sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Lado B Classe A - M.I.A. (Kala)

A cantora M.I.A. é um verdadeiro combinado de tudo aquilo que causa calafrios na parcela mais conservadora, cafona, anacrônica e ideologicamente ultrapassada da sociedade. Ela não é apenas uma artista da música pop - e, é evidente o fato de essa simples convenção não alcançar a abrangência e de seu trabalho: ela é ativista política, artista plástica, designer, cineasta, enfim... militante, especialmente no que diz respeito as minorias, quaisquer que sejam. Tem o cabelo colorido, usa roupas cheias de personalidade e que fogem da daquilo que nos acostumamos a chamar de "moda" e tem atitude. Atitude de confronto. De não ficar quieta. De falar. De gritar. De cantar. Uma iconoclasta que flerta com a anarquia e que é capaz de entregar, a cada registro, um verdadeiro turbilhão cultural, com misturas de ritmos que vão da música eletrônica ao hip hop, do dancehall ao funk carioca. M.I.A. é do mundo e fala para o mundo. Aliás, um mundo bem distante daqueles que envolvem senhores engravatados, de cabelos bem alinhados, em seus escritórios insípidos, preocupados com a tragédia econômica do mundo.

É que a tragédia no caso de M.I.A é outra. É mais grave. Tem a ver com a infância difícil e isso não é um lugar-comum. Ainda que tenha nascido na Inglaterra, M.I.A - cujo nome oficial é Mathangi Maya Arulpragasam (ela gosta de brincar dizendo que as três letras de seus apelido significam Missing In Action) - se mudou muito cedo para o Sri Lanka, País de origem do pai, um ativista social que, assim como toda a família, integra a minoria étnica Tâmil, que luta pela sua independência. É um confronto de difícil compreensão, mas que escancarou diante dos olhos da cantora, na época ainda uma jovem adolescente, todos os tipos de violência possíveis e que poderiam estar relacionadas ao tráfico de pessoas (de documentos e de drogas), ao trabalho escravo, a chacinas cruéis, etc. Entre uma aula de pintura e outra não era incomum soldados do Sri Lanka invadirem educandários para apontar armas para a cabeça de crianças - o tipo de violência que ocorre até hoje em países em conflito (a Síria também é um bom exemplo disso).



Tudo aquilo que M.I.A. presenciou em sua vida - hoje a artista está com 41 anos - ela transforma em arte, por meio de sua música absolutamente efervescente, tropical, urbana, cheia de batidas acaloradas, de grooves flamejantes, de efeitos surpreendentes, de samplers improváveis , de camadas e mais camadas de sintetizadores. É uma obra muitas vezes agressiva, beligerante, direta, desmedida. Um verdadeiro coquetel cultural riquíssimo, poderoso, com altíssimo potencial "destrutivo" - algo que pode ser depreendido já pela capa caótica. Ouvir a M.I.A. pode não ser tarefa fácil se você estiver acostumado com o rock quadrado dos branquelos ou com o R&B classudo, que toca em festa de playboy que pretende pagar de cool. Tem barulhos, gritos, balbúrdia das ruas, reverberações, apitos, uma percussão por vezes desconexas e nunca óbvia. O reflexo de uma artista que, mais do que o sofrimento, soube beber também da fonte da cultura diversificada, democrática e multicultural - tão cara aos dias de hoje.

Foi assim com o seu disco de estreia, Arular, de 2005. Mas foi mais ainda com Kala, lançado em 2007, e certamente o maior representante de seu auge criativo. É meio clichê dizer que a força do hip hop - estilo que mais aparece em seu cancioneiro - está nas letras. Mas no caso de M.I.A. é mais do que isso. Não é por acaso que ela canta sem pudor nenhum em Paper Planes - uma das melhores: All I wanna do is *BANG BANG BANG BANG!*, numa canção que é um verdadeiro manifesto terrorista. Em outra parte da música ela provoca: Third world democracy / Yeah, I got more records than the K.G.B. / So, uh, no funny business como que lembrando aos ouvintes que parte da força que emana dos países mais pobres do planeta pode vir da arte de rua, da palavra, do manifesto. De não se calar diante de políticas e ideologias difusas e que promovam injustiças sociais. Paper Planes foi proibida em alguns países - não apenas pela letra feroz e violenta, mas também pelos efeitos que emulam armas sendo carregadas e disparadas (enquanto crianças em coro cantam o refrão em um improvável tom angelical). Recebeu videoclipe e mais visibilidade.


M.I.A já foi proibida de entrar nos Estados Unidos, mostrou o dedo do meio em meio a uma apresentação ao vivo durante o Super Bowl, enfim, provocou a ira das famílias de bem dos EUA. Milhares de civis morrem pela guerra, por fome ou por doenças em países miseráveis ao redor do mundo - muitas delas por práticas de "mercado" realizadas pelos próprios americanos? Qual nada. Calemos aquela cantorazinha atrevida que traz aquela realidade através de sua arte - What's the point of knocking me down?, questiona a artista, como que pasma, em Bird Flu. "Ponho no mapa gente que nunca viu um mapa" se vangloria na espetacular 20 Dollar, a respeito de suas parcerias musicais, que podem ser desde crianças de origem aborígene, até refugiados da Libéria. Ainda que em seus registros mais recentes - especialmente Matangi (2013) e A.I.M, lançado nesse ano, a ferocidade tenha reduzido em partes (com um flerte até mais intenso com a música pop), Kala se mantém, até hoje, como um verdadeiro manifesto pulsante e realista em que os horrores do mundo se combinam com a verve festiva, multicolorida e lasciva da cultura diversificada. Sim, a batida pode ser descoladíssima (Bamboo Banga), o amor se torna confuso em tempos de guerra (Boyz), a malandragem vira a ordem do dia (Hussel) e os sonhos juvenis podem ser suplantados pela dura realidade (Mango Pickle Down River) Mas é a poética enérgica que se sobressai. Um registro fundamental.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - 7 Caixas (Paraguai)

De: Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori. Com Celso Franco, Lali González, Victor Sosa e Nico Garcia. Suspense / Drama, Paraguai, 2012, 105 minutos.

A lista de filmes produzidos no Paraguai ainda é tão incipiente que, em uma eventual busca na Wikipedia - sei que não é a melhor fonte, mas geralmente ela costuma organizar relativamente bem materiais que formem esse modelo de "almanaque" -, o único filme citado é 7 Caixas (7 Cajas), estrondoso e surpreendente sucesso lançado em 2012, pelos diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori. Nesse sentido, não é por acaso que o escolhemos para inaugurar mais um novo quadro aqui no Picanha. O A Volta ao Mundo em 80 Filmes procura jogar alguma luz em produções de países que possuem pouca (pra não dizer nenhuma) tradição, no que diz respeito a sétima arte. Aqui, ao invés de obras italianas, austríacas, francesas ou iranianas - como ocorre em outros quadros, como o de Tesouros Cinéfilos -, predominarão películas da Arábia Saudita, Letônia, Papua Nova Guiné, Venezuela ou qualquer outro que não tenha muita expressão.

E saber da história política recente do Paraguai - que passou mais de 30 anos mergulhado no regime militar de Alfredo Strossner (mais ou menos o mesmo período em que o País ficou sem lançar filmes) - torna 7 Caixas, a despeito das eventuais limitações ou de um ou outro abuso de clichês, uma verdadeira preciosidade. A história é narrada a partir do ponto de vista do jovem Victor (Celso Franco), que passa os seus dias tentando ganhar a vida como carregador de compras em uma espécie de Mercado Público de Assunção. Em meio a uma negativa e outra e a competitividade entre os carreteiros ele nutre, ainda, o sonho de ser ator de novelas (ou de Hollywood) - e não é por acaso que ele fica praticamente embriagado de prazer sempre que passa por alguma tela de TV que esteja exibindo qualquer programa no estilo.



A paixão pelo audiovisual se torna ainda mais obsessiva quando sua irmã lhe tenta vender um celular que faz gravações de vídeo - por mais toscas (do ponto de vista técnico) que estas sejam, dada a precariedade do aparelho, que remonta aos modelos que eram comercializados no final dos anos 90 - período em que, muito provavelmente, a trama ocorre. A chance para a aquisição do aparelho surge com força quando ele é contratado, meio as escondidas, por um açougueiro para carregar sete caixas para um lugar que, futuramente, lhe será indicado. Enquanto realiza a tarefa, que parece indicar a existência de algum tipo de negócio escuso por trás, ele será persesguido não apenas pela polícia, com suas permanentes "verificações de rotina" realizadas no mercado, mas também por outro carreteiro, que queria ter obtido o trabalho. Além dos trombadinhas, prontos pra fazer algum saque.

Tratando o mercado como um local absolutamente insalubre, geograficamente complexo e quente, a dupla de diretores constrói uma obra tão cheia de reviravoltas e surpresas - equilibrando clima policialesco de literatura pulp com suspense urbano - que fica praticamente impossível não se envolver com o drama dos personagens. São muitas "frentes" querendo aquelas caixas e o mistério por trás do conteúdo delas é uma das peças-chave desse magnífico quebra-cabeças. Trazendo ainda personagens que mais parecem saídos de histórias em quadrinhos - o seboso vilão interpretado pelo astro Nico García é simplesmente inacreditável - a obra ainda equilibra na medida certa os momentos de humor e tensão, ainda que, em linhas gerais, será o sentimento de desolação diante de um sistema que falha estupidamente, aquilo que irá se sobressair.


Com um estilo de filmar que emula, ainda, obras como Quem Quer Ser Um Milionário? e, mais especificamente, Cidade de Deus, Tama e Maneglia não se furtam em utilizar artifícios como câmera-lenta, visão subjetiva e imagem granulada que, somados aos enquadramentos sempre aproximados de seus personagens, transformam o já citado mercado em um local absolutamente sufocante. Reservando ainda para o terço final uma espécie de "final feliz oblíquo", o filme ainda flerta, timidamente, com o sensacionalismo da televisão e a ambição pela fama. Visto por mais de 250 mil pessoas no Paraguai - o que, dado o mercado restrito representa o recorde de visualizações, superando Titanic - 7 Caixas recebeu dezenas de premiações mundo afora e pode representar um novo caminho para o cinema dos hermanos. Quem sabe assim a expressão "filme do Paraguai" possa deixar de ter apenas um sentido.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Na Espera - Passageiros (Filme)

Quem acompanha o Picanha de perto sabe que temos uma quedinha FORTE por ficções científicas. Então, com a revelação recente do trailer de Passageiros (Passengers) - nova empreitada do diretor Morten Tyldum (do fraco e oscarizado O Jogo da Imitação) - nem é preciso dizer que já estamos na expectativa! O trailer - que, invariavelmente, parece entregar demais - vai do clima de comédia romântica espacial (e ultra-estilosa) ao suspense de ação para apresentar a história de dois passageiros que são despertados 90 anos antes do tempo programado em meio a uma viagem interplanetária, por conta de um problema de mal funcionamento de suas cabines. Não é preciso ser nenhum gênio para saber que esta não será a única ameaça as suas existências - e a de outros tripulantes da nave - já que parece haver algo "lá fora".



