quarta-feira, 31 de julho de 2019

Grandes Filmes Nacionais - Os Fuzis

De: Ruy Guerra. Com Nelson Xavier, Hugo Carvana, Átila Iório, Paulo César Pereio e Maria Gladys. Drama, Brasil, 1964, 84 minutos.

Um povo que passa fome e um Estado que responde com autoritarismo e bala. Não, não é um resumo do (des)governo Bolsonaro - ainda que pudesse ser -, e sim a síntese do atemporal Os Fuzis, obra-prima concebida pelo diretor moçambicano Ruy Guerra, em 1964, quando o País estava as portas de mergulhar nos horrores da Ditadura Militar. Nesse sentido chega a impressionar como a história segue atual, em um contexto em que os brasileiros mais vulneráveis socialmente lutam para sobreviver, se apegando em abstrações como a religião (ou o misticismo), espécie de ente sagrado que poderia ser capaz de trazer a salvação. O filme é duro, áspero, com a câmera grudada na pele, na cara, no suor e nas mazelas de suas doloridas figuras, que padecem da fome e que esperam, esperam e esperam. Por uma solução, por algo divino, mágico, que possa aplacar a angústia de não se ter o que comer em uma terra seca, distante, inóspita.

A trama se passa no sertão da Bahia e acompanha um destacamento do exército que chega a uma pequena cidade para evitar que a população faminta invada e saqueie o depósito de alimentos de um empresário local. Enquanto a população "borrada" (observe que, diferentemente do que ocorre com os soldados, ela surge como uma massa difusa, indefinida) entoa uma série de mantras hipnóticos no entorno na Igreja, comprando o que pode fiado e aguardando por algum tipo de solução que não chega, o dono do armazém se queixa da inadimplência e da morosidade de um Governo que não parece assistir ninguém. Em meio aos dois lados, o caminhoneiro Gaúcho (Átila Iório, inesquecível em sua caracterização), personifica uma espécie de "meio-termo": tem as suas ressalvas em relação ao nacionalismo alienante emanado pelos soldados, mas já esteve envolvido em um episódio do passado, em que salvou a vida do policial Mário (Nelson Xavier) - no local, ambos se reencontram.


O filme alternará momentos mais contemplativos, como aqueles em que a população espera, canta e, em clima semi-documental, relata eventos passados ocorridos na região, com outros mais dinâmicos, envolvendo a espera dos soldados, que estão ali para defender o material, o capital - nem que isto custe a morte de alguns. Em uma das tantas sequências inesquecíveis, um grupo de soldados resolve fazer uma aposta para ver se acertam um cabrito que fugiu só que, por "acidente", acabam atingindo o seu dono, causando mal-estar na comunidade. E mais mal-estar ainda, quando os envolvidos resolvem mentir sobre o ocorrido. Como se a morte por fome não fosse suficiente, os soldados trazem mais morte. No lugar de comida, armas. Em outro momento, Gaúcho discute com o soldado Zé (Hugo Carvana) dentro do bar, com o segundo lhe lembrando que está armado. Ao que este responde: "este é o problema, não devia".

Ainda que cenas como a da "montagem dos fuzis" pareçam ser um elogio ao armamentismo, o filme é o completo oposto, como comprova a inesquecível cena de tiroteio entre Gaúcho e o grupo de soldados - o que transforma a obra de Guerra em uma espécie de faroeste bem à brasileira. Deixando no local um rastro de dor, de desolação e de morte - a cena em que um homem pede uma caixa para enterrar seu filho morto pela fome é não menos do que assombrosa -, os soldados abandonam a vila após a missão de colocar os alimentos em um caminhão, sob os olhares ansiosos da população. A sequência final, antropofágica, pungente, é a catarse de um povo descrente, que não encontra solução que não seja na destruição de seus ícones, diante de uma necessidade muito maior e que não será atendida pelo Governo, por políticas públicas ou por qualquer tipo de apoio.



Ganhador do Prêmio do Juri no Festival de Berlim de 1964, a obra frequentemente é colocada ao lado de Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha como uma das mais representativas da primeira fase do movimento conhecido como Cinema Novo - filmes de forte rigor intelectual que se utilizavam da "Estética da Fome" para discussões sociais. Em uma lista publicada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a obra foi considerada a 23ª melhor da história, aparecendo ainda em outras listas. Com uma filmografia irregular, Ruy Guerra nunca mais repetiria a agonia pulsante de Os Fuzis que, com seus bem projetados planos-sequência, nos faz imergir no sofrimento de um povo que convive com a desigualdade. Nem que seja para, minimamente, refletir sobre.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Novidades em DVD - Clímax (Clímax)

De: Gaspar Noé. Com Sofia Boutella, Adrien Sissoko e Giselle Palmer. Drama / Suspense / Terror, França, 2018, 95 minutos.

Existe uma frase dita em tom de deboche pelos cinéfilos que se aplica bem a filmografia do diretor Gaspar Noé: "são ótimos filmes, não indico pra ninguém". A gente sabe, não é presunção ou petulância, mas existem obras que não são para todos os paladares e Climax (Climax), assim como ocorreu com Irreversível (2002) e Love (2015), é um desses. Trata-se de um filme nervoso, barulhento, com uma frequência frenética, uma angústia (e uma sensação de transe) que aumenta. Tem pessoas saindo de si, angustiadas, chorando e gritando, num microcosmo que parece resumir bem o que é a nossa sociedade, na atualidade: um amontoado de gente com algumas coisas em comum, outras nem tanto, mas que parece, na fachada de uma suposta cordialidade, manter preservado o seu instinto animalesco e violento, pronto a dar as caras a partir de algum tipo de gatilho.

É um filme até meio difícil de explicar. Algo estranho. Os créditos iniciais, por exemplo, surgem quando a obra já avança para mais de uma hora. O tipo de quebra de lógica, de andamento, que ocorre o tempo todo, seja na justaposição das cores, na inclusão da trilha sonora ostensiva, nos enquadramentos oblíquos, nas sombras fantasmagóricas. Sabe aquela película que incomoda? É essa. Na trama, um grupo de dançarinos de algum tipo de dança urbana dos anos 90 se reúne para um intensivão de ensaios em uma casa isolada, no meio do nada, em lugar indefinido. Na última noite, o que começa como uma rodada animada de danças, de conversas descontraídas e de bebedeiras, vai aos poucos dando lugar a esquizofrenia, a beligerância e a loucura. É como se os personagens de O Anjo Exterminador (1962), de Luiz Buñuel, fossem repaginados para a modernidade, bebendo muito e enlouquecendo.


Em meio ao debate sobre temas que são tabu na sociedade - homossexualidade, uso de drogas, sexo anal -, muita dança bem coreografada, sexy, intensa. A dança em si funcionando como projeção da catarse dos corpos, como se a esta fosse por si só algo subversiva, provocadora, iconoclasta. A gente percebe que cada sujeito mantém a sua individualidade, mas no coletivo todo o mundo se assemelha em sua paranoia que cresce, quando o grupo começa a ter a impressão de que algum de seus integrantes possa estar drogando, deliberadamente, os demais. Isso não fica claro em momento algum da projeção, mas quando esse ideia começa a tomar forma a espiral decadente cresce, que transforma o filme em um grande videoclipe da catástrofe, com a câmera vagando pelos ambientes, flagrando confrontos, atos sexuais, discussões e episódios de mal-estar e outros incômodos envolvendo aqueles que assistimos.

Utilizando ainda a obra como um amplo exercício de estilo - perceba como as cores vão ficando mais intensamente vermelhas, conforme a sensação de terror de de paranoia aumentam, assim como a fotografia vai ganhando tons mais sombrios, com cores difusas, pálidas, confusas -, Noé ainda deixa o final em aberto, fazendo com que acompanhemos toda a loucura como se fôssemos o sujeito sóbrio do ambiente, com nossos olhos julgadores, prontos para apontar o dedo para alguém. Com trilha sonora de nomes como Aphex Twin, Giorgio Moroder, Soft Cell e Gary Numan, além de outros da música eletrônica e urbana, Clímax é a experiência caótica por excelência. Um filme sem lógica, imprevisível e pronto para sair do controle, assim como é a vida, sem roteiro, eventualmente inconsequente, mas pronta para um dia seguinte. De sol. E de luz.

Nota: 7,0


Novidades em Streaming - Of Monsters And Men (Fever Dream)

Acho que se eu nunca tivesse escutado o Of Monsters And Men e começasse a ouvi-los por este Fever Dream, é provável que nunca mais retornasse ao coletivo. Sem querer soar saudosista, mas já sendo, não há qualquer sinal da banda que forjou clássicos folk tão épicos quanto modernos como Dirty Paws, Little Talks ou King and Lionheart, lá no agora longínquo registro My Head Is An Animal (2012). Não é que seja ruim ou desprezível, mas o estilo mudou e agora parece derivativo de algo que já ouvimos antes à exaustão. Sei lá, é como se a banda tivesse perdido a sua personalidade, a sua alma, para entregar um conjunto de canções meio inexpressiva, sem graça, ainda que inegavelmente pop. Nas primeiras resenhas a crítica tem se dividido - a média no Metacritic está em 69, a nota mais alta alcançada até hoje pela banda. Mas pra quem ainda não conhece a banda vale recorrer aos dois registros anteriores. Especialmente se a intenção for se apaixonar pela música deles. Sobre Fever Dream, um disco ok. E só.



segunda-feira, 29 de julho de 2019

Tesouros Cinéfilos - Amanda (Amanda)

De: Mikhael Hers. Com Isaure Multrier, Vincent Lacoste, Ophélia Kolb e Stacy Martin. Drama, França, 2018, 107 minutos.

