quarta-feira, 29 de maio de 2024

Pitaquinho Musical - Yaya Bey (Ten Fold)

Sedutor, sofisticado, aconchegante, hipnótico, vívido. Vamos combinar que não serão poucos os adjetivos na hora de caracterizar as qualidades de Ten Fold, o quinto registro de inéditas da cantora e compositora Yaya Bey. Assim como já ocorrera no anterior Remember Your North Star (2022), aqui a artista investe novamente na mistura contemporânea de R&B, pop, funk e soul, com algumas pitadinhas de trip hop - algo como um encontro entre FKA Twigs e Mary J. Blige. Como se o sussurro fosse um estado de espírito, Bey investe no minimalismo e na potência dos versos como o caminho para estabelecer suas vulnerabilidades, anseios, dores e incertezas - ainda mais após a perda do pai Ayub Bey, rapper que, sob o sugestivo pseudônimo Grand Daddy IU, fazia parte do coletivo dos anos 80 Juice Crew. "Foi uma forma de fugir da tristeza, se ocupar, trabalhar, escrever", revelou em entrevistas de divulgação.


A real é que Bey sempre foi uma consumidora de cultura negra - de livros de Toni Morrison, passando pelos programas de humor de Richard Pryor e pelos discos incendiários de Chaka Khan e Tina Turner. Para além da tentativa pessoal de superar o luto, a cantora utiliza a sua arte como veículo para discussões mais amplas sobre racismo, igualdade entre gêneros, problemas ambientais, falta de dinheiro e direitos das minorias. Só que os temas mais sérios ou pesados não significam melodias sisudas ou um estilo excessivamente hermético: há um paradoxo que torna tudo colorido, leve e dançante, o que faz com que questões sociais complexas emerjam em meio a uma sonoridade refrescante, revigorante. Não é preciso ser cabeçudo pra falar do que importa. Dá pra ser artístico e analítico, mantendo o brilho, a polidez e a suavidade - como comprovam canções de títulos divertidos, como Eric Adams in the Club, Slow Dancing in the Kitchen e Sir Princess Bad Bitch.

Nota: 8,5


Grandes Filmes Nacionais - Praça Paris

De: Lúcia Murat. Com Grace Passô, Joana de Verona, Alex Brasil e Babu Santana. Drama, Brasil / Argentina / Portugal, 2017, 111 minutos.

Poucas vezes a esquerda acadêmica - aquela que habita as bolhas universitárias e institucionais, mas que muitas vezes se mantêm distante dos problemas reais do Brasil e de seu povo -, foi tão bem retratada como no caso da psiquiatra Camila, a personagem da luso-brasileira Joana de Verona, no filme Praça Paris. Aliás, este muitas vezes costuma ser um problema gritante do campo progressista: enquanto se empenha longamente em debates intermináveis no Twitter sobre a necessidade de adoção ou não de pronomes neutros, esquece que a massa trabalhadora tem muitas outras preocupações em seu cotidiano. Violência, racismo, desemprego, salário insuficiente, medo ou mesmo uma incerteza generalizada sobre o futuro. Ao cabo, uma mulher de classe média, bem nascida, que teve todas as condições de estudar e alcançar uma carreira como pesquisadora, tem condições de contribuir ou mesmo interferir na vida de uma mulher pobre, negra, periférica e que ainda carrega consigo uma série de traumas do passado?

Ok, a gente sabe que empatia é importante, e que mais do que nunca um senso de alteridade será mais do que necessário nesses casos. Mas será suficiente? Existe algo que é o País real com todos os seus conflitos, barulhos, rotinas e caos do dia a dia que talvez os intelectuais, enfurnados em seus apartamentos sempre posicionados na parte mais alta dos prédios sofisticados, em coberturas elegantes, regadas a vinhos finos e alimentação balanceada, talvez não enxerguem. Não é que não haja boa vontade. Às vezes até há. Mas nem sempre isso basta. Antes das eleições de 2018 ficou famosa a frase do cantor Mano Brown, dos Racionais MCs, que lembrava sobre a necessidade imediata da esquerda de reconquistar a multidão, para que se evitasse cair no precipício. "Tem que entender o que o povo quer e se não sabe, volta pra base", vociferava o artista em um discurso no Rio de Janeiro que ficaria famoso e que, em alguma medida, antecipava o caminho da nação rumo à extrema direita, enquanto o outro lado se perdia em abstrações. "Ninguém solta a mão de ninguém" e "ele não" dizia a esquerda festiva. Enquanto Bolsonaro tratorava o País.


 

Em alguma medida e de forma quase premonitória esse é o tipo de narrativa que guia a trama da produção da sempre ótima Lúcia Murat, do excelente Quase Dois Irmãos (2004). Além de terapeuta, Camila é uma pós-graduanda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que está concluindo seus estudos sobre violência urbana no Estado. É nesse habitat seguro e distante da realidade, que a jovem começa a atender Glória (Grace Passô), que é ascensorista no campus e vive no Morro da Providência. Glória, mulher negra e periférica, tem uma vida diametralmente oposta à de Camila: no outro canto da cidade vive a rotina em meio às ruas apinhadas, os metrôs lotados e a busca por algum fiapo de afeto, qualquer que seja. Em seu cotidiano, também se ocupa de visitar o seu irmão Jonas (Alex Brasil), que está preso por conta de eventos passados que, aos poucos, serão esclarecidos. E como forma de adicionar ainda mais complexidade a tudo, Glória é frequentadora assídua de cultos evangélicos, onde é aconselhada pelo pastor vivido por Babu Santana. Nada mais Brasil do Brasil.

Ao cabo, esse é o tipo de filme que nos dá um balão justamente por quebrar as expectativas - especialmente no que diz respeito ás típicas narrativas de brancos salvadores, tão comuns no cinema hollywoodiano. Em certa altura, por exemplo, Glória acaba por ser agredida por um grupo de policiais, que acredita que ela possa estar funcionando como uma espécie de leva e traz de seu irmão que, mesmo preso, talvez esteja agindo nos bastidores para movimentar o tráfico. É época de UPP e as coisas mudaram no morro. A violência parte dos dois lados. Retaliações, agressões, ameaças. Camila acha que Glória deve denunciar essas ocorrências. Aliás, mais do que isso: crê na capacidade de a universidade ajudá-la de alguma maneira. Ledo engano. A faculdade, muitas vezes, parece pródiga em construir longos tratados teóricos sobre os problemas sociais, políticos, culturais e econômicos do Brasil. A portas fechadas, uma galera bem tratada a leite com pera, que perpetua seus privilégios se arroga ter a capacidade de tomar decisões a respeito do que ocorre nas favelas, nos rincões. Que Camila seja apenas uma portuguesa ressentida radicada no Brasil, talvez não seja por acaso. É parte dessa potente alegoria sobre um Brasil de contrastes em que mesmo aqueles que estão do mesmo lado, ou no mesmo campo, permanecem confortavelmente distantes, se alimentando da mesma estrutura racista que, supostamente, combatem. Filmaço que tá disponível na Netflix.


terça-feira, 28 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Blackbird Blackbird Blackberry

De: Elene Naveriani. Com Eka Chavleishvili, Temiko Chichinadze e Lia Abuladze. Drama, Georgia / Suiça, 2023, 111 minutos.

