De: André Meirelles Collazzo. Com Marcélia Cartaxo, Thalita Machado, Tony Tornado e Luiza Braga. Drama, Brasil, 2021, 96 minutos.
Eu confesso a vocês que sou absolutamente fascinado por filmes que partem de um fiapo de história, para traçar um painel mais amplo em que questões políticas, sociais e culturais de certo País se descortinam de forma sutil, enquanto o cotidiano simplesmente acontece. No caso de Helen, estreia do diretor André Meirelles Collazzo, o cenário é o bairro do Bixiga, em São Paulo, e os seus labirínticos cortiços. Famoso por ser reduto de imigrantes italianos, o local é muito mais miscigenado do que deixa transparecer. Pior, para o diretor se consiste em uma "ferida exposta no meio da capital, onde existe uma precariedade e uma exploração do trabalho absurdas", como revelou em entrevista para o portal Papo de Cinema. Ao cabo, trata-se de um espaço em que as pessoas trabalham sem carteira assinada com a intenção de garantir a próxima refeição, enquanto habitam quartinhos em pensões tão insalubres quanto caras.
É nesse contexto que vive a pequena Helen (Thalita Machado), de apenas nove anos. Cuidada pela avó (Marcélia Cartaxo), a garota se divide em meio à brincadeiras cotidianas com os amigos da pensão, os estudos em uma escola pública do bairro, e um esforço de sobrevivência que se dá em um cubículo claustrofóbico. Negligenciada pelos pais, a menina tem uma rotina de muitas dificuldades e de poucos prazeres - sendo um deles visitar uma vitrine que exibe um vultuoso estojo de maquiagens, que ela decide que será o presente que dará a sua avó, em seu próximo aniversário. Sim, aqui está o fiapo de história: em meio ao cotidiano suado - dona Maria, a avó, parece estar sempre em movimento, seja lavando a laje da pensão que ajuda a cuidar ou vendendo espetinhos de carne de forma improvisada na calçada -, não parece haver muito espaço para respiro. Para cuidar de si, de sua saúde ou, que seja, da sua beleza. A vida é trabalho, luta, suor, sangue, grito, choro e, como não poderia deixar de ser, violência, que surge em seus variados formatos.
Ainda assim não se trata de um filme essencialmente panfletário ou que utiliza a violência para criar algum tipo de "estética" que possa servir apenas para retroalimentar os circuitos de arte. Ao contrário: o que Collazzo parece pretender aqui é falar de forma direta, buscando alcançar também aquele público para o qual centra a sua lente. Sim, a despeito do belo uso dos recursos técnicos - não são poucos os planos-sequência ou as tomadas de câmera que tornam a pensão uma espécie de labirinto naturalista, em meio à fotografia verde-acinzentada (que costuma ressaltar a melancolia dos grandes centros) -, a ideia geral é evitar o virtuosismo excessivo. Nesse sentido, não são poucos os "códigos" que dialogam com o nosso atual contexto - e que evidenciam os mais variados abusos. Numa sequência, por exemplo, Helen é assediada, mas sem que haja exploração excessiva do tema. Há na sugestão um poder que é evocado o tempo todo - e que, quando explode, como na cena em que o "rapa" leva embora a churrasqueira da avó, nos permite compreender qual é a realidade em que todos ali estão inseridos.
E por mais dura e realista que a obra seja, não são poucos os momentos de ternura que acompanhamos e que parecem ser a força motriz para que todos ali possam continuar - e, eu, particularmente me apaixonei pelas interações das personagens, especialmente de suas figuras centrais. Em uma cena em que avó e neta saboreiam, juntas, um delicioso pudim de leite, enquanto memórias do passado são evocadas, é simplesmente impossível não se apaixonar. Vale o mesmo para cada instante em que Tony Tornado surge em tela. É um filme que entrecruza a balbúrdia do cotidiano e a urgência de tudo, para nos levar em um instante para a efervescência cultural que explode (como na cena em que um coletivo de militantes realiza em ato político em defesa de Marielle Franco), enquanto a pequena Helen tem devaneios em que música, teatro, dança e outras manifestações culturais aparecem. As interpretações são maravilhosas. Marcélia Cartaxo, a gente sabe, dispensa comentários. Mas Thalita Machado, selecionada entre mais de 400 meninas, é uma força da natureza. Que nos faz acreditar que aquela realidade, é a realidade de milhares de garotas sonhadoras como ela. Simplesmente imperdível.
Nota: 8,5