Um clipe colorido com uma menininha vestida de abelha. Uma guitarrinha sinuosa, envolvente. Um vocal à moda "Guns & Roses wannabe". O combo de elementos que tornou a música - e o vídeo - de No Rain, do Blind Melon estará para sempre cristalizado na memória dos fãs de boa (?) música. Mas que fim que levou essa banda, que se tornou tão conhecida apenas por essa clássica canção que praticamente resume os anos 90? Aliás, que época excêntrica foi essa em que tantos artistas surgiram para o mundo para dar aquele suspiro único de sucesso radiofônico para depois simplesmente desaparecer? Spin Doctors, Chumbawamba, Meredith Brooks, Apache Indian... não tá ligando o nome a pessoa? Mas pode ter a certeza de que você JÁ OUVIU tudo isso antes. A menos que você esteja vindo, assim como o nosso amigo Bernardo, diretamente de Marte neste exato momento. No episódio de hoje, portanto, a nossa intenção é a de nos divertir, de ser nostálgicos, de recordar. E de lembrar alguns dos maiores casos de One Hit Wonder - aquelas bandas/artistas internacionais de um sucesso apenas - que se tem conhecimento! Bora clicar e sextar. Vai ser uma viagem que, a gente garante, mexerá com a sua memória. E valerá a pena!
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Livro do Mês - Dias de Abandono (Elena Ferrante)
Dias de Abandono foi o meu primeiro contato com um livro da Elena Ferrante - a misteriosa escritora que pouco se sabe - e eu fiquei simplesmente impactado pela sua sinuosa escrita. Trata-se de uma obra de temática bastante simples: mulher é inesperadamente deixada pelo marido e precisa lidar com os dias (e meses) seguintes, passando por todas as etapas que envolvem o luto por uma separação - da negação inicial, passando pela raiva, até chegar num processo de aceitação. Só o que torna essa obra bastante diferente das demais é a franqueza com que Olga, a protagonista, encara a mesquinharia do entorno, o vazio dos dias e a depressão que lhe invade. Com uma sinceridade (quase) alarmante ela não hesita em verbalizar o quanto está de saco cheio dos seus filhos - de seus choros e ranços - naqueles dias seguintes, ao passo em que tenta reencontrar sentido em uma rotina que, agora, parece ausente de motivação: para o trabalho, para encontros com os amigos, para qualquer distração. Há apenas uma nuvem carregada. E Olga, tal qual o personagem de Jim Carrey em O Show de Truman, está posicionada abaixo dela.
O marido de Olga é Mario. Após quinze anos de casamento, ele simplesmente "descobre" que o amor acabou. O amor, a paixão, ou qualquer coisa que os pudesse manter conectados. Aliás, anuncia que a está abandonando após um almoço qualquer, num dia qualquer, como se fizesse parte de algum tipo e informe de rotina, enquanto ambos tiravam a mesa, as crianças brigavam, o cachorro se amainava. Só que para Olga, o que pesa nesse conjunto que vira um turbilhão é a tranquilidade, a placidez com que o, agora ex, encara tudo. Está indo embora com uma jovem mulher mais nova, filha de uma antiga amiga. Aliás, uma mulher bem mais nova, que talvez não ultrapasse os 25 anos. Olga tem dificuldade em aceitar, perde a compostura: encontra ambos na rua e, se for preciso, parte para a agressão, para a baixaria. Acaba por se tornar uma espécie de "vilã involuntária": a anti-heroína que sofre sobrecarregada, enfurnada em uma casa inóspita, doente, dura. Em seus dias de autocomiseração é consumida pelo ciúme, pela inveja, pela vergonha. Pela mesquinharia.
E mesmo que a linguagem seja bastante direta, Ferrante trata de ocupar suas páginas com figuras de linguagem diversas, metáforas, hipérboles, que dialogam de forma honesta com o processo angustioso e obsessivo vivido pela protagonista. Vai percebendo aos poucos como a mecanização dos dias pode ter esmaecido a relação: tornado-a oca mesmo quando tudo parecia bem, tudo estava tranquilo, com os beijos sem paixão sendo dados no piloto automático, enquanto a vitalidade do entorno ruía. Símbolo dessa nova fase de sofreguidão, o cachorro Otto retorna para a casa após um passeio aleatório em algum dos dias seguintes e se vê padecendo de algum mal meio em explicação: está apático, doente, vomita. Talvez tenha sido envenenado. Talvez esteja apenas contaminado pelo entorpecimento das mudanças sentidas nos donos. As eventuais visitas de Mario para ver os filhos, ou para tratar de algo relacionado à separação se tornam exasperantes, vis. Há quase um clima bélico permanentemente instalado. Algo incômodo, intranquilo. É uma obra que, ao cabo, constrange, desagrada. E nos vicia.
Por que, no fim das contas, em maior ou menor medida, a história de Olga é a história de cada um de nós. De nossas dores, de nossos sofrimentos. Quem nunca chorou por ter sido deixado de lado mesmo quando tudo parecia tão bem pode atirar a primeira pedra. A vida é imprevisível e é na nossa mente que a gente monta as imagens, constrói as histórias, projeta sonhos, desejos. Que serão ou não cumpridos. Que gerarão ou não expectativas. Frustrações. Olga talvez demore um pouco para perceber que, ali adiante, há muita vida a ser vivida. Há muita natureza a ser curtida. Livros, arte, música. Um show inesperado, um instrumentista simpático, iluminado. Coisas aleatórias que poderão preencher nosso cotidiano com alguma cor, com alguma esperança. Isso significa que "cabeças não serão quebradas?". Não, não significa. Isso significa não enfrentar o constrangimento de encarar família, amigos, depois de algum "fracasso"? Não, tudo segue igual. Mas seremos somente nós que poderemos lidar com isso. Com esse turbilhão. Nós, nosso pensamento, nossos dias e noites tormentosos, enquanto a primavera não chega. Mas a gente sabe. Todos sabemos: ela algum dia, há de chegar.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Novidades no Now/VOD - A Caminho da Lua (Over The Moon)
De: Glen Keane. Com Cathy Ang, John Cho, Philippa Soo e Sandra Oh. Animação / Aventura, China / EUA, 2020, 100 minutos.
A Caminho da Lua (Over The Moon) é uma animação simpática, com um ótimo visual, mas eu infelizmente não consegui me conectar tanto assim com a história. E nada tem a ver com o fato de ser um produto destinado ao ao público infantil, já que produções como Divertidamente (2015) e A Viagem de Chihiro (2001) - pra citar dois exemplos -, integram facilmente a relação de grandes obras desse milênio e que aprecio demais, mesmo sendo voltadas aos pequenos. Mas o caso é que não rolou mesmo. Não curti muito com as músicas, a narrativa parece meio desorganizada, as cores soam eventualmente excessivas e a insistência atual em criar algum tipo de criatura com o único propósito de encarnar o papel de "fofinha" meio que já deu no saco. A perspectiva era boa, já que se trata da primeira parceria da Netflix com o estúdio chinês Pearl Studio, o mesmo valendo para a direção de Glen Keane, que já havia faturado o Oscar na categoria Curta de Animação por Dear Basketball. Mas, como disse, não aconteceu.
O que não significa, lógico, que as pessoas devam deixar de assistir a esse filme, até mesmo porque ele tem sido bem recebido pelo público. Cada um é cada um na experiência fílmica e é muito provável que a reação seja bem melhor no que diz respeito ao público à que obra se destina. E digo mais: apesar de eu não ter me envolvido na história, é preciso reconhecer alguns de seus méritos. O primeiro deles é possuir uma jovem menina como protagonista/heroína - o que, vamos combinar, não costuma ser a convenção do gênero. E, mais do que isso, essa menina - seu nome é Fei Fei (Cathy Ang) sonha em construir uma nave espacial para poder ir... até a Lua. O objetivo em questão é nobre: após o falecimento de sua mãe, a pequena acredita que um pulinho no satélite natural para encontrar a Deusa Cheng'e possa demover o seu pai de namorar uma outra mulher. A história de Cheng'e, que envolve a promessa do "amor eterno" sempre era contada por sua mãe, na sua infância. E esta é uma forma muito nobre de a pequena tentar se manter ligada a ela.
E essa parte inicial, admito, é muito bonita. A rotina em família, que é interrompida por uma devastadora doença, enquanto todos pareciam felizes e plenos no dia a dia como confeiteiros - especialistas numa iguaria conhecida como "Bolinhos da Lua" -, abala o espectador já na saída. Aliás, esse é um recurso que eu considero sempre valioso em qualquer animação: o de mostrar para as crianças que o sofrimento, as dores e os traumas (como a morte de um ente querido) existem na nossa vida e precisaremos lidar com eles. É preciso levantar a cabeça afinal. Só que o pai de Fei Fei se reergue tão bem após alguns anos que, bom, a fila definitivamente andou: a sua namorada é gentil e simpática, mas tem um atabalhoado filho de oito anos (o novo irmão de nossa heroína). E será justamente esse contexto meio "torto" a que ela não estava tão habituada, que a fará construir a nave que lhe possa fazer alcançar seus objetivos.