Um filme sobre uma mulher de meia idade que tenta fugir de um conjunto de regras comportamentais que, supostamente, ela deveria seguir - ainda mais quando o cenário é um pequeno povoado da Geórgia, seu País de origem. Esse é o ponto central de Blackbird Blackbird Blackberry, obra da diretora Elene Naveriani, que foi exibido na quinzena de realizadores do Festival de Cannes do ano passado e está disponível na Mubi. Sim, a gente está em 2024 e, apesar de haver uma série de avanços em questões de gênero, muitas mulheres ainda precisam confrontar o padrão estabelecido de expectativas a respeito de suas próprias vidas. Em resumo, em uma sociedade patriarcal, ainda haverá estranhamento diante da independência feminina, do poder de escolha, da personalidade. E é exatamente esse o caso da nossa personagem central, no caso a sisuda e taciturna Etero (a ótima Eka Chavleishvili), a proprietária de um mercadinho local.

Mulher de poucas palavras, Etero vive uma vida tranquila entre passeios nas verdejantes montanhas locais onde colhe amoras, em encontros com as amigas fofoqueiras da vila e em idas a sua loja de doces preferida, onde saboreia suntuosos bolos folhados. Ainda no começo da história, ela passa por uma experiência de quase morte: ao observar um pássaro negro - no caso um melro (que, aliás, tem todo um simbolismo ligado à tentações sexuais e outros desejos) -, ela escorrega e por muito pouco não despenca de uma montanha. O trauma é tanto que ela não apenas chega a ter visões de sua queda, mas também parece despertar para tudo aquilo que até então, talvez estivesse reprimido. Não por acaso, quando o entregador Murman (Temiko Chichinadze) aparece para deixar algumas mercadorias, quem se entrega (com o perdão do trocadilho), é ela. Ao final do ato, em tom tão debochado quanto sincero ela afirma: "lá se vão 48 anos de virgindade".


 

O caso é que Etero está muito longe de ser uma mulher padrão - ou aquilo que se convencionou chamar de padrão. Ela já tem alguma idade e ainda descende de uma família traumatizada (e traumatizante), que ainda lhe culpa pela morte da mãe, logo após o seu parto. Criada pelo pai e pelo irmão, ela crescerá cercada pela ideia de um mundo dominado pelos homens - ainda que, de forma contraditória, opte muitas vezes por se afastar deles, escolhendo a própria liberdade e a solitude como estilo de vida. Tanto que não são poucas as cenas em que suas amigas insistem no fato de que ela só se sentirá completa quando tiver um homem pra chamar de seu - por mais que todas ao seu redor pareçam apenas infelizes em suas vidinhas matrimoniais. O falatório local piora com o fato de Murman ser casado, e seus encontros secretos serem apenas de cunho sexual. Nesse sentido, não deixam de ser divertidas as tiradas de Etero - "se paus e casamentos fizessem as mulheres felizes haveria muito mais mulheres felizes" -, e suas ações, como a manutenção das camas de solteiro, ainda que próximas, nas escapadas com Murman.

Sim, o espectador mais acostumado ao cinema de todos os cantos poderá dizer que não há exatamente uma novidade no projeto feminista de Naveriani. Aliás, os filmes da Georgia tem sido pródigos em discutir mais abertamente os conceitos de família, gênero, opressão às mulheres e seu papel em ambientes mais fechados, vigiados - como por exemplo no caso do irresistível My Happy Family (2017), que já foi resenhado aqui. Mas aqui parece haver um frescor que dialoga mais com a vida real, as incertezas diante da complexidade do mundo e até uma certa ingenuidade paradoxal em relação a um feminismo mais instintivo ou inconsciente. Longe de um mundo tecnológico ou cronicamente online, Etero não terá certeza do que realmente ocorre com seu corpo, quando tem início um sangramento vaginal meio contínuo. Menstruação? Rompimento do hímen? Câncer terminal? As dúvidas existenciais da protagonista têm a sua força ampliada pelo seu olhar severo. O final pode ser meio agridoce para uma produção que tem lá a sua aspereza. Mas também tem sentido alegórico: a vida desabrocha. E continua. E é importante que as mulheres possam decidir o rumo sobre ela.

Nota: 8,5


Pitaquinho Musical - Céu (Novela)

"Um disco humano, cheio de vulnerabilidades, gravado sem computador". Marca registrada dos trabalhos recentes da cantora Céu - como Tropix (2016) e Apká (2019) -, a ambientação mais digital ou tecnológica parece ter sido deixada de lado em favor de uma experiência mais orgânica com Novela, o seu sexto e mais recente trabalho. Claro que isso não significa que a artista abandonou a sua MPB envolvente e sofisticada, que mescla efeitos eletrônicos minimalistas, batidas econômicas e vocais enevoados. Está tudo lá, com a elegância e a brasilidade de sempre - mas talvez com algum tipo de naturalismo a mais. E que pode ter a ver com a própria nostalgia temática do disco, com seu romantismo meio anos 80 que, ainda assim, soa moderno em todos os seus cantos. "Eu sou / A protagonista da minha novela", brinca na faixa Into My Novela, um rock contemporâneo que talvez não fizesse feio na trilha sonora de algum projeto de Silvio de Abreu.


 

Outra música que tem uma energia novelesca estilo Jovem Guarda é a deliciosa Crushinho. Romântica, moderna, contraditória, divertida, ela fala das complexidades do relacionamento - suas inseguranças e incertezas -, para culminar no refrão mais adocicado (e também safado) da temporada: "Vem aqui ouvir / Tu é meu crushinho / Eu só quero dar, dar muito carinho". Já o single Gerando na Alta fala de amizade feminina e a importância da sororidade. "É uma música leve, gostosa, que traz esse perfume Brasil, ao mesmo tempo em que traz a Anaiis cantando em inglês", comentou em entrevista à Rolling Stone. Aliás, a propósito das participações, elas são várias. Além de Pupillo da Nação Zumbi na produção, o trabalho gravado no Linear Labs, de Los Angeles, facilitou a conexão com nomes como o do compositor californiano Loren Oden e da rapper Ladybug Mecca (em Raiou). O que resulta em uma mescla interessante que flerta com outros estilos, mas sem jamais perder a coesão. Enfim, mais um ótimo registro que consolida Céu como uma das mais interessantes artistas de nosso País.

Nota: 9,0


segunda-feira, 27 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Geração do Futuro (The Pod Generation)

De: Sophie Barthes. Com Emily Clarke, Chiwetel Ejiofor e Rosalie Craig. Ficção científica, Reino Unido, 2023, 101 minutos.

Vamos combinar que a ideia de Geração do Futuro (The Pod Generation) não poderia ser mais instigante: e se num futuro próximo as famílias pudessem gerar filhos em estruturas externas ao corpo humano? Se em lugar de um barrigão de grávida com todas as implicações decorrentes disso, uma tecnologia substituísse a processo normal de formação de um embrião por uma espécie de útero externo descartável - algo semelhante a um "ovo" de plástico em tamanho maior? Sim, parece bizarro, mas se a gente pensa em como as coisas evoluem, não nos parece algo tão impossível. Na existência do casal protagonista, no caso Rachel (Emilia Clarke) e Alvy (Chiwetel Ejiofor), essa passa a ser a realidade quando ela, em segredo, se inscreve em um programa de uma subsidiária do conglomerado de tecnologia Pegazus, da qual ela é uma dedicada funcionária. Aliás, tão dedicada que recebe uma promoção que tem como efeito colateral justamente a oportunidade do parto, digamos, mais moderno.

