De ritmo lento, praticamente sem trilha sonora e com poucos diálogos, a diretora opta por tratar sua obra exatamente como uma pintura: seja pela fotografia majestosa nas tomadas externas, onde o mar revolto, as montanhas e esconderijos ajudam a ilustrar a turbulência interior das personagens (algo pouco original, mas eficaz em sua beleza plástica), ou nos closes e pequenas revelações que, de forma sutil, entregam muito mais do que diálogos expositivos - e é maravilhoso perceber o florescimento desta paixão em detalhes como um gesto de mão ou um sorriso inesperado. A quase onipresença do fogo em cena reforça ainda mais aquilo a que a dupla principal está destinada: se o calor da paixão acalenta, é a dor decorrente da proximidade que queimará seus corpos e almas, aqui representada pelo pouco tempo que resta (o que me lembrou do episódio Hang the DJ da série Black Mirror) para que ambas se separem e retornem à vida que a sociedade patriarcal exige (lembre que estamos no século 18, época de casamentos arranjados e onde mulheres não podiam retratar homens nas pinturas). Além disso a obra ainda trata de temas como depressão e aborto do ponto de vista da mulher (quase não aparecem homens durante o filme), o que confere uma carga dramática ainda maior para o que seria uma "simples" história de amor.

E o que torna o filme tão especial é justamente a forma de contar e transmitir algo tão universal e marcante para aqueles que tiveram a oportunidade de amar e, consequentemente, sofrer - não é à toa que o mito de Orfeu e Eurídice é citado literalmente, oferecendo uma boa dica sobre aquilo a que estamos assistindo. Ademais, as interpretações de Merlant e Haenel trazem a química necessária para que acreditemos naquilo que estamos vendo, e a cena em que ambas estão deitadas olhando uma para a outra é ainda mais tocante quando percebemos o quão difícil é querer guardar uma memória de algo que não sabemos se voltaremos a ter um dia e, na impossibilidade de congelar o tempo, sentir que os minutos correm ainda mais depressa na presença de quem amamos. Memórias essas que podem virar pinturas, que podem fazer parte de outras pinturas, de forma a eternizar um segredo íntimo de um sentimento tão raro de existir entre duas pessoas cuja sorte/acaso/destino/circunstância uniu, e cujo final dilacerante e belo deste filme faz questão de lembrar.

Nota: 9,5


quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Cinema - O Farol (The Lighthouse)

De: Robert Eggers. Com Willem Dafoe, Robert Pattinson e Valeriia Karaman. Suspense / Drama / Fantasia, EUA, 2019, 110 minutos.

É mais ou menos lá pela metade de O Farol (The Lighthouse), que Thomas Wake (Willem Dafoe), em meio a uma de suas tantas divagações, pergunta a Ephraim Winslow (Robert Pattinson) se ele sabe qual a parte mais terrível de ser um marinheiro. "É quando o trabalho para. [...] O tédio transforma os homens em vilões e o único remédio é a bebida, que mantém os marinheiros felizes, calmos", responde ele. Thomas e Ephraim estão no meio do nada, mais precisamente em uma pequena ilha isolada do final do século 19, onde trabalharão juntos durante quatro meses. E, por mais que esta não seja necessariamente uma obra sobre tédio ou marasmo, é possível afirmar que também a letargia dos dias que se repetem sem grandes novidades - há apenas trabalho pesado, bebedeira, filosofia barata e masturbação -, influenciará decisivamente no comportamento da dupla central que, na busca por dar algum sentido as suas existências, passará a alucinar num misto de folclore e terror.

Na ilha rochosa que é coabitada pela dupla de protagonistas, há também um farol - e é possível afirmar que é este ambiente mantido em segredo por Thomas (apenas ele pode fazer a manutenção do local), o ponto de partida da narrativa. Curioso pelo espaço que se mantém privado, Ephraim se encarregará do trabalho mais pesado, seja higienizando a cisterna, carregando pedras de lá para cá, levando galões de óleo que servirão para manter a luz acesa ou fazendo pequenos reparos nos espaços habitáveis. Ao longe, enxergará Thomas como uma espécie de espectro, que se mantém como o "dono" do farol. E, como se já não bastasse o mistério por trás do artefato, o jovem ainda passará a ter visões de sereias, numa mistura de sonho e realidade que é complementada pela presença opressora de dezenas de gaivotas que, como se inspiradas no filme Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, estivessem sempre prontas a atacar.