E será na segunda parte do filme que as crenças, o misticismo e outros aspectos da cultura oriental servirão como veículo para uma série de lições sobre superação de obstáculos, aceitação, luto, importância da família, entre outros. Será na Lua que a história ganhará movimento, cores, vida, com direito a sequências arrebatadoras como aquela em que Cheng'e se isola em uma espécie de "vácuo" em estado de tristeza profunda - o que, em partes, parece emular condições psicológicas como a depressão. Mas, ainda assim, senti falta de um arco narrativo um pouco mais consistente e até mais desafiador para os protagonistas, já que a impressão que fica o tempo todo é a de que o objetivo era não chocar os mais pequenos com nada que pudesse sair muito de uma certa lógica (e, se foi isso, ok). Ainda assim, mesmo com esses pequenos "defeitos" é muito provável que a obra figure entre os indicados na categoria Animação no próximo Oscar, devendo abocanhar também alguma indicação para Canção - talvez Rocket To The Moon. E era isso.
Nota: 6,5
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Na Espera - Minari (Filme)
Um filme que te faz chorar já com o trailer - esse é o caso de Minari, aposta forte da A24 para a temporada de premiações que está chegando. Ainda sem data de estreia no Brasil, o filme do diretor Lee Isaac Chung tem chamado a atenção nos festivais em que tem sido exibido, especialmente pelo componente emocional da narrativa. Que parece ser bastante simples, mas muito eficiente. Na trama voltamos aos anos 80 para acompanhar uma família de origem coreana que atravessa os Estados Unidos para chegar até zona rural do Estado do Arkansas, com o objetivo de se estabelecer na terra e investir na agricultura. O novo - e talvez inóspito - ambiente, somado as dificuldades para que os cultivos pretendidos vinguem no local, parece compor o arco dramático que mescla "sonho americano" com as frustrações geradas pelo insucesso. O que certamente desestabilizará a família.
Nome mais conhecido do elenco, Steve Yeun encara o desafio de interpretar um papel relevante - no caso, o pai da família -, tentando se desvincular da eterna imagem de Glenn, do The Walking Dead. Mas o destaque MESMO parece ser o pequeno Alan S. Kim, que encarna o jovem David com um misto de ternura (especialmente na relação com a avó) e desconfiança. Xenofobia, medo do diferente, conservadorismo... esses parecem ser alguns temas que poderão estar na película, ainda que indiretamente. Se vai estar no Oscar ainda é muito cedo para cravar. As primeiras críticas à obra tem sido bastante elogiosas e a campanha terá de ser forte, especialmente para um filme de baixíssimo orçamento. De qualquer maneira, aqui no Picanha, somos pura expectativa. A estreia por aqui deve ser em fevereiro. Resta aguardar.
Novidades no Now/VOD - On The Rocks
De: Sofia Coppola. Com Rashida Jones, Bill Murray, Marlon Weyans e Jessica Henwick. Comédia dramática, EUA, 2020, 96 minutos.
Existe uma cena bem no comecinho de On The Rocks que, apenas com o uso do som abafado, confuso, já dá o tom daquilo que encontraremos nessa agridoce aventura romântica da diretora Sofia Coppola (de As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros). No momento em que Laura (Rashida Jones) leva os seus filhos para a escola, uma espécie de britadeira de uma obra insiste em poluir uma conversa descompromissada que ela tem com uma mãe de algum outro aluno. A mãe em questão discorre sobre as aventuras sexuais com um desconhecido, enquanto os barulhos rotineiros, aleatórios, quase invadem a cena, perturbam incomodam. Não é preciso nem cinco minutos para que compreendamos que o caos ruidoso da vida lá fora é uma metáfora para o estado de espírito da protagonista: com vários anos de casamento nas costas, uma casa para cuidar, dois filhos, a rotina e o cotidiano, a "vida a dois" com o marido Dean (Marlon Weyans) já não é mais aquelas coisas. E uma sequência com Chris Rock pontua bem os rituais habituais de um casal. É divertido e melancólico ao mesmo tempo.
Pra piorar, tudo indica que Dean possa estar tendo um caso com sua jovem e prestativa assistente Fiona (Jessica Henwick). No trabalho, há muitas viagens juntos, muitas conquistas, números alcançados e metas a celebrar e Laura, uma escritora que luta para colocar a "casa em ordem" para destrinchar o seu novo livro, acaba ficando meio alheia a tudo. Sua vida é recolher brinquedos, conter agitações. Ir da escola para casa, da casa para a escola, com uma passada no mercado ou nos familiares pouco amistosos. Falando em familiares, a situação piora quando "entra" em sua vida o seu pai, o bon vivant Feliz (Bill Murray). Sujeito que consegue esconder o machismo e a misoginia debaixo de uma tonelada de carisma, Felix se propõe a ajudar a filha a desvendar aquilo que possa estar por trás da crise de seu relacionamento. Experiente e cheio de segredos do passado, acredita que Laura mereça o melhor: e não aceita o fato de que sua "pequena" esteja sendo deixada de lado, virando um tipo de detetive empenhado em descobrir a verdade sobre Dean (e Fiona).
Sim, parece meio bobinho mas é agridoce, leve, divertido. Cada encontro de Felix com Laura - seja em algum restaurante luxuoso, em algum ponto turístico ou, sei lá, no México (!) -, renderá um sem fim de diálogos divertidos, cheios de comentários sociais sobre relacionamentos, suas angústias, anseios, dores e temores. Não, não é para mudar a vida, mas quando Sofia centra seu roteiro em um tema tão caro a qualquer um de nós - o da paixão e da necessidade permanente de reciclá-la dentro de um relacionamento -, ela fala com absolutamente TODAS as pessoas. E aí é impossível não se identificar. Quando Laura flagra uma necessaire de Fiona perdida nas coisas de Dean, ou mesmo os dois saindo de um jantar que parece fruto de alguma mentira, a protagonista teria tudo para encarnar a esposa paranoica e insegura. Mas a presença do pai sempre ao seu lado, por mais excêntrico que ele seja, faz com que as coisas se mantenham mais ou menos dentro de um controle, com as dúvidas sobre o desfecho do principal arco dramático se mantendo em suspense o tempo todo.
E o fato de Murray encarnar Felix como uma figura ao mesmo tempo abjeta e elegante gera um caráter multidimensional para a construção daqueles que assistimos, afinal de contas todos nós somos seres complexos, que tem conflitos internos e questões a serem resolvidas praticamente o tempo inteiro. Se por um lado, o comportamento sexista e preconceituoso de Felix surge praticamente o tempo inteiro, gerando desconforto nos demais, será ele também a pessoa que estará lá para apoiar Laura nos piores momentos. E nos mais constrangedores também. Inclusive naqueles em que ele mais atrapalha do que ajuda! Com boas chances na categoria Roteiro Original na próxima edição do Oscar, a película ainda representa um sopro de otimismo em tempos tão duros, tão rudes, tão ásperos. Saber perdoar, se redescobrir, conseguir ir adiante, mudar mesmo permanecendo, ficando... a obra traz algumas lições. Pequenas, não tão profundas. Mas que nos arrancam um sorriso glorioso ao final.
Nota: 8,0
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
Novidades no Now/VOD - Borat: Fita de Cinema Seguinte (Borat Subsequent MovieFilm)
De: Jason Woliner. Com Sacha Baron Cohen e Maria Bakalova. Comédia, EUA, 2020, 95 minutos.
Ascensão da extrema direita, Trump, negacionismo científico, intolerância, xenofobia, fake news, militarismo... vamos combinar que não poderia haver momento mais adequado para o surgimento de uma sequência com o "segundo melhor repórter do Cazaquistão" do que os tempos de hoje. Sim, desde 2006 o mundo mudou bastante e uma revisão do primeiro filme estrelado por Sacha Baron Cohen quase o torna uma comédia apenas mediana sobre o comportamento absurdo do americano médio da "família de bem". Só que esse mesmo americano médio, em 2020, está completamente fora do armário, com toda a sua intolerância, ódio pelo diferente e crença de que os valores mais conservadores vem sendo deturpados nos últimos anos - inclusive por figuras progressistas como Barack Obama. Então, arremessar novamente o Borat nesse contexto é lançar um convite sem limites para a denúncia de todos os tipos de abusos. Que aparecem, novamente, sob o véu de um suposto falso documentário, que mescla sequências reais com outras magistralmente encenadas.
Assim, Borat: Fita de Cinema Seguinte (Borat Subsequent Moviefilm) parte exatamente de onde parou, com o melhor argumento da história. Após a obra de 2006, Borat retorna para seu País Natal sendo enviado como escravo para uma espécie de Gulag - é a sua sentença por ter provocado tanta humilhação ao povo do Cazaquistão. E ele só é retirado do campo de trabalho forçado por um motivo nobre: insatisfeito por não fazer parte dos panteão dos mais proeminentes governos extremistas do planeta - entre os quais, figura com louvor o nosso glorioso "mito" -, o presidente envia Borat com a missão de levar um presente para Donald Trump (ou McDonald Trump), com o objetivo diplomático de ser incluso no seleto grupo dos extremistas. O presente? Um macaco. Que morre no caminho. Porque é COMIDO pela única filha de Borat, que vai escondida na viagem à Terra do Tio Sam sob o pretexto (ou sonho) de se tornar uma nova Melania. Sem o macaco, o repórter resolve "presentear" sua filha ao vice-presidente norte-americano Mike Pence. Sim, isso mesmo: dar a sua filha.