Certamente a gente já viu o filme em que um evento traumático obriga as personagens a superarem as adversidades, tirando forças de onde não tem para tentar seguir em frente. Mas o francês Amanda (Amanda) trata com tanto carinho e sensibilidade o tema da perda e do recomeço, que é simplesmente impossível não se apaixonar pela história - e por aqueles que assistimos. A Amanda do título é a graciosa Isaure Multrier, menininha de sete anos que mora com a mãe, a professora Sandrine (Ophélia Kolb) no subúrbio de Paris. O irmão mais novo de Sandrine e tio de Amanda, David (Vincent Lacoste), é uma espécie de faz-tudo - trabalha como pintor e jardineiro e também na condução de hóspedes que ocuparão imóveis alugados via aplicativos. Nas poucas horas vagas, entre um flerte ou outro com alguma nova vizinha, auxilia a irmã buscando a sobrinha na escola ou a levando para algum compromisso - como ocorre com muitas crianças desse mundo, Amanda não tem um pai para chamar de seu.

Só que a vida relativamente confortável, ainda que cheia de compromissos, do trio central será abalada após um inesperado ataque terrorista ocorrido em uma Praça da capital francesa. Aliás, o evento é tão surpreendente que a gente quase custa a compreender o que de fato aconteceu quando presenciamos uma série de corpos atirados no chão, ensanguentados e com outras pessoas à volta, chorando. Para o diretor Mikhael Hers não há romantização na violência e talvez por isso ele abra mão de mostrar a preparação para o atentado, a busca da polícia por solucionar o caso ou mesmo os rituais fúnebres. Sandrine estava na Praça, com amigos quando a tragédia aconteceu. David estava chegando no local. Ficou em cima de sua bicicleta, estupefato ao presenciar a morte da irmã, assim como ficamos também. E ficou também com Amanda e com decisões difíceis sobre a vida e sobre o futuro da criança que ele, do alto de seus 24 anos, não estava preparado para tomar agora.


Nesse sentido, o filme é inteligente ao não optar pela unilateralidade ou pelo maniqueísmo. David não era o tio idiota, vagabundo ou mulherengo que agora vai se redimir tendo de obrigatoriamente cuidar da sobrinha - juridicamente, ele é um dos principais candidatos a tutor. Ao contrário, nunca escondeu que ama a criança, mas aí a se tornar uma espécie de "pai improvisado" serão outros quinhentos. David não sabe que nem roupa dar para a criança vestir, como comprovam os repetidos figurinos de Amanda ao longo dos dias. Conseguirá lhe alimentar? Lhe auxiliar na escola? E mais: ele quer isso, de fato? E será com uma honestidade retumbante que a trama conduzirá as suas ações. Não há vilões ou mocinhos - fora os terroristas que devastam vidas, claro -, e sim, pessoas tentando sobreviver, superar o luto e se reencontrar nesse mundo de violência tão absurda e inexplicável.

Comovente, o filme fará o espectador mais sensível chorar por diversos momentos com o luto e as incertezas das personagens - especialmente David e Amanda, que se pegarão chorando de forma enternecedora, naturalista e realista, de maneira inesperada, sufocante, bem como é na vida real. A gente não explode em um único momento. A tristeza pode vir em meio a uma nostálgica partida de tênis ou em meio ao trabalho, quando nosso pensamento viaja (e a cena de David chorando antes de receber um casal de hóspedes russos, talvez seja uma das mais emocionantes do ano). Assim como é emocionante e graciosa a sequência em que Sandrine explica para Amanda o significado da expressão inglesa "Elvis has left the building" (Elvis já deixou o prédio) e que terá sentido fundamental mais adiante na história. Uma cena doce, gostosa de ver, bem concebida e que termina com mãe e filha dançando ao som de Don't Be Cruel.



Com coadjuvantes que orbitam os protagonistas apoiando-os como podem - é o caso da tia Maud  (Marianne Basler) e da candidata a namorada de David, Léna (Stacy Martin) -, a obra aposta em uma fotografia granulada, meio setentista e que utiliza cores sóbrias que fazem uma espécie de contraste em relação ao estado de espírito daqueles que assistimos. Grudando a câmera na cara dos personagens, Hers nos aproxima deles, nos torna íntimos, como se pudéssemos nós também estender as mãos, os braços e o corpo todo para um afago que pudesse aplacar um pouco da dor, ou para alcançar uma palavra de compreensão. O mundo anda uma merda e mesmo numa capital glamourosa como Paris o estilo é desglamourizado, duro, pouco afável. Sendo necessário que nos apoiemos em que nos ama, compreendendo as dificuldades e tentando a todo o custo seguir em frente.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Disco da Semana - Marcelo Jeneci (Guaia)

Ser artista também é ter responsabilidade. É ter consciência daquilo que se representa para os fãs ou para aqueles que acompanham o seu trabalho. E não estamos apenas falando de expectativas musicais, de sonoridade, de melodia, mas também de comportamento, de "voz", de ser alguém que esteja alinhado aquilo que ocorre em seu tempo. E esse contexto talvez explique a pequena mudança de rumo adotada por Marcelo Jeneci com o lançamento de Guaia, seu terceiro disco de estúdio e que interrompe um hiato de seis anos desde o espetacular De Graça (2013). Jeneci amadureceu - são mais de dez anos de carreira -, ainda canta sobre a beleza da vida, sobre a graciosidade das coisas simples, sobre busca pela felicidade em relacionamentos aconchegantes. Mas também parece mais consciente de seu papel como artista, em um contexto político/social de censura às artes, de caçada ás manifestações culturais e, consequentemente, de alienação.

Nesse sentido, talvez não seja por acaso que este trabalho soe um pouco menos acessível que os anteriores - como se nas entrelinhas de canções um pouco mais herméticas e eventualmente mais densas, também houvesse "embutido" um convite à reflexão um pouco mais aprofundada sobre o mundo, sobre dores e também sobre desilusões, quaisquer que sejam. Sim, ainda dá pra apreciar o dia ensolarado, o clima primaveril e cantar junto - como já fizemos em Felicidade, Pra Sonhar e De Graça. Mas o Brasil está ficando mais sério, mais "pesado", sendo inevitável que não fechemos os olhos para aquilo que nos define, para as nossas origens ou para aquilo que nos preservará em todos os sentidos. Talvez seja por isso que a ambígua Emergencial - que abre o disco coladinha com o canto inicial Ikashawhu da tribo indígena Yawanama -, conclame: É emergencial a gente se conectar com a terra. Emergencial. De forma repetida. Quase como se fosse um mantra.



Corroborando com essa tese, no pequeno material de divulgação que acompanhou o lançamento do registro, o artista explicou que Guaia tem a ver com o fato dele ter nascido no bairro de Guaianazes, na periferia de São Paulo, local que é "construído por trabalhadores do Brasil profundo que espalham afeto, resistência, dança, cores e cultura". É lá que Jeneci alega ter recebido a chama e o chamado para romper com música o escuro do futuro. "Trago na alquimia desse álbum a rua onde cresci, o agreste do Pernambuco e a grande metrópole que se fundiram em mim". E não é por acaso que, conforme se descortinam as canções, percebemos um equilíbrio quase perfeito entre tradição e modernidade, entre memória e contemporaneidade, entre o velho e o novo. O que pode ser constatado pelo contraste entre os ritmos regionalistas e eletrônicos, que se complementam, se fundem, formando uma musicalidade curiosa e até mesmo mais ampla do que aquela vista nos maravilhosos trabalhos anteriores.

Como exemplo disso, podemos citar a assimetria existente na trinca formada por Oxente, Vem Vem e O Seu Amor Sou Eu. Enquanto a primeira, gravada em parceria com Chico César, é quase uma ode ao Nordeste, seus ritmos e gírias, a segunda, concebida num dueto com a encantadora artista Maya, é uma Jovem Guarda que recebeu um banho de modernidade, estando prontinha para tocar nas rádios mais descoladas. Já a terceira é pura beleza orquestral, com a voz em falsete de Jeneci amparando os delicados versos em forma de carta de amor. Esse tipo de contraste, de justaposição, se repetirá diversas vezes durante o registro, sem que isso signifique necessariamente heterogeneidade excessiva ou algum tipo de falta de lógica. Se Melodia da Noite mantém a batida sutil, a melodia sinuosa, Aí Sim aparecerá para colorir o dia, com versos sobre mudança, transformação. Se Redenção é provocativa, Saudade do Meu Pai será nostálgica. E por aí vai, afinal de contas, assim é a vida: cheia de idas e vindas.


