sexta-feira, 27 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown)

De: Mahdi Fleifel. Com Mahmood Bakri, Aram Sabbah, Mohammad Alsurafa e Angeliki Papoulia. Drama, Palestina / Grécia / França / Alemanha / Arábia Saudita / Dinamarca / Holanda / Reino Unido, 2024, 105 minutos.

"De certa forma é uma espécie de destino dos palestinos, não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante". Vamos combinar que em tempos de ódio, de preconceito, de intolerância e de xenofobia, reforçados pelos subsequentes ataques do governo de Israel à Faixa de Gaza - um genocídio bárbaro, que parece não ter fim -, a frase dita pelo já falecido intelectual Edward Said, que abre o desalentador filme Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown), não poderia ser mais atual. De fato, para um povo em permanente processo de deslocamento, inseguro e desumanizado, o desespero soa ainda maior. Não há sensação de pertencimento onde quer que se esteja - o que explica esse senso de urgência e de fuga eterna que emana da obra do diretor Mahdi Fleifel - documentarista conhecido pelo premiado Um Mundo Que Não É Nosso (2012), e que está disponível na Reserva Imovision.

O cenário é uma Atenas moderna, urbana, agitada de dia, meio poética e sonora à noite, onde os primos Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah) vivem de pequenos trambiques - como furtos de bolsas de velhinhas desatentas na praça -, na tentativa não apenas de sobreviver com o mínimo que seja de dignidade (algo difícil de se obter para quem é um refugiado, em um País que não deseja a sua presença), mas também de juntar algum dinheiro para o que seria o destino final de sua jornada. No caso, a Alemanha, onde aguardam a esposa e o filho de Chatila. Em seus sonhos nada oníricos - sempre carregados e pontuados por ausências -, a ideia é a de se instalar no rico País europeu para, lá, abrir uma cafeteria. A principal barreira? Tentar obter um passaporte, o que envolve a conexão com figuras não muito amigáveis e que habitam uma espécie de submundo da capital grega, como é o caso de um contrabandista que promete obter os documentos em troca de alguns outros favores.

 


 

Nada é muito fácil ali e a situação se torna ainda mais complicada quando a dupla central meio que adota o adolescente Malik (Mohammad Alsurafa), um jovem de 13 anos, que também está em fuga da Faixa de Gaza, buscando uma oportunidade de escapar dali para encontrar sua mãe na Itália. Mais gentil, sensível e empático com o menino, Reda o acompanha em suas andanças, enquanto Chatila, na crença de que seu parceiro está, de fato, preocupado com o novo amigo, bola um plano bastante complicado para ajudá-lo. O que envolverá a participação de uma quarta pessoa - no caso, Tatiana (Angeliki Papoulia), uma mulher grega que é incumbida de se fazer passar pela mãe do garoto, para que a fronteira possa ser finalmente cruzada. Tudo é intenso e sofrido e mesmo os pequenos instantes iluminados servem apenas para nos lembrar do desespero que ronda - como no momento em que Reda furta um par de tênis de uma loja para, lembrando à Malik que "não é legar roubar".

E, nesse sentido, vamos combinar que a obra não poderia ser mais acertada ao não apenas não vilanizar excessivamente os seus protagonistas - com sua disposição natural para a sobrevivência -, mas também não os tornando dois mártires incorrigíveis buscando fazer sempre o bem (o que seria uma solução bastante cômoda em um momento em que os olhos estão voltados para o conflito do Oriente Médio). Ao cabo mão há espaço para o maniqueísmo barato, que poderia comprometer a experiência. Reda tem problemas com drogas. Chatila não hesitará em agir com violência meio determinada em qualquer que seja a situação. Assim, as figuras vistas são complexas, com seus medos, desejos, sonhos, contradições e códigos morais questionáveis - o que é reforçado pelo impactante terço final, em que uma dolorosa sequência de sequestro escancara a violência estrutural a que todos ali estão submetidos. Trágico, cru e comovente, esse é daquele tipo de projeto que nos acompanha após os créditos subirem. 

Nota: 8,5 

 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Cidade; Campo

De: Juliana Rojas. Com Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer e Andrea Marquee. Drama, Brasil, 2024, 119 minutos.

Já falei pra vocês da dificuldade que tenho de me engajar - na falta de uma palavra melhor - em filmes que se passam no ambiente rural, mas que não retratam seus personagens, as figuras que trafegam naquele universo, de forma mais fidedigna. Mais realista, por assim dizer. Há toda uma complexidade na vida no campo que parece difícil de ser resolvida com meia dúzia de conveniências do roteiro. Ou com poucas explicações mais críveis para determinados comportamentos. E talvez seja por isso que tenha tido um sentimento meio misto com Cidade; Campo, mais recente obra da diretora Juliana Rojas - do ótimo As Boas Maneiras (2018) -, que aborda temas ligados à perdas, luto, memórias e fantasmas do passado. Isto a partir de duas histórias distintas que até não se conectam tão diretamente, mas que conversam com questões contemporâneas, que vão do êxodo urbano, passando por eventos ambientais extremos até chegar a casos como os de refugiados climáticos, que tem se tornado cada vez mais realidade no Brasil.

Como dito, o longa se divide em duas partes em que seus personagens realizam movimentos de migração - do campo para a cidade ou da cidade para o campo. Só que esses movimentos não ocorrem por livre iniciativa. Ou por vontade própria. São forçados. Invasivos. Agressivos. Especialmente no primeiro desses contos, em que a agricultora Joana (a ótima Fernanda Vianna), se vê obrigada a sair de sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, após sua propriedade ter sido devastada por uma tragédia ambiental - no caso, o rompimento de uma barragem, que liberou toneladas de dejetos (como nos casos reais de Brumadinho e Mariana). Conseguindo escapar com vida, Joana se abriga na casa da irmã Tania (Andrea Marquee), que mora com seu neto Jaime (Kalleb Oliveira), um menino curioso, mas que pouco sabe sobre a vida no campo. Tentando se adaptar, Joana consegue trabalho em um aplicativo voltado à diaristas - que organiza faxinas em casas de dondocas. 

 


 

Sim, ela se vê obrigada a deixar um ambiente idílico, onde produzia seu próprio alimento, aparentemente sem o uso de agrotóxicos, para enveredar em uma existência urbana, vazia, cinzenta - como é o espaço das cidades maiores, com suas rotinas repetitivas -, em que deve se submeter às exigências e violências cotidianas do capitalismo tardio. Que ganham um capítulo a parte quando uma situação de abuso é revelada. Melhor das duas histórias, essa primeira, por mais que confie nos silêncios e no dito pelo não dito, diz muito - e mesmo o apelo fantasmagórico e de realismo fantástico, tão típicos da realizadora, surgem aqui de forma orgânica, em memórias desconexas ou sonhos bizarros da protagonista (como no instante em que um cavalo aparece em pleno asfalto da madrugada, no concreto, numa daquelas dicotomias que servem como metáfora perfeita para a sua própria situação: perdida em um lugar que lhe é apenas estranho, que não lhe pertence).