Pois esse arco dramático esdrúxulo é a desculpa perfeita para um sem fim de comentários políticos, sociais, religiosos e culturais que envolvem ambos os países em questão, mas que colocam um dedo enorme na ferida da desastrosa política geral da extrema direita. Em uma das tantas sequências engraçadas, Borat não sabe como entrar em um evento em que Pence se manifestará - a ideia é se aproximar do sujeito com seu "presente". A solução? Entrar no local com vestes semelhantes aos da Ku Klux Klan. Em outro instante, o protagonista fala com dois republicanos sobre a forma de Obama, Clinton e os democratas em geral conduzirem a política. "É uma pena que não possamos fazer com eles o que desejaríamos, porque aqui eles têm direitos", comenta um dos homens, com uma tranquilidade ao mesmo tempo dilacerante e constrangedora. Há ainda uma sequência implacável sobre aborto, em que Borat evidencia que, para os republicanos conservadores, pouco importa como um bebê foi concebido: é a vontade de Deus que está em jogo.
Em geral a obra é uma coleção de momentos que evidenciam a hipocrisia de boa parte da sociedade americana, não fazendo nenhuma concessão na hora de chocar - e quem vota em figuras como Trump e Bolsonaro naturalmente se sentirá incomodado. Há ainda um outro momento de alívio, especialmente pela presença magnética da atriz búlgara Maria Bakalova, que interpreta Tutar, a filha de Borat, que também tem ótimos momentos de improviso. Sendo uma divertida - e porque não, tristemente melancólica - peça dentro do xadrez político que envolve as eleições americanas, que ocorrem no próximo dia 03 de novembro, a película faz muita questão de mostrar de que lado está (e a cena envolvendo o ex-prefeito de Nova York e atual advogado de Trump, Rudolph Giuliani, filmado sem saber, é apenas uma das provas disso). Contando ainda com a maior reviravolta da história do cinema em 2020, Borat: Fita de Cinema Seguinte é a prova de que enquanto houver absurdo, a quantidade de matéria-prima para um filme como esse pode ser praticamente infinita.
Nota: 8,5
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
Podcast do Picanha Cultural #25 - Respondendo as Perguntas da Audiência
Quem nos acompanha no podcast percebeu que estivemos ausentes na última semana. Mas o motivo foi nobre: após 24 edições corridas do Podcast do Picanha Cultural, resolvemos fazer uma pausa de uma semaninha para reorganizar as pautas, incluir temas e discutir quais materiais levaremos para o ar nessa reta final de ano. E o retorno, se dá em grande estilo. E contando com a participação de vocês, que nos escutam. Para o episódio de hoje, o Bernardo, o Henrique e eu estimulamos vocês a nos enviarem perguntas nas nossas redes sociais, com a intenção de tornar tudo mais interativo. A ideia foi a de estreitar a relação com quem nos acompanha, respondendo desde perguntas sobre música, cinema e séries até outras bastante pessoais. Afinal de contas, como o Bernardo conheceu a Joana? Qual a melhor trilha sonora história? Como "começar" e ver os filmes clássicos? E quais as frases que podemos dizer no Picanha e na hora do sexo? Essas e muitas outras respostas está nesse divertido episódio que convidamos vocês a dar play. Bora que o sextou já começou.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Grandes Filmes Nacionais - O Palhaço
De: Selton Mello. Com Selton Mello, Paulo José, Giselle Motta, Teuda Bara e Larissa Manoela. Comédia dramática, Brasil, 2011, 90 minutos.
Existe uma cena que gosto demais em O Palhaço e que, de alguma forma, representa o elogio ao poder transformador da arte que, ao cabo, não deixa de ser um dos arcos narrativos da película. Após se desligar da companhia circense por uma temporada para alcançar o seu grande objetivo de vida - no caso, comprar um ventilador -, o palhaço Benjamin (Selton Mello) resolve retornar para o grupo. Em um caminhão de boias frias - cheio de pessoas entristecidas, certamente pela brutalidade daquele ambiente que as oprime -, ele inicia uma pequena sessão de palhaçadas, que arrancará uma doce risada de uma das passageiras. É ali, naquele pequeno instante tão singelo que, para nós, espectadores, rola uma espécie de epifania: é quando percebemos a essência daquilo que estamos acompanhando. Qual a ideia central por trás da história da trupe do Circo Esperança. Um coletivo provavelmente muito parecido com tantos outros que percorrem o Brasil. Aos trancos e barrancos, tentando levar um pouco de cor para as comunidades. De vida. De alegria mesmo. Retirando-as, nem que seja por uma hora, da dureza dos dias.
Falando em cor, é preciso que se diga que o filme as utiliza de forma soberba. Nos rincões empoeirados, tudo é quente, sufocante, desértico. O amarelo do sol parece ocupar todos os cantos, quando os caminhões do circo aparecem pela primeira vez em cena. Mas quando a primeira sequência no picadeiro aparece há uma palpável vivacidade, as cores são nítidas, fortes, vibrantes. A cada comentário jocoso dos palhaços Pangaré (Mello) e Puro Sangue (Paulo José), a plateia se extasia em uma meio a uma "névoa" quase mística, uma aura de sonho, onírica, à moda de um cinema tão felliniano quanto regionalista. É bonito de ver esse contraste porque ele estabelece já na origem aquilo que mencionei no parágrafo acima: em meio a apresentação do circo a alegria é transmitida em todos os detalhes: nos curiosos objetos cênicos, no excêntrico figurino, na trilha sonora curiosa e divertida, na agudeza do olhar dos que assistem... é nesse instante que as dores do mundo ficam lá fora. Distantes da lona do circo.
Mas é claro que nem tudo são rosas para a trupe. Aliás, bem pelo contrário: nos bastidores, sai a alegria e a jovialidade para entrar a descrença (e a pindaíba). Com o público contado praticamente nos dedos - e um grupo de mais de dez pessoas para se alimentar, viver, mandar dinheiro para parentes -, a escassez tem aumentado. O que tem sido um peso para Benjamin que, acumulando um cargo estilo "gerente geral", tem tido dificuldade de organizar o todo. Sequer um sutiã novo para a Dona Zaira (Teuda Bara) ele é capaz de providenciar. Isso pra falar de algo simples. Já o calor sufocante, faz ele praticamente delirar com o sonho do ventilador próprio - o que se torna uma espécie de propósito de vida, como já comentado. Bom, não vai demorar para que Benjamin se sinta efetivamente sobrecarregado - o que ocorre em meio a uma apresentação em que as coisas saem do controle - e ele realmente resolva dar um tempo para tudo. Sim, o tempo. A gente sabe: também costuma dar aquela força.
Em linhas gerais o filme é de uma simplicidade quase modesta demais - e talvez a ausência de uma maior densidade narrativa incomode alguns espectadores. Acompanhamos o grupo, suas dificuldades financeiras, a tentativa de levar alegria às pequenas comunidades, em um contexto de pobreza, quase de desilusão. No meio do caminho, uma parada na casa de um prefeito para um jantar opulento - uma das cenas mais divertidas, por sinal -, um problema no caminhão do grupo que os fará desviar da rota e as paradas aleatórias em bares, fazendas e outras instalações pelo caminho. Como andarilhos, o grupo vai desbravando o mundo, enquanto se empenha naquilo que ama. E, pra mim, sinceramente, não precisa muito mais do que isso. Há ainda um sem fim de participação especiais - do falecido Jorge Loredo, passando por Moacy Franco, Ferrugem, Fabiana Karla -, além da jovem Larissa Manoela que, aos nove anos de idade, representa o sonho do futuro fazendo aquilo que ama: no caso ARTE. No ano em que foi enviado para o Oscar sequer chegou aos finalistas. Mas, aqui no Brasil, é um dos 100 Melhores Filmes Nacionais da História, de acordo com lista elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Uma boa credencial.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Lado B Classe A - Mutual Benefit (Love's Crushing Diamond)
Não sei como tem sido pra vocês mas os tempos brutos que vivemos, somados à pandemia, tem tido um efeito meio curioso nas minhas preferências artísticas, culturais. E no que diz respeito à música, a impressão que tenho é a de que, em 2020, eu não estou tão "disponível" para experiências novas, que demandem muito tempo para a completa absorção. E, menos ainda, para aqueles registros mais barulhentos, mais desafiadores e, portanto, menos aconchegantes ou acolhedores. Esses dias eu fiz uma pequena nota sobre o novo disco do Travis, brincando sobre o fato de não haver nada melhor do que encontrar o álbum de "sempre" num novo trabalho de um artista que gostamos. E esse contexto me fez perceber que eu vinha recorrendo a muitos discos do passado, que pudessem representar algum tipo de amparo, que pudessem vir acompanhados de algum conforto ou de uma sensação de paz para enfrentar a rudeza do entorno. E, a meu ver, é exatamente este o caso de Love's Crushing Diamond, o primeiro trabalho do Mutual Benefit.
Pensa num troço agradável. Gracioso. Leve. Melodioso. Se você se habituou a gostar de country moderno por causa da fúria incontida no banjo apresentado pelo Mumford & Sons, pare alguns minutos para apreciar um trabalho que alterna momentos oníricos com outros etéreos, ao mesmo tempo em que envolve o ouvinte com uma coesão de arranjos sublimes, que ficam no limite entre o introspectivo e o primaveril. Peça central do registro, a magistral Advanced Falconry, terceira canção, resume bem esse estado de espírito. Inicia com uma melodia invernal e bucólica, que nos joga para o meio de um amanhecer preguiçoso, que se estabelece não apenas nos efeitos econômicos, mas no piano e no violino sinuoso que se misturam, que se completam, enquanto a percussão vagarosa vai martelando. A letra, tão apaixonante quanto delicada, fala de um amor que se expressa de forma sutil, mas de um jeito transformador - E ela fala baixinho / Vê através de mim / Diz algo que não consigo ouvir / Mas não vou esquecer / O jeito que ela voa.