Produzido por Pedro Bernardes em parceria com Lux Ferreira, o álbum é cheio de participações especiais, como a de Lucas dos Prazeres na percussão, mestre Adelson Silva na beteria de frevo, Robinho Tavares no baixo de Vem Vem e até a Filarmônica de São Petersburgo nas cordas de O Seu Amor Sou Eu. Essa multiplicidade de artistas, de gêneros - há ainda o já citado Chico César, por exemplo -, pode ser um dos motivos de o trabalho soar tão universal, tão perfeitamente preenchido, tanto nas letras, como na sua musicalidade. Difícil saber qual o caminho a ser adotado pelo artista daqui pra frente, mas a desconstrução do menino que aos sete anos já tocava acordeão, para o homem capaz de lidar de forma mais madura tudo que lhe rodeia, parece ser uma realidade. O baile vai acontecendo / A gente se toca / Sem se tocar, canta o músico na saborosa Vem Vem. É uma das formas de ditar o ritmo, nesse trabalho imperdível.

Nota: 8,5

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Picanha em Série - Big Little Lies (2ª Temporada)

De Andrea Arnold. Com Nicole Kidman, Laura Dern, Meryl Streep, Reese Whiterspoon, Shailene Woodley e Zoë Kravitz. Drama / Suspense, EUA, 347 minutos, 2019.

É muito provável que o maior motivo para se assistir a segunda temporada de Big Little Lies seja a oportunidade de poder seguir acompanhando tantas atrizes talentosas contracenando juntas - o que, vamos combinar, é um verdadeiro deleite. E como se já não bastassem as presenças luminosas de Laura Dern, Nicole Kidman, Zoë Kravitz, Shailene Woodley e Reese Whiterspoon, esse segundo ano ainda ganha um acréscimo que torna tudo ainda maior: Meryl Streep, que interpreta a ex-sogra de Celeste (Kidman). Partindo do trágico episódio que encerra a primeira temporada - a morte de Perry (Alexander Skarsgard) -, os novos episódios parecem abandonar um tanto da tensão que poderia ser gerada pelo segredo das Cinco de Monterrey, para focar nos dramas familiares, em seus desdobramentos.

Pra começar há o drama principal, vivido pela própria Celeste. Mary Louise (Streep), que inicialmente surge como uma figura disposta a prestar algum tipo de suporte emocional a ex-nora (estando ela mesma, também bastante abatida), logo mostra a sua verdadeira intenção: a de obter a guarda de seus dois netos, sob a desculpa de estarem convivendo em um lar instável, com uma mãe negligente. E, vamos combinar: as disputas no tribunal envolvendo ambas, com diálogos rasgantes, silêncios "ensurdecedores" e provocações de todos os tipos, estão entre os melhores momentos da temporada. E falar que Streep está magnífica em sua caracterização - com seu comportamento dissimulado, voz mansa, aparições de surpresa em tudo quanto é canto e modos ambíguos -, é quase uma redundância. Particularmente, gosto do sorrisinho amarelo e debochado, ao passo que o olhar transmite melancolia e vulnerabilidade. Um show!



No arco dramático das demais personagens, o foco principal é a instabilidade dos relacionamentos. Madeleine (Whiterspoon) ganha mais tempo em cena, já que precisa reconquistar o seu marido Ed (Adam Scott), após um episódio de traição. Já Jane (Woodley) tenta superar o difícil trauma de ter sido estuprada para tentar conseguir engatar um romance com o jovem Corey (Douglas Smith). No caso de Bonnie (Kravitz), o episódio envolvendo o coma de sua mãe é o estopim para que ela repense sua vida e perceba que, no fim das contas, não ama o seu marido. Aliás, nunca amou. Mas o melhor de tudo acontece com a Laura Dern que, na pele da dondoca Renata Klein, vê o seu mundinho dos sonhos e de riqueza ruir, depois que o seu marido vai a falência (e vamos combinar que a melhor sequência da temporada é aquela do último episódio, momento em que ela explode).

Ainda que cada trama funcione a sua maneira de forma individual, o grande ponto dessa série continua sendo o seu palpável elogio à sororidade. Longe de serem mulheres "perfeitas", aliás todas têm problemas e tomam atitudes eticamente questionáveis em boa parte do tempo, o que se mantém entre elas é a inquebrável aliança e, consequentemente, o seu segredo. Perry era um abusador, um estuprador, e, num ímpeto, Bonnie o mata. E, por mais que Celeste tenha saudades do ex e o odeie em igual medida - especialmente pela violência que emanava dele -, ela permanece ao lado das companheiras. Mary Louise surge como alguém que poderia desequilibrar essa balança, mas a trama não opta pelo suspense investigativo ou de vingança. E o resultado é um drama familiar caudaloso, mas talvez não tão robusto quanto aquele que assistimos na primeira temporada - que tomava por base o livro publicado por Liane Moriarty.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Na Espera - A Beautiful Day in the Neighborhood (Filme)

Tá com tanta cara de Oscar esse A Beautiful Day in the Neighborhood que acho que já é possível apontar o fato de que dificilmente Tom Hanks "escapa" das indicações na próxima cerimônia. Na trama, ele encarna o adorável Fred Rogers, que nos anos 60 criou o popular programa de TV infantil Mister Rogers Neighborhood, que foi exibido por muito tempo no PBS (algo como a TV Cultura dos Estados Unidos). Com poucas manchas em seu currículo (as famílias de bem o acusavam de ser gay e de alienar as crianças), a trama se desenrolará a partir do relato do jornalista Tom Junod (Matthew Rhys), da revista Esquire, que escreveu a biografia de Rogers, estabelecendo com ele uma inspiradora amizade (a despeito de seu ceticismo).


O trailer inspira uma leveza quase noventista, seja nas cores vivas e na placidez com que Hanks encarna Rogers, que faleceu em 2003, seja na trilha sonora suave, envolvente. Esnobado pela Academia no ano passado, o imperdível documentário Won't You Be My Neighbor? poderá funcionar como uma espécie de porta de entrada para aqueles que não estão familiarizados com a história do sujeito, que causou comoção entre os americanos, com seu otimismo e habilidade únicas no tratamento dos mais variados temas. Nos EUA a produção deve estrear em novembro. Já no Brasil, o filme, que é dirigido por Marielle Heller (do médio Poderia Me Perdoar?) deve aportar nas salas do País no dia 23 de janeiro de 2020, bem no auge da campanha pelas premiações. Estamos Na Espera!

Cine Baú - O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre)

De: John Huston. Com Humphrey Bogart, Tim Holt, Walter Huston e Bruce Bennett. Aventura / Drama / Faroeste, EUA, 1948, 126 minutos.

"Dê poder a um homem e você conhecerá quem ele realmente é". A frase atribuída ao pensador Maquiavel representa como poucas o potencial destrutivo da ganância humana - e que é retratada de forma magistral no clássico O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre). Dirigida por John Huston (O Facão Maltês), a partir de livro de B. Traven, a obra nos joga para o México do ano de 1925, onde os indigentes Dobbs (Humphrey Bogart) e Curtin (Tim Holt) se conhecem após serem enganados por um empresário do ramo das construções. Desesperados e praticamente falidos, juntam-se a um velho minerador de nome Howard (Walter Huston, o pai do diretor) para tentar mudar de vida numa espécie de "corrida do ouro" tardia. Para tanto, são convencidos pelo veterano a irem a um lugar ermo, inóspito e cheio de aclives para, com poucos recursos, tentarem encontram algumas pepitas do metal que lhes pudesse fazer mudar de vida.

Mas a beleza desse filme não está na mera aventura que lhes leva ao local (a Sierra Madre do título) e sim na transformação dos três personagens durante a sua jornada - especialmente Dobbs, que passa a desconfiar até mesmo de sua sombra. Conforme avançam na mineração e vão encontrando algumas migalhas de ouro - que representam MUITO em dinheiro -, resolvem dividir tudo em partes iguais. Mas como não duvidar que algum deles não trairá os demais para ficar com suas riquezas? Não estaria Howard, com seu espírito afável e otimista, preparando uma armadilha para os seus ajudantes? E Curtin, com seu senso de justiça, não estaria disposto a enganar seus parceiros de empreitada? Em meio a aridez palpável e ao calor sufocante que salta para fora da tela, Dobbs vai se tornando um sujeito obcecado pelo seu ouro, com direito a delírios sobre possíveis traições e divagações existencialistas sobre sua condição.


Nesse contexto, não bastasse o isolamento e as dificuldades naturais - com direito a acidentes de percurso que quase comprometem a jornada -, o trio ainda precisa lidar com os desconfiados nativos do México, além de terem de enfrentar um grupo de pistoleiros que lhes cruza o caminho. A chegada do misterioso Cody (Bruce Bennett) ao local, tornará tudo ainda mais complicado: ele deseja se incorporar ao grupo, mas pouco se sabe sobre a vida dele. Alternando momentos que fazem lembrar a tradição dos grandes faroestes, com outros em que se o suspense e o drama se sobressaem, Huston transforma a película na experiência cinematográfica completa - há tensão, alguma dose de humor e aventura em iguais medidas. Conforme os dias e noites transcorrem com os protagonistas perdidos no meio do nada, assistimos a dissolução de seus valores morais e éticos, com disputas internas que se transformam no prenúncio de sua própria tragédia.