Sim, tem uma cara meio de "Framboesa", mas fato de a dupla de protagonistas ser os astros Chris Pratt e Jennifer Lawrence - que segue em um ritmo intenso de colaborações com os mais variados realizadores - mantém a esperança em alta. Inclusive, há quem aponte, nas bolsas de apostas, para uma eventual aparição do longa nas categorias técnicas da próxima edição do Oscar. O que ocorrerá, ainda é cedo para saber. No Brasil, o filme - que ainda conta com Michael Sheen e Laurence Fishburne, no elenco - estreia no dia 05 de janeiro de 2017.




Cinema - A Comunidade (Kollektivet)

De: Thomas Vinterberg. Com Ulrich Thomsen, Trine Dyrholm, Lars Ranthe, Fares Fares e Julie Agnete Vang. Drama, Dinamarca / Holanda / Suécia, 2016, 107 minutos.

Nunca óbvia a filmografia do dinamarquês Thomas Vinterberg - integrante do famigerado movimento Dogma 95 - pode dividir opiniões, por apresentar as suas ideias muitas vezes soterradas por camadas de "cinema cabeça", que mais parecem querer esconder qualquer lógica por trás do que revelar um objetivo eventualmente mais... direto. Foi assim com a distopia futurista Dogma do Amor (2003), que dava conta de uma humanidade literalmente mais fria, doente e individualista, com o líbelo antiarmamentista Querida Wendy (2004) e até mesmo com o recente A Caça (2012) - mais bem-sucedida incursão do diretor - que subvertia a lógica existente por trás de um caso de estupro de menor. Enfim, nunca é um cinema fácil. Por vezes pode até parecer ser meio metido a besta. E, é preciso que se diga que, em partes, parece ser exatamente este o caso de A Comunidade (Kollektivet), em cartaz nas salas do País.

Bem longe de ser uma obra ruim, o problema de A Comunidade parece ser a permanência no meio termo. Sem se arriscar demais no debate - seja ele político, ideológico, cultural - Vinterberg parece disposto a avançar só um passinho adiante, para em seguida recuar, levando a película para uma zona de conforto certamente desnecessária - e que acaba por jogá-la, infelizmente, na vala comum. A trama nos apresenta ao casal Erik (Ulrich Thomsen) e Anna (Trine Dyrholm). Ele, um arquiteto, frio, cartesiano, lógico, conservador. Ela uma apresentadora de TV de (aparente) espírito livre, agregadora, sonhadora, idealista. Ao herdar, nos anos 70, uma casa de mais de 400 m² no subúrbio de Copenhague o casal decide, com o apoio da filha de 14 anos, formar uma espécie de comuna com o objetivo de viver com outras pessoas que possam auxiliar nos cuidados do local - e também com suas despesas, evidentemente.



Após um rápido preâmbulo, algumas pessoas são escolhidas a dedo - antigos amigos, amantes, colegas de trabalho - e outras desconhecidas são entrevistadas, com a intenção de formar o grupo definitivo. É claro que em uma "família" com tantas personalidades, comportamentos e estilos de vida diferentes a tendência de a ideia não funcionar direito é alta - mais ou menos como ocorre no (des)encontro de Festa de Família (1998), estreia de Vinterberg. Erik, por exemplo, tem dificuldade em aceitar o estilo despojado do desempregado Allon (Fares Fares). Já para Ole (Lars Ranthe), as despesas com bebidas alcoólicas poderiam ser divididas por todos - inclusive por aqueles que não bebem. Mas a situação se torna insustentável mesmo quando aparece na vida do grupo uma moça chamada Emma (Helene Reingaard Neumann), aluna e amante de Erik.

A chegada de Emma representará o começo da ruína de Anna, pelo simples fato de a protagonista travar uma luta interna entre aquilo que ela acredita ser um ideal - a vida livre, o relacionamento aberto e o sentimento de comunidade - e aquilo que lhe diz o coração. É um confronto entre nossas crenças e e aquilo que, de fato, fazemos - e talvez aí resida um dos maiores méritos do filme, ainda que esta lógica possa soar eventualmente machista para alguns. Anna e Erik se gostam, se respeitam, se amam. Mas até que ponto um ideal pode estar acima disso? Sem fazer concessões no que diz respeito a sua carga dramática, a obra traz altíssimo grau de exigência para a interpretação de Dyrholm, outro ponto positivo, capaz de dizer muito apenas com o movimento do corpo, com o olhar ou mesmo com os silêncios. Ainda assim a obra, como um todo, fica no quase - e talvez com mais profundidade ou mesmo melhor caracterização de época as ideias pudessem ter sido melhor exploradas.

Nota: 6,3

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Tesouros Cinéfilos - O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament)

De: Jaco Van Dormael. Com Benoît Poelvoorde, Yolande Moreau, Catherine Deneuve e Pili Groyne. Comédia / Fantasia, Bélgica / França / Luxemburgo, 2014, 114 minutos.

Deus existe, está muito "vivo" e é um velho entediado, rabugento, beberrão e malvado que vive com a esposa e a filha de 10 anos de idade nos arredores de Bruxelas, na Bélgica. A menina, de nome Ea (Pili Groyne), cansada do comportamento abusivo e violento do pai, aproveita um momento de distração do todo poderoso para invadir o seu computador, que contém os dados de todos os habitantes da terra, para mandar uma mensagem que revelará a data de suas respectivas mortes. Sim, de uma hora para outra todos os moradores do planeta passam a saber - via mensagem de texto por celular (!) - o exato instante em que passarão desta para uma melhor. O absoluto sentimento de finitude gerará, não é preciso dizer, uma série de consequências inimagináveis e de questionamentos entre as pessoas. Afinal de contas, se sabemos o nosso exato momento de bater as botas, para que viver, trabalhar, amar, dividir, se preocupar... enfim, crer!

E será com o objetivo de fugir da ira divina que Ea empreenderá - após um diálogo sobrenatural com o falecido irmão (no caso Jesus Cristo em "pessoa") - uma fuga para a Terra, por meio de uma passagem secreta existente dentro de uma máquina de lavar, com a intenção de escrever, ainda, um novíssimo testamento, com o auxílio de seis discípulos escolhidos aleatoriamente nos arquivos do velho. É tomando por base essa premissa que subverte a lógica deste e de outros dogmas da Igreja Católica, que o diretor Benoit Poelvoorde constrói, com o o ótimo O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament) uma deliciosa fábula moderna que, ainda que resulte em um filme leve, colorido e divertido, não ignora o debate existencialista, passando ainda de raspão por temas relacionados ao destino, ao senso de liberdade e até mesmo ao amor nos tempos modernos.



Quem gosta dos filmes de Jean-Pierre Jeunet - especialmente Delicatessen (1991) e O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001) - certamente se encantará com o estilo absolutamente visual do diretor, que não hesita em ilustrar ideias e pensamentos de todos os personagens da maneira mais palpável possível. Assim, não deixam de ser divertidas, por exemplo, as divagações de Deus Pai a respeito da criação do homem ou mesmo aqueles instantes em que, aborrecido com tudo, resolve descontar nos humanos, criando as tais pequenas desgraças do nosso cotidiano (e que costumamos atribuir a famigerada Lei de Murphy) - casos da fila ao lado que sempre é maior, da louça que sempre se estilhaçará depois de limpa ou mesmo do pão que invariavelmente cairá com o lado da geleia voltado para baixo. Vale o mesmo para o sujeito que, conhecedor da data de sua morte, resolve tentar se matar de todas as formas, procurando realizar uma espécie de "drible no destino".

Nesse sentido também será possível encontrar ecos do trabalho de diretores como Spike Jonze, Charlie Kaufman e Michel Gondry, o que pode ser considerado um belo elogio - e que também serve para dar a ideia do clima psicodélico, eventualmente soturno e da estética de sonho nonsense que ronda a película. Ainda que, aqui e ali, a obra também saiba falar sério, especialmente quando do encontro com alguns dos discípulos na Terra - propositalmente sujeitos a margem da sociedade ou integrantes de minorias, como mendigos, pervertidos sexuais ou pessoas com sentimento de inferioridade. (Naturalmente homens e mulheres aos quais um certo "toque divino" poderá fazer bem no conjunto geral e até mesmo transformar a vida, a despeito do espírito iconoclasta e da natureza subversiva que rege a película e que poderia afastar uma boa quantidade de adeptos)


E se no final dessa simpática obra a impressão que temos é a de estar num videoclipe multicolorido e adocicado do Tame Impala, isso ocorre exclusivamente pelo fato de que o filme prefere muito mais entreter e nos fazer sorrir (e até mesmo resolver as divergências entre todos os personagens passando ainda uma mensagem de amor ao próximo) do que se aprofundar em qualquer tipo de debate. Não por acaso o estilo absolutamente adocicado da película é um dos motivos que a torna um verdadeiro achado - ou um Tesouro Cinéfilo - em meio a tantas outras. Ainda que o filme não tenha conseguido faturar uma vaga entre os finalistas para Melhor Filme Estrangeiro, a indicação na mesma categoria para o Globo de Ouro se tornou praticamente um atestado de qualidade para uma obra tão querida pelo público.

sábado, 24 de setembro de 2016

Cine Baú - Farrapo Humano (The Lost Weekend)

De: Billy Wilder. Com Ray Milland, Jane Wyman, Howard da Silva e Philip Terry. Drama, EUA, 1945, 101 minutos.