Outra canção tão linda quanto afetuosa é C. L. Rosarian, que tem comecinho que mais parece extraído de trilha sonora de comédia alternativa romântica para, depois da entrada das cordas, se transformar em um verdadeiro poema sobre uma paixão que era pra ser, mas talvez não foi. Um amor meio "descuidado", como brinca o C. L do título, que na verdade significa careless love - Você estava colhendo rosas na lagoa / E você encontrou um amor descuidado para chamar de seu / E parece que a beleza pode ser difícil de encontrar / Quando você tenta congelar um momento em sua mente. Quando escreveu a sua resenha para a Pitchfork, o crítico Ian Cohen classificou o registro do multi-instrumentista Jordan Lee como "amoroso, paciente e infalivelmente esperançoso". "Quase todas as qualidades que você deseja em um ser humano, não é mesmo?", completou ele. Estávamos em 2013. E de lá para cá, acho que não é impressão, a humanidade parece estar prestando a cada dia menos atenção nessas características e talvez seja por isso que um registro desse tipo traduza tão bem esse sentimento. Ao menos para esse jornalista que escreve essas poucas palavras.
Sim, eu sei muito bem que a arte é feita para provocar, para instigar, para nos tirar da zona de conforto. Mas isso eu encontro nos livros que leio, nos filmes que assisto. Ultimamente, quando amanhece o dia, parece que cada vez mais desejo uma canção que soe meio familiar, nostálgica, quase intuitiva. Que tenha cordas e percussão pacientosos e efeitos econômicos. Se fosse possível fazer "música gentil", talvez o Mutual Benefit tenha atingido o auge disso, nesse processo. A pena toda é que são apenas sete músicas e pouco mais do que 31 minutos. E quando você vê você está voltando para tudo aquilo e novo. Para o começo perfumado por sinos dos ventos - sim, acredite -, de Strong River e seu clima que equilibra o épico e o barroco em igual medida, passando pelo lo-fi (e pelo refrão grudento) de Golden Wake, até chegar até o final levemente apoteótico de Strong Swimmer - e sua ambientação que não faria feio como trilha sonora de filme de época. No site Consequence Of Sound a explicação para esse tipo de energia gerado por Lee pode ser explicado pelo fato de ele ser meio "nômade", um andarilho que absorve climas, culturas, geografias, ambientes - e os traduz de forma magnifica em discos incríveis. Love's Crushing Diamond é um diamante. Sem necessidade de lapidação.
Na Espera - A Voz Suprema do Blues (Filme)
Vamos combinar que a despedida oficial de Chadwick Boseman do mundo do cinema - mas não de nossos corações e memória - tem tudo para ser mais do que emocionante. Isto porque a crítica especializada tem trabalhado com a hipótese quase certa de que o astro falecido há dois meses, vítima de câncer, deverá estar entre os indicados ao Oscar na categoria Ator Coadjuvante pelo seu papel em A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey's Black Bottom). Aliás, é um dos favoritos à estatueta. O filme estreia diretamente na plataforma de streaming da Netflix no dia 18 de dezembro e tem Viola Davis como protagonista. Ela interpreta a Ma Rayney do título oficial que, no começo do século passado praticamente inventou o blues - sua alcunha até era "Mãe do Blues". O arco dramático central, de acordo com o material de divulgação, envolve uma batalha judicial pelo controle dos direitos musicais entre a artista e um produtor (branco, claro). O pano de fundo do preconceito racial parece estar no centro da narrativa.
Sobre o trailer do filme de George C. Wolfe (de Um Momento Pode Mudar Tudo, que eu não assisti), é impossível não ficar inicialmente impactado pelo desenho de produção e, bom, aí deverá ser uma outra categoria em que a obra pode ser lembrada. O clima de homenagem ao blues não apenas como música, mas como veículo para discussões culturais, políticas e sociais mais profundas, parece ser também um ponto que percorre a película, sendo impossível não ser envolvido por todo o resto - desde as canções vigorosas à fotografia levemente amarelada (ainda que muito viva). O figurino e a maquiagem também chamam a atenção e confesso que a Frances McDormand terá de mostrar trabalho em Nomadland, se quiser tirar a estatueta da Viola no próximo ano. Aliás, sobre Boseman, a estrela disse em entrevista à Revista Rolling Stone que ele era verdadeiramente como um "filho para ela". Acho que todos estes fatores juntos tornam A Voz Suprema do Blues um dos filmes mais aguardados da temporada de premiações!
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
Novidades no Now/VOD - Os 7 de Chicago (The Trial of the Chigago 7)
De: Aaron Sorkin. Com Eddie Redmayne, Sasha Baron Cohen, Mark Rylance, Frank Langella, John Carrol Lynch e Michael Keaton. Drama, EUA, 2020, 129 minutos.
Eu não sei nem por onde começar a falar de Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago 7) porque é absolutamente tudo PERFEITO no filme de Aaron Sorkin (roteirista de A Rede Social, de Moneyball e da série The West Wing), que está disponível na Netflix. Pra começar, temos um roteiro extremamente bem costurado, que tem como pano de fundo a Guerra do Vietnã - e a desastrada política armamentista norte-americana -, uma das tantas chagas políticas da Terra do Tio Sam. Depois, há o grupo de atores e, admito a vocês, que fazia muito tempo que não me deleitava tanto com um coletivo tão coeso de interpretações. Os diálogos, outro ponto de destaque, ainda que eventualmente expositivos, nos auxiliam a compreender o que estava em questão naquele contexto de antes e depois da convenção do Partido Democrata no ano de 1968 e de como as decisões daquele período poderiam determinar o futuro de milhares de jovens da nação. E, por fim, há o drama de tribunal envolvente em que as bombas e explosões que marcaram as manifestações, dão lugar a um sem fim de discursos que servem para pontuar as intenções de ambos os lados.
Sério, é um filme de riqueza argumentativa poucas vezes vista. Uma obra inteligente, grande, que, de quebra, estabelece um paralelo entre aqueles dias e os cenários políticos polarizados de hoje, em que grupos radicais de extrema direita sequer têm vergonha de exibir a sua predileção por armas, guerra, sangue e ódio, ao passo que a esquerda "paz e amor", se esforça para que a imposição ideológica consiga ir para além do discurso. E talvez seja isso que torne a película ainda melhor: com a eleição norte-americana se aproximando, não é difícil enxergar a beligerância de Donald Trump sendo traduzida no formato de um Estado que se exime de qualquer culpa enquanto promove ataques sucessivos ao cidadão comum - seja ele no formato que for, negando a ciência, acreditando no vírus chinês, ou mandando milhares de jovens para uma guerra completamente sem sentido. Já o Partido Democrata é apresentado quase como uma "sucursal" dos republicanos, com políticas como as de Guerra ao Terror, sendo mantidas ano após ano independentemente da matiz partidária.
E, na realidade esse é o ponto de partida de Os 7 de Chicago. Insatisfeitos com a indicação política que o Partido Democrata pretende levar adiante em sua convenção, grupos progressistas (ou de esquerda) - como estudantes universitários, intelectuais, ativistas, hippies e integrantes de grupos revolucionários como os Panteras Negras -, pretendem protestar pacificamente, em Chicago, onde o evento acontecerá. A ideia é demover o Partido de uma escolha que não resultará no fim da Guerra do Vietnã e que sequer passará perto de amenizar as feridas abertas pelas mortes de líderes como Bob Kennedy ou Martin Luther King. Era um período efervescente, de luta por direitos, de discussões profundas em que expressões como "Guerra Cultural" começavam a surgir nos corredores de instituições e em noticiários. A ideia era protestar pacificamente e, bom, não teríamos um filmão como esse se tudo tivesse seguido como o prometido. Tudo sai do controle e sete lideranças - ou bodes expiatórios, se preferirem -, são levados ao tribunal para um julgamento de cartas aparentemente marcadas, em inacreditáveis sessões que durarão quase SEIS MESES.
E será em um inesperado drama de tribunal que a película funcionará ainda melhor. Com idas e vindas no tempo, alguns flashbacks e muita conversa, a narrativa será costurada até o instante em que a coisa sai do controle, com ambas as partes - Estado e réus -, empenhados em apresentar sua visão dos fatos. Com mais de 80 anos de idade, Frank Langella brilha como o juiz Julius Hoffmann, que não parece fazer nenhuma questão de esconder de que lado está. Já Mark Rylance exibe a habitual competência como o advogado de defesa William Kunstler, que se esforça em montar um quebra cabeça que possa livrar um coletivo que sequer se conhecia, de acusações como "formação de quadrilha" e conspiração. Há ainda Eddie Redmayne e Sasha Baron Cohen que, apesar das distintas visões do significado de "esquerda", no fim das contas trabalharão juntos para que as penas que provavelmente cairão sobre eles sejam menos injustas. E, Cohen, figurinha certa na categoria Ator Coadjuvante no próximo Oscar, ainda faz tudo com muito carisma e senso de humor. Aliás, as interações entre todos os personagens - no elenco há ainda Joseph Gordon-Levitt, Michael Keaton e John Carrol Lynch, entre outros -, faz com que a película quase alcance o status de sublime. Bom, eu não sei se sou eu que me empolguei demais, mas que venham todas as indicações possíveis. Se não é o melhor filme do ano, certamente está entre os melhores. Espero que o mundo inteiro efetivamente esteja "assistindo". Especialmente quando a gente percebe que a história insiste em se repetir.