Com grandes interpretações - Huston pai está inesquecível na figura de um sujeito ambíguo, mas sempre otimista, caracterização que lhe valeu o Oscar na categoria Ator Coadjuvante -, a obra ainda foi a oportunidade para que Bogart fugisse um pouco do papel de mocinho/galã que ele havia interpretado em obras-primas como O Falcão Maltês (1941), Casablanca (1942) ou Uma Aventura na Martinica (1945). Já Huston, mesmo tendo dirigido clássicos como Uma Aventura na África (1951) e A Honra do Poderoso Prizzi (1985) teve uma carreira irregular, nunca mais repetindo o sucesso de O Tesouro... que lhe deu a estatueta dourada nas categorias Diretor e Roteiro Adaptado. O filme foi escolhido o 30º melhor da história em votação feita pelos integrantes do American Film Institute em 1998 e é frequentador assíduo das listas de melhores. Um Cine Baú mais do que merecido.


segunda-feira, 22 de julho de 2019

Novidades em DVD - A Mula (The Mule)

De: Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Bradley Cooper, Laurence Fishburne, Andy Garcia e Dianne Wiest. Drama / Comédia, EUA, 2018, 116 minutos.

A Mula (The Mule), a mais recente obra de Clint Eastwood, passou completamente batida pelos cinemas - e não foi por acaso, já que se trata de um filme absolutamente raso, de difícil definição quanto a seu estilo, bastante irregular e que, de quebra, ainda é profundamente preconceituoso. Não é de hoje que o veterano utiliza suas filmes como uma espécie de desculpa para encarnar aquele tipo de sujeito ranzinza, mau humorado e sem nenhum carisma, que ainda consegue ser racista. Na trama, Eastwood é Earl Stone, um veterano de guerra que perde espaço no ramo da produção de flores após o advento da tecnologia. Ultrapassado, assim como as suas ideias, e sem perspectivas para o futuro (oi, aposentadoria?), ele resolve, aos 90 anos, se tornar traficante, transportando grandes cargas de cocaína para o cartel mexicano.

Essa trama com ares de suspense dos anos 90 talvez fosse mais legal se tudo não fosse levado tão na "flauta". Não bastassem os integrantes do cartel se comportarem como verdadeiros estereótipos ambulantes - óbvio que os mexicanos seriam os vilões já que, nunca é demais lembrar, Eastwood é um apoiador de Trump -, Eastwood ainda desfila pelo cenário como um sujeito turrão, mas debochado, que encara uma arma apontada para a sua cara com valentia, afinal de contas ele foi um "herói" que defendeu o País na Guerra da Coréia. Só que na transposição desse herói para um vilão, jamais ficam claras as motivações do protagonista, que utiliza o dinheiro do tráfico para pagar rodadas de cerveja para desconhecidos em bares, ou para aproveitar prostitutas de luxo, em meio as suas andanças - o tipo de vida hedonista que dificilmente combinaria com um idoso decrépito.



E eu chamo ele de decrépito nem tanto pela sua aparência, mas mais por aquilo que emana de Eastwood, a cada careta que ele faz ou a cada piadinha politicamente incorreta, que nem em esquetes de programas dos anos 80 a gente vê mais. E não é por acaso que cenas envolvendo um grupo de motoqueiras lésbicas ou uma família negra que lhe pede ajuda no meio do nada (além de racista, essa sequência consegue ser machista e homofóbica), geram apenas constrangimento. Mas nada que supere o momento em que, ao se referir aos mexicanos do cartel, Earl afirme não saber diferenciar um do outro, afinal, "eles são todos iguais" - o que até poderia ser algo engraçado, se o filme admitisse o comportamento errático de seu protagonista e não ficasse implorando o tempo todo para que gostemos dele. Até mesmo porque é impossível gostar de alguém assim. 

E isso, no fim, acaba comprometendo a obra que, de quebra, não se decide entre a comédia e o drama, entre a leveza e a austeridade. Ela quer fazer rir, mas não é engraçada. Quer soar séria, mas a trilha sonora brega e os diálogos improváveis não deixam. Os problemas familiares de Earl, as tentativas amadoras e frustradas da polícia em alcançar o vilão (o que faz o Bradley Cooper nessa película?), o grupo de mexicanos pálido, a louvação as famílias de bem, ordeiras e trabalhadoras, transformam A Mula em uma espécie de panfleto da Era Trump e seu desejo de tornar a América grande novamente e de construir um muro na fronteira com o México. Talvez fosse o caso de Eastwood, com seu cinema antiquado, conservador, retrógrado, ainda que tecnicamente bem executado, se aposentar. Ainda dá tempo de não manchar o seu legado, ainda positivo na indústria.

Nota: 4,0

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Artigo - Uma Inexplicável Febre Chamada Remake

Ontem, enquanto viajava estava zapeando pelo rádio quando fui parar em uma emissora da capital, que discutia ardorosamente sobre o remake de O Rei Leão - que estreou na última quinta-feira. Lá pelas tantas, um dos participantes resumiu a experiência que ele havia tido à meia-noite do dia anterior: "quem gosta d'O Rei Leão original certamente vai gostar desse". Cara. CARA! Quem gosta d'O Rei Leão, de toda a mística por trás dos personagens, seus momentos épicos, as canções inesquecíveis, a história redentora, não poderia simplesmente continuar com o original? Era MESMO necessário investir uma fortuna em recursos apenas para recontar a MESMA HISTÓRIA, mas agora com mais recursos tecnológicos? Sério, eu tenho até dificuldade em compreender esse tipo de mobilização, que faz com que as pessoas ocupem seu tempo para assistir um filme IGUAL ao que já foi feito.

Bom que fique claro que não temos problemas com adaptações de livros e quadrinhos para o universo cinematográfico, mas é necessário repetir TANTAS VEZES as mesmas ideias? Alguém sabe, por exemplo, qual a utilidade de tantos filmes sobre o Homem Aranha? Obras que pretendem "reiniciar" a saga, reimaginá-la, recontá-la, mas que no fim das contas sempre será o filme do mesmo herói de sempre, com seus demônios e que deve enfrentar um vilão no final. Pra quê? E esse é um mal que não assola apenas o universo nerd/geek já que, só pra tomar como exemplo, o filme Nasce Uma Estrela, no ano passado, passou pela sua quarta versão para o cinema. QUARTA! Enquanto isso filmes criativos e originais vão passando batidos pelas salas do País, que abarrotam os seus cinemas com blockbusters em praticamente a sua totalidade.



E para mim essa é a consequência mais drástica desse modus operandi do mercado: basta uma olhada no quadro abaixo, que representa a programação de uma grande rede em um shopping da capital, para que percebamos o quão escassas são as alternativas que não sejam os reboots, remakes, continuações, spin offs e outros que, inclusive, poluem as salas visualmente. Talvez o mais clássico, e que antecipou essa febre da modernidade, tenha partido do diretor Gus Van Sant, ainda em 1998, quando resolveu refilmar o clássico Psicose, do Hitchcock. E o pior: quadro a quadro, para que os jovens dos anos 90, acostumados a doses cavalares de Friends, pogobol e Backstreet Boys pudessem absorver a obra sem ter de encarar o "martírio" do preto e branco. Num comparativo, é como se algum livro clássico, digamos um O Som e a Fúria, de Faulkner, fosse reescrito para a modernidade, com um linguajar mais simples, sem fluxo de consciência, com tudo ordenadinho. As mesmas ideias. Nunca o mesmo livro.

Sim, já podem começar a me chamar de chato, mas eu definitivamente não me empolgo com o mais recente filme do Universo Marvel - aliás, quem acompanha o Picanha sabe que dificilmente falamos de algum blockbuster. E temos a consciência de que a nossa "gordurinha a mais" é falar do Green Book, do A Forma da Água e do Spotlight ou mesmo daquele filme islandês da Netflix que é muito original, mas que pouca gente anda assistindo. Sim, sabemos que, por conta disso, não ultrapassaremos muito mais do que a média de 70 a 80 visitantes por dia. Mas, assim o nosso espacinho aqui fica sendo mais ou menos como um local de resistência à repetição, a mesmice, a redundância. Por fim, a gente sabe que esse é um caminho sem volta e, certamente se não houvesse bilheteria, se não houvesse gente excitadíssima pra ver o Simba parecendo um LEÃO EMPALHADO talvez o mercado não fosse assim. Enquanto isso não muda, sigo aguardando a estreia de Rocketman aqui no cinema local. Mas deitado, porque sentado certamente eu vou cansar.


terça-feira, 16 de julho de 2019

Músicas Gêmeas - Ed Sheeran x Marvin Gaye

Ainda que esteja em pleno processo de divulgação de seu mais recente trabalho - o morno Nº 6 Collaborations Project -, o cantor Ed Sheeran não tem tido vida fácil, já que desde 2016 está em curso um processo de plágio envolvendo o artista. Na época, o compositor Ed Townsend encontrou similaridades entre as canções Thinking Out Loud de Sheeran e Let's Get It On de Marvin Gaye, canção que foi composta em parceria com Townsend. Confesso que, sim, há algumas similaridades entre as canções, a ambientação, a melodia, mas não considero o episódio tão, assim, escancarado.O imbróglio deve se resolver ainda neste ano e enquanto isso não ocorre, convidamos vocês a tirar a prova real, sobre mais esse caso de cópia (ou não).