Aliás, como filme misterioso e evocativo que, eventualmente, investe nos silêncios, nos olhares e nos planos-sequência, O Farol é aquele tipo de obra que não oferece soluções fáceis ao espectador. Com um misto de drama e suspense, adota uma fotografia em preto e branco que bebe na fonte do visual bergmaniano não apenas no que diz respeito à técnica, mas também na complexidade dos temas abordados - o que está se tornando uma especialidade de Robert Eggers desde A Bruxa (2015). Aqui e ali a nossa tendência será a de tentar encontrar significados que estão para além daquilo que se vê na margem - significados que podem ser políticos, religiosos, literários, ecológicos -, mas talvez nesse caso o melhor seja apenas relaxar e curtir a experiência de ver dois homens enlouquecendo em meio a um ambiente inóspito, com tudo se tornando mais tenso quando uma tempestade se avizinha e a dupla central se vê impossibilitada de sair dali.

Com excelente composição, tanto de Pattinson - repare como ele sai da introspecção para a fúria em questão de minutos, com uma performance que usa muito o olhar e que o afasta cada vez mais da figura sem sal vista na saga Crepúsculo -, como de Dafoe, que provavelmente estará entre os indicados para Melhor Ator Coadjuvante no próximo Oscar (sua figura barbuda, tosca, consegue ser grotesca e carismática em igual medida), o filme é daqueles que rendem um debate, especialmente depois da cena final. Uma sequência que, aliás, se une a tantas outras e que fazem O Farol pulsar não como suspense/terror de jumps scares (ou sustos fáceis) e sim como narrativa psicológica, capaz de analisar como a sensação de solidão, de impotência diante da magnitude da natureza e de medo do desconhecido, podem refletir diretamente em nosso comportamento.

Nota: 8,0

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Livro do Mês - O Tribunal da Quinta-Feira (Michel Laub)

Sim, o Picanha tá ficando "metido". Agora, em 2020, além de falarmos dos nossos filmes, discos, séries e, eventualmente, até peças de teatro preferidos, vamos indicar uma leitura por mês, entre aquelas que estamos fazendo. Em partes esta também será uma forma de nos disciplinarmos para a manutenção do contato com os livros - e para tentar ampliar a rede em torno dessa arte tão maravilhosa.
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Eu havia lido apenas um livro do gaúcho Michel Laub até tomar contato com este O Tribunal da Quinta-Feira. Havia sido o Diário de Uma Queda - e não sei se esta é a forma mais adequada de se elogiar um autor, mas a evolução entre uma obra e outra é gritante. Uma parece um folhetim - um bom folhetim, não vou mentir -, a outra parece livro de "gente grande", cascudo. E não apenas no virtuosismo da escrita - direta, livre, sem firulas, daquelas que em dois ou três capítulos já amarrou o leitor no sofá para não soltar mais -, mas também pelas temáticas abordadas: modernas e envolventes. O protagonista (e narrador) é um publicitário de 43 anos de nome José Victor. Ele está no quinto relacionamento (!) e tem um melhor amigo chamado Walter - uma amizade de 25 anos, que iniciou nas salas de aula de faculdade, permanecendo pela vida. Walter é hoje aquela pessoa com quem Victor troca confidências em mensagens íntimas, cheias de particularidades e idiossincrasias relativas à amizade dos dois.

Quem tem uma amizade realmente próxima, de mais de quinze ou vinte anos, sabe como funciona a GALINHAGEM quando o assunto são os diálogos que se desnovelam no foro íntimo de um whats app, por exemplo. Não há limites na hora de falar de relações humanas, de mulheres (ou de homens), dos outros amigos, do trabalho, dos colegas de trabalho. De chefes que estão importunando. Das metas. Das preferências, gostos, das tags preferidas no site pornô que carrega mais rápido. Pode o assunto ser prosaico como o almoço do fim de semana ou o jogo de futebol da quarta-feira ou mais relevante, seja ele uma paixão nova, o eventual desgaste de uma relação, aquilo que se gosta ou não na vida. Em tudo. Mas toda aquela conversa certamente virá banhada de uma linguagem toda própria, com gírias e apelidos, com deboche e alguma dose de ironia que, se retiradas de contexto, poderão gerar mau entendidos ou a eventual revelação de pessoas de ética moralmente duvidosa, com falhas, preconceitos, imperfeições.