Na segunda, e menos interessante das duas narrativas, o casal Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer), se muda para a propriedade rural do pai de Flávia, após a morte deste. O por quê exatamente elas decidem se manter na propriedade após a morte do familiar, nunca fica exatamente claro. Flávia era distante do genitor e a vida no campo, todos sabem, é difícil. Há vacas leiteiras, que dão leite todo o dia e, como vai ser isso dali pra frente? Não há amor que resista e não dá pra ficar muito no modo passeio e, vamos combinar, dá pra expiar as mágoas mesmo à distância, mesmo resolvendo as burocracias. Não é preciso experimentar a vida no campo para isso, ainda mais em um cenário desolador e quase inóspito de lavouras de soja ocupando o entorno, de terra empobrecida e seca e de ausências diversas (inclusive de conhecimento sobre o que o pai plantava ali, de fato). No mais, tudo parece só uma desculpa, uma conveniência, para que situações insólitas possam acontecer naquele ambiente - barulhos, aparições e outras abstrações que geram estranhamento apenas por gerar. Não sabemos muito das mulheres, de suas vidas, de seus passados, de suas trajetórias. Ou mesmo de como elas muito provavelmente sofreram pra chegar até ali. Onde estão agora tentando sobreviver. O que torna essa segunda parte meio oca, sem muito a entregar. Por mais que as intenções pudessem ser as melhores.

Nota: 6,5

 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Vitória

De: Andrucha Waddington. Com Fernanda Montenegro, Linn da Quebrada, Thawan Lucas e Alan Rocha. Drama / Policial, Brasil, 2025, 112 minutos.

Uma idosa cansada da violência que ronda seu bairro (e seu apartamento) resolve ligar o foda-se e, como se fosse uma espécie de James Stewart em Janela Indiscreta (1954), decide filmar uma série de crimes cometidos a céu aberto por traficantes, na ideia de levar o material para a polícia para que alguma atitude seja tomada. Sim, a peculiaridade da trama de Vitória, inspirada no livro Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão, já seria digna de algum tipo de atenção. Mas a coisa se torna ainda mais interessante quando a protagonista é uma senhorinha de mais de 80 anos interpretada por ninguém menos do que Fernanda Montenegro. E, diga-se de passagem é meio que impossível dissociar a imagem verdadeira da nossa maior atriz de todas - fragilizada e com algumas limitações do alto de seus mais de 90 anos reais -, daquela que vemos em tela. Preocupada, com seus movimentos lentos, desconfiança permanente, olhar distante e medo onipresente.

Afinal, não deve ser fácil para uma idosa ser vizinha da bandidagem. Convivendo com o medo de abrir a própria janela, sob risco de um tiro de fuzil cruzar seu apartamento como se fosse parte do cotidiano. Para Nina (Montenegro), a vida nem sempre foi assim. Quando passou a residir na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, a frente de seu prédio era ocupada por uma vasta mata, de rica biodiversidade. Só que o morro se alterou com o passar do tempo. Com a violência passando a frequentar a sala de casa. No começo do filme, dona Nina - seu nome fictício é Maria Josefina dos Santos -, está tomando um chá, enquanto ouve um antigo disco de vinil. Em um espaço nostálgico, de memórias que não sabemos exatamente quais. Só que a tranquilidade é quebrada quando tem início um tiroteio que vara a madrugada. O que lhe impede de ter uma noite de sono satisfatória.

 


 

Indignada, dona Nina vai até a delegacia mais próxima, para denunciar o ocorrido. Mas um certo Major Messias (Alan Rocha), meio que ignora seu pedido, alegando não poder fazer nada sem que haja algum tipo de flagrante. Parece justo. De sua janela, a protagonista enxerga uma série de absurdos. Com tudo se tornando ainda pior quando Nina percebe que a má vontade de Messias - aliás, que nomezinho sugestivo - tem raízes mais profundas: corrompido, o sujeito é parte do sistema. Recebe propina dos traficantes pra fazer vistas grossas. E ignorar os crimes cometidos ali. Só que a idosa não desiste. Junta suas economias para comprar uma pequena câmera filmadora - aliás impactante perceber que esse aparato de última tecnologia custava a bagatela de R$ 2.999 em 2005 (algo próximo de dez salários mínimos) -, que gere as evidências necessárias para uma denúncia. Em uma das noites ela assiste um assassinato brutal. Que ela consegue filmar. E levar pra outra delegacia. 

Toda essa movimentação acaba chamando a atenção de um repórter policial de nome Flávio (Alan Rocha), que resolve tentar ajudar no caso. Nina é alertada pelo adolescente Marcinho (Thawan Lucas), um jovem da quebrada - que tem alguma ligação com os traficantes do morro -, e que funciona como uma espécie de neto que a idosa nunca teve, de que ela corre risco de vida se levar seu plano de delação à cabo. Ela alimenta o menino, lhe dá dinheiro para pequenos trabalhos cotidianos (como ajudar a levar as compras) e mantém uma amizade próxima. Já a vizinha Bibiana (Linn da Quebrada) se aproxima da protagonista após um quebra pau na reunião de condomínio - que dá início a uma amizade inusitada, com direito a idas ao bingo e participação em bailes da matinê. Com tensão na medida certa e mesclando instantes bem humorados, com outros absolutamente comoventes, Andrucha Waddington reconstrói a história real Joana Zeferino da Paz, uma mulher determinada e destemida, que preserva um senso de justiça mesmo quando tudo parece querer desabar. Com a identidade mantida em sigilo pelo Programa de Proteção da Testemunha, Joana morreria apenas em 2023, aos 97 anos. Sem ter visto uma resolução real do problema da violência urbana no Rio de Janeiro. Aliás, no no País como um todo.

Nota: 7,5 

 

Tesouros Cinéfilos - Saint Omer

De: Alice Diop. Com Guslagie Malanga, Kayije Kagame, Valérie Drévile e Xavier Maly. Drama, França, 2022, 122 minutos.

Uma história de forte carga simbólica e que até hoje segue inspirando produções culturais mundo afora. Assim é a tragédia grega Medeia, que teria sido escrita por Eurípedes em 431 a.C. - a partir de uma série de narrativas orais - e que em Saint Omer, da diretora Alice Diop, ressurge como pano de fundo alegórico para um drama de tribunal sofisticado, verborrágico e envolvente - e que é inspirado em uma história real. Não há facilidades aqui e para o espectador é preciso um pouco de calma na hora de examinar a atitude invariavelmente monstruosa da protagonista Laurence Coly (Guslagie Malanga, vista também no curioso A Besta, 2023). Levada ao tribunal, a jovem senegalesa de modos taciturnos e dotada de uma lucidez impressionante - um comportamento que poderia soar meio exótico para os mais apressados -, é acusada de ter assassinado a própria filha de apenas 15 meses, que foi encontrada sem vida em uma praia do norte da França.