Tesouros Cinéfilos - Pais e Filhos (Soshite Chichi ni Naru)

De: Hirokazu Koreeda. Com Masaharu Fukuyama, Machiko Ono, Keita Nonomiya, Lily Franky, Yoko Maki e Shogen Hwang. Drama, Japão, 2013, 121 minutos.

O prolífico diretor japonês Hirokazu Koreeda é um mestre na utilização dos conflitos familiares, como matéria-prima para a elaboração de seus filmes. Obras como Ninguém Pode Saber (2004), Depois da Tempestade (2016) e, mais recentemente, o indicado ao Oscar Assunto de Família (2018), frequentemente utilizam a dinâmica que envolve pais, mães, tios, filhos e sobrinhos, como forma de estabelecer um microcosmo que parece pronto a ruir ao menos sinal de instabilidade, rompendo com o tecido social estabelecido. Bom, esse também é o caso de Pais e Filhos (Soshite Chichi ni Naru), que gera tensão a partir de um episódio inusitado: quando dois casais recebem um chamado do hospital em que nasceram seus filhos para explicar que, seis anos atrás, seus bebês foram trocados na maternidade. E, pior: aparentemente de forma deliberada.

Em meio a conversas com advogados que brigarão por possíveis indenizações, ambos os casais resolvem efetuar a troca aos poucos para que o trauma não se transforme em algo ainda maior. Assim, o jovem Keita (Keita Nonomiya), que convivia com os pouco amorosos e excessivamente práticos pais Ryota (Masaharu Fukuyama) e Midori (Machiko Ono), em um lar com muito conforto e segurança financeira, mas também muito frio, passará a conviver com os amorosos e extrovertidos Yudai (Lily Franky) e Yukari (Yoko Maki), além de dois irmãos, em um ambiente bem mais modesto, mas muito mais vivo e colorido. Ao mesmo tempo, o pequeno Ryusei (Shogen Hwang) será enviado para a casa dos primeiros. Se na sua casa "oficial", Keita precisava se preocupar com uma agenda que lhe transformava em um pequeno adulto - com direito a aulas de piano não muito desejadas -, na sua outra moradia ele podia brincar e receber um carinho quase inesperado. De outro lado, a sisudez, especialmente de Ryota, deixará Ryusei claramente desconfortável.


De certa forma, o filme faz uma crítica aos pais que "despejam" filhos no mundo, mas que não reservam tempo para eles, tratando-os com distanciamento, e colocando-os sempre em segundo plano. Em uma das mais arrebatadoras sequências, Yudai pergunta a Ryota os motivos de ele não ser um pai mais presente para o seu filho, ao que o segundo responde que "não pode ser substituído no trabalho". Em seguida, ele ouve como tréplica o fato de que ele TAMBÉM não pode ser substituído como pai - por mais que o próprio Yudai pudesse ser um candidato natural ao "cargo". Outra cena definitivamente comovente envolve o momento em que Yukari dá um caloroso abraço em Keita que, desacostumado com esse tipo de manifestação de carinho, parece não saber exatamente o que fazer com os braços, já que o seu pai sequer lhe tocava quando lhe reencontrava após um dia de trabalho.

Será nessas interações meio tortas, difusas, com crianças perdidas em meio a convivência entre duas famílias diametralmente opostas, que num momento brigam e noutro se querem bem, que se estabelecerá a dinâmica do filme. A impressão que temos é a de que todos se complementam e, por mais que haja uma crítica mais forte ao pai excessivamente deslumbrado com o capitalismo, também ele terá o seu momento de redenção, em que confronta um passado (e uma infância) em que também permaneceu, na condição de criança, em segundo plano. É uma obra que pode soar meio arrastada para alguns "paladares" mas que, com grandes interpretações, e uma atenção minuciosa para a construção da narrativa, se transforma em um verdadeiro tratado sobre o valor da conexão entre pais e filhos - e sobre como estas definirão quais adultos que aquelas crianças serão. Premiado pelo Juri no Festival de Cannes daquele ano, Pais e Filhos conferiu ainda mais robustez a filmografia de Koreeda, que transforma cada filme que é lançado por ele, em verdadeiro objeto de culto pelos cinéfilos.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Cinema - Divino Amor

De: Gabriel Mascaro. Com Dira Paes e Júlio Machado. Ficção Científica / Drama, Brasil / Uruguai / Dinamarca / Suécia / Chile / França / Noruega, 2019, 102 minutos.

A ideia para o filme Divino Amor é absurdamente original. A trama viaja para o futuro para imaginar um Brasil do ano de 2027. Nele, o Estado definitivamente deixou de ser laico, a família tradicional está estabelecida exclusivamente no padrão homem, mulher e filho, a burocracia é galopante e o Governo funciona num misto de opressão religiosa e conservadorismo extremo. Enfim, é o tipo de distopia tão verossímil nesses recém-iniciados anos de Bolsonaro, Damares, Olavo de Carvalho e Alexandre Frota que a sensação, na verdade, é a de que não estarmos necessariamente vendo o futuro e, sim, o presente. Afinal de contas, hoje em dia, homem deve vestir azul e mulher deve vestir rosa. O Estatuto da Família busca restringir a sua composição a heteronormatividade. Deputados da bancada evangélica rezam o Pai Nosso na Câmara, em dia de votação de pautas. E por aí vai. Esse é o nosso Brasil da atualidade. Retrógrado. Cafona.

Em 2027 esses aspectos parecem apenas ter se ampliado. Ou se legitimado pelo voto - e aqui cabe saudar o diretor Gabriel Mascaro (Boi Neon) por ser uma espécie de visionário com esta pequena obra, que foi produzida e concluída antes das últimas eleições. No universo que ele concebe não existe mais o Carnaval, que foi agora substituído por um tipo de rave gospel em que fundamentalistas religiosos aguardam pela chegada do Messias. Pessoas que precisam de conselhos de algum pastor podem acessar uma espécie de drive thru da salvação em que liturgia e música sacra se misturam para expiação das dores dos fiéis. A tecnologia serve as instituições e para identificar pessoas pelo seu Estado civil - solteiro, casado, divorciado e, no caso das mulheres, se estão grávidas ou não. É o tipo de opressão que não é necessariamente escancarada, mas que estabelece rótulos e que busca uniformizar uma sociedade que, consequentemente, perde a sua identidade. Tudo é sombrio, triste, desolador.


A protagonista Joana (Dira Paes, em ótima performance) é uma escrivã de cartório profundamente religiosa, devota à idéia de fidelidade conjugal e que tenta evitar que casais se separem. Sim, é um dos objetivos do Estado impedir que uma de suas instituições máximas - no caso, o matrimônio - não seja arruinada. Que os casais continuem. Persistam. Sejam felizes na marra e superem as "fases ruins". Mas o que fazer quando ela própria tem as suas convicções questionadas, a partir de um evento que modificará a sua vida e a de seu marido Danilo (Julio Machado) para sempre? Incapazes de ter filhos, eles procuram todo o tipo de solução médica e tecnológica, com direito a cenas constrangedoras de busca de "fertilidade". Mas, e quando o milagre acontece, mas não é bem como se esperava, como lidar?

O filme, que mais parece uma espécie de apocalipse enfumaçado em cores neon, procurará lidar com essas questões, ao passo que mostrará as interações de Joana e Danilo na entidade que dá nome ao filme e que busca algo como "a ressignificação do casamento" por meio de terapia - o que deverá ocorrer com muito sexo entre os envolvidos, mas apenas como forma de estímulo, sem amor (o que dá conta da hipocrisia das famílias de bem que não se furtam em pular a cerca, tal qual ocorre na metafórica sequência de um cachorro no cio ainda no primeiro ato). Utilizando-se de longos planos, Mascaro inundará a tela de cenas em que os dogmas religiosos são desconstruídos, com os sujeitos se vendo reféns da mesquinharia que rege a grande maioria das igrejas, que jamais almejam o bem estar coletivo e, sim, apenas a satisfação individual de poucos, numa espécie de hedonismo às avessas.


Pecando apenas por não ampliar o contexto político/social/religioso, o filme acaba "pegando leve" ao não mostrar possíveis focos de resistência em um Governo totalitário (não seria interessante o submundo dos divórcios obtidos no mercado negro?) ou mesmo as outras formas de opressão do Estado, possíveis em um universo em que absolutamente TUDO gira em torno da religião. Por exemplo, as pessoas ouvem música gospel porque as outras não são permitidas? E como seria o comportamento da imprensa nesse cenário apocalípitico? Seria chapa branca? Panfleto do Governo? Haveria outros partidos políticos? Outras possibilidades? A tecnologia não avançou tanto por quê? Há equipamentos proibidos (não se vê nenhum celular em cena)? A meu ver, ao limitar a obra para os limites daquilo que acontecia no entorno da família protagonista, muitos aspectos que enriqueceriam a experiência foram deixados de lado. Ainda assim trata-se de um filme superior, visionário e essencialmente plausível diante desse cenário catastrófico que se encontra a nossa política.