Só que aí, de saída, já se estabelece aquele que poderia ser um dos principais dilemas da narrativa e que, infelizmente, não é tão bem aproveitado. O caso é que do ponto de vista do mercado de trabalho, Alvy está em um campo diametralmente oposto ao de Rachel, já que ele é um professor de botânica que ocupa seus dias em uma espécie de jardim doméstico improvisado - local de resistência em que mantém uma série de organismos vivos da natureza (árvores e plantas bem podadas e manejadas em um solo bem cuidado). É nesse espaço que idílico, distante do aparato tecnológico que habita o dia a dia dos dois (e dá pra ver que ele tem dificuldade até mesmo com as inteligências artificiais que interferem no cotidiano doméstico), que ele recebe alunos e visitantes. Que tem a oportunidade de ter contato direto com algo que parece ter ficado no passado: a natureza exuberante, vívida, com suas flores, frutos, folhas e outros componentes. E, claro, como não poderia deixar de ser, Alvy não é tão favorável assim ao parto em uma cápsula. Externa. Estranha à vida e toda a sua organicidade.


 

Esse é um dilema interessante que, em meio a discussão de outros temas, como, expectativas em relação à maternidade, exigências das corporações (e do capitalismo), limites da tecnologia, alterações no mercado de trabalho e outras questões éticas ou não, poderia ter mais eco. Em certa altura, por exemplo, quando já estão "grávidos", Rachel e Alvy passam por um grupo estereotipado de feministas mais radicais que se mostram contrárias ao procedimento. Alvy pergunta: "mas elas não eram favoráveis" (pensando certamente nas implicações da independência feminina e do útero como esse símbolo onipresente do suposto papel da mulher na sociedade patriarcal)? "Isso era antes", responde Rachel. Mas por quê era antes? O que mudou? Assim como essa incerteza parece pairar no ar, também são excluídas da trama as redes sociais, os canais de mídia alternativa e outros segmentos que poderiam fazer mais barulho em relação a decisões de governo ou de grandes corporações. É tudo meio diluído em uma experiência centrada apenas no microcosmo da dupla de protagonistas. Com uma grande passividade em que tudo parece apenas um tanto insípido.

Um outro exemplo de subtramas não exploradas a contento, envolve um casal que já teve um filho a partir da tecnologia sintética, que alega que ele é incapaz de sonhar. O que motivaria isso? Há algo que muda na formação desse embrião gerado de forma artificial? Só que o assunto é abandonado no caminho. E o que isso poderia ter a ver com os seguidos sonhos que Rachel tem sobre gravidez convencional? Evidentemente que há aí um outro dilema que fica no rasinho: como se dará a conexão mãe e filho, a partir da geração fora do útero? Quais as implicações morais, existenciais, filosóficas a respeito da evolução genética? Ao focar sua trama somente na relação do casal, de suas diferenças e de necessidades de adaptação - como na parte em que Alvy vai a uma sessão de terapia em que até a psiquiatra é uma inteligência artificial -, o filme desperdiça a oportunidade de avançar mais em alguns de seus temas. Ao cabo, tudo parece um episódio mais ou menos de Black Mirror: tem algum capricho na produção e uma ideia que se fragiliza a todo instante, ao navegar na mera banalidade. Uma pena.

Nota: 3,0


quinta-feira, 23 de maio de 2024

Tesouros Cinéfilos - Chocolate (Chocolat)

De: Lasse Hallström. Com Juliette Binoche, Judi Dench, Alfred Molina e Johnny Depp. Romance / Drama, EUA / Reino Unido, 2000, 121 minutos.

Um tipo de cinema simples, descomplicado, capaz de gerar no espectador uma profunda sensação de pertencimento. Assim pode ser resumida a experiência com Chocolate (Chocolat), filme de Lasse Hallström que nos dá aquele calorzinho no coração - e que, vá lá, muitas vezes é só o que a gente precisa pra dar conta da dureza do mundo. Sim, ainda que o manual do cinéfilo starterpack aponte para a complexidade ou para o hermetismo como valores intrínsecos às obras de qualidade - não, meu querido estudante de Comunicação, talvez Donnie Darko (2003) não seja tão legal assim -, não há vergonha alguma em admitir que produções como esta, estrelada por Juliette Binoche e Johnny Depp, entregam tudo em matéria de conexão com quem assiste. O que não significa que a coisa toda seja apenas rasa, não provoque qualquer tipo de discussão ou que não apresente personagens com decisões mais difíceis.

Aqui, temos o tradicional embate entre a Igreja e o seu conservadorismo (ou reacionarismo) atroz e os prazeres, digamos, mais mundanos (como se esbaldar com chocolate). O ano é 1959 e a tranquilidade de um pacífico povoado francês é estremecida pela chegada esvoaçante da confeiteira Vianne (Binoche) que, acompanhada de sua pequena filha de apenas seis anos (Victoire Thivisol), pretende se instalar no local. Sob o olhar desconfiado do Conde de Reynaud (Alfred Molina), que é não apenas o prefeito mas uma espécie de líder espiritual local, Vianne abre uma loja para comercialização de chocolates, o que abalará essa pequena e fechadíssima província. Ocorre que estamos na época da Quaresma - o que exige dos cristãos locais uma fidelidade maior na hora de cumprir ritos religiosos, como o jejum ou o abandono de qualquer prazer, digamos, mais tentador. Mas como resistir a um sem fim de iguarias de chocolate que ocupam a fachada do estabelecimento? 


 

Não bastasse a tentação alimentar em si, Vianne ainda é o carisma em pessoa, atraindo os eventuais clientes com amostras grátis, ou mesmo jogos de adivinhação que pretendem direcionar os consumidores para o produto que mais lhe agrade - sempre com um sorriso gentil no rosto. Não demora para que Armande (Judi Dench), a locatária do espaço, se torne não apenas uma das principais frequentadoras, mas também uma amiga e confidente da protagonista. Aliada às duas também surgirá Josephine (Lena Olin), mulher que sofre com a violência doméstica perpetrada pelo marido Serge (Peter Stormare) e que se tornará uma aprendiz no local. O que lhe possibilitará não apenas se afastar daquele ambiente de abusos, mas também ter mais independência. Há segredos entre os moradores do vilarejo que, mais adiante, virão à tona, especialmente aqueles que envolvem a complexa relação de Armande com a sua filha, Caroline (Carrie-Anne Moss), e seu afetuoso neto, Luc (Aurélien Parent-Koenig). Com todos ali sendo monitorados, por meio do olhar desconfiado do prefeito.

E como se já não bastasse toda a beleza plástica em si, seja do cenário e das ambientações, ou mesmo das guloseimas focadas em planos detalhe irresistíveis, essa fábula agridoce, sensual e sofisticada ainda é pródiga no uso de seus simbolismos ou mesmo nas alegorias sobre preconceitos, respeito às diferenças, intolerância religiosa e até papel da mulher na sociedade. Sim, parece apenas um filme pequeno, levemente maniqueísta, mas que ao mesmo tempo é muito hábil na análise sobre como os temas tabus ainda funcionam como balizadores morais, especialmente em sociedades mais fechadas. Tudo a partir de um microcosmo centrado no indivíduo em uma luta coletiva - e basta pensar no quanto de preconceito e de intolerância ainda há nos dias de hoje, para percebermos que obras bem diretas, podem ter mensagens poderosas. As emoções aqui são tentadoras, eróticas, vívidas - assim como são lindos os sapatos de salto vermelhos usados por Binoche (e que ajudam a quebrar a monotonia cinza do todo). Ao cabo a gente torce pra que as coisas saiam a contento. Para que os ventos efetivamente mudem. E nos conduzam para dias melhores. Com mais magia. E mais cacau.


terça-feira, 21 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Puan

De: María Alché e Benjamín Naishtat. Com Marcelo Subiotto, Leonardo Sbaraglia e Alejandra Flechner. Comédia / Drama, Argentina / Brasil / França / Itália / Alemanha, 2023, 107 minutos.