À primeira vista, tudo parece meio inexplicável. Laurence era uma estudante de Filosofia notável, de grande capacidade intelectual e argumentativa - personalidade que ela teria puxado de seu pai, um sujeito que, por trás da atitude afável parecia depositar uma grande carga sobre a filha, especialmente por acreditar em seu potencial acadêmico. A mãe, de quem nunca foi muito próxima no País africano, romperia ligações mais tarde. Na França, os fiapos de afeto seriam encontrados no amante Luc Dumontet (Xavier Maly), um homem mais velho com quem acaba tendo um filho. De forma meio acidental. Só que Luc é casado, com filhos. E isola Laurence. "Em um encontro, precisei sair pela porta dos fundos", explica. Todo esse apagamento simbólico, de uma existência escondida em uma nação que não é a dela, não a impediu de ser uma mãe excelente, no tempo em que esteve com a pequena Elise. Ao menos até o dia em que a mata, como ela mesma admite.

 


 

No mito de Medeia, uma princesa e feiticeira de Cólquida, a paixão por Jasão - aquele que busca o Velocino de Ouro -, se converte em ódio e ressentimento, quando ela é traída. No caminho e em fuga, ela não apenas mata o irmão, Absirto, mas também o pai, o rei Eetes. Pior do que isso, quando Jasão a troca por Glauce, Medeia mata os próprios filhos, como forma de tentar ferir Jasão. Essas tintas carregadas e que bordejam um ideal metafórico de empoderamento feminino pautado pela vingança, se somam a uma análise um pouco mais aprofundada da crise imigratória, da xenofobia e de uma série de outros preconceitos que recaem sobre a ré. Nunca fica exatamente claro se Laurence repete Medeia por gosto. Talvez ela possua algum desequilíbrio psicológico. Ou tenha sofrido algum tipo de feitiçaria. Ela admite o crime, o que é mais curioso. Sempre com seu olhar oblíquo e uma formalidade tétrica.

Tudo é observado da plateia por aquela que, supostamente, é a protagonista da obra de Diop: Rama (Kayije Kagame), uma professora universitária e escritora que acompanha a escalada dos fatos no tribunal, como forma de reunir matéria-prima para, justamente, a recriação da história de Medeia. Encontrando pontos de ligação com a obra de Marguerite Duras, Rama, que também está grávida, funciona como uma espécie de observador participante: um espelho para suas próprias angústias, sendo ela uma jovem negra intelectual, hábil com as letras e pela qual se espera um certo comportamento padrão, que nunca pode ser muito desviante daquilo que prevê um certo código quando o assunto são os estrangeiros (especialmente os de nações mais pobres). Há outras tensões e ressentimentos que surgem espalhados em instantes pequenos mas cheios de significados, especialmente os que envolvem as memórias de Rama com a sua mãe e seus poucos encontros atuais com a genitora, povoados por silêncios e um distanciamento do tamanho de um abismo. 

 

 

Reforçando ideias de sororidade, discriminação, conceitos de maternidade, vigilância, ancestralidade e identidade, essa pode ser uma experiência não muito fácil para alguns paladares. Mas ele deixa uma pulguinha atrás da orelha. Conduzido com elegância, em longos planos sequência e com diálogos complexos, mas pungentes, o projeto é resultado de uma refinada pesquisa de Diop, que acompanhou de perto o julgamento de Fabienne Kabou, em 2013 - do crime em que a obra é baseada. Não há uma lógica central naquilo que se vê. Nem um senso de punitivismo meio óbvio, que talvez fossem aguardado com inevitável certeza no cinema hollywoodiano - e que talvez fizesse a alegria de certa parcela do público. Aqui o que se tem é uma narrativa sedutora, que diz muito mais naquilo que não diz. Que não verbaliza. Que a sociedade moderna se preocupe com as crianças e com as violências sofridas por elas é mais do que justo. Mas quem cuida dos adultos apagados ainda em vida? Fica a questão.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Pitaquinho Musical - Kali Uchis - Sincerely,

Sinceramente, Kali Uchis, te amamos. Acho que não há nada mais pra falar quando uma artista produz tanto e lança uma coleção de discos tão sequencialmente majestosos. Quando surgiu pro mundo em 2018, com Isolation, a artista foi elogiada pela crítica, abraçada pelo público e, de lá para cá, a coisa só melhorou. Lançado um ano e meio depois do ótimo Orquídeas - nosso 12º colocado na relação de grandes discos de 2024 -, Sincerely, se apresenta como uma experiência evocativa, entre o cósmico, o onírico e o primaveril, numa mistura cheia de personalidade em que o R&B nunca parece óbvio, o soul é permanentemente sofisticado, o pop oitentista é refrescante e as tintas latinas se espalham pelas franjas com economia. Tudo executado com uma produção soberba, limpa, que se aproveita do vocal celestial de Uchis, para levar suas canções a um patamar mais alto, como se cantadas de cima, gerando uma sensação de conforto poucas vezes experimentada.

 


Uchis foi mãe recentemente. E perdeu a sua própria mãe no começo desse ano, pouco depois da divulgação do novo trabalho - num desses paradoxos que parecem ideias para a consolidação da arte. Nesse sentido, os temas de memória, dores, amores e incertezas existenciais se convertem na matéria-prima perfeita para um álbum que soa meditativo, e que vai crescendo a cada nova audição. Com uma série de músicas candidatas e se tornarem hits imediatos - casos da belíssima Heaven is Home..., da sinuosa Territorial, da vintage All I Can Say ou da maternal ILYSMIH, a compositora torna o registro uma jornada de cura pessoal, mas também o caminho para que a paz possa ser encontrada. Há felicidade ali adiante, afinal. A Pitchfork definiu o álbum como uma "fantasmagoria de prazer". Talvez esse seja um bom resumo. Uma coisa meio espectral. E profundamente saborosa, quente e confiante.

Nota: 9,0 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Tesouros Cinéfilos - Caché

De: Michael Haneke. Com Juliette Binoche, Daniel Auteuil e Maurice Bénichou. Suspense / Drama, Áustria / Alemanha / EUA / França / Itália, 2005, 117 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor austríaco Michael Haneke sabe: seu cinema não costuma fazer concessões na hora de examinar o ser humano naquilo que ele tem de pior. Violência, traumas, preconceitos, culpa, individualismo e tudo aquilo que parece ser intrínseco a esse mal-estar dos tempos modernos - urgentes e apressados, mas ao mesmo tempo pessimistas e niilistas -, dialoga com suas obras. Seja a xenofobia ou racismo que emergem das entranhas da sociedade de forma nem tão sutil, como em Código Desconhecido (2000); o extremismo de direita e o fanatismo religioso que avançam para além da bolha, no caso de A Fita Branca (2009); ou o voyeurismo repulsivo, a curiosidade quase bestial pelo grotesco, como em Violência Gratuita (2007), o caso é que seus temas nunca parecem surgir como o caminho para uma solução fácil. Em tese é como se a luz fosse jogada numa parte. Cabendo ao espectador o trabalho de iluminar o todo.