Nota: 8,5

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Na Espera - Ad Astra (Filme)

Ainda é cedo pra falar em Oscar, mas uma coisa é certa: Ad Astra deverá estar entre os indicados em boa parte das categorias técnicas na próxima edição da maior premiação do cinema, afinal de contas, quem resiste a um filme de ficção científica bem feito? Dirigida por James Gray (Z - A Cidade Perdida) e com estreia prevista para o dia 19 de setembro, por aqui, a obra narra a história de um engenheiro especial que possui um leve grau de autismo e que, a despeito da doença, resolve empreender a maior jornada de sua vida: viajar para o espaço, cruzar a galáxia e tentar descobrir o que teria acontecido com o seu que pai, um astronauta que, vinte anos atrás, teria se perdido em meio a uma expedição ao planeta Netuno.


O elenco tem bons nomes, entre eles Brad Pitt, um dos produtores executivos, que interpreta o protagonista Roy McBride. Completam o elenco Tommy Lee Jones, Ruth Negga e Donald Sutherland. Já o trailer tem aquele clima de ficção científica clássico, com imagens do espaço, explosões no vácuo (e sem som!), um leve caráter existencialista e um personagem atormentado em busca de alguma resposta para as suas angústias. Se vai emplacar ou não, saberemos daqui pouco mais de dois meses. Por aqui, já estamos Na Espera!

Novidades em Streaming - The Black Keys (Let's Rock)

Não chega a ser exaaaatamente uma novidade: já faz duas semanas que o The Black Keys lançou seu mais novo registro (o novo da carreira). E como hoje é o Dia Mundial do Rock - essa data enfadonha que costuma ser celebrada por senhores reacionários e conservadores que escutam Born To Be Wild do Steppenwolf, enquanto saboreiam alguma cerveja artesanal de sua preferência -, nada mais justo que comemorar ouvindo um disco que se chama Let's Rock! E se tem algo que o Dan Auerbach e companhia sabem fazer de maneira satisfatória, é aquele rockão garageiro meio alternativo, meio eletrônico, que nos faz abrir aquele sorriso sem muito esforço. Não, não é a salvação da lavoura - aliás,  beeem longe disso. Mas para um estilo que tem sido sinônimo de jaqueta de couro empoeirada, guarnecida por uma dúzia de bolas de naftalina, poder ouvir um álbum que ecoa a juventude perdida de algum tempo que não volta mais, misturando o clássico e o moderno em igual medida, já nos faz manter a esperança. Bora clicar?



quarta-feira, 10 de julho de 2019

Tesouros Cinéfilos - Culpa (Den Skyldige)

De: Gustav Möller. Com Jakob Cedergren, Jessica Dinnage e Jakob Ulrik Lohmann. Suspense, Dinamarca, 2018, 85 minutos.

Interessante notar como um filme de estrutura bastante hollywoodiana, como é o caso do dinamarquês Culpa (Den Skyldige), é percebido com um outro tipo de severidade quando se trata do cinema europeu. Tudo parece ser mais naturalista, com os personagens surgindo na tela como figuras absolutamente verossímeis, possíveis de existir. Se há tensão, ela é palpável. Se há sofrimento, a dor salta da tela. Talvez seja algum tipo de distanciamento, que resulte nesse sentimento. A fotografia granulada. A luz ambiental. A música quase inexistente. Não sei. Tô viajando aqui, ao mesmo tempo em que já sei que os americanos farão uma versão deles dessa pequena joia do cinema dinamarquês. E que haverá Jake Gyllenhall no papel principal - o de um policial que está sob investigação e que é "rebaixado" ao cargo de atendente de ligações de emergência na delegacia em que trabalha.

Bom, no original dinamarquês, dirigido pelo estreante Gustav Möller, o protagonista é Asger Holm (Jakob Cedergren). Em meio a ligações com pedidos de socorro os mais variados - desde quadas de bicicleta, até relatos de pequenos furtos -, Asger atende uma ligação de uma mulher que, aparentemente, está sendo sequestrada. Ao telefone, ela finge que está falando com a sua filha, como forma de despistar o sequestrador e facilitar a logística que poderá levar a polícia até a autoestrada em que está a van do criminoso. Intercalando chamadas direcionadas a outras delegacias de Copenhague, a policiais rodoviários e até a amigos policiais mais próximos (que, a paisana, também poderiam ajudar), Asger vai montando uma espécie de quebra-cabeças para que ele consiga, mesmo a distância, solucionar o caso.


Só que há um aspecto que o protagonista não parece colocar na balança nessa situação toda: o da imprevisibilidade. O apoio dos policiais de campo levará a descobertas nauseantes, aumentando a angústia não apenas de Asger, mas também do espectador, que acompanha tudo com a câmera praticamente colada na do policial. Hábil na construção de um cenário claustrofóbico, Möller realiza todo o filme no cubículo da delegacia, fazendo com que o espectador escute vozes, barulhos, passos, suspiros, choros e outras reações que ocorrerão do outro lado do telefone em nenhuma chance de reação e que transformarão a película em uma experiência não menos do que sufocante. Assistir a dor do policial que, longe, não consegue ajudar como desejaria, ao passo que ele mesmo lida com os seus próprios demônios - parece haver segredos do passado prontos para vir à tona - tornam a obra uma gratíssima surpresa dentro do gênero suspense.

Com apenas um ator aparecendo praticamente o filme inteiro, essa obra de pouco mais de 80 minutos é a prova viva de que não são necessárias explosões, efeitos especiais de última geração e outras trucagens para a composição de uma obra satisfatória: basta uma boa ideia. E que ela seja bem executada - já que, certamente na mão de outro diretor talvez o filme beirasse o delírio histrionista e irresponsável. Discutindo ainda o conceito de culpa (e seus atenuantes em crimes variados), bem como o nosso ímpeto natural de ser juiz em causas que não são nossas, o filme, enviado pela Dinamarca para a categoria Língua Estrangeira no último Oscar, ainda reserva para o terço final uma impactante reviravolta, que deixará o espectador estarrecido no sofá. Nesse sentido trata-se de um filme completo: tenso, urgente, com ótima interpretação do protagonista e uma resolução surpreendente. Não era necessária uma versão de Hollywood, definitivamente.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Cinema - Fora de Série (Booksmart)

De: Olivia Wilde. Com Kaitlyn Dever, Beanie Feldstein, Billie Lourd, Skyler Gisondo, Jessica Williams, Lisa Kudrow e Will Forte. Comédia, EUA, 2019, 105 minutos.

Devo admitir que sempre fico meio desconfiado dos filmes que tratam do universo dos adolescentes - especialmente pela dificuldade que muitos diretores têm de escaparem dos estereótipos. Do jogador de futebol americano popular, bonito e tosco, passando pela nerd que não é padrão de beleza (mas é muito inteligente), até chegar ao introspectivo dark ouvinte de The Smiths, o caso é que muitas obras reduziram os adolescentes a figuras exclusivamente maniqueístas, sem nenhum senso de vida em comunidade ou empatia. E que respondiam apenas de uma forma: com maldade ou bondade excessiva, de acordo com o papel que lhes foi atribuído na trama. Aliás, é assim até hoje e vamos combinar que as historinhas meio bobas, sobre adolescentes querendo perder a virgindade ou sobre moças românticas sonhando com príncipes encantados inexistentes, em meio a um festival de piadas machistas e misóginas, nunca contribuiu muito.

E quando li o resumo desse Fora de Série (Booksmart), sobre duas amigas com quase nada de vida social e que sempre foram muito focadas em tirar as melhores notas (o estereótipo das CDFs), mas que resolvem correr atrás do prejuízo na última noite de festa antes da formatura do Ensino Médio, confesso que não me animei muito. Mas esse filmezinho adolescente, pasmem, está entre os 25 melhores do primeiro semestre, de acordo com o site Metacritic (que compila notas de críticos dos mais diversos veículos). Então resolvi encarar a sessão, até mesmo porque queria algo mais leve, sem muita pretensão. E é preciso admitir: trata-se de uma gratíssima surpresa.


A quebra de estereótipos acontece já nos primeiros minutos do filme, quando as protagonistas Amy (Kaitlyn Dever) e Molly (Beanie Feldstein) se dão conta que os colegas que passaram a vida inteira na zoeira, entrarão em universidades tão majestosas quanto as delas. Sim, porque, por incrível que possa parecer, é possível SIM aproveitar a vida, curtir, namorar, ir para as festas, beber e transar e TAMBÉM ir para uma faculdade legal, estudando, se focando. Há momento para tudo. E uma coisa não exclui a outra. É a mesma lógica que vale para a dificuldade que Hollywood tem para aceitar que, nas comédia românticas, uma mulher possa casar (se assim desejar) e TAMBÉM ter uma carreira, um trabalho. Bom, quando nos primeiros minutos de filme essa ficha cai para nós, junto com uma das protagonistas, a película da diretora estreante Olivia Wilde já ganha um bom punhado de pontos.