Vamos combinar que o timing de um filme como o argentino Puan, que está disponível na Amazon, não poderia ser melhor. Com os nossos hermanos recém mergulhados no governo de Javier Milei, a gente já sabe exatamente onde o calo vai apertar - especialmente pela disposição da extrema direita em cortar gastos (ou massacrar mesmo) em setores como o da educação. Aqui, esse cenário mais amplo de desmonte parece rondar o corpo docente de uma Faculdade de Filosofia de Buenos Aires - há protestos marcados e os cartazes com palavras de ordem evidenciam o clima turbulento. E, nesse contexto, talvez não seja nem tão simbólica assim a morte de um professor veterano, ainda na primeira sequência da produção dirigida por María Alché e Benjamín Naishtat, este último responsável pelo ótimo Vermelho Sol (2019). Ocorrência que será o ponto de partida de uma disputa interna bastante particular entre os professores Marcelo Pena (Marcelo Subiotto) e Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia).

Ocorre que Marcelo, por mais competente que seja - afinal dá pra perceber que ele consegue capturar a atenção de seus alunos nas aulas -, parece ter um carisma meio negativo. Em alguma medida ele é um sujeito mais introspectivo, tímido, tanto que, por mais que fosse o braço direito do falecido professor Caselli, se mostra incapaz de dizer uma ou outra palavra na solenidade de despedida e de homenagens ao docente. Já Rafael é o completo oposto: confiante, charmoso e divertido, é daqueles que preenche o espaço com a sua presença. No recital à Caselli menciona Kant em um discurso empolado, presunçoso. Cativa os colegas e os pares. Arranca suspiros das mulheres. Ainda mais quando estas descobrem que o seu retorno à Argentina pode ter a ver com o fato de ele estar namorando a sexy e famosa (e muito mais jovem do que ele) atriz Vera Mota (Lali Espósito). É um páreo duro para Marcelo que, além de tudo, é um azarado da maior espécie, como comprova a cena que envolve, digamos, um bebê.




Nesse sentido, a produção consegue ser divertida e dramática ao examinar a complexidade da conjuntura política da Argentina, a partir de um microcosmo de disputas internas que, vá lá, podem representar até algum tipo de alegoria de colonizador e colonizado (já que Rafael se impõe como o sujeito europeu que retorna às origens, à província, para tomar aquilo que pensa ser seu por mérito), mas que provavelmente tem também a ver com crises existenciais individuais, em meio a questões mais coletivas. Evidentemente que os temas mais macro, ali adiante, irão se sobrepor, especialmente quando o governo cancela o repasse de recursos para as universidades estatais e os professores precisam se unir para que o ensino não fique ainda mais prejudicado - sendo uma das porta-vozes a ativista Vicky (Mara Bestelli), a esposa de Marcelo. De forma lateralizada, a dupla de realizadores ainda joga luz sobre a precarização do mercado de trabalho como um todo, uma vez que Marcelo se ocupa também como professor particular de filosofia para uma idosa.

Pontuado por citações diversas de filósofos como Platão, Hobbes, Rousseau, Sócrates, Kant e outros, o filme aborda de forma jocosa o eventual egocentrismo que circunda o ambiente acadêmico para evidenciar como brigas internas podem ser apenas mesquinhas quando o poder de decisão está nas mãos de um sistema que não favorece o ensino, a arte, a cultura, o conhecimento. Ainda mais quando o assunto é a Filosofia, a Sociologia e outras ciências humanas, que são muitas vezes as primeiras a serem negligenciadas (ou sumamente suprimidas) em um mundo produtivista, que pretende que as pessoas pensem menos sobre aquilo que fazem - e que simplesmente façam mais. Que trabalhem, recebam seus salários e convivam sob o signo da alienação Ao cabo, trata-se de uma obra pequena, mas que tem estofo. E que se fortalece justamente em instantes quase prosaicos, como aquele em que o grupo de professores comenta sobre estarem com seus salários atrasados. Na hora que o bicho pega pro lado precarizado, é difícil não se identificar.

Nota: 8,0


segunda-feira, 20 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii)

De: Radu Jude. Com Ilinca Manolache, Nina Hoss e Dorina Lazar. Comédia / Drama, Romênia / França / Croácia / Luxemburgo, 2023, 164 minutos.

Vamos combinar que só o título do novo filme de Radu Jude já é um atrativo à parte. E se Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii) não clareia totalmente a ideia por trás da obra, no mínimo prepara, em alguma medida, o estado de espírito do espectador. Ainda mais pra quem já está familiarizado com a obra de Jude que, com seu irresistível cinismo e uma propensão ao deboche, costuma usar sua arte para uma severa crítica à contemporaneidade - seja na incapacidade institucional, nos equívocos do capitalismo tardio, na incomunicabilidade humana em um período em que nunca estivemos tão conectados, ou mesmo da hipocrisia da sociedade e, especialmente, de seu conservadorismo atroz. Ao cabo é um conjunto que se soma a outras questões atuais e que vão desde as guerras e a pandemia, passando pelo avanço da extrema direita, da xenofobia e outros preconceitos. Foi assim com o espetacular Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021) - um dos nossos preferidos na lista daquele ano. É assim com este, que foi o enviado da Romênia para o Oscar de 2024 e que está disponível na Mubi.

Na trama, acompanhamos a rotina conturbada da jovem Angela (Ilinca Manolache). Empregada de uma produtora de vídeo, ela é uma assistente de produção que está encarregada de fazer uma série de entrevistas sobre segurança do trabalho para uma multinacional estrangeira. De lá para cá ela anda de carro em uma frenética Bucareste, a contrastante capital romena com sua arquitetura decadente e atrasada, que se mescla com uma modernidade invasiva, intrusiva - de carros, de prédios, de estradas e que juntos atraem o caos, a desordem, os gritos, o tumulto (exterior e interior). Em uma jornada excruciante, filmada em um preto e branco que parece apenas evidenciar o senso de declínio generalizado, Angela trabalha e trabalha - 15, 16 horas por dia. Não tem tempo pra nada, escapa por pouco de acidentes, berra no trânsito com sujeitos brigões, machistas, misóginos. É 2024 e, sem terapia em dia, talvez fosse impossível simplesmente viver - e é isso que Jude parece querer nos mostrar o tempo todo. O mundo caminha. Mas pra onde exatamente?


 

Nas entrevistas de Angela, pessoas fraturadas, machucadas - literalmente. Empregados que sofreram acidentes de trabalho e que agora estão incapacitados de exercer suas atividades, desassistidos, alguns até em cadeiras de rodas. Sob a desculpa de uma pequena quantia de dinheiro ofertada, a multinacional pretende fortalecer a campanha interna de combate a esses incidentes laborais. Ao passo em que se esforça para evidenciar certa responsabilidade com seus trabalhadores - o que talvez faça a empresa se livrar de pesadas sanções jurídicas (se é que as sanções jurídicas da Romênia são pesadas). Enquanto circula de um local a outro, Angela masca chicletes incansavelmente, corta as pistas, ouve música eletrônica pós-moderna, como forma de relaxar. Por vezes o filme parece nos conduzir a algum videoclipe do Chemical Brothers dos anos 90, com seu caráter calculadamente frenético - que é interrompido pelo toque de celular da protagonista, que, de forma irônica, ecoa uma versão analógica da Ode to Joy, de Beethoven.