No ótimo Caché, que completa vinte anos de lançamento nesse segundo semestre e está disponível no catálogo da Reserva Imovision, essa retórica do medo constante de algo que não se sabe bem o quê, meio que bate literalmente na porta de uma daquelas famílias de bem de classe média. A coisa vai mais ou menos bem para o casal de intelectuais Georges Laurent (Daniel Auteuil) e Anne Laurent (Juliette Binoche), ao menos até o dia em que eles recebem um pacote inusitado em sua varanda. Dentro do envelope uma fita cassete com um longo filme de cerca de duas horas em que a única coisa que se vê é a fachada da casa dos dois. Não há informações adicionais que não sejam apenas o cotidiano acontecendo: em dado instante Georges sai de casa para o trabalho, pastinha na mão, atravessa a rua e passa meio perto do que seria o ponto da filmagem. Em outro, Anne retorna pra dentro de casa e é mais ou menos isso. 

 


 

Em um primeiro momento o casal até tenta fazer de conta que isso não é lá grande coisa. Uma brincadeira de mal gosto de um dos amigos do filho adolescente? Algum dos fãs de Georges, que é um escritor e jornalista, que apresenta um programa de TV meio presunçoso sobre literatura - local em que um grupo de sujeitos brancos e bem nascidos divaga sobre questões sociais, políticas, culturais e religiosas a partir de certas obras literárias? Outra pessoa tentando dar uma de engraçadinha? Não se sabe. Só que a coisa começa a escalar (e piorar) quando outros vídeos começam a chegar à residência do casal, com a imagem da fachada em outros momentos do dia. De madrugada ou à noite. Alguns deles acompanhados de desenhos meio macabros, que parecem feitos por alguma criança, ainda que soem extremamente violentos. O que está por trás disso?

Bom, aqueles que já têm o letramento do diretor podem supor que, ali adiante, seus temas emergirão aqui e ali, em sutilezas, reforçando contrastes sociais, preconceitos históricos, crises severas de consciência e certo progressismo de apartamento, que nunca sai para além dos limites habitacionais. Quando uma fita cassete chega com imagens da casa em que Georges cresceu - sua mãe ainda viva, padece de uma grave doença -, e a notícia sobre esse tipo de vigilância silenciosa que os Laurent sofrem chega á mesa de jantar com amigos, algumas verdades e traumas do passado não demorarão para vir à tona. Ainda mais com a entrada em cena de Majid (Maurice Bénichou), um filho de argelinos que teria um contato bastante estreito com a família do apresentador em sua infância, no final dos anos 40 - seus pais eram agricultores que trabalhavam para os pais de Georges, tendo sido levados pelo governo à época da Guerra da Argélia. "O que faríamos para não perder o que é nosso?", questiona alguém em certa altura. Esse sentimento de posse - de espaços geográficos, de cidades, de ruas, de objetos e até de pessoas é aquilo que parece fazer com que certa parcela da população bastante consciente de seus privilégios, apenas abomine a ideia de coexistir com outras raças, etnias e credos em um mesmo espaço. Bom, não é preciso dizer o quão atual segue essa obra.

 

Cinema - Homem Com H

De: Esmir Filho. Com Jesuíta Barbosa, Caroline Abras, Hermila Guedes, Bruno Montaleone e Rômulo Braga. Drama / Biografia, Brasil, 2025, 129 minutos.

Enquanto nos encaminhávamos para o final da sessão de Homem com H, que estreou ontem na Netflix, virei pra minha companheira e disse: "que bonita uma homenagem dessas ainda em vida". Sim, porque a meu ver, o filme dirigido por Esmir Filho - do premiadíssimo Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009) -, é também isso: uma justa maneira de enaltecer um dos maiores artistas ainda vivos e em atuação, que temos a alegria de acompanhar. Falar que Ney Matogrosso era um iconoclasta, um sujeito que quebrava (e segue quebrando) paradigmas, que era e sempre foi um artista com "A" maiúsculo, é meio que chover no molhado. Mas o caso é que, nos tempos que vivemos, esse óbvio, por vezes precisa ser dito. Precisa ser lembrado. Porque o Ney é esse sujeito complexo, furioso, de sexualidade diversa, de corpo sinuoso e ondulante, que, de quebra, ainda tem uma voz única, que segue nos encantando. E, de fato, assistir a tudo isso na telinha é um deleite.

Sim, os cracudos de cinebiografias certamente lamentarão a ausência de polêmicas, de outras histórias importantes ou curiosas ou de outros episódios que marcam a sua trajetória - e que integram o livro de Julio Maria no qual o projeto se inspira. Mas como fazer isso em uma obra de duas horas e pouco? Méritos pro Esmir que, não apenas tentou, mas conseguiu dar um panorama diversificado das origens do menino humilde nascido no Mato Grosso do Sul, que precisava lidar com seu pai militar - que se exasperava com seus modos afeminados -, passando pelas descobertas sexuais e artísticas em meio a um País que mergulharia na Ditadura Militar, até chegar a consolidação daquela figura excêntrica, visceral, escandalosa e cheia de carisma que vemos nos palcos, sempre com adereços vibrantes, figurinos ambíguos e uma presença única. Daquelas que hipnotiza. Assim como ele mesmo, quando menino, seria hipnotizado pela vedete Elvira Pagã (em participação especialíssima da cantora Céu), ainda na infância.

 


Aliás, essa mescla meio bucólica, meio roqueira e polvilhada por tintas neon e de lantejoulas em palcos grandes ou pequenos, que marcariam as apresentações de Ney Matogrosso Brasil afora - fosse nos Secos e Molhados ou mais tarde, em carreira solo -, surge a todo instante, em memórias juvenis ou mesmo em improvisos em estúdio, que o levariam a interpretar com energia única as canções escolhidas para seus discos. Por sinal, essa capacidade meio que de domar a natureza, carregá-la consigo como se ele mesmo fosse também um bicho saído do meio do mato, de uma selva vinda sei lá de onde, surge nas entrelinhas em alegorias muito bem construídas, como no instante em que o artista simplesmente acorda com uma cobra serpenteando em seu peito nu para, sem nenhuma surpresa, recolhê-la e levá-la para uma espécie de criadouro que, aparentemente, ele mantinha em casa (e admito não ter pesquisado se isso era real ou não e, em muitos casos, prefiro a mística do que a verdade).