Nota: 10
sexta-feira, 16 de outubro de 2020
Pérolas da Netflix - Permanência
De: Leonardo Lacca. Com Irandhir Santos, Rita Carelli e Sílvio Restife. Drama, Brasil, 2014, 91 minutos.
Em uma das cenas que mais gosto do ótimo nacional Permanência, o casal Mauro (Sílvio Restife) e Rita (Rita Carelli) está ocupando o banheiro ao mesmo tempo. Após uma noite de sexo burocrático, pra cumprir tabela, ele toma banho, enquanto ela escova os dentes. O efeito da condensação da água do chuveiro, convertida em vapor, simplesmente vai apagando a imagem de Rita no espelho. É uma sequência simbólica, que dá conta do quão desconectados eles estão. E do quanto as suas vidas tiveram, muito provavelmente, rumos inesperados. Quando essa cena acontece, o filme do diretor Leonardo Lacca já avançou bastante. E nós já entendemos que Rita vive um casamento de aparências, em que há uma insatisfação latente que vem à tona quando ela recebe em sua casa um antigo "amigo", o fotógrafo recifense Ivo (Irandhir Santos), que está em São Paulo para a sua primeira exposição individual de fotografia.
O tema da película, é preciso que se diga, não chega a ser uma novidade: obras sobre casais frustrados que vivem vidas de conveniência, enquanto seus desejos reais insistem em bater à porta, existem a rodo. Neste, há toda uma sutileza que se sobressai não apenas em momentos episódicos como o instante citado no parágrafo acima, mas no próprio comportamento daqueles que acompanhamos. O filme abre, por exemplo, com Rita abrindo as portas da sua casa para Ivo, em certa manhã em que Mauro já foi trabalhar. Há uma tensão no ar, que é percebida nos silêncios, nos modos meio desajeitados de ambos. Não demora para que percebamos o fato de eles já terem sido um casal no passado. E um daqueles casais que possuem muitas pendências, muitas coisas mal resolvidas que, agora, sutilmente, se evidenciarão. Talvez eles ainda se amem. Talvez eles tenham tido uma bela história juntos. Talvez era pra ter sido e não foi. E, hoje, por sabe-se lá quais circunstâncias, estão com outras pessoas.
Quando um relacionamento acaba a gente tende a lutar contra os pensamentos que nos levam a recordar àquilo que gostávamos na pessoa que não está mais conosco. Mas, bom, a nossa vida não é o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) e tudo aquilo que nos agrada na (ou no) ex continuará existindo. E é preciso lidar com isso. Mas e quando a interrupção de algo ocorre por outros fatores que parecem deixar tudo pela metade? Nesse sentido, Rita e Ivo arranjarão uma série de desculpas para realizar programas juntos pela cidade - de idas a café a sessões de cinema às escondidas -, mas sem nunca isso representar uma oportunidade de retorno aos tempos anteriores. Rita parece ser apaixonada pelas artes, pelo desenho, pela gravura, e admira genuinamente os esforços de Ivo. Mas casou com um pragmático arquiteto que, sim, a sua maneira lhe dá amor e segurança, mas que é incapaz de sequer compreender o que representa a fotografia como exercício artístico - o que fica comprovado por alguns dos constrangedores diálogos entre os dois homens.
Não é difícil imaginar que talvez - e muita coisa fica no campo da suposição -, Rita tenha abandonado um "futuro" com Ivo por imaginar a quantidade de percalços que um relacionamento cheio de inseguranças com um artista representaria. Sei lá. Tudo especulação. O caso é que a película nos dá a entender o tempo todo que ela ainda gosta dele. E ele dela - por mais que, na cidade grande, ele se esforce em tentar esquecê-la, inclusive tendo um casinho com uma assistente de produção (mesmo sendo ele também casado). E aqui não está em julgamento as decisões de cada uma das personagens, muitas delas eticamente bastante questionáveis e, sim, a quebra de expectativa provocada pela esquematização das relações, pelo cartesianismo das convenções ou pela pura adequação ao status quo. Em outra simbólica e bela sequência do filme nos deparamos com a pintura Habitación de Hotel de Edward Hopper, um clássico do realismo que trabalha a solidão dos grandes centros a partir da figura de uma mulher isolada em um quarto melancólico e opressivo de hotel. Em partes é possível afirmar que todas as pessoas que acompanhamos permanecem nesse estado: meio paralisadas, em meio a um mundo estaticamente desequilibrado. Se há solução em meio a tudo isso? Difícil definir.
Podcast do Picanha Cultural - Especial de 25 Episódios!
Pessoal, depois de 24 semanas gravando o Podcast do Picanha Cultural de forma corrida, sem descanso, resolvemos tirar uma semaninha de folga para reorganizar as ideias, estabelecer novas pautas e programar os temas dos próximos episódios! E como forma de celebrar o 25º programa, tivemos a ideia de fazer um especial - que irá ao ar na sexta-feira da próxima semana (23/10) em todas as plataformas - com a participação de vocês que nos acompanham! O objetivo será o de responder perguntas, dúvidas e comentários de vocês de forma bem interativa (e com muito bom humor, que é a nossa marca, claro)! Vale de tudo, desde dúvidas relacionadas a cinema, séries, livros e música, até perguntas bem pessoais. Vai tudo pro ar! O que estiver ao nosso alcance, responderemos com toda a atenção. Bora participar e tornar esse nosso especial ainda melhor!
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
Novidades no Now/VOD - Noturno (Nocturne)
De: Ze Quirke. Com Sydney Sweeney, Madison Iseman, Ivan Shaw, Julie Benz e Jacques Colimon. Terror, EUA, 2020, 90 minutos.
Quando subiram os créditos finais de Noturno (Nocturne) - produção da Blumhouse que estreou na Amazon Prime - o meu sentimento foi meio misto, meio ambíguo. Por um lado gostei demais da abordagem "filosófica" do universo de completa dedicação que envolve os músicos em conservatórios - que praticamente abrem mão de suas vidas (ou ao menos das vidas "normais") para ir em busca do sonho de ser um virtuose. Mas por outro, em alguns momentos eu fiquei naquelas de "é sério que ainda utilizam esse tipo de abordagem em pleno 2020?". E, assim, o que se tem com a obra do diretor Zu Quirke é uma espécie de meio termo. Há instantes que o filme efetivamente "acontece" - especialmente naqueles em que os aspectos técnicos, sua música, sua fotografia de cores contrastantes, seus ângulos de câmera provocativos, são utilizados em favor da narrativa -, enquanto em outros o sentimento é de que as coisas ficaram meio que pela metade.
A trama nos joga dentro de uma prestigiada instituição para músicos clássicos onde estudam duas irmãs gêmeas, a ambiciosa e introspectiva Juliet (Sydney Sweeney) e a extrovertida e espontânea Vivian (Madison Iseman) - e não demora muito para que percebamos o fato de um dos principais arcos dramáticos ser o da clássica disputa entre irmãos. Como pano de fundo, o educandário onde ambas estudam acaba de passar por uma tragédia: a sua mais talentosa aluna, prestes a fazer a sua estreia como solista em um evento de final de ano, acaba de se suicidar sem muita explicação. Vivian, tão talentosa quanto a irmã - mas muito mais despachada (e até intensa) - é selecionada para ser a substituta da falecida. Só que Juliet descobre, meio que por acaso, o misterioso diário de anotações da jovem suicida. E será se utilizando dele, que ela de alguma forma irá para o "lado negro da força" - com direito a, inclusive, algum tipo de citação indireta à obra Fausto de Goethe.
Primeiro, ela escolhe a mesma composição de Saint Saens interpretada pela irmã para a sua apresentação preparatória. Depois, dá um jeito de levar seu atual tutor ao limite, substituindo-o pelo mesmo professor de sua gêmea. Por fim, durante uma festa, provocará um acidente que fará com Vivian quebre o braço, tornando-a incapaz de realizar sua apresentação. E toda essa evolução nos é apresentada de forma bastante misteriosa, com o caderno da morta funcionando como uma espécie de "portal" para que Juliet alcance os seus objetivos. O que não ocorrerá sem um dos clichês mais batidos da história, que é o do despertar da sexualidade sendo apresentado como algo maligno: virgem até então, Juliet transará justamente com o namorado da irmã. Uma transa, como é de praxe no cinema norte-americano, sofrida, desajustada. E esse episódio a tornará ainda mais malvadinha porque, né, já pensou um adolescente com vontade de expressar sua sexualidade? E, confesso, essa foi uma das partes que mais me incomodou. Alguém precisa avisar Hollywood que transar é, normalmente, um prazer: e não a entrada em um mundo de sofrimento, dor, trevas, escuridão e paranormalidade. Quer dizer, às vezes pode ser que seja isso também, vai saber. E não vou nem mencionar as alusões sobre a menstruação como algo "sujo" porque, sério, isso já deveria ter sido superado há algum tempo.