Em uma época em que os Estados Unidos mal superavam os efeitos de sua Lei Seca - que baniu nacionalmente a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, o que resultou em um aumento desenfreado do comércio ilegal até meados dos anos 30 -, o clássico Farrapo Humano (The Lost Weekend) permanece até hoje como um filme ousado, rico em sua abordagem e repleto de grandes interpretações. E que, não por acaso, se mantém como um dos principais registros cinematográficos a respeito da degradação humana por conta do abuso do álcool. A obra de Billy Wilder - que recém havia feito o elogiadíssimo Pacto de Sangue (1944) - tem a sua ação decorrida em apenas um final de semana. E o que deveriam ser para Don Birnam (Ray Milland) três dias de passeio ao lado do irmão, como forma de celebrar os dias de "limpeza", se torna uma melancólica e dolorosa batalha de um homem contra o seu vício.

Não é por acaso que o filme já começa com uma bela panorâmica que mostra o improvável local em que Birnam esconde uma garrafa de uísque barato, com o objetivo de levá-la para o passeio, sem o conhecimento do irmão. Mesmo a descoberta do estratagema não o impede de sair para a rua para tomar alguns "martelinhos" em um bar próximo a seu apartamento, enquanto aguarda o horário de partida do avião que lhes conduzirá - para completo contragosto do dono do estabelecimento, já alertado a respeito do comportamento errático de Birnam. E o fato de roubar US$ 10 que deveriam servir para o pagamento da senhora responsável pela limpeza, já dá uma ideia de que, em seu caminho rumo ao abismo e ao prazer momentâneo proporcionado pelo álcool, nada lhe impedirá. (e não será surpresa vê-lo, mais adiante, abusando de discursos autocomiserativos, de mentiras e de trucagens diversas que lhe possibilitem conseguir qualquer trocado para seguir enchendo a cara)



Não é preciso ser nenhum adivinho para saber que Birnam, a despeito das preocupações de sua namorada Helen (Jane Wyman), perderá o voo. Sozinho em casa, não lhe restará nenhum outro interesse que não seja o de beber - e por mais que o protagonista demonstre alguma boa vontade em relação a seus novos projetos como escritor, um certo bloqueio criativo também funcionará como gatilho para o (literal) mergulho no álcool. Tanto que a busca por um estabelecimento aberto para a penhora de sua máquina de escrever, será um dos momentos mais devastadores dessa película, que não faz nenhuma concessão na hora de mostrar a embriaguez como modo de vida. Isso sem falar em outro momento deste triste tratado sobre o alcoolismo, em que Birnam tenta roubar uma bolsa de uma mulher em um restaurante, sem sucesso, sendo posteriormente humilhado por todos os presentes.

Tratando o alcoolismo como aquilo que realmente é - no caso, uma doença - a obra conduz o protagonista a uma situação extrema, em que ele se encontrará em uma espécie de hospital público decadente, repleto de alcoólatras que gritam, esperneiam e dizem ter delírios, visões e outras reações, fruto da abstinência. E se Wilder, ao lado do roteirista Charles Brackett, desenha Nova York como uma cidade poeirenta em que o calor parece ser escaldante - repare no suor absolutamente permanente no rosto nervoso de Birnam - outros detalhes, como a fotografia (de John F. Seitz) levemente turva e mais escurecida nas cenas em que a embriaguez aumenta, também conferem a película um aspecto totalmente evocativo no que diz respeito a visão de mundo de um bêbado. Algo reforçado por sutilezas como as diversas "marcas" arredondadas, formadas pelo fundo umedecido do copo sobre o balcão do bar, capazes de denunciar, mesmo sem mostrar claramente, a quantidade de doses consumidas pelo sujeito.



Ainda que o Código de Produção de Hollywood tenha imposto um final feliz - de acordo com o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer -, até hoje, assistir a Farrapo Humano se torna um exercício quase insuportável, conforme nos defrontamos com a derrocada de um homem que parece não ter mais nenhuma motivação para viver (que não seja afundado na bebida). E evitando fazer juízo de valores, o filme, de maneira inteligente, mantém aquelas pessoas que amam Birnam a seu lado, mesmo nos momentos mais extremos. O tema espinhoso - especialmente para a época - não impediu a Academia de conceder a obra o Oscar na principal categoria da noite - distinção dada também a Wilder (diretor), Miland (ator) e Brackett e Wilder (roteiro). O reconhecimento a Wilder, por sua vez, pavimentou o caminho para que, mais tarde, ele entregasse outras obras-primas, como Crepúsculo dos Deuses (1950), A Montanha dos Sete Abutres (1951), Quanto Mais Quente Melhor (1959) e Se Meu Apartamento Falasse (1960), em uma das filmografias mais versáteis da história do cinema.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Lançamento de Videoclipe - Radiohead (Present Tense)

Responsável por um dos melhores discos de 2016 até o momento - no caso, o elogiadíssimo A Moon Shaped Pool -, o Radiohead, banda capitaneada por Thom Yorke, lançou na semana passada um videoclipe para a ótima canção Presente Tense - no caso, a terceira música a receber registro visual, depois de Burn The Witch e Daydreaming. Assim como ocorreu com Daydreaming, o clipe foi novamente dirigido por Paul Thomas Anderson - responsável por "clássicos modernos", como Magnólia (1999), Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). Visualmente simples, com fotografia escurecida e iluminação amarelada, o vídeo mostra Yorke e o guitarrista Johnny Greenwood em uma espécie de performance intimista e melancólica ao vivo, acompanhados de uma drum machine CR-78. Não precisa mais do que isso para uma das maiores bandas do planeta. Bora clicar!?

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Disco da Semana - PARTYBABY (The Golden Age of Bullshit)

É difícil escolher, em um mundo repleto de possibilidades, um único disco para ouvir e ainda por cima resenhar. São muitos artistas lançando álbuns o tempo todo, sendo que muitas obras geniais podem passar despercebidas. O que faz com que um álbum prenda nossa atenção e faça com que dediquemos nossos preciosos minutos apreciando-o? Não sei dizer, mas às vezes acontece de um disco te pegar assim, "de primeira", resgatando alguma memória afetiva ou até mesmo te fazendo cantarolar mentalmente algo que, em uma dessas playlists da vida, era apenas música de fundo.

E foi assim que conheci o duo (a banda?) PARTYBABY há mais ou menos uns dois dias (!). A música em questão, California, fez com que eu voltasse atrás no player pra ver quem tocava aquela canção que, embora uma revelação contemporânea, trazia diversas recordações de uma sonoridade distante (mais precisamente o rock dos anos 90) mas com uma energia enorme e produção muito atual. A partir dali fui buscar seu único (e recente) álbum, intitulado The Golden Age of Bullshit. Não bastasse o título super bacana, o disco (EP?) conta com apenas 8 canções, todas na casa dos 3 minutos, algo que favorece os mais apressados que na correria do dia a dia buscam algo mais leve, digamos assim, para se ouvir.


E é justamente o formato econômico da obra em questão e suas canções que me fizeram apertar o repeat diversas vezes e ouvir incessantemente as enérgicas musiquetas que revisitam sem pudor os sons que marcaram minha adolescência nos anos 90. Se pudemos emular um Weezer aqui, ou um Best Coast ali (pra citar algo mais contemporâneo), os vocais lembram muito Soul Asylum e até o Billy Corgan do Smashing Pumpkins. Algumas melodias podem remeter ao som que o Hole fazia ao misturar o pop com o punk e o garage rock, tudo muito representativo de uma fase importante da juventude de muita gente. Formado pela dupla Noah Gersh (Portugal, the Man) e Jamie Schefman (produtor da banda 30 Seconds to Mars), o PARTYBABY surgiu com a promessa nada modesta de ser "a mais divertida e excitante banda do planeta".

Se essa promessa se cumprirá um dia não sei, mas que esta pequena obra cumpre o papel de divertir e reavivar no ouvinte aquela nostalgia gostosa e a energia jovial tão necessária para seguirmos em frente, disto não tenha dúvida. Seja na pedrada melódica Your Old Man (que lembra muito a obscura banda Bicycle Thief), no punk Everything's All Right. no já citado hit California, na balada Don't Say It e no ápice New Years 2014 on a Beach (Felicity), tudo é lapidado de forma a te pegar pelo ouvido, te arrastar de volta ao tempo em que a música ainda tinha o poder de te tirar do sofá e querer formar uma banda, colocar um clipe na MTV e conquistar aquela sua paixão de adolescência. Se as letras não pretendem mudar o mundo, pelo menos são honestas à sua maneira. Uma boa e breve surpresa, simples e direta como a boa música deve ser.

Nota: 8,7


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cinema - Aquarius

De: Kleber Mendonça Filho. Com Sonia Braga, Maeve Jinkings, Humberto Carrão e Irandhir Santos. Brasil / França, Suspense / Drama, 2016, 141 minutos.

Não fosse todo o falatório em cima do protesto que denunciava o golpe em curso em pleno Festival de Cannes desse ano e talvez Aquarius passasse pelas salas brasileiras como mais um ótimo filme de autor, com trama envolvente, recheado de sutilezas e com personagens multidimensionais, mas bem distante da patética dicotomia reducionista que vivemos hoje no País e que joga de um lado os coxas e de outro os petralhas, sem meio termo (hoje em dia até quem é a favor de ciclovias é taxado de comunista, só pra exemplificar). Sim, por que diferentemente do que ocorre com obras mais engajadas ou no cinema de protesto, a película de Kleber Mendonça Filho - inacreditavelmente preterida para o Oscar - não denuncia escancaradamente as injustiças sociais, não fala claramente da dura relação entre a classe operária e os patrões ou mesmo de conquistas quaisquer relacionadas às minorias. Não há nada disso no filme. Ao menos não de maneira evidente, é preciso que se diga.

Não é por acaso que a protagonista Clara (Sonia Braga), é uma senhora de 65 anos bem vividos, viúva, que mora sozinha no bom apartamento de classe média em que criou os seus três filhos na praia de Boa Viagem, no Recife. Clara, ao menos inicialmente, não está a margem da sociedade, não está passando fome, não enfrenta filas para atendimento a saúde, tem quem lhe auxilie n os cuidados com a casa e curte a justa aposentadoria de quem dedicou a vida ao trabalho como jornalista. Qual o motivo, então para a raiva mortal de boa parte da direita batedora de panela (bem como de seus articulistas) em relação ao filme de Mendonça Filho? É que o caso é que este é um filme que toma por base a sutileza para falar de experiências. E sobre como estas experiências são capazes de formar o nosso caráter, moldando a nossa personalidade e alterando a lógica do senso comum da atualidade sobre aquilo que realmente é importante em nossas vidas.