E, por fim, não dá pra falar de um filme desses sem citar a interpretação magnética de Jesuíta Barbosa, que preenche cada frame da tela com sua presença envolvente, eloquente, única, o que contribuí para que a homenagem nunca soe excessiva, esquemática ou caricatural - por mais excessivos que os trejeitos e os olhares intensos e as curvas corporais improváveis sugiram o contrário. Em certa altura, quando gravava um vídeo para o clássico Sangue Latino, que seria exibido na TV, um dos diretores de filmagem lhe alerta de que evite olhar para a câmera. Mas Ney não se segura. Olha pra nós de forma quase invasiva, a nos desnudar - esse nosso voyeurismo do todo, do corpo, do sangue, das lágrimas e dos fluídos que vertem por todos os lados quando nos deparamos com uma experiência fílmica como essa. Ney Matogrosso disse certa vez: "Sou ousado, sim, sou atrevido, sim, porque eu preciso ser, porque o Brasil está mais careta do que era". Num País em que a extrema direita, o evangelistão, o preconceito e o reacionarismo seguem ditando as regras e passando a boiada como se nada fosse, uma obra como essa não é apenas um regozijo de transgressão. Ela é necessária. O Brasil é pouco para o Ney e tudo o que ele representa. E que bom que seja assim.

Nota: 9,0 

 

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Novidades em Streaming - O Grande Golpe do Leste (Zwei zu Eins)

De: Natja Brunckhorst. Com Sandra Hüller, Max Riemelt, Ronald Zehrfeld e Peter Kurth. Comédia / Drama, Alemanha, 2024, 115 minutos.

Uma comédia despretensiosa que nos faz pensar sobre uma situação bastante inusitada: o que foi feito do dinheiro da Alemanha Oriental quando da reunificação do País, em 1990? Em geral, mesmo em filmes que remontam o período - como no caso do ótimo Adeus, Lênin (2003) -, esse tipo de problema secundário passa batido. Mas não no caso de O Grande Golpe do Leste (Zwei zu Eins), carismática obra da diretora Natja Brunckhorst, que propõe uma viagem no tempo para nos apresentar a uma numerosa família de comunistas meio abatidos com a queda do Muro de Berlim, que encontra uma motivação a mais para encarar essa nova realidade do universo capitalista. No caso, arrebanhar secretamente dinheiro "velho" de uma espécie de bunker mantido pelo governo, tentando trocá-lo rapidamente no mercado paralelo, antes que o marco alemão se torne a moeda oficial.

Provocativa e divertida, a obra acompanha o trio central Maren (a sempre ótima Sandra Hüller), Robert (Max Riemelt) e Volker (Ronald Zehrfeld) que, para além do sonho socialista compartilhado, também operam como um triângulo amoroso improvisado, nos escombros de uma Alemanha comunista de prédios meio decadentes, estruturas públicas sucateadas e uma espécie de utopia eterna que, frente à selvageria capitalista, nunca se concretiza. Em linhas gerais há um clima romântico no todo, que se estabelece já no começo da narrativa, quando a família reunida no quintal, precisa proteger o jovem Jannik (Anselm Hadderer) que pratica a mais tradicional subversão adolescente, frente aos sistemas opressores - no caso, a pichação de muros. Em meio a reminiscências poéticas e o apelo aleatório à cultura - com música e dança -, o grupo rumina sobre a existência de um local em que as notas de dinheiro têm sido enviadas para, mais adiante, serem descartadas e incineradas.

 


 

Só que ainda faltam seis dias para a conclusão dessa etapa de câmbio. E, até lá, muita coisa ainda pode ser feita. E muita grana pode ser levantada. Após entrar em cena o tio Markovski (Peter Kurth), Oscar, Robert e Volker tentam adentrar um antigo poço localizado em uma mina, que os levará a um grande depósito. No local, milhões de notas inúteis aguardam seu destino. Escondido, o trio enche sacolas e mais sacolas com a bufunfa para, de volta ao mundo real, efetuar uma série de operações por baixo dos panos - o que pode fazer com que seu capital amplie. Com o apoio inesperado de um grupo ambicioso de empresários, o grupo adquire um sem fim de eletrodomésticos, eletrônicos e outras engenhocas por preços maiores, que permitirão um ganho mútuo, com os vendedores lateralizados ampliando seu volume de recursos e os alemães orientais passando a ter posse de uma série de objetos de valor que também poderão servir de moeda de troca mais adiante.

Bordejando o sonho capitalista e a sua natureza destrutiva como um componente onipresente, a obra conduz aquele grupo de socialistas à inesperados sentimentos de ambição, desconfiança, avareza e outros. A impressão que temos, lá pelas tantas é a de que ninguém acredita mais em ninguém e não é preciso ser nenhum adivinho para saber que a coisa pode desandar rapidinho - ainda mais com tudo tendo de ser feito às escondidas, para que os homens da lei não sejam atraídos. Há ali ainda uma realidade paralela em que diplomatas, lideranças e outros poderosos podem adiar o tempo de câmbio para mais alguns meses - com outras maracutaias surgindo no caminho. Com tudo sendo conduzindo com uma leveza quase inesperada, o que é reforçado pelas cores vibrantes da fotografia, o figurino divertido e a trilha sonora de composições folk simpáticas. Em linhas gerais esse é um projeto cheio de carisma mas que, justamente por isso, pode irritar quem espera tensões ou dissabores mais fortes. Ainda assim, pelo inusitado da coisa, vale conferir.

Nota: 7,0

 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Meu Irmão e Eu (Abang Adik)

De: Jin Ong. Com Jack Tan, Wu Kang-ren, Tan Kim-wang, April Chan e Serene Lim. Drama / Policial, Malásia / Taiwan, 2023, 115 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

"Sempre me pergunto por quê nasci aqui. Não tenho casa. Não tenho País. Só posso ver tudo de longe. [...] Minha vida é tomar cuidado, ficar atento, me esconder e fugir." Quem vê um grupo de imigrantes sendo acossado pela polícia ainda no comecinho de Meu Irmão e Eu (Abang Adik) até poderia achar que esse é um filme sobre os Estados Unidos da Era Trump. Mas não, é apenas a Malásia - que, aliás, parece ter uma política meio semelhante à da Terra do Tio Sam. Especialmente no que diz respeito à entrada de estrangeiros vindos de países como Indonésia, Filipinas, Camboja, Vietnã e outros. Em busca de trabalho. Fugindo. Ou mesmo buscando condições melhores de vida. Então quando a gente "ouve" o aflitivo apelo de Abang (Wu Kang-ren) quase no final da obra de Jin Ong - a enviada da Malásia pro Oscar desse ano e que está disponível na Netflix -, é quase impossível não se comover. 