Sobre o que funciona na película, eu diria que é, efetivamente, a boa utilização das metáforas. Até mesmo porque, não dá pra negar, esse tipo de ambiente deve ser tão competitivo, tão disputado, que "vender a alma pro diabo" deve ser quase parte do script do solista bem sucedido. A impressão que se tem é a de que não dá pra ser bonzinho, apático ou discreto e ao mesmo tempo DESTROÇAR o piano. Há aí por trás, algum tipo de desprendimento divino, metafísico e cabalístico que transforma um Mozart num Mozart - ou um Glenn Gould naquilo que foi (e é impossível não pensar no livro O Náufrago, de Thomas Bernhard, enquanto acompanhamos a luta da protagonista em aceitar o seu doloroso destino). Nessa parte, das rimas com outras obras, da metalinguagem e do sem fim de sequências simbólicas sobre as dores de ser um artista de música clássica, a película funciona direitinho. É uma pena que, para se encaixar no público alvo ao qual ela parece destinada, ela tenha apelado para tantos lugares-comuns, para tantas convenções do gênero. É um terrorzinho ok. Dá pra passar o tempo. Mas é só.
Nota: 6,5
Novidades em Streaming - Travis (Disco)
Os detratores do Travis costumam dizer que não gostam da banda porque eles lançam sempre o "mesmo disco" - e eu como fã de Fran Healy e companhia só posso dizer: QUE BOM. O ano de 2020 já teve coisa estranha o suficiente e não pode haver nada mais aconchegante do que encontrar conforto naquele tipo de álbum que a gente sabe exatamente como vai ser: calmo, com um tipo de placidez evocativa, com o instrumental e os arranjos flutuando de forma harmônica, leve, convidativa. Aliás, até o nome do registro é econômico: 10 Songs. Não parece, mas os escoceses já estão há mais de 25 anos na estrada e nove discos depois a última coisa que eles querem é grandes invencionices. Assim, o resultado é um conjunto de músicas mais Travis do que o próprio Travis. Butterflies, por exemplo, equilibra a doçura da melodia com o melhor refrão do trabalho, ao passo que A Million Hearts tem pianinho à moda The Man Who. Há ainda outras gemas: Waving at the Window, Nina's Song, A Ghost... é só dar play. Quem gosta dificilmente se decepcionará.
terça-feira, 13 de outubro de 2020
Cine Baú - Vidas Amargas (East of Eden)
De: Elia Kazan. Com James Dean, Julie Harris, Raymond Massey, Richard Davalos e Jo Van Fleet. Drama, EUA, 1955, 117 minutos.
Mistura de dramalhão familiar, com aventura "agrária", o absurdamente dolorido Vidas Amargas (East of Eden) se torna ainda mais melancólico por evidenciar o talento para a intepretação de um jovem James Dean - que faleceria tragicamente em um acidente automobilístico no mesmo ano do lançamento do filme de Elia Kazan, deixando apenas três obras em seu currículo, no caso Juventude Transviada (1955) e Assim Caminha a Humanidade (1956). Na trama baseada em livro de John Steinbeck, Dean é Cal Trask um sujeito meio desajustado que é renegado pelo pai (Raymond Massey), que não esconde a preferência pelo outro filho, o seu irmão Aron (Richard Davalos), que parece ser mais hábil em tudo: no trabalho, nas escolhas, no respeito às hierarquias, na capacidade de socializar, de dialogar. Cal está à sombra de todos e a melancolia no seu olhar, bem como seus modos tão contidos quanto furiosos, são a comprovação de que o jovem guarda uma profunda mágoa. Há um grande ressentimento.
E esse ressentimento é ampliado quando ele descobre que a sua mãe (Jo Van Fleet), que ele pensava estar morta, está não apenas viva, como vivíssima - e a sequência inicial em que ele persegue sorrateiramente a senhora que vai ao banco depositar um grande volume de dinheiro já estabelece as bases do quão conturbada será TAMBÉM esta relação já que a sua mãe, inicialmente, também lhe renegará. Assim, Cal ficará de um lado para o outro, meio que batendo cabeça, convivendo com o seu irmão e a sua atenciosa cunhada Abra (Julie Harris), enquanto se esforça para auxiliar o pai a dar escoamento para a ampla produção de alfaces da família. Só que quando uma carga inteira é completamente perdida por um problema envolvendo o trem que levava o cultivo, Cal acredita que pode dar a volta por cima estimulando seu pai para que invista no plantio de feijão - o grão, em um cenário de guerra que se avizinha no ano é 1917, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, poderá ter seu valor catapultado no mercado.
E será com a ajuda da própria mãe - uma bem sucedida dona de um bordel -, que o rapaz conseguirá um empréstimo para comprar os insumos para a implantação da lavoura. E será devolvendo o dinheiro perdido pelo pai na frustração da safra da hortaliça, que Cal acreditará, erroneamente, poder "comprar" o amor de seu genitor. E a sequência em que o rapaz praticamente implora para que seu pai diga que o ama, atirado em seus braços, enquanto chora e se desespera, talvez seja uma das mais comoventes da história do cinema - ao menos no que diz respeito a obras que versam sobre as eventualmente conturbadas relações entre pais e filhos. Cal faz toda uma manobra, consegue o dinheiro e... de que adianta afinal? Pior, ainda se envolve em brigas, acaba por trair o seu irmão, se tornando um rival na luta pelo amor de Abra, e vai ficando cada vez mais fechado, taciturno, duro. Tanto que os poucos momentos de leveza - caso da cena no parque de diversões, por exemplo - quase se tornam um alívio, ainda que o espectador pareça ter a consciência de que algo mais grave, mais sério, esteja sempre prestes a acontecer.
Hábil no desenho de produção e no uso contrastante das sombras, do escuro e dos espaços mais claros, Kazan consegue efeitos curiosos, como no caso da sequência em que Cal está em um balanço enquanto discute com seu pai - o que faz com que possamos ver e não ver o seu rosto, de forma alternada. Há ainda outros momentos de tensão, como no instante em que Cal quase cai acidentalmente do telhado da casa de Abra, num jogo de imagens tão tenso quanto inesperado. É nessas idas e vindas, com momentos mais intensos, outros mais eufóricos e uns tantos mais doloridos, que a obra de Kazan se consolida, comovendo até os dias de hoje as platéias pelo mundo. Sim, Kazan faria mais sucesso com seus irretocáveis Uma Rua Chamada Pecado (1951) e Sindicato de Ladrões (1954). Mas Vidas Amargas daria uma das duas indicações ao Oscar póstumas a Dean, que nos deixaria em 30 de setembro de 1955. E como legado ficam as interpretações cheias de vigor, de intensidade, de sensualidade e de fragilidade que o astro entregava. Bom, a história diz que Elvis Presley se inspirou nele para compor a sua persona. Não é pouco.
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Podcast do Picanha Cultural #24 - Supercopa Wes Anderson de Filmes
Fotografia colorida - geralmente em tons vermelhos e amarelos MUITO VIVOS -, enquadramentos perfeitamente centralizados, quase geométricos, travellings circulares, laterais, de todos os tipos e muitos personagens esquisitões, desajustados e excentricamente paranóícos. Sim, quem acompanha a carreira do diretor Wes Anderson sabe que há um certo padrão em sua filmografia. Dotada de uma assinatura própria, obras como Os Excêntricos Tenembaums (2001) e o Grande Hotel Budapeste (2014) costumam suscitar reações de amor ou ódio em igual medida - e não será diferente com o aguardado A Crônica Francesa que, a princípio, tem estreia programada para este mês de outubro, nos Estados Unidos. E foi pensando nisso que nós, o elenco do Podcast do Picanha Cultural, resolvemos homenagear o realizador. Com a Supercopa Wes Anderson de Filmes a gente fez uma competição para definir qual, afinal de contas, é o melhor filme da história do diretor e o resultado é surpreendente! Não faça como o Bill Murray: pegue esse trem (pegaram essa?)! porque o sextou sempre fica melhor na nossa companhia!
Novidades no Now/VOD - Magnatas do Crime (The Gentlemen)
De: Guy Ritchie. Com Matthew McCounaghey, Charlie Hunnam, Hugh Grante, Colin Farrell e Michele Dockery. Ação / Comédia, EUA, 2020, 113 minutos.
Não sei se sou eu que estou mais condescendente com a idade - falou o "velho" de 39 anos -, mas achei Magnatas do Crime (The Gentleman) simplesmente o melhor filme do Guy Ritchie desde Snatch: Porcos e Diamantes (2000). Em linhas gerais não há exatamente uma novidade. Ao contrário, está lá o universo do gangsterismo, com seus anti-heróis poderosos, que percorrem um roteiro rocambolesco e cheio de reviravoltas, com algumas boas doses de violência estilizada, mesclada com um senso de humor meio cínico, até mesmo torto. Só que eu, como espectador, me diverti, me envolvi. Sim, os detratores provavelmente dirão, não sem certa razão, que é o mesmo filme de sempre: algum rolo no submundo, alguns traficantes meio porra loucas, alguma luta pelo poder, personagens imprevisíveis (alguns até sexies), muita verborragia - ao ponto de a gente quase se perder - e um desfecho em que as coisas parecem se encaminhar pra uma coisa que, talvez, lá no finalzinho, vire outra. Trilha sonora, desenho de produção, fotografia, tudo sendo utilizado em favor da narrativa.