No meu caso, se eu sou o Victor, o Henrique, um de meus três melhores amigos, e com quem eu mais seguidamente troco mensagens, é o Walter. Mas o que aconteceria se algumas dessas mensagens, tão particulares, tão subjetivas, tão identificáveis apenas com aquele universo todo particular de duas pessoas, viesse ao mundo no formato de postagens em fóruns ou redes sociais? No livro, uma das ex-mulheres de Victor, a arquiteta Teca, descobre uma senha de e-mail perdida quase uma década atrás, que revelará o conteúdo arrebatador da troca de mensagens entre o agora ex-marido e o seu amigo de 25 anos. Alguns pares de mensagens, uma notícia assombrosa que poderá modificar a vida de todos para sempre: da própria Teca, de Walter, de Victor. E até da atual namorada do protagonista, a jovem Dani, redatora-júnior de apenas 20 anos, que deu há cerca de 10 meses alguma cor a existência quase vazia do publicitário de meia idade.

Como o tribunal da internet reagirá a todas essas mensagens que começam em amigos de amigos e vão parar em grandes fóruns de discussão naquele que pode ser considerado o maior escândalo da cena publicitária moderna da Berrini  - e dos Faria Limers em geral, de São Paulo? Como os paladinos da moral, os fiscais de coerência atacarão com toda a sua fúria explosiva esse macho hétero, cis, privilegiado, que comete esse absurdo de conversar na linguagem da "putaria" - não da putaria em si, mas da zombaria -, com seu melhor amigo, prejudicando todos a sua volta? Como a busca por novos inimigos imaginários transformará este episódio em uma cruzada épica de bem contra o mal? Diante de um tribunal que se forja no texto e que lhe julga, o protagonista não deixa de reconhecer as suas falhas: é um ricaço que de vez em quando bebe e se droga e que talvez tenha abusado do poder, que talvez tenha mentido, que talvez tenha comprometido (ou não) o futuro de alguém. Vai saber. E que num instante talvez se torne a execrável figura de um machista, de um hedonista. Que talvez se enquadre na mesma vala comum dos pederastas, dos racistas, dos homofóbicos. Dos bolsonaristas. Com capítulos curtos e apenas 184 páginas, o livro brinca ao citar as referências, os lugares, os programas de TV e as personalidades, conduzindo a trama para um desfecho em que bem ou mal, certo ou errado, público e privado, lealdade e hipocrisia são postos à prova a todo instante, nos questionando os efeitos desse tribunal que, cedo ou tarde, pode estar sobre nós.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Sete Considerações Sobre o Globo de Ouro

O Globo de Ouro, como vocês bem sabem, foi na noite de ontem. E, aqui no Picanha, a gente faz algumas considerações sobre a premiação que, a despeito do descrédito que vem tendo nos últimos anos, acaba sendo um dos termômetros para o Oscar.

1) Pela quinta vez a apresentação foi do Ricky Gervais e, por conta de seu ácido monólogo de abertura, as redes sociais estavam em polvorosa na madrugada de ontem - e na manhã de hoje. Aliás, alguns setores de direita - e até onde sei o britânico é um democrata -, consideraram as frases proferidas pelo comediante, um ataque direto a essa "esquerda cirandeira que está aí". Bom, eu devo ser muito burro para não entender como um ataque DIRETO ao Governo Trump, uma frase como "vamos rir, afinal de contas vamos morrer logo né?". Ou mesmo uma crítica à hipocrisia das classes mais abastadas - sim, atores de Hollywood também são esses, né? -, quando ele afirmou que eles "poderiam guardar os discursos políticos, apenas agradecer seu Deus e irem embora". Sim, alguns consideraram estúpidas ou exageradas, piadocas bobas como a que dizia respeito a uma eventual sequência de A Escolha de Sofia. Eram apenas piadas, afinal. Só não entendi a excitação das "famílias de bem". Ainda mais levando-se em conta que a MELHOR PIADA disparada do monólogo, foi a que envolvia casos de pedofilia na Igreja Católica, ao citar o filme Dois Papas. Um achado!