Naquela altura Abang está preso. Em um País em que tanto ele quanto o irmão Adik (Jack Tan) estão em constante fuga. Órfãos de ascendência chinesa e sem acesso à documentos, eles são como se fossem não pessoas. Trafegando pelas sombras, no submundo da capital Kuala Lumpur. Figuras desumanizadas, sempre à margem, evitando o Estado e seus representantes a todo o custo. Pra tentar sobreviver, Adik, que é muito mais revoltado e intempestivo, se envolve com um chefão do crime que contrabandeia documentos falsos para trabalhadores imigrantes ilegais, enquanto encontra algum fiapo de amor em um relacionamento com uma prostituta. Por outro lado, Abang é o sujeito afável e de olhar resignado, que se esforça para sobreviver em meio a bicos feitos no Mercado de Pudu, enquanto alimenta uma paixão calorosa pela vizinha Su (April Chan), uma refugiada de Mianmar que também parece estar em apuros.

 


A rotina vista na primeira metade desse projeto de estreia de Jin Ong é meio acelerada, pulsante - há um ar documental que sugere uma urgência permanente, que dialoga com a hostilidade onipresente. Sobreviver é preciso e, em meio a mercados nem tão limpos e pescoços de galinha sendo decepados sem muita cerimônia, Abang e Adik investem tempo naquilo que acreditam. Por exemplo, quando Adik se depara com uma batida policial no submundo dos imigrantes, ele presencia um suicídio. E não há muito tempo para elaborar sobre o significado daquilo. O dia seguinte bate à porta e sem a papelada em dia não há como ter um emprego, direitos a benefícios sociais básicos ou mesmo a financiamentos de qualquer tipo. Para Abang, o contato com a assistente social Jia En (Serene Lin) pode ser a luz no fim do túnel: funcionária de uma ONG a jovem garante estar progredindo no processo dos irmãos, que só precisariam encontrar um familiar para desenrolar a burocracia. 

Mas claro que nem tudo será simples, com a situação piorando no momento em que uma tragédia ocorre na vida da dupla de protagonistas, o que os obrigará a empreender uma fuga. Que os levará para bem longe da capital da Malásia - momento em que o filme dá uma espécie de volta de 180 graus, passando a ser uma experiência levemente mais contemplativa e eventualmente bucólica. No entorno de Abang e Sdik, outras figuras marginalizadas também trafegam, como a carismática Money (Tan Kin-wang), uma transexual veterana que, desde jovem os ajuda (aliás, é ela quem os criou, oficialmente). Desesperançoso e melancólico, esse é o tipo de produção que vem em boa hora, já que lança luz em um tema importantíssimo em tempos de avanço da extrema direita, de crises políticas, de xenofobia e de completa ausência de senso de coletividade. Há todo um pano de fundo sobre sacrifício e lealdade que comove o espectador. Ainda que tudo soe apenas triste. Detalhe: Abang é surdo-mudo. O que torna seu clamor - de voz que, alegoricamente, teima em não ser ouvida -, ainda mais forte.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Pecadores (Sinners)

De: Ryan Coogler. Com Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Wunmi Mosaku e Delroy Lindo. Drama / Terror / Ação, EUA, 2025, 138 minutos.

"Se você seguir dançando com o diabo, um dia ele vai segui-lo até a sua casa". 

A maior alegoria do cinema recente sobre como se perpetua o racismo através dos tempos. Essa talvez seja uma das formas de encarar a experiência com o ótimo Pecadores (Sinners), que acaba de estrear para aluguel em diversas plataformas de streaming. Em linhas gerais essa é uma obra que trafega por vários gêneros - indo do drama à comédia, passando pelo terror e pela ação -, sem nunca perder de vista a discussão sobre como os tentáculos podres do preconceito se espalham, mesmo em tempos em que a sociedade, supostamente, avança. Em certa altura, ainda no começo do filme dirigido por Ryan Coogler - de Pantera Negra (2018) -, um redneck que responde por Hogwood (David Maldonado) garante aos irmãos gêmeos Smoke e Stack (Michael B. Jordan em papel duplo) que a "klan não existe mais". Uma forma de tranquilizar a dupla que está retornando ao seu Mississipi natal, interessada em instalar um bar de música, dança e bebidas para a comunidade afro do local (as famosas jukes, como era conhecidas).

O ano é 1932 e nunca fica exatamente claro o tipo de "negócio" que era tocado por Smoke e Stack em Chicago, mas o caso é que eles, que são dois veteranos da Primeira Guerra, voltaram de lá com uma grana boa depois de algumas temporadas trabalhando para a máfia. Claro que esse recomeço em um contexto de segregação racial e de preconceitos de todo o tipo não será fácil. Mais do que isso, muitas vezes a resistência parte dos próprios familiares, como no caso do primo Sammie (Miles Caton), um talentoso tocador de blues que precisa fugir de casa já que seu pai, o pastor Jebediah (Saul Williams) acredita que esse negócio de música é coisa do demo (aliás, qualquer semelhança com a forma que a Igreja Evangélica trata qualquer expressão cultural não será mera coincidência). Já os brancos? Bom, esses gostam muito do blues. "Só não gostam de quem o toca", comenta Smoke em tom jocoso. 

 


Sammie se junta a Smoke e a Stack para formar o time dos sonhos do boteco - o que envolve o pianista veterano Delta Slim (Delroy Lindo); a esposa de Smoke, Annie (Wunmi Mosaku) que, para além das habilidades em práticas de magia e rituais de povos originários e indígenas, é uma cozinheira de mão cheia; o casal chinês Grace (Li Jun Li) e Bo Chow (Yao) que fornecerá a matéria-prima e o trabalhador do campo Cornbread (Omar Miller), que é recrutado como segurança. Há ainda nesse conjunto a candidata a par romântico de Sammie, Pearline (Jayme Lawson), que também tem talento para o canto, e uma antiga namorada de Stack, a branquela Mary (Hailee Steifled) que, ao cabo, será o elo que aproximará supremacistas brancos e grupos de ódio que ainda se espalham pela região à esse espaço idílico, de música e de cultura transcendente, que parece ecoar por espaços e tempos, unindo passado, presente e futuro (aliás, uma das sequências que, seguramente, é uma das melhores do cinema nesse ano, não apenas por sua simbologia, mas pela riqueza de detalhes).

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Em linhas gerais esse é um filme que deixa muito claras as suas ideias, mas sem que necessariamente elas precisem ser esfregadas na cara do espectador. Claro que a conversão dos integrantes da KKK em vampiros que sugam o sangue, a alma e a existência de quem quer que seja, em nome de uma suposta domesticação que conduzirá todos ali e uma existência em família, em que todos são "iguais", independente de cor de pele, se torna a alegoria mais do que perfeita em tempos de apropriação cultural, de questionamento de políticas de cotas como ferramentas de inclusão, ou de práticas como o racismo reverso (ou recreativo), que desconsideram as desigualdades históricas. Musical, magnética, imprevisível, divertida, tensa, violenta e instigante essa é uma daquelas obras cheias de possibilidades de interpretação e que ainda faz um aceno para a literatura fantástica em seu terço final. Aqui não foi só hype. Trata-se de um filmaço!