Aliás, nesse sentido, Jude é muito hábil em encaixar as suas críticas em pequenos instantes, em sequências que parecem ser apenas transitórias ou aleatórias, mas que dizem muito. Em uma das visitas, Angela é extremamente bem recebida pela família de um jovem que, após um acidente, perdeu o movimento das pernas - um dos que participará das gravações. O pai do rapaz parece um sujeito apenas encantador, daqueles que recita versos e poemas, ao mesmo tempo em que elogia Viktor Órban - "um verdadeiro líder". É essa complexidade que também parece povoar o todo e que torna a experiência com Não Espere Muito do Fim do Mundo tão rica. A gente parece saber onde estão as falhas coletivas, imaginamos o buraco em que estamos indo. Como sociedade, como indivíduos, e tudo parece apenas inescapável. Angela, por exemplo, mesmo com um trabalho sofrível, que lhe paga pouco e lhe exaure, ainda encontra tempo para criar um alterego hedonista, machista e racista nas redes sociais (um tal de Bobita, que alcança um grande número de visualizações com seus vídeos), e que evidencia ainda a ignorância lancinante de nossos dias. A intenção com essa figura torpe e sexista é debochar. Mas vai saber se os seguidores não estão de fato, gostando?

 

 

Em paralelo, a obra ainda é recortada por uma série de imagens de uma taxista e de sua rotina de trabalho nos anos 80, em tempos mais simples, mais puros, mais singelos. Será mesmo? Talvez não seja por acaso que essa taxista também se chame Angela, numa brincadeira de "eu sou você amanhã". Quebrando o claro escuro da fotografia sombria e pesada da rotina da Angela da atualidade, a Angela do passado também precisa lidar com a misoginia, a violência, a desconfiança, o medo. Naquela época a novidade eram as mulheres no mercado de trabalho - quebrando o paradigma esperado de ser a dona de casa, que cuida do marido, dos filhos. Nos tempos atuais, as mulheres muitas vezes trabalham. E só trabalham. Tem pouco tempo para os prazeres da vida, para uma existência mais mundana, com amor, sexo, uma boa refeição, algum tipo de qualidade de vida, de acolhimento. Ainda que nas ruas alvoroçadas de Bucareste se vejam anúncios publicitários sobre corpos perfeitos, tecnologias sustentáveis, futuro consciente, economia justa. Não dá pra esperar muito do fim do mundo. E, vá lá, talvez só o que reste é avacalhar no Tik Tok. Porque muito mais do que isso talvez não dê mais tempo de fazer.

Nota: 9,0

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Picanha.doc - Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President)

De: Moses Bwayo. Documentário, Uganda / EUA / Reino Unido, 2022, 113 minutos.

"A verdadeira liberdade começa na mudança de mentalidade". Uma obra sobre o poder da arte como veículo de transformação social e como apoio da manutenção da democracia - especialmente diante de ameaça de sistemas políticos autoritários. Assim podemos considerar Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President), filme disponível na plataforma Star+ e um dos cinco indicados ao Oscar desse ano na categoria Documentário. Aqui temos uma obra inspiradora, que mescla as letras poderosas de Wine, um carismático cantor de reggae que faz uma mistura saborosa de ritmos africanos, como o afrobeat e o dancehall, e que começa a chamar a atenção do público, especialmente pelas letras socialmente conscientes que refletem sobre direitos humanos, pobreza, saneamento básico, importância da educação, paternidade responsável e outros temas, sempre com um olhar atento às mazelas do povo de Uganda, seu País de origem.

Nesse sentido, essa é uma produção que nos captura de forma instantânea. Enquanto circula pelas ruas e becos arenosos e miseráveis de uma favela da capital Kampala, o artista passa a arrastar uma multidão de adeptos, que replicam suas músicas e imitam seu estilo. Com certa fama, Wine casa com a filantropa Barbie Kyagulanyi e amplia o olhar político em sua arte, especialmente a partir de meados dos anos 2000, quando a corrupção do governo do ditador conservador de direita Yoweri Musevini aflora. O que se soma ao desrespeito aos direitos humanos e também a tentativa de silenciar qualquer opositor - algo que sempre envolve um pesado aparato militar e uma disposição única para atos de truculência. Em um dos episódios mais traumáticos do País, um protesto que antecederia uma das tantas eleições livres - algo bastante recente, já que entre 1986 e 2005 era proibido o pluripartidarismo em Uganda - vencidas por Musevini, um grupo de civis é morto pelas forças militares, sob a desculpa de serem "terroristas" ou "insurgentes".


 

Enfim, a gente já viu o mesmo papo em ditaduras mundo afora - especialmente aquelas que desejam se manter no poder na base da força (e por mais que a situação do Brasil seja diferente, é simplesmente impossível não pensar no País quando vemos um presidente que utiliza absolutamente toda a máquina pública estatal para tentar permanecer no poder). A diferença é que aqui ainda temos uma democracia, e por mais que já existisse uma minuta do golpe e um bando de alucinados na frente de um quartel, tendo ainda como complemento o maior estelionato eleitoral da história, o projeto mambembe de ditador tropical foi deposto. Em Uganda essa aguardada primavera é mais complexa. E eternamente adiada. Com o voto impresso - sim, que surpresa! -, as chances de fraude aumentam progressivamente. E quando Wine resolve partir pro confronto com Musevini nas eleições de 2021, ele perde por 58% a 34%. Por mais que tudo indicasse o desejo do povo por oxigenar a sua política, depois de CINCO mandatos do déspota.

Com belas imagens de arquivo, a produção dirigida por Moses Bwayo acompanha os movimentos de Wine que, a cada ataque que sofre, dobra a aposta na tentativa de confrontar o poder tirano - e as repetidas fraudes que parecem ocorrer com anuência de um parlamento "comprado", que altera leis para que Musevini se perpetue no poder. Em uma cena chocante, o artista sofre uma frustrada tentativa de assassinato, que resulta na morte de seu motorista. O que não o impedirá de, mais adiante, ser preso por suposta desobediência. Com tudo costurado sempre pelas letras pungentes de Wine e pelos ritmos quentes, que permitem ao mesmo tempo a festa do povo e a consciência (um combo, muitas vezes, ideal). Se há um pequeno porém, acho que falta um pouquinho mais de profundidade a respeito do panorama político do País e sobre quais as plataformas defendidas por Wine, que tanto se dedica aos direitos humanos e às minorias. Um progressista que confronta um reacionário. Aliás, a tônica atual em muitas partes do mundo. Com a arte tendo papel central nesse debate.


Pitaquinho Musical - Rachel Chinouriri (What a Devastating Turn of Events)

"Quando coisas ruins acontecem, as pessoas ao seu redor ficam tipo, ‘vai ficar tudo bem, lamento que isso tenha acontecido', E, na verdade, às vezes é bom dizer: ‘isso foi uma merda, foi horrível e é injusto'. Esse era o tipo de emoção que eu queria traduzir nessas músicas". Quem ouve o pop sofisticado, muitas vezes agridoce, e cantado com a voz aveludada da britânica Rachel Chinouriri, em sua estreia What a Devastating Turn of Events, talvez não imagine a densidade de suas letras e mesmo a relevância de seus temas. Em linhas gerais há uma leveza nostálgica que conduz o ouvinte entre palminhas, assobios e uma sonoridade que se equilibra bem entre o R&B, o soul e o indie rock, que fazem tudo soar acessível. É aquele disco gostoso, com pontes e refrãos que flanam com facilidade. Basta uma ou outra audição pra memorizar as canções. Como no caso, por exemplo, de Robber, balada sombria que tem como pano de fundo a história de um casal que perde um bebê. Coisas ruins acontecem. E são uma merda - como ela disse no material de divulgação.