2) Ainda sobre discursos, palmas de pé para Michelle Williams que fez uma fala poderosa sobre a importância da causa feminista, ao receber o prêmio pela sua atuação na minissérie Fosse/Verdon. "Sei que minhas escolhas talvez pareçam diferentes das suas. Mas graças a Deus, ou a quem quer que você reze, vivemos em um país fundado no princípio de que sou livre para viver segundo minha fé e você é livre para viver segundo a sua. Mulheres de 18 a 118 anos, quando for o momento de votar, façam isso de acordo com seus próprios interesses. É o que os homens têm feito há anos, e por isso o mundo se parece tanto com eles", lembrou ela, quase que suplicando por uma política com menos misoginia (e menos Trump)

3) Nunca pensei que fosse admitir isso, mas foram absurdamente emocionantes as entregas dos prêmios Carol Burnett, para a apresentadora Ellen Degeneres e Cecil B. Demille, para Tom Hanks. Em ambos os casos a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood reconheceu a carreira consagrada dos artistas e sua relevância no mundo do entretenimento. No caso de Ellen, por levantar a bandeira LGBTQ+ desde jovem, ainda nos anos 90 enfrentou preconceitos, cancelamentos de shows e de contratos, antes de se consagrar como uma das maios importantes figuras do show business americano. Em tempos turbulentos de ódio, de preconceitos e de intolerância saindo do armário - e legitimados por políticos estúpidos -, não deixa de ser um respiro.

4) Sobre os vencedores da noite foi uma baita surpresa a vitória do 1917, de Sam Mendes, superando os favoritos O Irlandês e Joker na categoria Filme Drama. Aliás, a vitória de Mendes como diretor também foi pra derrubar o bolão, já que ele deixou para trás Tarantino, Scorsese e até Boon Joon-hoo que, com seu Parasita, corria por fora. Já na categoria Filme Comédia ou Musical nenhum surpresa: deu Era Uma Vez em... Hollywood, na cabeça.


5) Falando em Parasita, na categoria Filme em Língua Estrangeira deu a lógica. Aliás, na hora de fazer as apostas para o Oscar, pode colocar o coreano como vencedor.

6) Nas premiações voltadas as séries ou as minisséries para a TV, me dei conta que ainda estou meio atrasado em relação a algumas produções que ainda não assistidas - casos de Chernobyl e Sucession, que faturaram o prêmio máximo em suas categorias. Outra que já está na fila é Fosse/Verdon, já citada anteriormente. Entre aquelas que assistimos e adoramos faturarem prêmio, Fleabeg (claro!), e The Act, que deu à Patricia Arquete o prêmio na categoria "melhor atriz em série que ninguém viu" (aliás, em breve a série figurará no nosso Picanha em Série).

7) Por fim, todo mundo celebrou a vitória de Joaquin Phoenix em sua categoria. Mas confesso que gostei TAMBÉM dos outros vencedores, especialmente Taron Egerton, que honrou a lendária figura de Elton John com sua entrega em Rocket Man. Awkwafina por Atriz em Comédia ou Musical no delicado The Farewell e Laura Dern como coadjuvante em História de Um Casamento também foram boas "surpresas" em categorias que eram meio indefinidas.


Bom, a temporada de premiações está só começando. E, pra vocês, qual foi o ponto marcante da noite?


Cinema - Dois Papas (Two Popes)

De: Fernando Meirelles. Com Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Minujín e Cristina Banegas. Drama, EUA, 2019, 125 minutos.

Divisor de águas entre o catolicismo conservador e o progressista, o Concílio Vaticano II, que durou de 1962 a 1965, procurava estabelecer algumas aberturas para temas importantes na Igreja. A ideia era dialogar mais com o mundo moderno, introduzindo novos modos de concepção da Revelação e flexibilizando inclusive o rito da missa - até então, celebrada em latim. Esta nova Teologia voltou a Igreja para questões mais humanas e sociais, como a justiça e a autonomia da ciência, reinterpretando dogmas e outros pontos da moral católica, que culminariam na Teoria da Libertação, estabelecida em 1968 e que julgava as causas de pobreza, de injustiças e de opressão como pecados estruturais. Um processo de conscientização e de organização em torno de lutas justas, humanitárias e inspiradas na prática religiosa - e que, claro, deixaram os grupos conservadores da Igreja Católica, que consideraram esta visão heterodoxa uma ameaça a sua fé, de cabelos em pé.