Nota: 9,0 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Uma Viagem ao Desconhecido (The Unknown Country)

De: Morrisa Maltz. Com Lily Gladstone, Raymond Lee e Lainey Bearkiller Shangreaux. Drama, EUA, 2023, 85 minutos.

Mais do que nunca um filme que faz um apelo ao íntimo. À força insuperável dos pequenos vínculos. Das grandes histórias que movem pessoas simples. Do acaso que se converte em mágico. Da potência existente na vida em comunidade. Sim, o mundo caminha a passos largos para o colapso ambiental, para o avanço de uma extrema direita cada vez mais radical, para o o uso inadequado da tecnologia, para as guerras sem fim e para crises políticas e sociais decorrentes do capitalismo tardio. E onde a gente encontra conforto? Onde a gente se aconchega pra tentar fugir disso tudo? Bom, talvez o caminho seja aqueles que amamos. Que nos permitem abrir espaço para o extraordinário no cotidiano. Na rotina. Na repetição. E que um filme tão pequeno como esse Uma Viagem ao Desconhecido (The Unknown Country) seja capaz de evocar todos esses sentimentos, é um feito.

Em linhas gerais esse é um road movie existencialista, que mescla vida real com narrativa roteirizada, não para um exame profundo e generalista da vida no meio oeste americano, mas sim para um olhar mais próximo de quem, de fato, está ali no dia a dia. Com mais atenção. Ou afeto. Quando sai de Minnesota em uma viagem solitária e introspectiva em seu veículo, ainda não temos a noção exata de qual é o objetivo de Tana (Lily Gladstone, indicada do Oscar pelo ótimo Assassinos da Lua das Flores, 2023). Em sua companhia, o coração dos Estados Unidos nos é apresentado como um ambiente frio, rochoso, inóspito, de vida meio impossível. Luto? Perda? Memória? A intenção de Tana - que, assim como muitos outros da região é uma nativa americana -, é a de chegar ao Texas, para refazer o trajeto que sua avó falecida teria feito no passado. No caminho? Pessoas. Vivências.


 

 

Em uma das primeiras paradas, Tana é recebida em uma daquelas lanchonetes de beira de estrada imersas no nada, que costumamos ver em filmes que se passam em espaços geográficos do tipo. No local, a narração em off nos conta um pouco mais sobre a proprietária, uma senhora solitária que tem como projeto de vida a adoção de gatos. São dezenove no total, em sua casa. A senhora dos gatos. Um estereótipo mais do que óbvio. E totalmente afetuoso. Em outra parada, o gerente de um outro estabelecimento fala como ele tinha deixado de acreditar no amor, até... acreditar de novo. E se apaixonar. E casar. Aliás, em algum ponto da Dakota do Sul, Tana faz uma parada justamente para prestigiar um casamento - de um primo, interpretado por Lainey Bearkiller Shangreaux, que também produz a obra. Com toda a pompa e tradição dos nativos americanos. 

Parte da crítica tem comparado o espírito contemplativo da obra da diretora estreante Morrisa Maltz, com o estilo de veteranos como Terrence Mallick ou com obras de calibragem mais reservada, como Nomadland (2020), de Chloe Zhao. E acho que é mais ou menos por aí. Para o espectador acostumado a grandes acontecimentos, talvez uma produção do tipo possa ser meio frustrante. Não há alguma redenção ecumênica. Uma culpa a ser expiada. Ou a manutenção de grandes esperanças em um contexto de desespero. Há sim esse apelo de emoção discreta - de olhares longos (reforçados pelo rosto expressivo de Gladstone) e de silêncios que dizem muito. De solidão que pode ser preenchida onde menos se espera, como revela o terço final. Talvez caiba a nós abrir o coração para que a primavera possa enfim, entrar. Para que o sol apareça e suplante o frio. O nosso esforço talvez faça isso. Não se trata de ignorar o passado ou simplesmente temer o futuro. O que vale é viver. O agora.  

Nota: 8,0

 

terça-feira, 3 de junho de 2025

Pitaquinho Musical - Bon Iver (SABLE, fABLE)

Desde que entregou ao mundo o elogiado Bon Iver, Bon Iver (2011), Justin Vernon estabeleceu a sua sonoridade como uma espécie de sinônimo para melodias invernais (mas calorosas), de tintas introspectivas e delicadas, mas que pareciam crescer mesmo em um cenário minimalista. Elogiado pela crítica, o artista se viu estimulado a expandir sua música para além dos limites do folk econômico, que parecia saído de uma temporada de solidão no meio da floresta. O que o levaria a acrescentar, em discos como 22, A Million (2016), elementos e colagens eletrônicas, cordas mais esvoaçantes e um clima mais experimental como um todo - em uma experiência menos óbvia e um tanto existencialista. O que não mudou na trajetória? O desejo de construir canções sofisticadas, de arranjos sublimes e letras repletas de divagações fantasmagóricas, que nem sempre são facilmente compreensíveis.

 


E é aí que entra SABLE, fABLE, que é apenas o quinto disco de inéditas do Bon Iver em quase vinte anos de carreira - e que preserva a melancolia de soft rock setentista, que se mistura com o soul contemporâneo e o R&B refinado. E que conduz o ouvinte da melancolia à euforia, por vezes na mesma música. Talvez um pouco mais expansivo do que em outros trabalhos, o artista conecta pontos geográficos, estradas e espaços para uma série de reflexões sobre a necessidade de aceitar mudanças (AWARDS SEASON), a respeito da alegria de estar vivo (Everything Is Peaceful of Love) ou mesmo sobre o simples fato de chegar em casa e ter alguém pra amar (Walk Home). Há um aconchego no todo, mesmo quando há alguma estranheza - como no caso da bela If Only I Could Wait, que tem participação de Danielle Haim, e que parece saída de algum disco de new age dos anos 90. O peso emocional e a vulnerabilidade seguem como marcas. Mas há espaço para que os raios de sol apareçam.

Nota: 8,5 

Novidades em Streaming - Nonnas

De: Stephen Chbosky. Com Vince Vaughn, Susan Sarandon, Lorraine Bracco, Talia Shire, Brenda Vaccaro e Linda Cardellini. Comédia, EUA, 2024, 112 minutos.

Vamos combinar que nos dias de hoje, e nos consultórios de nutricionistas mundo afora, se convencionou chamar de "comida conforto" aquele alimento que desperta uma sensação de acolhimento, de memória afetiva, algo que pode estar ligado ainda à infância ou a momentos especiais em família. Bom, e se a comida que conforta é conectada ao sentimento de nostalgia, o mesmo pode-se dizer de certos filmes - e é exatamente esse o caso de Nonnas, produção que acaba de estrear na Netflix. Nos fóruns sobre a obra dirigida por Stephen Chbosky - do bonito Extraordinário (2017) e do horroroso Querido Evan Hansen (2021) - não será preciso rolar muito a timeline para encontrarmos a definição ideal: é o filme Sessão da Tarde. O que para nós, brasileiros, é sinônimo de produção para ver bem acompanhado (seja de alguém que você ama ou mesmo de um prato saboroso), com todos saindo emocionados nos créditos finais.