 

Nascida em Londres, a artista de apenas 26 anos é filha de pais emigrados do Zimbábue. E ainda que pudesse ser convidativo em termos de "mercado", tornar sua música apenas uma excentricidade para um público médio e branco ávido por sons alternativos de fora dos grandes centros, Rachel cresceu ouvindo Kings of Leon, Phoenix e Coldplay - e é interessante notar como todas essas bandas aparecem salpicadas, aqui e ali, como influências não tão óbvias. Nas letras, as experiências pessoais se mesclam com narrativas familiares - o que resulta em um projeto complexo e heterogêneo em que guitarras mais velozes se misturam com sintetizadores econômicos, sempre prontos a explodir mais adiante. Canções sobre sensação de não pertencimento (o ótimo single The Hills), a respeito de amores não correspondidos (All I Ever Asked), sobre autoimagem e aceitação (I Hate Myself) ou mesmo suicídio (como na sombria faixa-título) se mesclam para formar um conjunto irresistível de uma das artistas mais promissoras de atualidade. Não deixe de ouvir.

Nota: 9,0

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Cinema - Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding)

De: Rose Glass. Com Kristen Stewart, Katy M. O'Brian, Ed Harris, Jena Malone e Dave Franco. Suspense / Romance, EUA / Reino Unido, 2024, 104 minutos.

Quem assistiu Saint Maud (2019), o filme anterior da diretora Rose Glass, talvez se surpreenda com o estilo mais maximalista de Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding), obra que está em cartaz nos cinemas do País. Afinal tudo que o projeto anterior tinha de sutileza e de morosidade na hora de fazer a crítica a respeito dos problemas que decorremdo fanatismo religioso, este tem de exagerado em seu exame de uma sociedade ainda machista, individualista, com pendor pra violência e pouco paciente na hora de efetuar qualquer tipo de negociação. Sangue, suor, lágrimas, excrementos e gozo se misturam em um tipo de cinema que se convencionou chamar atualmente de "cinema do corpo", que é aquele tipo que, a partir de certo experimentalismo, arrasta o espectador para algo mais sensorial do que aquele que se vale apenas do olhar. Algo que, por exemplo, fazem com maestria realizadores como Julia Ducournau e David Cronenberg, com seus body horrors.

Ainda assim o cinema do corpo, lembra a autora Linda Williams, não é apenas o do terror, da palpitação e dos sustos. Sim, em Love Lies Bleeding a gente encontra isso. Mas ele é também o do choro e o tesão, que mobilizam nossos fluídos, que movimentam nossas vísceras. E é preciso que se diga aqui temos a experiência completa nesse sentido. Ao cabo essa é uma obra de closes em corpos, com todo o seu esplendor - como no caso de Jackie (Katy M. O'Brian), que talvez materialize justamente a transformação irracional que sofremos quando nos apaixonamos -, e em rostos, que é onde entra Lou (Kristen Stewart em mais um grande papel), que, de cabelo seboso, se utiliza de seu olhar sempre penetrante e capaz de preencher espaços, para transmitir toda a ansiedade e a angústia diante de uma violência que lhe rodeia, e que talvez esteja pronta a explodir a qualquer momento.


 

Lou herdou uma academia de ginástica da família e é lá que ela conhece e começa a se relacionar com a forasteira Jackie, após um encontro improvisado, ainda que jamais fortuito entre as duas. Jackie, com seu corpo vigoroso, está vindo de Oklahoma, se prepara para um torneio de fisiculturismo, e encontra abrigo no local. Por uma daquelas coincidências, ela arruma um emprego em um clube de tiro chefiado justamente pelo pai de Lou (Ed Harris) - um sujeito tão repulsivamente palpável em sua combinação de caipira norte-americano reacionário com idoso decadente que votaria facilmente no Trump (ou em Bush), que é quase impossível não sentir asco. O que é reforçado pela sua aparência de tiozão acampado na frente do exército com sua cara oleosa e cabelos longos, mesmo sendo calvo, e a grande propensão para golpes no mercado negro de armas. Esse ambiente "família" é completado pelo violento JJ (Dave Franco), o cunhado de Lou, que tem o hábito agredir a irmã Beth (Jena Malone). É claro que em um cenário tão cáustico que mistura violência doméstica, clubes de tiro, academias anabolizadas, amor lésbico e tentativas de fuga a chance de a coisa sair do controle é grande. Pra alegria do espectador. 

Em linhas gerais Rose Glass não se intimida na hora de evidenciar seu ponto. Lou pai e JJ, por exemplo, são apresentados como os machos torpes e misóginos que, atualmente, ocupariam com tranquilidade os fóruns online de redpills ou os 4chans da vida - e o fato de o cenário ser alguma pequena cidade do Novo México rural e conservador, ajuda nessa composição. Só que aqui estamos nos anos 80 e, é preciso que se diga, esse aspecto também fornece certo charme à parte técnica, com sua fotografia levemente saturada, as cores vivas e figurino de roupas meio antiquadas. É um conjunto saboroso que olha para o passado para falar do presente de forma alegórica: afinal para que o mundo avance em toda a sua plenitude, talvez seja necessário extinguir certos sujeitos (ou ideias, vá lá) que representem certo atraso na sociedade. Pode parecer meio over em alguns momentos: mas é sexy, divertido e macabro. O odor pestilento parece saltar da tela. E ainda assim não resistimos.

Nota: 8,5


terça-feira, 14 de maio de 2024

Pitaquinho Musical - Jessica Pratt (Here in the Pitch)

Uma bossa nova enevoada, cantada em um filme cult dos anos 80. Um folk espacial que emerge em uma série de TV distópica e existencialista. Uma melodia que martela sutilmente em um bar enfumaçado, ocupado por figuras niilistas e silenciosas. Tentar converter em "imagens" a música feita por Jessica Pratt pode não ser tarefa tão fácil - uma vez que ela parece trafegar com facilidade entre a nostalgia onírica e a modernidade borbulhante. Em alguma medida é possível afirmar que as possibilidades são muitas e mesmo um disco pequeno como Here in the Pitch - o quarto da carreira da norte-americana -, permite ao ouvinte uma viagem pop psicodélica por ambientes tão variados, que tudo parece ser maior do que é (a despeito das apenas nove músicas distribuídas em 27 minutos). Lúdico, sensorial, evocativo, esse é daqueles trabalhos que ressoam de forma hipnotizante em uma rota intimista e agridoce.


 

Um bom exemplo disso tudo pode ser percebido no single lo-fi World on a String - com sua musicalidade flutuante e elevada. Pratt tem um estilo de cantar que consegue soar ao mesmo tempo doloroso e acolhedor e, por causa disso, versos como "E você ganhou tudo, mas seu sorriso vai embora / Quando, ao final, você é notícia de ontem" (na bossa nova Better Hate) soam ousados e irônicos. Há um pouco mais de expansão no todo, especialmente se compararmos com a sutileza dilacerante do anterior Quiet Songs (2019). E talvez aí esteja parte do magnetismo: o que antes era apenas um violão mais discreto, que vinha acompanhado de um pianinho sutil, aqui fica mais amplo, mais preenchido, com mais camadas. Inclusive vocais. É o tipo de combinação que faz com que retornemos várias vezes para o disco.

Nota: 8,5

 

Cine Baú - Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

De: Stanley Kubrick. Com Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden. Comédia / Ficção Científica / Guerra, EUA / Reino Unido, 1964, 94 minutos.

Em uma das mais divertidas sequências de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), um grupo de líderes norte-americanos - entre eles diplomatas, militares e conselheiros - debate, em uma sala do Pentágono, o futuro da humanidade. Após uma ligação do presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (um dos três papeis de Peter Sellers) ao premier soviético (um certo Kissoff, que parece estar bêbado do outro lado da linha), tem início uma briga acalorada entre o general Turgidson (George C. Scott) - um sujeito que tem aquele tipo de arrogância militar, que esconde sua mais completa mediocridade sob o véu da suposta liderança - e o embaixador russo (um Peter Bull abusando do estereótipo). Após uma discussão quase infantil, um cai sobre o colo do outro, sendo repreendidos na sequência por Muffley: "senhores, vocês não podem brigar aqui, este é o salão de guerra".