Pra exemplificar: Clara mantém uma coleção de vinis em seu apartamento e que contém, em sua essência, parte da história da família. Foi escutando eles que, na juventude, conheceu seu marido, criou seus filhos, chorou, sorriu, teve perdas e ganhos, enfim, viveu. E se os vinis funcionam como um gatilho para o resgate daquilo que verdadeiramente importa - e que vai muito para além do aspecto financeiro - assim também é com outros objetos (ou mesmo cheiros e sensações) que compõem o apartamento de Clara que, se por um lado está antigo e talvez careça de pintura, é pleno em vivências, em boas recordações, em história. (e não é por acaso que, em uma das tocantes cenas iniciais, quando voltamos ao passado para uma homenagem a uma tia de Clara, percebemos que os moveis antigos, ao invés de servirem como produtos mera cenografia descartável ou base para a colocação de bibelôs, retornam a mente da mesma tia como o local em que ela fez sexo de todas as formas imagináveis com o antigo amante)

Assim, a protagonista não precisa de dinheiro. Não precisa de um apartamento branco, asséptico, inodoro, limpo, tecnológico e sem vida, no mesmo local em que passou toda a sua existência. Essa é uma (e talvez a maior) transgressão cometida por Aquarius. O desafio. A subversão da lógica. Tanto que quando um grupo de investidores aparece no local adotando o discurso da fala mansa, da gentileza e da (aparente) generosidade, interessado em comprar o apartamento de Clara, já sabemos, com poucos minutos de exibição, que aquele espaço não está a venda. Não estará a venda. E só poderá ser adquirido quando a protagonista falecer. Algo que, a princípio, não ocorrerá tão cedo, já que Clara foge (e muito) do estereótipo da velhinha que passa os dias na casa de bingo como que se aguardasse o ocaso de sua existência, já que ela sai com as amigas para dançar, toma banho de mar em locais perigosos, bebe o seu vinho, conversa sobre tudo com plena lucidez e ainda faz sexo com um garoto de programa, se assim lhe interessar. (opa, aí pode estar uma SEGUNDA transgressão do filme e que, sim, poderá chocar as famílias de bem acostumadas com as suas vovozinhas fazendo bolo para os netos)


Apresentando o grupo de investidores como a face mais realista da meritocracia, Mendonça Filho não faz concessões na hora de mostrar o jovem de nome Diego (o ótimo Humberto Carrão) como um sujeito quase caricato que acredita ser alguém superior pelo simples fato de ter feito três anos do curso de Business - certamente pagos com o dinheiro do papai, já que família de empresários do ramo imobiliário já está na terceira geração. E se a incredulidade diante das negativas de Clara para as ofertas com valores "irrecusáveis" são uma mostra do pensamento daquela parcela da população para a qual o dinheiro definitivamente é a felicidade - o que explica o fato de a tragédia política da direita ser sempre financeira - o mesmo pensamento também povoa a ideia da filha da personagem de Sonia Braga, Ana Paula (Maeve Jinkings, em mais um ótimo papel), que, ao mostrar-se genuinamente preocupada com a mãe, também é capaz de denunciar uma certa existência vazia de significados que, adaptada a esta nova sociedade de "vencedores e perdedores", enxerga um apartamento velho, como... um apartamento velho. E assistir as discussões entre as duas em algumas das melhores sequências do filme é ver a direção de atores como verdadeiro exercício artístico, com diálogos maravilhosos, capazes de nos levar do riso ao choro em segundos. (e que também mostram que cada personagem tem a sua lógica de vida e a sua personalidade, que jamais será unidimensional ou necessariamente a mais correta)

Inspirando-se claramente em Janela Indiscreta, de Hitchcock, Mendonça Filho transforma, ainda, a câmera em primeira pessoa no nosso olhar para o mundo exterior. E será através dele que a protagonista observará não apenas o mar, as pessoas e a natureza que lhe rodeia, mas também a chegada dos investidores ou mesmo de um grupo de jovens que chega para uma festa, o que garante momentos de indistinta tensão - sensação ampliada pela ótima trilha sonora, que utiliza, em muitos casos, o mesmo som diegético já aplicado pelo diretor no imperdível O Som ao Redor. E se o elenco como um todo está maravilhoso, é o trabalho intenso de Sonia Braga um dos pontos altos do filme. Despida de qualquer vaidade, a atriz se entrega de corpo e alma a um papel que, se por um lado emociona e nos envolve, por outro mostra uma mulher que desafia o tão conhecido choque de gerações, capaz de reduzir os idosos a sujeitos dotados apenas de necessidades, para apresentar-nos alguém que possui força, identidade própria e personalidade. E que joga pra longe a lógica do sujeito mais velho desenhado como uma pessoa conservadora, idiotizada do ponto de vista político, ou mesmo preconceituosa. Talvez esteja aí uma terceira sutil transgressão. Num conjunto desafiador que talvez explique a esnobada para o Oscar, em mais um dos tantos momentos constrangedores protagonizados pelo governo golpista. Mas isso é o de menos: se você, leitor do Picanha, for capaz de superar o debate político em favor da arte, certamente encontrará em Aquarius um dos grandes filmes desse início de milênio.

Nota: 10

sábado, 17 de setembro de 2016

Picanha em Série - Narcos (2ª Temporada)

[SPOILER ALERT: caso você ainda não tenha visto a série e não quer ter nenhuma surpresa estragada, vai lá e assiste e depois volta aqui pra ler =)]

Os fãs de Narcos ficaram arrasados quando a Netflix anunciou, apenas cinco dias após o lançamento da segunda temporada da série estrelada por Wagner Moura, que haveria continuação mesmo com o patrón mais famoso da telinha tendo sido abatido. Não, ninguém ficou triste pelo fato de haver uma terceira temporada - ainda que, a meu ver, o acabamento seria muito mais digno se o final da segunda leva de episódios representasse verdadeiramente o encerramento do projeto. O problema foi o BAITA spoiler involuntário, afinal de contas, por mais que boa parte das pessoas saiba qual foi o desfecho de Pablo Escobar, ainda havia a esperança de que a sua morte pudesse ser empurrada para a próxima temporada. Fora aqueles que faltaram nessa aula de história - o meu caso - e que nem sempre conseguem acompanhar em tempo real cada produto lançado pelo prolífico serviço de streaming.

Bom, Pablo morreu - e junto com ele se vai toda a mística por trás do sujeito, bem como seus modos absolutamente irascíveis, imprevisíveis e invariavelmente intempestivos. E por mais que a série - que tem entre os seus vários produtores executivos o brasileiro José Padilha - mostre de forma competente a verve insana e a aptidão para a crueldade e para o banho de sangue de seu protagonista, é perfeitamente possível compreender os motivos de boa parte da crítica ter ficado desgostosa com a forma "branda" como a sua carismática persona é mostrada na telinha. Sim, se por um lado centenas de pessoas morreram por suas mãos - a maioria deles policiais e pessoas ligadas aos serviços de segurança - por outro, o fechamento do cerco que busca desmantelar o cartel de Medellín reforça a sua preocupação com a família. Resultando até mesmo em uma surpreendente serenidade diante do perigo, especialmente quando o objetivo é o de proteger a esposa Tata (Paulina Gaitán) e os filhos.



A segunda leva de episódios inicia imediatamente ao final dos eventos vistos no final da primeira temporada, quando da fuga do patrón, dos capangas e da família de La Catedral - espécie de prisão que Escobar havia forjado para si próprio. É preciso que se diga que, em relação as cenas em que o maior narcotraficante de todos os tempos escapa do local em que está, a segunda temporada funciona quase como uma espécie de road movie policial, com fugas variadas de casa em casa, conforme a pressão pra cima do cartel de Medellín aumenta. E nesse sentido, não chega a surpreender o fato de Escobar buscar refúgio justamente na isolada propriedade rural de seu pai, quase ao final da temporada, em um dos episódios mais contemplativos e complexos do ponto de vista da interpretação, com Moura indo do amor ao ódio por seu progenitor em questão de segundos, o que garante momentos tensos e ternos na mesma medida.

Ir até a casa do pai é uma reação extrema, afinal todos estão atrás de Pablo Escobar. Quando digo todos, é todos MESMO. A começar pelo presidente César Gavíria (Raúl Mendez), que reforça o discurso e a procura pelo homem, apresentando como braço direito um certo chefe de polícia de nome Horacio Carrillo (Mauricie Compte) que, a despeito dos métodos inconsequentes de intimidação - com direito a assassinato de criança - acaba tendo um final trágico em uma emboscada forjada por Pablo. Outro grupo que quer a cabeça do chefão de Medellín é um que se autodenomina Los Pepes - espécie de grupo de extermínio de extrema de direita que, no passado, lutou contra facções comunistas do País e que tem a desculpa perfeita para querer matar Escobar que, no passado, se alinhou com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Se somam a estes, os antagonistas do Cartel de Calí, reforçados pela agora viúva Judy Moncada (Cristina Umaña) e entende-se os motivos de ser difícil até de comprar um picolé na esquina para a família Escobar.



E ainda há os agentes do DEA, Javier Peña (Pedro Pascal) e Steve Murphy (Boyd Holbrook), este segundo que segue como o fio condutor da história, ao narrar cada etapa das desventuras relacionadas a busca por Escobar, além de outros sujeitos relacionados a CIA e ao Ministério da Justiça, todos com a intenção de fazer o homem se entregar. A série não perde tempo com tramas paralelas, apenas incluindo novas personagens que, não apenas terão papel de destaque na trama, como ainda serão parte dos mais desoladores arcos dramáticos dessa segunda temporada. E não é por acaso que o último encontro entre o taxista cafetão Limón (Leynar Gomez) e a feirante e amiga de Limón Maritza (Martina Garcia) é daqueles para deixar um gosto amargo por horas, ao final do episódio, quando novamente é esfregado na nossa cara o fato de não haver limites para a violência, quando o assunto é atender as exigências e as necessidades do patrón.