E nesse caso há um plus "a mais" já que a trama é inspirada em eventos reais - e conta a história de origem do restaurante Enoteca Maria, tocado por Joe Scaravella desde 2007 no distrito de Staten Island, em Nova York. E, como em qualquer produção que tem empreendimentos do tipo como pano de fundo, aqui não serão poucas as sequências com closes de iguarias irresistíveis, doces e salgadas, pra deixar todo mundo com água na boca (sendo, aliás, uma forma perfeita de nos fazer conectar com a história, afinal de contas, quem não gosta de um bem elaborado prato de comida, ainda mais da culinária italiana?). Na trama, Joe ganha o rosto de Vince Vaughn que, a despeito do carisma meio negativo, se empenha em dar ao protagonista as feições de um sujeito enlutado, que parece precisar de alguma motivação na vida para continuar, para sobreviver.

 


O homem, de origem italiana, acaba de perder a mãe - a Maria (Kate Eastman), que dará nome ao restaurante. E é com ela que ele guarda as melhores memórias da juventude, à beira do fogão, quando ela e sua avó lhe ofereciam o mais perfeito molho ao sugo. Uma receita guardada a sete chaves, que ele não faz ideia de como replicar. Só que os melhores amigos Bruno (Joe Manganiello) e Stella (Andrea de Matteo) estão preocupados com Joe. Querem que ele faça alguma coisa. Tenha algum propósito. A solução? Usar parte do dinheiro do seguro de vida da mãe para abrir um restaurante. Oferecendo comida afetiva, com sabor de casa. De preferência feitas pelas nonnas, pelas avós. Sim, parece uma premissa meio condescendente e que vai ser matéria-prima pra um roteiro cheio de conveniências? Parece. Só que ainda assim é absolutamente saboroso. 

Especialmente quando entram em cena as avós - a gilf sexy Gia (Susan Sarandon), que também é cabeleireira; a solitária misantropa Roberta (Lorraine Bracco), uma siciliana que está em um lar de idosos e é melhor amiga da mãe de Joe; a viúva solitária Antonella (Brenda Vaccaro), uma bolonhesa que rivalizará com Roberta, garantindo alguns dos melhores momentos e a ex-freira certinha Teresa (Talia Shire), que ajuda a equilibrar os pontos. Além delas, também surge em cena Olivia (a linda, com o perdão do trocadilho, Linda Cardelini), que é uma antiga paixão de Ensino Médio e que, sabe-se lá por qual motivo se reaproxima de Joe para ajudá-lo. No mais, vocês já sabem: complicações pra consolidar o empreendimento, brigas de egos entre as senhoras, piadocas aqui ali, um tantinho de romance e aquele final que dará o quentinho no coração que, de vez em quando, é só o que a gente quer. Vá sem medo de ser feliz. E de preferência alimentado, porque vai dar fome!

Nota: 7,0 

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Novidades em Streaming - A Avaliação (The Assessment)

De: Fleur Fortuné. Com Elizabeth Olsen, Himesh Patel, Alicia Vikander e Minnie Driver. Ficção Científica / Drama, Reino Unido / Alemanha, 2024, 114 minutos.

Em um futuro próximo, devido ao colapso ambiental e à escassez de recursos, uma nova política governamental impõe critérios rigorosos àqueles que desejam ser pais. Ao cabo, essa é uma decisão que não cabe somente ao casal, afinal, os interessados em gerar uma criança precisam passar por uma espécie de prova - uma avaliação - de uma semana, o que deverá trazer a resposta definitiva sobre a capacidade ou não em desempenhar o papel de serem responsáveis por um filho. Essa é a curiosa premissa e o ponto de partida do provocativo A Avaliação (The Assessment), filme que trata de temas, como, mudanças climáticas, avanços tecnológicos, inteligência artificial, parentalidade em um contexto distópico e, em alguma medida, elitismo cultural, e que marca a estreia da diretora francesa Fleur Fortuné (conhecida no meio musical pela direção de videoclipes, como os de Midnight City, do M83, e Gunshot da Lykke Li).

Aliás, o clima meio onírico, de sonho futurista e decadente que, em alguns casos, aparece nos clipes, a realizadora carrega para a produção, que é inundada por um sentimento geral de melancolia e de desalento - que é reforçado pelo cenário arenoso, quase sempre nublado ou acinzentado e com uma ausência de vida gritante (fora o mar azul escuro e a praia pedregosa, não há verde, não há mato, não há rios, pássaros ou mesmo insetos). À exceção está na estufa mantida por Mia (Elizabeth Olsen), uma botânica que cultiva uma série de vegetais orgânicos em um local climaticamente ajustado, que fica junto à isolada e moderníssima casa que ela divide com o marido Aaryan (Hamish Patel), uma espécie de engenheiro de tecnologia empenhado em recriar animais de estimação, em um contexto em que os pets foram sacrificados em nome da preservação de recursos para os seres humanos.

 


Ainda assim, por mais que Mia e Aaryan sejam o casal bem sucedido, jovem, bonito e tesudo que teria tudo para ter um filho, as coisas não serão tão simples assim. Nesse novo mundo em que eles habitam, a indústria farmacêutica esticou ao máximo a expectativa de vida, com a presença de um novo e milagroso medicamento (conhecido apenas como sexocidina). No mesmo cenário, a geração de bebês não é permitida de modo natural, sendo obrigatório o uso de úteros artificiais - e é aí que entra em cena a avaliadora Virginia (Alicia Vikander), que chega à casa dos protagonistas, enviada pelo governo, com a missão de verificar seu potencial como pais. Enigmática e fria, Virginia se instalará no local por uma semana, mudando de comportamento a cada situação e levando até o limite a capacidade de tolerância da dupla, o que poderá ser decisivo no conjunto final.

Virginia de início parece apenas uma figura taciturna, que está ali para executar seu ofício. Mas quando ela passa a agir de forma infantilizada - supostamente como parte do exame -, as coisas desandam. As birras, intimidações e questionamentos que poderiam soar como o melhor anticoncepcional já produzido, são parte da adoção da persona de uma criança. Fazendo com que Mia e Aaryan se questionem não apenas acerca de sua capacidade para lidar com aquilo tudo, mas até mesmo sobre a realidade bizarra que eles enfrentarão naqueles dias - com explosões emocionais e tensões evidenciando inseguranças e conflitos internos não resolvidos (inclusive sobre traumas do passado, com os temas freudianos sempre circundando a borda). Por fim, vale dizer que essa é uma experiência intensa e estimulante, que se vale das grandes interpretações do trio central como forma de fortalecer as suas ideias. Ainda que essas ideias, como de praxe em projetos do tipo, sejam estoicas e de um pessimismo atroz.

Nota: 7,5