Sim, os skatistas não precisam ser necessariamente os maconheiros burros, os ricações não precisam ter um bando de bajuladores à sua volta, os populares não precisam ser antipáticos e os nerds não precisam ser pretensiosos. É da vida real que estamos falando, e Olivia apresenta as características de cada adolescente - suas inseguranças, medos, desejos, anseios - com uma naturalidade comovente. Não estamos falando que não haverá "tribos", cada grupo interagindo mais com quem tem mais afinidade. Mas não é possível que todos curtam juntos? E é nesse aspecto tão prosaico que o filme nos arrebata. Quando Amy e Molly chegam a tão desejada festa, o "medo" inicial - de serem ridicularizadas, por nunca terem sido muito sociais -, dá lugar a outros sentimentos (euforia, paixão, desilusão). E a fluidez com que tudo acontece nos emociona e nos faz rir em igual medida.


É um filme tão simples, que é quase inacreditável. Se passa todo em uma madrugada, com Amy e Molly indo de festa em festa em busca da tal festa do Nick (a balada "oficial" da noite). Uso de drogas, ingestão de álcool, amizades, sorrisos, galinhagens, primeiras vezes desajeitadas (e totalmente compreensíveis), tudo estará lá, bem como as piadas sexuais engraçadas e os comentários sociais inteligentes, travestidos de piadas (como não sorrir um sorriso amarelo quando o motorista do Uber se revela o DIRETOR DA ESCOLA!) ou não (caso da onipresente mensagem sobre feminismo e de respeito às diferenças). Com uma sequência toda na piscina que, desde já, está entre as melhores do ano, Fora de Série ainda tem uma trilha sonora daquelas pra marcar época, com artistas como Perfume Genius, LCD Soundsystem, Rhye e Anderson .Paak dando ainda mais vida a cada sequência dessa pequena joia. Há esperança na geração Millenial. E os filmes já os têm tratado com um pouco mais de respeito e menos presunção. Que bom.

Nota: 8,5

Cinema - Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch)

De: Rungano Nyoni. Com Maggie Mulubwa e Henri B. J. Phiri. Drama / Fantasia, Reino Unido / Zâmbia / França / Alemanha, 2018, 92 minutos.

Se no "democrático" Brasil de Bolsonaro a junção de fanatismo religioso, sociedade patriarcal e Estado autoritário já tem produzido, em apenas seis meses, resultados devastadores, o que dizer de países ainda mais fechados? No inacreditável Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch), somos apresentados à dura realidade cultural das mulheres que nascem em países como Zâmbia ou Gana e que, por motivos variados - seja morarem sozinhas, não terem emprego ou um companheiro ou estarem na rua -, podem ser acusadas de bruxaria. O que faz com que passem a viver, a partir de então, em isolados campos de concentração como propriedade do Estado, tendo limitado o seu direito de ir e vir. Ou sendo ainda apresentadas como aberrações para turistas ávidos por selfies - mas sem nenhum espírito humanitário ou qualquer tipo de empatia pelos vulneráveis.

É exatamente essa a realidade da jovem Shula (Maggie Mulubwa). Com pouco mais do que oito anos de idade, ela é tomada como bruxa após cruzar o caminho de uma mulher que carrega um balde de água que acaba despencando de sua cabeça. Sim, um acaso fortuito é o suficiente para que uma jovem errante seja entregue ao Governo por praticar bruxaria - na teoria ninguém pega mais água porque Shula derruba os baldes. E, para ter certeza de que a menina é MESMO uma bruxa, durante uma reunião na comunidade, um homem aparentemente bêbado fala a respeito de um sonho que teria tido com a jovem - ocasião em que esta decepava a sua mão. Sim, um sonho. Bom, as decisões jurídicas sobre a questão da bruxaria são meio injustas em certos países africanos. Bom, as decisões jurídicas podem ser injustas em qualquer País, se não obedecerem um mínimo de regras em que se estabeleça, de fato, a justiça.



Estabelecida como bruxa, Shula é entregue a comunidade das bruxas, que lhe festejam com cânticos de louvor (numa das tantas belas sequências da película). A jovem passa a trabalhar como escrava na lavoura, usando uma espécie de cordão (a rédea), que lhe impede de sair dos limites estabelecidos pelo Governo. Em meio a tudo, participa de atos públicos, caso de uma espécie de julgamento em que um homem também é acusado injustamente de ter praticado roubo. É nesse momento que Shula se aproximará ainda mais do tutor governamental Sr. Banda (Henri B. J. Phiri), passando a morar com ele e sua esposa, se tornando responsável por rituais variados, como a dança da chuva e a consequente promessa ao Estado, de uma safra satisfatória.

É um filme duro, árido, tratado pela diretora Rungano Nyoni (que acompanhou tribos em que a cultura da bruxa existe, como estudo para seu filme de estreia) com um caráter documental, sendo quase raros os momentos em que a câmera se afasta de Shula (e dos demais). Lírica, a obra transborda beleza e desolação em igual medida, evocando sensações diversas no espectador. Não por acaso, sequências como a que mostra um caminhão com diversos carretéis de rédeas rompidos ou mesmo a do Sr. Banda e de Shula participando de um programa de televisão mexem conosco, nos geram desconforto e estranhamento, paradoxalmente, mantendo um fiapo de esperança. O mesmo valendo para as cenas em que as bruxas realizam seus rituais, com cânticos em meio a um cenário sombrio/avermelhado e de contraste.


Por fim, trata-se de uma obra de grande sutileza, que faz a crítica, mas sem esfregar aquilo que está propondo na cara de ninguém. Nas entrelinhas é possível ver temas como descaso dos governos com as minorias, preconceito e xenofobia, machismo, patriarcalismo, excessos do mundo capitalista (as cenas com os turistas beiram o constrangimento) e até fanatismo religioso, abordados em meio a sequências devastadoramente oníricas, funcionando quase como pesadelos áridos, cinzas, e que são fruto de um mundo em que a desesperança é a ordem do dia. Eu Não Sou Uma Bruxa foi o enviado do Reino Unido para a categoria Filme em Língua Estrangeira no último Oscar. Pode não ter se classificado para a final, mas faz com que a nossa atenção se volte para os absurdos cometidos por culturas retrógradas, preconceituosas e ultrapassadas, que costumam utilizar o medo do diferente como moeda de troca.

Nota: 8,5

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Grandes Cenas do Cinema - Intriga Internacional (North By Northwest)

Cena: Uma perseguição pelos rostos esculpidos do Monte Rushmore

Não é fácil fazer um Grandes Cenas do Cinema com o clássico Intriga Internacional (North By Northwest), afinal de contas a obra-prima de Alfred Hitchcock possui uma verdadeira coleção de sequências memoráveis. Aliás, o filme todo parece uma "grande sequência memorável" - com um roteiro excentricamente divertido (e rocambolesco), atores abusando de uma canastrice irresistível e um romance capaz de combinar ingenuidade e malícia em igual medida. No filme em si acompanhamos o publicitário Roger Tornhill (Cary Grant) praticamente em fuga durante mais de duas horas. Ele é confundido com um agente secreto e acaba envolvido em uma trama de espionagem, com tudo piorando quando ele é injustamente acusado de assassinato, tendo de fugir não apenas da polícia, mas também dos capangas que planejam assassiná-lo.

Até chegar a derradeira cena em que Roger e Eve (Eva Marie Saint) empreendem uma espetacular escapada pelo Monte Rushmore, a obra nos diverte e nos deixa tensos com outros tantos momentos inesquecíveis e cheios de ação. Em uma das tantas fugas de Roger, ele é perseguido por um avião que despeja agrotóxicos (sim, acredite, em 1959 isso já existia), em meio a um milharal no meio do nada. Em outra, ele avacalha um leilão, com o objetivo de despistar os criminosos, saindo gloriosamente nos braços da polícia. Há ainda a sequência em que Eve "esconde" Roger no compartimento de bagagens de um trem ("eu quero azeite de oliva se for para me comportar como uma sardinha") e outra em que a dupla forja um assassinato em meio a um restaurante lotado. Sim, vale qualquer estratagema para tentar sair ileso - e fazer com que esse romance meio torto entre a dupla de protagonistas funcione.



Mas a película é uma graça só e a meu ver só funciona porque é muito mais divertida do que tensa! Os personagens são ambíguos, as tiradas do protagonista são impagáveis, a mãe de Roger é uma figura que desconfia das ações do próprio filho (e é curioso como lá pelas tantas ela simplesmente SOME) e Hitchcock ainda utiliza a metáfora de um trem entrando em um túnel, para fazer o espectador entender que, bem, as pessoas foram fazer sexo. Mas é provável que nada se compare a inesquecível sequência no Monte Rushmore, com direito a Eve fugindo de salto alto (que quebra, no meio do caminho) e um Roger desesperado em meio a rostos, narizes e bocas, suas curvas e pedras duras, tentando evitar uma tragédia que se aproxima. Quando ambos estão próximos da queda, o protagonista ainda tem a presença de espírito de fazer uma espécie de "proposta de casamento" em forma de mensagem cifrada, para Eve.