Contando ainda com um elenco fabuloso em todos os sentidos - e não será surpresa uma nova indicação de Wagner Moura para as premiações, além de gostar muito de Diego Cataño como o La Quica, braço direito de Escobar que transborda violência por cada poro - a segunda temporada não economiza sangue, ainda que, aqui e ali, encontre espaço para momentos mais pueris (e até mesmo lentos), com muitos closes na expressão de Pablo que está ainda mais gordo e festivos (especialmente aqueles em que os Escobar se esforçavam para tentar ser uma família 'normal' em meio ao caos). Ao se manifestar sobre a série, o filho de Pablo Escobar, Juan Pablo afirmou haver 28 quimeras (que pode ser traduzido com "fantasias"), na produção da segunda temporada e que não seriam condizentes com a realidade. O caso é que Narcos nunca se disse fiel aos fatos - e não é por acaso que em TODAS as aberturas de episódio aparece um aviso que se trata de uma obra ficcional, inspirada em eventos reais. Mas Pablito não mais precisará se preocupar. A partir da terceira temporada é o Cartel de Cali quem comanda a "festa", com a queda do, até então, homem mais rico do mundo. E nós, aqui desse lado, esperamos que com a mesma qualidade.

Nota: 8,3

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

09 Considerações Sobre o Show d'O Terno em Porto Alegre

Na quinta-feira (15/09) parte do cast do Picanha - no caso este jornalista que vos escreve - teve a oportunidade de prestigiar a apresentação dos paulistanos d'O Terno, no Bar Opinião em Porto Alegre. Nesse pequeno post, um resumo do que foi essa noite muito legal!

1) Não era a primeira vez da banda no Opinião - eles já tocaram uma boa quantidade de vezes na segunda maluca. Mas o objetivo desta vez era diferente: lançar oficialmente, na capital gaúcha, o álbum Melhor do Que Parece -, elogiadíssimo trabalho que deverá figurar em todas as listas de melhores desse ano. Talvez isto também explique o fato de boa parte do público estar pela primeira vez em uma exibição d'O Terno, o que foi possível perceber quando o vocalista Tim Bernardes fez uma pergunta relacionada a isso (e mais de 70% dos braços foram levantados).

2) Como a apresentação tinha a proposta de mostrar o disco novo, com a roupa laranja e tudo, naturalmente o disco foi prioridade. Não foi por acaso que o show começou com Não Espero Mais, Nó e o single culpa em sequência - este último com refrãozinho divertido cantado em uníssono pelo público presente. Mais tarde outra canções do registro apareceriam, casos de Lua Cheia, Minas Gerais, Vamos Assumir e O Orgulho e o Perdão - esta última outro momento alto, já que a canção, com seu estilo samba-brega-de-cabaré é daquelas com um dos refrões mais fáceis de cantar.

3) Falando em refrão, tava claro que o público estava esperando ansiosamente por Bote ao Contrário, que, com aquele clima Jovem Guarda ao estilo rei Roberto Carlos fase Em Ritmo de Aventura, talvez seja uma das mais queridas músicas dos fãs. E os versos ao mesmo tempo lamentosos e cheios de autoconfiança, cantados por todos a plenos pulmões, certamente contribuem para isso.



4) Além de Bote ao Contrário, outra canções do autointitulado segundo disco do trio garantiram alguns dos momentos mais psicodélicos da noite, especialmente O Cinza e Eu Confesso. Ai, Ai, Como Eu Me Iludo recebeu uma versão mais veloz que conferiu a ela certo clima festivo - mas sem perder a melancolia.

5) Falar do segundo trabalho é lembrar das principais ausências do setlist. Sei que Desaparecido - com sua letra absolutamente nonsense e nostálgica - certamente não seria uma música pra levantar o público, Mas Brazil, com seu refrão pegajoso e efeitos de teclado marcantes parecia estar pedindo pra ser executada ao vivo. Quem sabe em uma outra.

6) O Fora Temer dito em alto e bom som pelo vocalista Tim Bernardes em meio a apresentação foi aplaudido com entusiasmo pelo público. Naturalmente quem está presente em um show desses, de uma banda que sobrevive de maneira independente e recebe atenção ZERO da grande mídia, é alguém atento as mais variadas formas de arte feitas em nosso País. E ARTE, sabemos bem, é uma palavra maldita para a direita raivosa, conservadora, irritadiça e pouco afeita a novas experiências culturais. Sim, aquele mesmo povo que bate panela pedindo o fim do Ministério da Cultura e dá risada com a não indicação de Aquarius ao Oscar pelo mesmo Ministério. O que é uma pena.



7) Sobre as interações da banda com o público, em geral elas foram gentis e educadas, a despeito da figura um tanto debochada de Tim Bernardes - sério, é quase impossível não sorrir olhando para ele. Em certo momento um jovem gritou: Tim , te amo! Ele prontamente respondeu: Ei! Também te amo cara, pra alegria dos presentes!

8) A propósito: talvez tenha sido a boa receptividade do público o motivo para que o trio - completado por Guilherme D'Almeida e Gabriel Basile - tenha retornado ao palco para um raro segundo bis. A propósito, foi no retorno ao palco que as ignoradas canções do primeiro trabalho foram executadas, entre elas Zé, Assassino Compulsivo solicitada de maneira comovente pelo público - inclusive pela galera do fundão, onde estávamos. 66 também marcou presença, com sua métrica torta e versos corrosivos sobre o mercado artístico-cultural.

9) Ao final o que fica é que O Terno é, de fato, uma das bandas mais legais e potencialmente inovadoras da atualidade, com seus integrantes bebendo, sim, da fonte da Jovem Guarda e da psicodelia dos Mutantes, mas trazendo muita personalidade para as suas canções - e o fato de Bernardes se alternar entre o teclado e a guitarra dá uma boa dimensão da capacidade técnica. O que pode ser percebido também durante a execução de algumas canções, caso de Melhor do Que Parece, em mais um dos tantos momentos "viajantes" da noite.

Semana que vem tem mais, com a nossa presença nos shows do Silva e da Dingo Bells, na sexta (23/09), no mesmo Bar Opinião! Bora? =)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Disco da Semana - Teenage Fanclub (Here)

Melodias acessíveis, arranjos econômicos, letras adocicadas, refrões ganchudos e uma indelével verve para a música pop. Essas são as características do Teenage Fanclub desde SEMPRE e que fazem com que os fãs aguardem cada novo lançamento - cada vez mais espaçado - como se este fosse um verdadeiro objeto de culto. E não é diferente com Here, décimo trabalho dos escoceses, que entregam uma nova coleção de canções ensolaradas, livres de qualquer tipo de firula e prontas para o consumo imediato. (e aqui, caso você não conheça a banda, é importante que você ignore aquela parcela da crítica mais indisposta, que insiste em esperar um novo Grand Prix, obra-prima de Normam Blake e companhia, lançada no ano de 1995 e figurinha fácil em qualquer lista de melhores não apenas daquela década, mas de todos os tempos, se vocês me perdoam a paixão exacerbada)

Partindo exatamente de onde parou no ótimo Shadows, de 2010, a banda não tem a mínima vergonha de recorrer as características que delimitam (ou marcam) os seus trabalhos anteriores, ao ponto de pensarmos que Here não faria feio caso fosse lançado como espécie de registro de sobras de estúdio de qualquer época. E se a abertura com a radiofônica I'm In Love parece um retorno inevitável a época de Bandwagonesque (1991) - e daquele período em que aguardávamos o Lado B, comandado por Kid Vinil na finada MTV, só pra assistir ao videoclipe de Star Sign - pequenas preciosidades como Thin Air, It's A Sight, Hold On e The Darkest Part Of The Night, parecem homenagens ainda mais escancaradas aqueles grupos que fizeram parte de sua formação musical, casos de The Byrds, Beach Boys e, mais especificamente, Big Star.



Afagando o ouvinte a cada curva de suas agradáveis canções ao mesmo tempo elegantes e cheias de personalidade - e que se equilibram bem entre o requinte do cancioneiro do Reino Unido e o shoegaze americano - os rapazes, na verdade agora senhores de meia idade, mantêm a mesma qualidade lírica, ainda que, eventualmente, as preocupações da vida, do cotidiano e dos relacionamentos possam ser outras. E não é por acaso que a banda reflete sobre as agruras de se viver em um mundo cheio de dor - e de pessoas que se magoam - já na abertura, com I'm In Love - There is pain in this world / I can see it in your eyes / It's so hard to stay alive / At the edge of the night, observa o eu lírico, não sem uma uma boa pitada de resignação.

Ainda que as temáticas - e o recurso da análise do cotidiano e do ponto de vista individual como um recorte para o todo - sejam repetidas em outras momentos, casos de I Have Nothing More to Say, I Was Beautiful When I Was Alive e na já citada The Darkest Part Of The Night, isso não significa de forma alguma que o grupo está mais melancólico. Ainda que, aqui e ali, a presença de uma balada a mais, de alguma psicodelia desviada, do teclado gracioso ou do clima absolutamente intimista, possam dar essa impressão. Leve e singelo como a sua imagem de capa - uma pintura de uma cachoeira em um cenário bucólico que poderia remeter ao acolhimento proposto por seus integrantes - Here não chega exatamente para marcar passo como um dos grandes registros desse milênio. Mas o caso é que ele jamais tenta chegar perto disso. Ainda que quase consiga, não se pode negar.

Nota: 8,5

Lançamento de Videoclipe - Dingo Bells (Dinossauros)

Com Maravilhas da Vida Moderna, os gaúchos da Dingo Bells lançaram um dos melhores discos de 2015 - não por acaso o décimo sétimo colocado na nossa lista de preferidos do ano que passou. E o ótimo registro, recheado de canções essencialmente pop - mas que misturam na medida certa o rock, e a soul music -, rendeu na tarde de segunda mais um ótimo videoclipe. Dessa vez a canção escolhida para ser representada visualmente foi Dinossauros - uma das mais reflexivas e instigantes do trabalho. O vídeo, dirigido por Daniel Eizirki, expõe a história de duas meninas - vividas por Bethânia Brancher e Elyza Tx - em meio a animações e colagens. "[O Daniel] É extremamente sensível na exploração de colagens e técnicas", explicou o baixista Felipe Kautz, em entrevista a Revista Rolling Stone Brasil. "Ele também buscou uma outra narrativa, que pode ser uma espécie de desdobramento desse sentimento de finitude que a letra de 'Dinossauros' fala", completou. Se você ainda não conhece o trabalho, o lindo videoclipe pode ser uma bela porta de entrada. Clica e confere!



segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Novidades em DVD - Jogo do Dinheiro (Money Monster)

De: Jodie Foster. Com George Clooney, Julia Roberts, Jack O'Connell e Dominic West. Suspense / Drama, EUA, 2016, 98 minutos.