Olhando em perspectiva essa pode parecer, atualmente, uma piada apenas boba. Mas também foi a forma que Stanley Kubrick escolheu para debochar da relação quase pornográfica entre esses homens - no caso, esses militares sempre prontos a vestir a farda e atirar para salvar a sua Pátria, nem que para isso morram 20 milhões de pessoas desnecessariamente (imagina, poderiam ser 150 milhões) - e a guerra. Sim, em 1963 já decorriam quase 20 anos da Guerra Fria, que colocava frente à frente o Ocidente e o bloco soviético - um impasse entre duas superpotências que mediam forças no abstrato e em estratégias como a de colocar o medo na cabeça do "inimigo" como forma de desencorajá-lo a atacar. Em uma época em que o escárnio (e o meme) estavam bem longe de pautar o debate, não dá pra negar que foi uma jogada ousada. Que talvez tenha assustado as plateias, especialmente pela cara de pau descarada em tirar sarro de paranoias comunistas (sim, sempre elas) e de outros delírios bélicos.


 

Aliás, nesse sentido, alguns temas parecem tão atuais, que mais parecem saídos de algum zap bolsonarista, ou fruto de alguma teoria conspiratória aleatória propagada por incels de extrema direita que passam o dia nas profundezas da web. Em certa altura o general que leva o sugestivo nome de Jack D. Ripper (Sterling Hayden) explica ao capitão Mandrake (o segundo papel de Sellers), seu colega em uma base militar, sobre como os soviéticos estão utilizando a fluoretação da água como uma estratégia bélica em seu favor. "Esta é a trama comunista mais perigosa que já tivemos de enfrentar", vaticina Jack a um incrédulo Mandrake, dando a entender que todos os seus problemas, desde a sensação de cansaço (e de falta de apetite sexual), até um certo vazio existencial, são efeitos da água batizada. "Você já percebeu que eles não tomam água, somente vodca?", pergunta. Sim, se hoje em dia um delírio do tipo não faria feio em meio a blocos de debates sobre agenda globalista, sósias do Lula, chip chinês na vacina, mamadeira de piroca e antenas Haarp, talvez não seja por acaso.

Porque o caso é que talvez só rindo pra gente conseguir dar conta. Já era assim na década de 60 e segue sendo hoje em dia e, em tempos tão nervosos como os que vivemos - de iminência de Terceira Guerra, de crise de refugiados, de desastres climáticos, de ascensão da extrema direita, de tecnologia desenfreada e de pandemia -, não deixa de ser interessante notar como a comédia de Kubrick segue irresistivelmente atual. "A paz é a nossa profissão" é a frase que se vê em um cartaz fixado nas paredes de uma base militar que é atacada por aqueles que deveriam estar do mesmo lado das trincheiras. Para o sinistro Dr. Strangelove do título (novamente Sellers) as disputas por poder que podem levar a explosão de uma Máquina do Juízo Final - uma ogiva nuclear de ativação automática - podem ser o caminho para a solução eugenista. Na teoria do cientista, que parece ter um certo pendor para o nazismo, a perspectiva de explodir o mundo pode abrir a brecha para um plano de supremacia branca em que cada homem teria direito à dez mulheres ("mas elas terão que ser bem escolhidas", lembra um dos idosos decrépitos da Sala de Guerra). 

 

 

Enquanto esses ineptos decidem sobre o que acontecerá no século seguinte - e que pode estar ao alcance de um botão -, um grupo de caipiras, com direito a sotaque sulista e tudo e uma Bíblia minúscula que também conta com expressões russas, é literalmente enviado pra morte. Tudo isso depois de um equívoco de Ripper que subverte os protocolos enviando aviões para um ataque aéreo aos "vermelhos". Há uma história interessante que está n'O Livro do Cinema sobre a intenção que Kubrick tinha de que a cena final fosse uma guerra de tortas entre aqueles homens, no estilo pastelão. Mas ele mudou de ideia e substituiu a sequência pela da explosão das ogivas nucleares. "Era importante que o público soubesse que, por mais caricatos e palhaços que aqueles sujeitos parecessem, eles eram de fato perigosos". O resultado dessa poderosa combinação conferiria ao projeto três indicações ao Oscar - Filme, Diretor, Roteiro e Ator (Sellers). E pavimentaria ainda o caminho para que Kubrick alcançasse grande fama entre os fãs de cinema, com obras-primas, como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e Nascido Para Matar (1987) - que, em alguma medida, revisitariam os mesmos temas. Fundamental.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cinema - O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant)

De: Anh Hung Tran. Com Juliette Binoche, Benoit Magimel, Galatea Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire. Drama, França, 2023, 135 minutos.

"Em casa eu sirvo o tipo de comida que conheço a história por trás". (Michael Pollan)

Vamos combinar que em tempos de IFood, de comida congelada e industrializada, de alimentação apressada (e sem graça) e de paladar infantil que via de regra é baseado em Nutella e leite ninho, assistir a um filme afetuoso e poético como O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant) é uma espécie de alento. Uma frase atribuída ao escrito Mia Couto nos lembra que "cozinhar não é um serviço e sim uma forma de amar os outros". E na obra de Anh Hung Tran - do ótimo O Cheiro do Papaia Verde (1993) - essa expressão parece elevada à máxima potência, especialmente ao nos fazer lembrar da importância da comida feita em casa, em toda a sua glória. Sim, aqui e ali pode haver um aspecto meio elitista nesse combo que envolve alta gastronomia luxuriante e cenários deslumbrantes, como aqueles que vemos na obra. Mas, honestamente, é meio difícil resistir.

Tanto é que a primeira meia hora do filme quase se assemelha a um documentário sobre as origens da alimentação, filmado em algum ponto da Europa. Claro, não fosse o fato de estarmos diante de uma Juliette Binoche sempre magnética - aqui ela vive a cozinheira Eugenie, que trabalha há mais de 20 anos para o chef gourmet Dodin Bouffant (Benoit Magimel), em seu belo casarão da França rural do fim do século 19. De forma quase ritualística, Eugenie e Dodin preparam, na companhia da assistente de cozinha Violette (Galatea Bellugi) e da aprendiz Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), uma lauta refeição com peixes, carnes vermelhas, molhos, vegetais frescos e sobremesas pornograficamente vistosas - tudo encenado de forma viva, aproveitando da melhor forma as cores contrastantes da madeira e das matérias-primas elaboradas. Como se fosse um coletivo de dança com coreografias bem demarcadas, o quarteto de reveza pelo ambiente, num tipo de preparação exaustiva, mas prazerosa, que mais tarde será oferecida para um grupo de amigos de Dodin.


 

É tudo bonito e elegante, requintado em sua simplicidade, seja nos móveis rústicos, nos fogões campesinos, nos utensílios rudimentares  - tudo de forma a mexer com absolutamente todos os nossos sentidos. Não se trata apenas de uma experiência visual. Os sons nos conectam, os aromas e sabores parecem saltar da tela - aliás, nos fóruns de internet, vi vários fãs da obra afirmando que não era uma boa ideia ir para a sessão com fome. Ainda mais em shoppings, onde muitas vezes as opções gastronômicas se baseiam em fast foods e alternativa rápidas (ou pré-prontas). Lá pelas tantas, chega à propriedade de Dodin, um jovem com um recado: há um príncipe das redondezas, que gostaria de lhe convidar para um jantar. Dodin, contra todas as possibilidades, aceita o convite. Ainda que precise lidar com questões internas, como a paixão secreta por Eugenie (que o homem tem dificuldade em formalizar, ainda que ambos se gostem muito) e a falta de apoio dos pais de Pauline, que acabam chamando ela de volta para a casa, após um período.