Na história somos apresentados ao poderoso traficante Mickey Pearson (Matthew McCounaghey) que, meio cansado dessa vida de plantar milhares de hectares de maconha, resolve colocar a venda o seu "negócio" para poder curtir a meia idade ao lado de sua elegante esposa Rosalind (Michelle Doclery), enquanto degusta vinhos de qualidade e frequente festas e outros espaços com boa comida e muito requinte. É o que ele chama de "gentrificação". Só que vender doze lotes de cultivo da erva espalhados em lugares aleatórios - e evidentemente escondidos - da Inglaterra, não será tarefa tão simples. Há mais de um interessado e as coisas começam a se complicar, conforme aumenta o número de figuras envolvidas no caso - que podem ser desde outros dois chefões, casos do intempestivo Dry Eye (Henry Golding) e do discreto Matthew Berger (Jeremy Strong), até chegar a um poderoso empresário das mídias, conhecido por Big Dave (Eddie Marsan), que deseja com todas as forças descobrir os segredos escusos que envolvem Mickey.
E toda essa história bastante confusa no começo - admito, é uma verdadeira enxurrada de informações, de figuras e de histórias aleatórias que são simplesmente "despejadas" na nossa cara -, é costurada a partir de um encontro entre um certo Fletcher (Hugh Grant) e um dos capangas de Mickey, no caso o seu braço direito Raymond (Charlie Hunnam). Fletcher trabalha para Big Dave e pretende chantagear Raymond, já que garante que sabe tudo sobre o império de Mickey e suas pretensões sobre passar o negócio adiante. E, conforme a história avança, com outros sujeitos se incorporando a narrativa e outras situações aleatórias (e violentas e divertidas) sendo aos poucos evidenciadas, que a gente perceberá que nem tudo parece ser como é. E, nesse sentido, não haverá nada mais saboroso do que assistir aos embates entre Fletcher e Raymond, com direito a piadinhas que sugerem a homossexualidade do primeiro - "você daria uma linda esposa", afirma ele em certa altura -, e vão estabelecendo uma certa alternância nos jogos de poder, a partir das sempre surpreendentes reviravoltas.
Sim, o que o Guy Ritchie consegue, ao mesmo tempo, é fazer uma obra que sugere certa complexidade - às vezes a desorganização quase nos desestimula, já que é muita informação o tempo todo, sem respiro -, mas que compensa com a simplicidade do arco central: um homem que apenas quer vender seus negócios escusos e sofrerá duros golpes com isso. Aliás, a quebra de certa "dureza" que uma mão mais pesada poderia trazer ao roteiro já é quebrada na primeira sequência da película, quando Mickey, aquele tipo de sujeito que sugere um certo grau de ameaça só no comportamento gestual ou no olhar, entra em uma bar para pedir um... ovo cozido! Sim, é nesses instantes cheios de excentricidades, que o diretor consegue imprimir sua marca própria: a violência parece sempre pronta a vir à tona, mas os caras do mau não deixarão um asmático sofrer com falta de ar, mesmo desejando a sua morte naquele instante. Primeiro ele utilizará a "bombinha", para somente depois ver seu trágico destino se concretizar. Nessa semana falamos bastante de Wes Anderson e sua gramática fílmica toda própria. Bom, acho que é possível afirmar que Guy Ritchie consegue um efeito bastante parecido. E, ao menos com este Magnata do Crime, de forma bastante satisfatória.
Nota: 8,0
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
Tesouros Cinéfilos - Moonrise Kingdom (Moonrise Kingdom)
De: Wes Anderson. Com Kara Hayard, Jared Gilman, Bill Murray, Edward Norton, Bruce Willis, Frances McDormand e Tilda Swinton. Comédia dramática / Romance, EUA, 2012, 94 minutos.
Acho que poucos diretores da atualidade despertam tanto o sentimento de amor ou ódio por sua obra quanto o Wes Anderson. O seu cinema, por sinal, costuma ter uma assinatura toda própria. Começa com a fotografia bastante colorida, que geralmente passa por tons de vermelho e amarelo fortemente saturados, vivos. Depois há os enquadramentos e é difícil que o objeto cênico filmado por Anderson escape da posição centralizada, eventualmente em planos médios, feitos a partir de composições angulosas que (quase) fazem lembrar pinturas. O uso da câmera também é cheio de trucagens: os travellings do realizador são um verdadeiro clássico, que ressurge em cada película gerando um efeito ostensivo, exagerado - ainda que invariavelmente divertido, que faz combinar com as excentricidades e as paranoias daqueles que acompanhamos. Sim, este seria ainda mais um elemento de sua filmografia: a extravagância costuma surgir nas próprias personagens, na forma como se comportam, agem, falam. Há um padrão, afinal. Amado por muitos. Detestado por outros.
Mas quem conseguir "mergulhar" numa boa nas esquisitices de Anderson, certamente se divertirá com filmes que, assim como aqueles citados no nosso último episódio do Podcast, não fariam feio na categoria dos feel good movies. E Moonrise Kingdom (Moonrise Kingdom) é definitivamente um desses. Aliás, a obra parece o resultado de anos de depuração de estilo, que culmina em uma narrativa que questiona padrões e convenções sociais e que reforça o debate sobre a importância de valorizar não apenas a vontade das crianças, mas também a importância de lhes dar liberdade para, desde novas, decidirem sobre o que sonham ou desejam ser. E não é por acaso que o jovem "casal" central luta tanto para fugir do esquema institucionalizado a que está submetido - ele, um órfão que se vê obrigado a frequentar um grupo de escoteiros que costuma humilhá-lo; ela uma garota insatisfeita com o tratamento dado pelos seus (monótonos) pais advogados.
E, aqui, por mais que o tom seja permanentemente fabulesco - algo reforçado pelos livros lidos por Suzy (Kara Hayard) e pelas pinturas executadas por Sam (Jared Gilman) -, há no subtexto uma forte discussão sobre quebra de paradigmas, sendo inevitável figuras ligadas a lei - sejam eles o chefe dos escoteiros (Edward Norton), um delegado (Bruce Willis) e a assistente social (Tilda Swinton) -, surgindo como o contraponto óbvio do universo "artístico", lúdico e multicolorido pretendido pela dupla de crianças, que empreende uma verdadeira fuga do esquema a que estão submetidos. E não é por acaso que, mesmo isolados, passam a aprender todas as coisas da vida - da iniciação sexual até se "virar" armando barracas, percorrendo terrenos inóspitos ou simplesmente reagindo aos ataques de um grupo de escoteiros disposto a entrega-los. O tom é de aventura à moda de uma Sessão da Tarde, que faz com que permaneçamos o tempo todo atentos aos próximos passos dos carismáticos protagonistas, sendo impossível não torcer por eles.
Livre para exercitar ainda sua criativa visão de mundo, Anderson não se furta em incluir curiosidades narrativas no desenho de produção que poderiam parecer apenas bizarrices eventuais mas que, no contexto da obra, funcionam como complemento ao seu universo - caso de uma casa na árvore inacreditavelmente alta. Esse tipo de contraste entre um mundo que se abre, se inicia (no caso o das crianças, suas descobertas, amadurecimento), com outro que, paradoxalmente, parece estacionado - e um diálogo entre o senhor e a senhora Bishop (Bill Murray e Frances McDormand) é revelador nesse sentido -, também amplia as camadas possíveis para a película, bem como o espectro que gira em torno dela, de ser apenas uma fábula eventual. Não, não se trata de uma obra de grande profundidade ou cheia de discussões políticas, sociais ou morais. Mas incluindo, aqui e ali, um ou outro elemento que amplie esse tipo de percepção, o filme ganha um pouquinho a mais de força - algo que ocorreria de forma ainda mais consistente no oscarizado O Grande Hotel Budapeste (2014).
terça-feira, 6 de outubro de 2020
Na Espera - The Father (Filme)
Já pode anotar aí no caderninho dos prováveis indicados ao Oscar 2021: Anthony Hopkins e Olivia Colman devem ser figurinhas certas na cerimônia que ocorre em abril de 2021, interpretando pai e filha no filme The Father, que tem sua estreia prevista para o dia 18 de dezembro de 2020 em salas do Estados Unidos - aqui no Brasil a data ainda não foi definida. Dirigido pelo roteirista e escritor francês Florian Zeller, o filme teve o seu trailer divulgado recentemente, o que ampliou a expectativa sobre a obra. Interpretando o pai do título original, Hopkins é um senhor octogenário que mora sozinho em Londres e se recusa a receber qualquer tipo de atendimento das enfermeiras sugeridas pela filha, que está se mudando para Paris. Há um clima de mistério no ar, sugerido pelos aparentes lapsos de memória sofridos pelo idoso, o que poderá tornar a experiência bastante melancólica.
Trata-se, no fim das contas, daquele tipo de película mais intimista, e que tem a sua força nos diálogos que parecem partir de uma narrativa enxuta. No trailer, há ainda a percepção do uso da parte técnica técnica - trilha sonora, desenho de produção, figurino - de forma econômica, com as interpretações soando ainda maiores, num tipo de "embate" que certamente será comovente de se assistir. Nas bolsas de apostas para o carecão dourado, além de Ator (Hopkins) e Atriz Coadjuvante (Colman), a película surge também bem cotada para a categoria principal, correndo por fora para tentar emplacar Roteiro Adaptado. Bom, independentemente das nominações, é uma obra que já nos deixa Na Espera!