Sim, o filme tem esse charme meio cínico, com Roger estando entre a vida e a morte, mas sempre disposto a tecer algum comentário inesperadamente divertido, capaz de modificar a lógica daquilo que assistimos (como no caso da cena em que ele agradece a polícia por ter vindo lhe prender). Talvez Intriga Internacional não seja o melhor filme do Mestre - foi produzido entre Um Corpo Que Cai (1958) e Psicose (1960) -, mas, por conta de suas tantas sequências inesquecíveis e seu elenco recheado de estrelas - com nomes como Martin Landau e James Mason -, é geralmente lembrado com carinho pelos fãs. Até os créditos iniciais de Saul Bass e a trilha concebida por Bernard Hermann contribuem para que este seja o combo perfeito. A obra-prima é a 40ª melhor da história de acordo com o American Film Institute (AFI). Não é por acaso.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Tesouros Cinefilos - Tangerine (Tangerine)

De: Sean Baker. Com Kitana Rodriguez, Mya Taylor, James Ransone e Karren Karagulian. Drama / Comédia, EUA, 2015, 85 minutos.

Existe uma cena do clássico cult Tangerine (Tangerine) que nos dá a medida exata de como as portas do mercado de trabalho estão fechadas para as trans - e para o público LGBTQI em geral. Mas, especialmente, para as trans. Uma das protagonistas, Alexandra (Mya Taylor), irá se apresentar em um clube noturno de West Hollywood, em Los Angeles, cidade que é palco do filme. Lá pelas tantas, depois da belíssima apresentação de uma canção romântica, descobrimos que Alexandra PAGOU para subir ao palco. Para mostrar seu trabalho. Ou seja, na busca de uma oportunidade que não seja o inevitável universo da prostituição - e da esteira de violência, drogas e agressões de todos os tipos que invariavelmente o acompanha -, ela prefere entregar o seu suado dinheiro para o dono da boate. Uma espécie de investimento que mantém viva a esperança de que as pessoas possam olhá-la como uma artista. E não como alguém que queira necessariamente fazer sexo, ou "vender o corpo", o tempo todo.

Sim, porque esse é o olhar que, infelizmente, boa parte da sociedade - e todos estamos incluídos nessa - tem a respeito do universo das trans. São apenas "objetos" que servirão para algum tipo de satisfação pessoal. Sem sentimentos, sem medos, sem objetivos, sem sonhos. É como se, por serem inevitavelmente prostitutas, elas se tornassem imediatamente figuras dissociadas de outros aspectos de sua humanidade. Corpos que estarão ali para satisfazer senhores, inclusive os "bem casados" das famílias de bem. E, no fim das contas, é esse tipo de crueza, de aspereza que acompanhamos na rotina de Alexandra e da (quase) inseparável companheira Sin-Dee (Kitana Rodriguez). Na jornada em busca de um namorado traidor - o trambiqueiro Chester (James Ransone) -, a dupla atravessará a cidade, transformando a película em um conto de Natal as avessas. O conto de Natal dos excluídos, dos vulneráveis, das minorias, que muitas vezes são ignoradas pelos demais.


Aliás, na simplicidade da narrativa - a busca pelo já mencionado namorado traidor (quer algo mais "mundano"?) -, surge o modus operandi completamente oposto. Filmado com três celulares iPhone e apenas R$ 320 mil de orçamento, a obra tem um caráter documental palpável, meio de "guerrilha", como se cada cena gravada nos aproximasse ainda mais daqueles que assistimos. A gritaria das brigas, as confusões involuntárias, os momentos de serenidade e de reflexão, a trilha sonora que equilibra momentos de calmaria, com outros muito mais urgentes, dinâmicos, formam o combo de uma película que ganha pontos por dar visibilidade a quem não aparece. Por transformar em gente como a gente (a seu modo, claro), figuras tão carismáticas como Sin-Dee e Alexandra. Suas lutas, a gente sabe, são maiores do que a busca por um grande amor. Refere-se a busca por um grande amor em um mundo de preconceito, de ódio, de intolerância.

E esse preconceito pode até demorar a aparecer, mas aparece, seja no grupo de playboys (votantes do Bolsonaro) que joga um saco de mijo na cara de Sin-Dee ao abordá-la, seja na beligerante sequência em que a sogra de Razmik (Karren Karagulian), um taxista casado, pai de família em uma tradicional família da Armênia, vai confrontá-lo. Aliás, este é mais um aspecto abordado "de passagem" pelo filme: o da hipocrisia de uma sociedade incapaz de lidar com a quebra de tradições conservadoras, relegando os seus sujeitos a vidinhas ordinárias em que não conseguem ser o que efetivamente desejariam ser. Tangerine, com sua fotografia alaranjada, sua ambientação cáustica, seus contornos imprevisíveis, pode até ser um filme pequeno na metragem e na concepção. Mas é grande no que se propõe, abrindo portas para que Sean Baker (seu diretor), brilhasse ainda mais em Projeto Flórida, um de seus elogiados trabalhos seguintes.


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Cine Baú - Sem Destino (Easy Rider)

De Dennis Hopper. Com Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson e Phil Spectos. Drama / Aventura, EUA, 1969, 95 minutos.

Muito antes das motos da Harley Davidson, da jaqueta de couro e do rock clássico (ou farofa) de bandas como Steppenwolf serem associados àquele tiozão reaça que você conhece, o clássico da contracultura Sem Destino (Easy Rider) prestou uma verdadeira homenagem aos desajustados, aos hippies e as figuras excêntricas que vivem a margem da sociedade. Com moto, com jaqueta, com rock, com tudo. Ainda que o Flower Power ganhasse força como ideologia contrária ao uso da violência, nos Estados Unidos do ano de 1969 - período em que o republicano Richard Nixon assume a presidência - ainda parecia pairar uma certa desconfiança no ar, em relação aos rumos do País. Temas como a Guerra do Vietnã e a corrida espacial estavam em voga, o que parecia abrir espaço para um legítimo desejo de liberdade, que representasse efetivamente uma fuga das amarras do conservadorismo e do "sonho americano".

Talvez por isso essa obra tão pequena - a estreia de um ainda jovem Dennis Hopper na direção -, seja ainda tão representativa do espírito libertário daquele período, que transformava em "mocinhos", inesperadas figuras de cabelos compridos, colares indígenas e ambições de liberdade. A bordo de suas motos, tudo o que Wyatt (Peter Fonda) e Billy (o próprio Hopper) desejam é chegar à Nova Orleans para participar do Mardi Gras - a maior festa de carnaval americana. Para alcançar este objetivo, perpetram uma ação de tráfico de drogas na fronteira com o México que lhes rende muita grana. A partir daí partem em uma jornada que durará três dias e que desnudará o melhor e o pior dos americanos, seja no encontro absurdamente saboroso com uma comunidade de artistas hippies, seja no latente preconceito de um bando de caipiras da família de bem, que não conseguem se acostumar com a ideia de que homens possam adotar cabelos compridos - ou mesmo uma postura que fuja do padrão.


Mas certamente o melhor encontro será com o advogado George (Jack Nicholson), que auxiliará a dupla protagonista a sair da prisão após um episódio de "perturbação da ordem pública" (na verdade eles avacalharam um desfile). Na companhia de George, farão divagações sobre a presença de extraterrestres na terra e sobre as implicações da busca pela liberdade (naquela que, ideologicamente, é uma das principais sequências da película). Em meio a paisagens deslumbrantes e muito uso de drogas, o trio mergulhará nas entranhas de uma América conservadora, ao som de clássicos de artistas como Jimi Hendrix, The Electric Flag e Roger Mcguinn. Não haverá necessariamente uma história com começo, meio e fim - não ao menos nos moldes que conhecemos hoje -, mas até mesmo o roteiro e a montagem eventualmente desordenados e com uma lógica bastante particular, também funcionarão como pequenas subversões que pontuarão a película.

Recheado por grandes cenas, como a do banho pelado em uma piscina natural ao som de Wasn't Born To Follow do The Byrds, a da viagem de ácido em um cemitério (uma colagem de imagens quase nauseante) e a da violenta sequência final, Sem Destino é aquele filme que fica por ser uma espécie de líbelo da juventude que busca seu lugar no mundo ao mesmo tempo em que questiona o status quo e as convenções impostas pela sociedade. Premiado em Cannes na categoria Diretor Estreante, o filme, que completa 50 anos de seu lançamento neste mês, foi escolhido o 88º Melhor da História, de acordo com votação feita por integrantes do American Film Institute (AFI). Lançado no mesmo ano de Butch Cassidy, Meu Ódio Será Tua Herança, Perdidos na Noite, Z e Kes, também figura em outras listas valiosas, como a dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer e até na dos 100 Melhores Cult Movies de todos os tempos, o que dá conta de sua importância.