Em linhas gerais esse é um filme simplíssimo, mas de uma beleza quase ecumênica, elegíaca. Nesse sentido, outras artes parecem se mesclar como forma de fortalecer a metáfora para o amor, para o afeto. Quando Dodin cria coragem pra pedir Eugenie em casamento, ele brinca sobre o fato de ambos estarem casando no "outono de suas vidas", o que é a deixa para uma série de frase belíssimas e alegóricas sobre a vida em si - e de como saímos da primavera de nossas almas quando nascemos, para o inverno do fim quando nos aproximamos do ocaso. Eugenie nega tudo isso, e quer que sua vida seja um "verão permanente", mesmo que ambos estejam na casa dos cinquenta anos. É difícil não se emocionar - e de pensar como a paixão e a lealdade a alguém podem fornecer um sustento semelhante ao proporcionado pela alimentação. Com ambas fazendo conexões entre nossos órgãos - do coração ao cérebro, passando pelo estômago, pelo esôfago e outros. Fazer um filme simples mas que nos conecte não deixa de ser uma arte. Assim como sempre será uma refeição bem feita, bem elaborada - por mais modesta que seja.

Nota: 8,5


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Lado B Classe A - Keane (Hopes ans Fears)

Sim, a gente sabe que hoje em dia Somewhere Only We Know virou sinônimo de cover de banda folk de branquelo que toca em formaturas e casamentos. Ou mesmo de trilha sonora de comercial de TV de gosto duvidoso. Mas, acredite, essa canção que ainda surge aqui e ali na programação da rádio light que parece meio parada no tempo, foi lançada há 20 anos pelo Keane. VINTE ANOS. Sim, não parece que já se vão duas décadas desde que Hopes and Fears, o disco de estreia dos britânicos, veio ao mundo. E, vá lá, talvez fossem tempos muito simples aqueles em que um grupo composto apenas por um vocalista (Tom Chaplin), um pianista e tecladista (Tim Rice-Oxley) e um baterista (Richard Hughes) conseguisse alcançar algum sucesso. Mas foi o que aconteceu naquele distante 2004 - a despeito da nota baixíssima concedida pela Pitchfork e das inadequadas comparações com o Coldplay (até mesmo porque, vamos combinar, o Keane é muito melhor).

Os detratores gostam de falar dos exageros dramáticos, eventualmente excessivos - que parecem elevar toda e qualquer canção a uma espécie de catarse catapultada por um refrão sempre voluptuoso, entoado em um falsete milimetricamente calculado de Chaplin. E, assim, esquecem a melhor parte: a de que o Keane faz música direta, sem firulas, cantando coisas do coração que só nas aparências soam óbvias. Com tudo se projetando maior do que parece, entre pontes bem posicionadas e estrofes magnéticas, capazes de transformar a voz suavemente vigorosa do vocalista em algo maior do que a vida. Tomemos como exemplo o single This Is The Last Time, um dos grandes momentos do álbum. Em entrevistas de divulgação Rice-Oxley explicou que ela é uma canção sobre "sentir uma enorme quantidade de afeto por alguém e, no entanto, não ter aquela faísca mágica que faz alguém se sentir apaixonado". É sobre ter um vínculo com alguém, gostar da pessoa, mas mesmo assim ir embora. 

 


 

E, vamos combinar, que essa atmosfera comovente, quase teatral e de romance torto - de se sentir confortável com alguém e não querer machucar essa mesmo pessoa ao simplesmente deixar essa pessoa pra trás - que se sobressai no conjunto, parece tornar tudo melhor. Ou seja, é o contrário do que dizem os críticos, justamente porque a emoção parece se esparramar da alma. Dos sintetizadores cheios de camadas. Dos vocais épicos. Sim, são músicas de amor, repletas de versos sobre perdas, incertezas, medos, frustrações. Mas onde na música popular que a coisa não foi assim? Onde, no trabalho de uma Taylor Swift ou de uma Olivia Rodrigo que as coisas do coração não ganharam corpo? Onde que uma música linda como She Has No Time parecerá menor, só porque os versos sobre amores não correspondidos soam em alguma medida brega ou até meio kitsch (Você acha que seus dias são comuns / E ninguém nunca pensa em você / Mas somos todos iguais)?

Ás vezes eu me pergunto se haveria uma segunda chance pro Keane - ao menos em termos de crítica - se, paradoxalmente, esse disco fosse lançado nos dias de hoje e não vinte anos atrás. Se não houvessem as inevitáveis comparações com Clocks ou com qualquer coisa que um Coldplay já acenando para a decadência vinha fazendo naquele período. Com o britpop já tendo sido devidamente reinventado pelo Radiohead. E com o rock inglês tomando um outro caminho, com a ascensão de coletivos como Franz Ferdinand, o Libertines e o Arctic Monkeys. Vai saber. Ou talvez eles fossem ainda mais odiados em tempos de raiva permanente contra tudo, como os que vivemos hoje. De intolerância, de preconceitos, de guerras, de fortalecimento da extrema direita, de pandemia. Talvez efetivamente fossem tempos mais simples. De se emocionar com Everybody's Changing, Your Eyes Open e Untitled 1. De não ter vergonha de ouvir a todo o volume Somewhere Only We Know. Que hoje em dia nem aquela bandinha cover de jardim florido, consegue estragar. Porque, afinal, sempre que tá tocando eu paro pra ouvir.


Pitaquinho Musical - Iron & Wine (Light Verse)

Desde que surgiu para o mundo há mais de vinte anos com o álbum The Creek Drank the Cradle (2002), o cantor e compositor Sam Beam - o nome por trás do Iron & Wine -, cativou uma legião de fãs com o seu estilo "estou aqui tocando um violãozinho na varanda, enquanto observo o final de tarde bucólico na cidadezinha do interior da Carolina do Sul". Os versos simples mas poderosos, cheios de ruminações simbólicas sobre o ambiente rural - suas famílias, comunidades, natureza, costumes e crenças -, sempre representaram uma fortaleza, o que seria reforçado por obras-primas do folk pop como Our Endless Numbered Days (2004) e, mais ainda, The Shepherd's Dog (2007), talvez o seu melhor disco. Claro que é um clichê dizer que, passados tantos anos desde esses primeiros trabalhos, muita coisa mudou. A música de Beam adquiriu mais elementos e até mais complexidade, e também houve um hiato de sete anos que, agora, é interrompido pelo maravilhoso The Light Verse.


 

Quem acompanha a carreira do Iron & Wine sabe que a sua música é daquelas que acalma a alma, que flui sem pressa em meio a emanações etéreas e uma musicalidade descomplicada, que apaixona já nas primeiras audições. E, em tempos de tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo - avanço da extrema direita, guerras, catástrofes ambientais e um mundo que ainda se recupera de uma pandemia -, não dá pra negar que canções como Taken By Surprise, Tears That Don't Matter, You Never Know e All In Good Time acalentam, envolvem, amparam. Esta última, feita em parceria com Fiona Apple - o que é automaticamente um atestado de qualidade -, versa sobre perseverança em dias difíceis e sobre, enfim, ter paciência. A voz sussurrante e vagarosa do artista, somada ao seu violão acústico nunca pareceram tão necessários. Às vezes tudo o que precisamos é um passo atrás para reconfigurar a rota. Fazendo o que já fazia e de uma forma ainda melhor, o Iron & Wine nos permite isso.

Nota: 8,5