O filme Jogo do Dinheiro (Money Monster) apresenta uma condição (quase) rara: a de nos apresentar a um grupo de personagens que, se não chega a ser desprezível em sua totalidade, é capaz de nos despertar o mínimo possível de - pra não dizer nenhuma - empatia. E quem gosta de filmes sabe que parte da experiência cinematográfica abrange não apenas o envolvimento com a trama que se desenrola - e com quem participa dela -, mas também a plena compreensão dos desejos e ideias daqueles que protagonizam a obra a que estamos assistindo. Costuma-se dizer que essa lógica se aplica bem as comédias românticas: todos sabemos qual será o desfecho da história. O que a tornará valiosa será o percurso realizado no decorrer do filme e de como nos preocuparemos ou nos enterneceremos diante dos eventos mostrados.

Nesse sentido, um filme que apresenta como principal arco dramático a tragédia econômica dos sujeitos de classes relativamente bem resolvidas nos Estados Unidos, só poderá interessar aos espectadores que procuram um suspense escapista, com alguma pitada de ação e MUITO maniqueísmo. E se há um momento em que a mais recente obra da atriz Jodie Foster - em sua quarta incursão por trás das câmeras - funciona, é em seus primeiros minutos, quando somos apresentados a Lee Jones (Clooney), âncora de um show televisivo chamado Money Monster, que dá dicas sobre mercado financeiro e seus potenciais investimentos, num estilo bem-humorado, próximo do deboche e bem de acordo com o padrão atual que tem na espetacularização a ordem do dia. (e confesso que o trailer de fato me prendeu, especialmente por gostar das películas que abordam os bastidores do jornalismo).



Só que, com a intenção de tornar Lee um sujeito absolutamente seguro de si e de seu papel no show business - o que, não se pode negar, Clooney faz com algum charme - Foster transforma o protagonista em um sujeito totalmente presunçoso, arrogante e, como não poderia deixar de ser, preconceituoso. (e o fato de Lee cantar uma produtora negra que atua nos bastidores da atração, perguntando como está o garçom com quem ela namora, dá conta de seu caráter movido apenas por ação condicionada e pela crnça no poder de 'compra' das pessoas por meio do dinheiro, em um gesto não apenas sem graça, mas de humilhação). E não é por acaso que quando um desconhecido (Jack O'Connell, se esforçando para soar dramático) entra ao vivo no programa, ameaçando mandar tudo pelos ares, já estamos tão desconectados de tudo que vimos até aquele momento, que só o que conseguimos fazer é suspirar e balbuciar um: "ok, vamos lá".

E se por um lado o filme acerta ao apresentar as movimentações de bastidores com a intenção de resolver a questão - boa parte delas a partir das ações da produtora Patty Fenn, personagem de Julia Roberts -, ou mesmo as reações do público e de outros veículos de imprensa diante daquilo que se vê no programa comandado por Lee, por outro o excessivo uso de piadinhas e o pouco caso do personagem de Clooney em relação a um perigo que deveria ser encarado como uma ameaça real, não se pode negar, também dilui parte de uma obra que se pretende tensa. A situação só piora quando conhecemos as motivações do invasor - que perdeu US$ 60 mil em um investimento furado no mercado de ações. E que, agora, é odiado pela namorada grávida que o considera um derrotado pelo fato deste não ter sido capaz de "vencer" nesse tão importante universo que é o dos negócios. Amor? Compreensão? União nas dificuldades? Nada disso. Perdeu grana, rapá. Tu não é NADA.


Se esforçando para não abusar do clima "bandido bom é bandido morto", o que é um razoável acerto, o filme mostra o grupo de policiais a princípio preparado para executar um movimento que poderá (ou não) salvar a vida de todos. E tudo melhora (nessa parte estou ironizando) quando descobrimos que, rá, no fim das contas o real vilão era um megaempresário de uma instituição financeira que desviava verba na mão leve, fazendo muita gente perder dinheiro - num reducionismo, vamos combinar, constrangedor. (e a presença de hackers de Mumbai, da máfia russa e de ativistas africanos tornará o bolo levemente confuso) Se a intenção de Foster era denunciar, por meio deste microcosmo, o estado geral da economia americana, especialmente após a crise de 2008, sim, o seu objetivo poderá ter sido a melhor possível. Mas enquanto não tenho a certeza sobre isso, prefiro ficar com uma obra mais robusta e impactante como A Grande Aposta (The Big Short), que executa melhor esse "diálogo", sem abusar da pirotecnia.

Nota: 4,3

sábado, 10 de setembro de 2016

Disco da Semana - Carne Doce (Princesa)

Enérgico. Cru. Visceral. Sanguíneo. Lânguido. Potente. Selvagem. Transgressor. São tantos os adjetivos possíveis para definir o segundo registro dos goianos do Carne Doce, intitulado Princesa, que a impressão que se tem é a de que eles jamais serão suficientes - funcionando apenas como semântica eventualmente vazia e sem muito significado. Se com o inaugural e homônimo disco de estreia lançado em 2014, o quinteto - formado por Salma Jô, João Victor Santana, Ricardo Machado, Macloys Aquino e Anderson Maia - já foi o responsável por sacudir a cena independente nacional ao apresentar um registro que equilibrava a psicodelia bucólica com o clima intempestivo da urbe, com o mais recente lançamento toda e qualquer ideia explorada naquele trabalho parece agora ampliada, num exercício não apenas de maturidade mas também de sintonia entre os integrantes.

E que resultam em uma nova coleção de canções que abandona, ao menos em partes, a dicotomia campo x cidade - da ótima Amigo dos Bichos e da hoje já clássica Sertão Urbano - para apostar muito mais em temas que envolvem a presença da mulher na sociedade, o empoderamento e o combate a misoginia. Este último que, inacreditavelmente, ainda aparece em debates ideológicos, legitimados por aberrações políticas da (não tão) extrema direita, que bem preferiria uma cantora de estilo submisso e que fosse "bela, recatada e do lar". E certamente não é por acaso que a provocadora canção Falo (num dos melhores títulos de música em duplo sentido da história) brinca com esta condição em seus versos - Já tá cansado da minha voz porque / O tempo todo um timbre feminino é / Pra maioria algo enjoativo / Que tal se agora entrasse um homem aqui?.



Diga-se de passagem a patética condição do homem capaz de "provar" a sua masculinidade da forma mais incorreta possível - seja na base da força ou da virilidade torta fruto de uma sociedade patriarcal -, já é denunciada na inaugural Cetapensâno, grande candidata a música do ano. Com uma saborosa mistura de neotropicalismo e pop minimalista, Salma polvilha cada curva da canção com sua voz selvagem, que tira sarro daquele sujeito que gosta de aparecer, mesmo que pouco tenha a oferecer - Aí, vê! Como eu falei / Co rabo entre as pernas / Taí, como eu previ / Só é macho pras donzela. E, como se fosse um justo complemento, Princesa, que dá nome ao disco, com a sua bateria bem pontuada e guitarra marcante oferece aos (e as) ouvintes outras possibilidades, em um canto que transpira sensualidade.

Longe de parecer um mero "panfleto feminista" (como poderiam acusar alguns), o disco ainda apresenta uma grande variedade de temas. Nesse sentido, diga-se, não seria nenhuma surpresa o álbum se chamar Mil Mulheres, tamanha a quantidade diferente de "eus líricos" encarnados por Salma em cada um dos 57 irresistíveis minutos desse trabalho. E se Eu Te Odeio brinca com as contradições de um relacionamento de forma leve e divertida, Sombra, com seus efeitos eletrônicos e vocal terno retorna para os temas mais pesados, ao passar de raspão pelo tema do suicídio (ainda que de forma poética). E se amizade, admiração e uma vontade única de ficar em casa em uma noite de sábado aparecem na singular Amiga, em Artemísia é o aborto, tratado da forma mais objetiva possível, que dá as caras - doa a quem doer.


"Muitos escrevem a partir de respostas. A Salma escreve a partir de perguntas" resumiu Aquino em entrevista a Revista Rolling Stone, sobre a diversidade e o impacto dos temas tratados pela vocalista e compositora no disco, gravado no Red Bull Station. E que, inevitavelmente, se estendem ao instrumental ora sutil, ora agressivo, capaz de equilibrar na medida certa a guitarra e a bateria pontuadas com efeitos eletrônicos na medida certa. E se o trabalho por vezes parece fragmentado e contemplativo - ainda que em um cenário de "cores" vivas (experimente ouvir Carne Lab sem viajar) - o álbum, ainda que eventualmente heterogêneo, representa um condensado de uma banda segura de seus caminhos e pronta para levar a cena goiana, já tão onipresente no cenário nacional, a outros rincões. Se você ainda não conhece, tá esperando o quê pra dar o play?

Nota: 9,4

Lançamento de Videoclipe - Red Hot Chili Peppers (Go Robot)

O debate sobre o novo álbum do Red Hot Chili Peppers, intitulado The Getaway, segue forte nas redes sociais e até mesmo em sites de música, com fãs das antigas alegando certa perda da verve mais roqueira/funky, ao passo que outros ouvintes têm apreciado as incursões mais eletrônicas ou mesmo o retorno a um pop seguro e radiofônico - e que ao menos deixa para trás as ideias apresentadas no péssimo I'm With You (2011). Independente disso, a banda de Anthony Kiedis e companhia tem trabalhado forte na divulgação do registro, que na sexta-feira (09/09) recebeu mais um videoclipe, desta para a ótima canção Go Robot. O clipe parece meio estranho, com Kiedis caminhando pelas ruas vestido de Freddie Mercury Prateado, indo em direção a uma boate para o que parece ser uma espécie de competição de dança. Em seu percurso ele encontra diversas pessoas e também os demais integrantes e, no fim, todo o mundo se diverte. Se você ainda não assistiu, vale clicar e conferir!

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Tesouros Cinéfilos - Las Acacias

De: Pablo Giorgelli. Com Germán De Silva, Hebe Duarte e Nayra Calle Mamani. Espanha / Argentina, Drama, 2011, 85 minutos.