O que o espetacular filme Dois Papas (Two Popes) faz, é imaginar como seria o suposto encontro de correntes teológicas tão distintas, simbolizadas pela "amizade" entre os papas Bento XVI (Anthony Hopkins) e Francisco (Jonathan Pryce). Dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus), a obra inicia no conclave que empossa Bento, em 2005, dando um salto no tempo para os meses que antecedem à sua renúncia, em 2013 - momento em que ele convoca o cardeal Jorge Mario Bergoglio para uma conversa que, no fim das contas se converterá em uma série de troca de confidências em que ambos os homens revelarão fraquezas, angústias, remorsos, dúvidas e anseios. Mesmo com pensamentos e visões de mundo opostas - Bento é da corrente conservadora e pouco aberta ao diálogo, ao passo que Francisco é um progressista de grande popularidade -, aos poucos os dois se aproximarão, percebendo o fato de que podem ser tão parecidos quanto diferentes.


Sim, a gente sabe que filme sobre dois papas que dialogam sobre o mundo e as suas mudanças e as necessárias adequações da Igreja Católica para tentar conter a perda de fiéis, poderia soar como mera propaganda religiosa (ou mesmo um convite para um sono de duas horas). Mas não. Para além da suntuosidade dos cenários luxuosos - e a reconstrução de Castel Gandolfo impressiona -, o roteiro faz idas e vindas no tempo para mostrar a vida de Francisco na juventude, tornando mais dinâmicos os momentos que poderiam soar excessivamente elegíacos. Da mesma forma, fluem com naturalidade as diferenças entre os dois papas e que são superadas com a compreensão do outro. E com respeito. A simplicidade de Francisco, por exemplo, pode ser vista no ato mundano de comprar pizza e Fanta laranja em uma barraquinha de Roma ou mesmo na reconhecida paixão pelo futebol (e pelo San Lorenzo), ao passo que a sisudez de Ratzinger é reforçada pela persistência na solidão e pelo amor pela música clássica (aliás, a cena em que Bento está ao piano está, certamente, entre as mais comoventes, carregada, paradoxalmente, por uma impactante leveza).

Assim, uma obra que poderia ser pesada, se torna curiosamente até divertida - especialmente pelo fato de o roteiro de Anthony McCarten (O Destino de Uma Nação) optar por não se aprofundar em temas que poderiam conferir outro tipo de densidade para Dois Papas, como os casos de pedofilia na Igrega Católica ou mesmo a onda ultraconservadora que tem tirado do armário novos grupos neonazistas, ligados a um modelo de religião anterior ao do Vaticano II. Assim, se por um lado o filme desperdiça a oportunidade para este tipo de discussão mais relevante, nos brinda com um sem fim de grandes diálogos, em que assuntos como homossexualismo, aborto, celibato e divórcio são evocados, mesmo que de passagem, com a dupla central dando um show de interpretação. Aliás, ambos não são apenas parecidos fisicamente com os papas que encarnam: seus movimentos, seu comportamento, o gestual, tudo está de acordo para que não haja apenas formalismo ou homenagem e sim uma caracterização eficiente. O que poderá resultar, inclusive, em indicações ao Oscar.


E, como se já não bastassem todos esses predicados, o filme ainda insere elementos que despertam a curiosidade do espectador, por mais que, nas aparências, pudessem soar apenas como excentricidade. É o caso do instante em que Francisco canta Dancing Queen, do Abba (para surpresa de Bento). Abba, em hebraico, e de acordo com o Novo Testamento, significa "Pai Sagrado" - o que, na condição de máximo pontífice, Bergoglio será no futuro. O Pai. Que segura o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, na mão. São detalhes que enriquecem a narrativa, que é super bem montada e que ainda reserva para os créditos finais um dos momentos mais divertidos - em que as diferenças se "encontram" da mais improvável das maneiras. Um filmaço!

(Fonte: Revista Cult - Edição nº 252, dezembro de 2019)

Nota: 9,0