A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Pelo Malo (Venezuela)
Se tem uma coisa que o cinema TAMBÉM nos proporciona é a oportunidade de nos aproximarmos de outros países e, consequentemente, de outras realidades, outras culturas. E o venezuelano Pelo Malo (Pelo Malo) - vencedor da Concha de Oro, no Festival de San Sebastián de 2013 -, consegue nos apresentar um bom recorte do contexto social de República Bolivariana capitaneada, à época, por Hugo Chavez, a partir de um fiapo de história. A trama nos joga para a periferia de Caracas, onde os contrastes sociais são explicitados já nas primeiras cenas - em uma delas o pequeno Junior (o sensacional Samuel Lange Zambrano) simplesmente entra no ofurô da casa em que sua mãe Marta (Samantha Castillo) realiza um bico como empregada. O tipo de pequena desobediência que dará conta da natureza transgressora do menino - algo que nos acompanhará, por sinal, durante toda a película dirigida por Mariana Rondón.
Samuel e Marta moram, afinal, na parte mais pobre da cidade. Uma espécie de condomínio popular em que diminutos apartamentos se acumulam, servindo de moradia para as camadas mais humildes do tecido social. Ainda que não tenha o pai presente - a verdade sobre o que teria ocorrido ao progenitor surge mais adiante -, Samuel mantém os seus traços e características fenotípicas, entre eles uma vistosa cabeleira negra (não chega a ser um black power, mas é uma melena de "respeito"). Só que Samuel não gosta dessa característica. Parece ter aprendido - talvez pela persistência na mídia em estabelecer o branco e liso como padrão de beleza -, que cabelo encaracolado não é bonito. Aliás, deseja com todas as forças alisá-lo e a necessidade de realizar uma sessão de fotos para as aulas que estão para começar parece ser a desculpa perfeita para condicionar esse ajuste das madeixas em sua cabeça. O que poderá ser viabilizado com o suporte de sua avó (Nelly Ramos), que ajuda a cuidar não apenas dele, mas de seu pequeno irmão, um bebê de poucos meses.
Nas aparências, Pelo Malo pode parecer apenas o filme sobre o menino que deseja alisar os seus cabelos. Mas há alguns componentes a mais nessa história. Por não respeitar os padrões de um regime que exalta - assim como no Brasil de Bolsonaro - o combo militarismo + Igreja + política populista (isso surge nas frestas, seja nos programas de TV, seja nos outdoors ou mesmo na rotina fatigante dos habitantes que parecem encapsulados pelo totalitarismo), Samuel também entrará em pé de guerra com sua conservadora mãe. O menino, afinal, parece ter muitos desejos que são suprimidos a partir de uma retórica que simplesmente torna as crianças invisíveis, jamais estimulando o seu comportamento autônomo ou o respeito as suas eventuais vontades. Como exemplo, Samuel adora a música, o rock, que ele escuta de forma meio escondida na casa da paciente avó (é a mãe de seu pai). Mas quando Marta percebe que o pequeno gosta das artes, da dança, da música, o censura. Aliás, pior: passa a acreditar que seu filho possa ser gay pelo simples fato de cometer essas transgressões. Um tipo de preconceito que, de quebra, muito provavelmente contribuirá para sepultar de vez os sonhos, os anseios e os desejos daquele jovem.
Nesse sentido, a obra também trata de materializar o absurdo da maternidade idealizada, impondo à Marta a figura autoritária que, dentro de casa, funciona como uma espécie de posto avançado do Governo que oprime aquele País. Inseguro, Samuel não saberá como agradar a sua mãe, o que tornará a experiência cinematográfica quase dolorida, desconfortável. Samuel quer apenas cantar suas músicas, dançar, ser feliz, andar com os amigos que quiser, que escolher. Quer alisar o cabelo se assim achar interessante - por mais absurda que possa soar essa busca por uma imagem que não lhe pertence. Mas o menino parece o tempo todo enclausurado em uma rotina de falta de afeto que lhe desgastará enquanto sujeito - e aqui cabe um parênteses para que ressaltemos o fato de que Marta também é refém da precariedade, do machismo, da falta de afeto, da solidão, da dor e da insegurança. É uma obra que expõe as questões mais atuais dessa Venezuela pobre - mas poderia ser qualquer País da América do Sul -, apostando na força do simbolismo, que quase aproxima o projeto do realismo fantástico (e nesse sentido não há sequência mais impactante do que aquela em que o menino e sua melhor amiga brincam de guerrinha com soldadinhos de plástico, quando tiros de VERDADE espocam na vizinhança). É uma obra crua, naturalista, de denúncia, mas sem jamais pesar a mão. Claro que há pouco espaço para a leveza, o desafogo. Mas o mundo para os vulneráveis parece ser esse mesmo: o dos sonhos interrompidos e do desaparecimento da infância. De doer.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
Grandes Cenas do Cinema - Jamaica Abaixo de Zero (Cool Runnings)
Cena: aprendendo uma valiosa lição sobre a importância de competir.
Eu devia ter uns doze ou treze anos quando assisti o Jamaica Abaixo de Zero (Cool Runnings) pela primeira vez e eu simplesmente nunca mais esqueci do filme. Muito menos da mensagem final deixada pela obra dirigida por Jon Turtletaub - a meu ver o feel good movie por excelência. E o que ele nos ensina é que, no fim das contas, a vida vai nos dar muita porrada. Muita mesmo. A toda hora a gente vai sofrer derrotas. Mas vai PRECISAR levantar a cabeça para seguir adiante. Parece um papinho meio de autoajuda, mas creio que filmes como esse nos ajudam um tanto a retirar aquela ideia de que mundo pertence exclusivamente aos vencedores. Aliás, reformulando a frase: há, por incrível que pareça, outras formas de vencer que não sejam apenas subir no "lugar mais alto do pódio". E assistir a sequência final da película, com o improvável time jamaicano de trenó na neve concluindo a sua prova com o trenó nos ombros, após a equipe sofrer um grave acidente que elimina qualquer chance de medalha, nos faz refletir sobre isso.
A sequência é bonita, redentora e tem todos aqueles elementos bem típicos dos filmes do começo dos anos 90 - com direito a trilha sonora grandiloquente (feita pelo sempre ótimo Hans Zimmer) e uma reviravolta que nos faz olhar o lado positivo, em meio a um cenário desastroso. Até chegar aos Jogos Olímpicos de Inverno de Calgary, no Canadá, o distinto grupo composto por Derice (Leon), Sanka (Doug E. Doug), Junior (Rawle L. Davis) e Yul (Malik Yoba) passa por poucas e boas em seu próprio País. Na realidade, Derice, Yul e Junior são corredores de 100 metros rasos - muitos anos antes da existência de um Usain Bolt - que, por causa de um acidente, são desqualificados para as Olimpíadas de Seul (o filme ocorre antes de 1988). Para não deixar de competir, Derice vai atrás de um certo Irwin Flitzer (John Candy, lamentavelmente em seu último filme), medalhista olímpico que tem pendências com o passado, mas que pode ser o único treinador possível para o coletivo.
Nesse processo de chegada do técnico, escolha dos "esportistas", primeiras tentativas de andar de trenó na própria Jamaica, sem nenhum sinal de neve, sobrarão boas piadas e muito humor físico, com acidentes, quedas e muita persistência. A sequência em que Irwin apresenta um vídeo de demonstração do esporte - cheio de acidentes, alguns até fatais -, é hilária: ao final da sessão a sala está vazia, restando apenas aqueles que serão os nossos carismáticos heróis. E por quem torceremos MUITO - a despeito das diferenças de personalidade entre eles (há um mais rico, outro mais turrão, há o porra louca). A chegada no Canadá após uma pequena epopéia para conseguir patrocínio também será engraçada, com muitas piadas surgindo a partir do caráter contrastante entre o calor escaldante da ilha que fica na América Central, o e o frio congelante de uma cidade que pode chegar a temperaturas abaixo de -25 graus celsius! O fato de serem, oficialmente, corredores de 100 metros rasos, ajuda o improvável time a se qualificar, ainda que aos trancos e barrancos. E quando a sequência final chega, com o grupo derrotado por um defeito técnico do trenó velho que ocupavam, só nos resta enquanto espectadores, esboçar um grande sorriso.
A conquista deles, afinal, foi a jornada. Foram as amizades feitas, a superação de obstáculos, a despeito da desconfiança de todos - de familiares, de amigos, do próprio treinador. Foi acreditar num sonho que parecia impossível se tornando realidade. Sabe aquela história da Islândia - um País com 300 mil habitantes - levando uma seleção de futebol à Copa do Mundo? É mais ou menos isso. E o que torna essa história ainda mais gloriosa, é o fato de ter sido MESMO baseada em fatos reais. Ainda que não seja escancaradamente um filme político ou de grandes discussões sociais, também não deixa de ser interessante perceber a importância do debate, ainda que nas entrelinhas, de temas como racismo, xenofobia e respeito às diferenças. Aparecendo como vilões bastante maniqueístas - à moda dos filmes antigos -, os alemães são retratados como sujeitos frios, que utilizam o deboche como arma para, ao final, se dobrar ao esforço dos jamaicanos. Aliás, a meu ver Jamais Abaixo de Zero poderia ser um dos raros casos que uma atualização faria bem. Talvez uma minissérie, algo assim, especialmente pelo fato de a história real ser bastante diferente daquela retratada pelo bem humorado, colorido e musical filme de Turtletaub!