O cinema sul-americano, especialmente aquele que se passa no interior, possui uma "aridez" tão natural que, salvo algumas raras exceções, os filmes hollywoodianos dificilmente conseguem alcançar. Não sei se é a expressão sofrida das personagens, os cenários desoladores (e cheios de pobreza e simplicidade), as claras e verdadeiras diferenças sociais ou a geografia acidentada, mas o caso é que as obras colombianas, peruanas, argentinas e brasileiras tem um charme local que, é preciso que se diga, não é apenas bairrismo. É algo maior, que faz com que histórias, por mínimas que sejam, se transformem em amplos painéis a respeito da realidade não apenas de um sujeito, mas de uma nação - ou até de um continente - inteiro. É exatamente este o caso do premiadíssimo Las Acacias (Las Acacias) do diretor Pablo Giorgelli, que inaugura o nosso quadro dos Tesouros Cinéfilos, que busca aquelas obras pequenas do circuito alternativo - independente do País de origem - e que merecem ser vistas (ou descobertas).

A ideia com este preâmbulo não é a de reduzir a importância dos astros do cinema americano na caracterização de personas, quaisquer que sejam. Talvez seja viagem de minha parte - vocês me digam -, mas uma coisa é o Brad Pitt ou o George Clooney interpretando um caminhoneiro solitário, taciturno ou de modos rudes. A outra é o absolutamente convincente Germán De Silva que, no caso de Las Acacias, é quem representa este papel. Pitt e Clooney sempre estarão no imaginário coletivo como superestrelas famosíssimas, ricas e cheias de convites para tudo quanto é filme e programa de TV - o que talvez possa dificultar, eventualmente, qualquer tipo de dissociação de interpretação em  relação ao meio em que vivem. Já Germán... quem será ele? O fato de, após uma busca no Google, descobrir que o nome dele aparece atrás do de um maratonista mexicano famoso e homônimo, pode dizer muita coisa. Talvez ele seja um caminhoneiro verdadeiramente. Eu não duvidaria.



No filme, o ator interpreta Rubén, que trabalha para uma empresa que "corta e transporta mato" - como conhecemos por aqui os operários que passam os seus dias derrubando árvores de Acácia Negra, que serão transformados em madeira de queima tanto na indústria, como nas lareiras de famílias mais abastadas. Assim parece ser a muitos anos - e o seu olhar distante e pouco esperançoso, já no início dessa pequena obra-prima, parece nos acenar para uma rotina repetitiva e com baixa perspectiva de mudança. Em um certo dia, partindo de Assunção, no Paraguai, com uma carga de dezenas de toneladas de toras de madeira, ele é incumbido pelo seu chefe, de nome Fernando, a dar carona a uma mulher até Buenos Aires. O que já não parecia ser lá uma tarefa muito atraente, de saída - mais de mil quilômetros na companhia de alguém que ele não conhece - se torna pior quando a mulher, de nome Jacinta (Hebe Duarte), aparece atrasada e com um bebê a tiracolo.

Inicialmente somente o que conseguimos é lamentar por ambos os protagonistas. Rubén parece ser um sujeito grosseiro e estúpido, não hesitando inclusive em fumar na frente de Jacinta e da criança - com as janelas fechadas - como forma de demonstrar o seu desgosto pela situação. Já Jacinta, por estar recebendo uma carona, parece fadada a ter de suportar os caprichos de um caminhoneiro mau humorado e desinteressante. Mas ocorre que de Assunção a Buenos Aires são mais de vinte horas de viagem, de paisagens contemplativas, de dias que se tornam noites, de paradas obrigatórias e de solidão sufocante. Condição que fará com que o cenário, aos poucos vá se modificando, com as primeiras (e secas) trocas de palavras, até o encontro de pontos em comum, de trocas de confidências e de uma improvável aproximação.


Giorgelli, que recebeu a premiação na Mostra Um Certo Olhar de Cannes - que agracia diretores estreantes - realiza a obra sem nenhuma pressa. Não à toa, a aproximação inicial se dá com muito menos palavras e muito mais gestos e trocas de olhares. (e o olhar ao mesmo tempo terno e melancólico de Jacinta a Rubén em dezenas de momentos, torna tudo ainda mais arrebatador). Utilizando muitas vezes o espelho retrovisor como uma espécie de metáfora para aquilo que representa o passado em transição para um futuro - que pode ser igual, ou não - o diretor ainda utiliza a sutileza ao seu favor, sendo absolutamente fenomenal assistir o nervosismo de Ruben, que praticamente COME um cigarro ao descer do caminhão, tamanho o seu nervosismo diante de fatos que ele mal consegue explicação, já no terço final. E se a cenografia e o desenho de produção contribuem para a condição de verossimilhança - reparem como os vidros sujos do caminhão, por exemplo, representam a persistência não apenas do homem, mas do veículo, em suas infinitas horas na estrada - a conclusão absolutamente singela, emocionante e irresistível fecha esse verdadeiro tesouro de uma forma que, certamente, não aconteceria se os protagonistas fossem Pitt ou Clooney. Sem exagero. Com calma. Sem pressa. É a verdadeira poesia em forma de cinema. Vale ver.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Grandes Filmes Nacionais - Boi Neon

De: Gabriel Mascaro. Com Juliano Cazarré, Maeve Jinkings, Alyne Santana, Carlos Pessoa e Josinaldo Alves. Drama, Brasil / Uruguai / Holanda, 2015, 101 minutos.

Diferentemente do que ocorre com as classes mais abastadas, as escolhas profissionais das camadas mais humildes da população ocorrem muito mais pelas circunstâncias do meio em que estão inseridas, do que pelo incentivo dos pais - que, no caso dos mais ricos, não veem problemas em bancar as melhores escolas, os cursinhos particulares e as aulas de inglês. Por mais que você já tenha ouvido falar por aí que a conquista profissional daquele filho de médico famoso foi fruto de muito esforço - pensa que é fácil fechar direitinho o pote de Neston? - a grande verdade é que, para a grande maioria das pessoas, trabalhar naquilo que se gosta é tarefa praticamente impossível. E no sertão nordestino, então, por mais que boas políticas públicas para formação de jovens, como o Programa Universidade para Todos (Prouni), criado em 2004 pelo Governo Lula, tenham contribuído para que milhares de pessoas alcançassem seus sonhos, é possível dizer que o cenário ainda é um tanto desolador. (com tendência de piora com a consolidação do golpe)

Bom, nessa altura do campeonato, você já deve estar se perguntando o que todo esse preâmbulo tem a ver com o espetacular Boi Neon, dirigido por Gabriel Mascaro (de Doméstica) - e, desde já, um dos grandes candidatos a melhor filme nacional do ano. A obra, que marca a estreia do quadro Grandes Filmes Nacionais - que corrige certa injustiça que andávamos cometendo, ao não abordar as boas películas lançadas em nosso País - nos apresenta ao curraleiro Iremar (Juliano Cazarré) que trabalha ao lado de Galega (Maeve Jinkings), Zé (Carlos Pessoa) e Mário (Josinaldo Alves), além da pequena Cacá (Alyne Santana), em vaquejadas realizadas em pequenas feiras e eventos recreativos do interior. Só que, por mais que tenha carinho no trato com os animais e demonstre dedicação total a sua atividade, o sonho mesmo de Iremar era ser estilista.


O estranhamento que todos nós possamos ter por, eventualmente, um homem heterossexual, que passa os seus dias sujando as botas em meio a bosta de vaca, passando talco nas crinas e no rabo dos cavalos e andando em meio a currais apertados e feitos com madeira velha, se vai embora com 15 minutos de película, dado o naturalismo com que nos são apresentados os ideais do protagonista. Sem apelar para o estereótipo do sujeito excessivamente afetado - que poderia, eventualmente, colocar a obra na vala comum (ou no mesmo nível de esquetes de "humor" do século passado ou mesmo do Zorra Total)  - Mascaro trata as pretensões de Irandir sem nunca apelar para o deboche. Assim, quando o vemos recolhendo restos de revistas e de manequins nas feiras em que o grupo passa, para que possa exercitar o seu hobby, não apenas passamos a acreditar fielmente nesse contexto, como também passamos a torcer para um desfecho favorável de seu principal personagem.

Utilizando-se ainda de uma espécie de saborosa iconoclastia, o diretor faz uma curiosa mescla entre a lida rural e campeira com os elementos que poderiam compor um exótico desfile de moda com o envolvimento de bois, vacas ou mesmo outros animais. Nesse sentido, a presença lancinante de Galega executando danças sensuais enquanto utiliza não apenas as roupas costuradas por Irandir, mas também máscaras de cavalos, funciona bem para delimitar qual o exato alcance que a arte  (e o sonho) tão pretendidos pelo vaqueiro pode chegar. (e não ignoremos a presença magnética de Jinkings e sua Galega, uma das mulheres mais fortes do cinema atual) E quando acompanhamos a ida tímida (e levemente melancólica) do protagonista a uma espécie de gráfica para pedir o preço de fôlderes, percebemos o quanto a falta de tato para o linguajar do meio, poderia facilmente ser suplantada com a ampliação de oportunidades e com o acesso maior ao conhecimento. Especialmente pelo fato de percebermos que a parte "prática" não é o problema.


Já tradicional em filmes sul-americanos, as interpretações absolutamente naturalistas não nos fazem duvidar em nenhum momento do fato de estar diante de pessoas que levam efetivamente este estilo de vida. E se o cenário desolador e recheado de erosão e lama de alguns pontos do Nordeste serve de indicativo do estado de espírito dos sujeitos, o clima levemente divertido da interação entre o grupo, com trocas de "xingamentos" imprevisíveis, dão conta da sensação de intimidade e de amizade que permeia as suas rotinas - mesmo em circunstâncias adversas. Equilibrando ainda momentos mais evocativos - como o das patas de cavalo que executam um caminhar que se assemelha ao de uma mulher de salto alto - com outros mais singelos - como os de conversas lúdicas entre Irandir e Cacá -, Mascaro constrói uma obra plena de significados (e que essa resenha certamente não é capaz de contemplar em sua totalidade) que, se não apresenta exatamente um final feliz, da conta do profundo exercício de resignação para aqueles que não foram fruto da meritocracia. O que não é pouco.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Na Espera - La La Land: Cantando Estações (Filme)

Após a excelente recepção de público e crítica para Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014) - com direito a algumas estatuetas douradas a tiracolo - a expectativa para o filme seguinte do jovem Damien Chazelle não poderia ser mais alta! Previsto para estrear por aqui no dia 12 de janeiro, La La Land: Cantando Estações (La La Land), reúne Ryan Gosling e Emma Stone (em mais uma parceria), além de J. K. Simmons para mais um filme que parece ter a música como pano de fundo. Na trama, Gosling é o pianista de jazz Sebastian, que chega em Los Angeles a procura de alguma oportunidade na competitiva cidade. Em meio a busca por fama e sucesso, o rapaz conhece a atriz iniciante Mia (Stone), que tem objetivos semelhantes e com quem inicia um relacionamento.



O trailer não entrega muito e a única certeza que podemos ter é a de que se trata de uma comédia romântica charmosa e sensual, com fotografia elegante e figurinos arrebatadores. Ah, e sem falar na música, que também promete ser um espetáculo a parte - com direito a participação de nomes como John Legend (que dá as caras no trailer). Sobre possíveis indicações ao Oscar, por mais que já estejamos em setembro, talvez ainda seja meio cedo para qualquer projeção, ainda que a obra apareça em diversas bolsas de apostas com boas possibilidades - e não apenas na categoria principal, é preciso que se diga. Bom, independentemente de nominações para a principal premiação do cinema, uma coisa é certa: aqui no Picanha, já estamos Na Espera!

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Cinema - Julieta (Julieta)

De: Pedro Almodóvar. Com Emma Suárez, Adriana Ugarte, Daniel Grao, Blanca Parés e Rossy De Palma. Drama, Espanha, 2016, 99 minutos.

Sou um grande fã do estilo transgressor de Pedro Almodóvar e de seu olhar todo especial para as pessoas à margem da sociedade - sejam elas os gays, as transexuais, as prostitutas ou os drogados que costumam compor o universo de suas histórias. Em muitos casos, especialmente em sua filmografia mais antiga, esses personagens vêm acompanhados de uma caracterização um tanto expansiva fazendo com que o resultado beire o teatral ou o farsesco - no melhor sentido de ambas as palavras. Assim sendo, não deixa de surpreender o clima de "novelão mexicano", estilo que o espanhol abraça de vez em Julieta (Julieta), seu mais recente trabalho - drama que fala de escolhas (e de perdas) no que diz respeito ao relacionamento familiar. E, esse contexto, é preciso que se diga, de forma alguma se constitui em um demérito, já que o estilo elegante do formato certamente cairá no gosto até mesmo daquela fatia do público que costuma ser mais conservadora - e portanto avessa aos acontecimentos vistos em obras essenciais como Má Educação (2003) ou A Pele Que Habito (2011).

Existe um lugar-comum que diz que "família não se escolhe, simplesmente acontece", e, num sentido mais amplo, pode-se dizer que a frase combina bem com o que se vê no filme. No começo da película, somos apresentadas a uma Julieta (Emma Suárez) já na meia-idade, disposta a abandonar Madri para morar em Portugal ao lado do namorado Lorenzo (Dario Grandinetti). Em sua expressão ao mesmo tempo doce e melancólica parece haver também um tanto de amargura, que aflorará ainda mais após um encontro fortuito com a jovem Bea (Michelle Jenner), uma antiga amiga de sua filha. Pois esse encontro de poucos segundos e de, aparentemente, inexpressivas trocas de palavras, será o suficiente para que Julieta mude de ideia, não apenas permanecendo na capital espanhola, como se mudando para o antigo apartamento em que morava. O encontro com o passado recheado de pendências e de casos mal resolvidos, será feito por meio de uma carta, destinada a sua filha Antía (Bianca Parés).



Revelar mais do que isto seria estragar algumas das boas surpresas que o diretor - que toma por base textos da canadense Alice Munro, vencedora do Nobel de Literatura em 2013 - entrega ao espectador, com toda a calma do mundo, aludindo ainda a um clima de suspense à Hitchcock, visto também em outras obras, casos de Volver (2005) e Abraços Partidos (2009). Na carta de Julieta, agora jovem (e vivida por Adriana Ugarte), há, entre outras, as memórias relacionadas ao seu primeiro marido, o pescador Xoan (Daniel Grao), que ela conhece em uma viagem de trem. Ainda que o primeiro encontro, com o rapaz ainda casado, represente o início de uma paixão tórrida, parece haver mistério em cada curva que fazemos no acompanhamento da obra. Sentimento acentuado pela trilha sonora propositalmente sufocante de Alberto Iglesias ou mesmo por acontecimentos curiosos, como o aparente suicídio de um excêntrico sujeito de meia-idade que estava no mesmo trem de Julieta e Xoan e que, anteriormente, tentara puxar conversa com ela.

O sentimento de tensão - não apenas sexual (com a presença da sexy artista plástica Ava, amiga de Xoan), mas também em relação a rotina do casal - comporão um quadro em que tragédias familiares serão praticamente inevitáveis. O que fará com que a jovem Antía tome uma decisão que modificará para sempre o relacionamento com a sua mãe. Como se fosse um artesão das imagens, Almodóvar esquadrinha cada sequência utilizando-se de cores primárias fortes e saturadas (o vermelho já é um clássico), que, aparecendo de maneira contrastante, funcionam como metáfora perfeita para o relacionamento daqueles que vemos na tela. Da mesma forma, o espanhol filma objetos - como as esculturas compostas por Ava, muitas delas em formato de homens "despedaçados" - como forma de tornar palpável aquilo que está apenas no ar ou no campo das ideias.


Utilizando-se ainda de uma fotografia que ilustra de maneira inteligente (cortesia do diretor Jean Claude Larrieu) as variações de sentimento das personagens - repare como a paleta de cores é muito mais viva nas cenas da juventude de Julieta, por exemplo - o diretor ainda possibilita a atriz e amiga de longa data Rossy De Palma um dos mais instigantes, curiosos e divertidos papeis da obra - uma espécie de governanta de Xoan, que se mete em tudo que diz respeito a sua vida. É muito provável que Julieta não seja o melhor filme do espanhol. Mas sua melancolia sutil, sua sincera elegância, a grande quantidade de mulheres fortes e o arrebatador argumento, certamente apagam a má impressão deixada pelo inexplicável Os Amantes Passageiros (2013), seu trabalho anterior. E se serve como dica, levem a caixa de lenços junto. Ela pode ser necessária.

Nota: 8,3

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Lançamento de Videoclipe - Emicida (Chapa)

Melhor disco nacional lançado no ano passado, o álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa do rapper paulistano Emicida, segue rendendo bons vídeos de divulgação. Após o sensacional trabalho realizado no clipe de Mãe, que foi disponibilizado no último mês de maio, agora foi a vez da canção Chapa receber vídeo. A obra, em estilo documental, tem como tema a violência policial e presta homenagem ao grupo Mães de Maio, formado por mães que tiveram seus filhos mortos por policiais. O vídeo mostra cenas do música cantando em fundo preto e imagens e depoimentos dessas mulheres. Além do clipe, é possível encontrar também uma entrevista com o música, concedida ao site Ponte.org, em que Emicida ressalta o fato de o tema da música ser a saudade. Dois dias após a consolidação do golpe e da derrocada da democracia - aliada a exacerbação do racismo, do fascismo, da misoginia, do preconceito, da violência e do ódio - um material como o apresentado pelo paulistano ainda funciona como peça artística de resistência diante de um Governo, agora consolidado, que não costuma olhar para as classes menos favorecidas ou a margem da sociedade.




quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Palco Picanha - Cine Floyd no Teatro da Univates

Como o próprio slogan do Picanha diz, nossas maiores paixões são música e cinema. Quando um evento une essas duas formas de arte então, melhor ainda! E foi exatamente o sentimento de satisfação que tomou conta dos que tiveram a oportunidade de conferir, neste último dia 31 de agosto, a apresentação do projeto porto-alegrense Cine Floyd no Centro Cultural da Univates. Pra quem não conhece, a banda formada por Arthur Tabbal (Guitarra e Vocal), Ettore Sanfelice (Baixo), Gabriel Sacks (Bateria e Vocal) e Max Sudbrack (Teclados) traz para os palcos a famosa sincronia do incensado disco The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, com o filme O Mágico de Oz (obra de 1939 do diretor Victor Fleming, de ... E o Vento Levou).

Particularmente, nunca havia experimentado assistir à junção das duas obras para verificar a veracidade de que ambos se complementariam e, como bom fã de Pink Floyd, poder assistir à execução ao vivo da obra-prima de uma de minhas bandas favoritas e, ainda assim, matar a curiosidade em relação a esta lenda urbana era um compromisso imperdível. E, de fato, foi uma noite especial: a banda executou com precisão milimétrica todos os compassos de forma a tornar a sincronia perfeita e, embora alguns elementos do álbum original não estivessem presentes (os corais femininos e inserções de saxofone), a qualidade do som apresentado foi digno de um exímio concerto musical. Não bastasse tudo isso, a porção final do espetáculo contou com a performance da clássica (e extensa) canção Echoes (do álbum Meddle, de 1971) em sincronia com a porção final do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, obra máxima do gênio Stanley Kubrick.


Mas e aí, seria realmente proposital a composição de The Dark Side of the Moon de forma a fazer sentido com a execução do filme? Confesso que permaneço sem uma resposta clara sobre isso. É inegável reconhecer algumas coincidências durante a película e as músicas executadas, mais precisamente a partir da quinta faixa, The Great Gig in the Sky, a qual coincide com a cena em que Dorothy presencia um furação, o "espetáculo no céu" do qual a música fala, ou o momento em que Money começa a ser executada e as imagens se transformam em cores vibrantes, bem como sua batida que sincroniza perfeitamente com a marcha dos personagens em cena. Quando a menina encontra o personagem Espantalho, podemos ouvir a frase "the lunatic is on the grass" da faixa Brain Damage, enquanto o mesmo personagem apresenta um comportamento um tanto estranho (seria o lunático da música? Pouco provável, visto que a canção refere-se a Syd Barrett, fundador e líder da banda que teve que se afastar devido a problemas mentais e com drogas).

A livre interpretação também é parte da graça toda. Confesso que achei curioso que, no momento da execução de Us and Them, em especial na frase "which is which, and who is who", apareça uma bruxa em cena (que em inglês é witch, cuja pronúncia é similar a which, que significa "cujo"). Outra brincadeira interessante é que, durante a derradeira faixa Eclipse, Dorothy encontra o Homem de Lata e, praticamente durante a frase "beg, borrow or steal", ela encoste na lataria - o que não deixa de ser curioso pois a pronúncia de steal (roubar, em inglês) é similar a steel (aço). São momentos isolados que fazem com que fique praticamente impossível se livrar da sensação de estranhamento mas que, devido à capacidade do cérebro humano de reconhecer padrões e buscar familiaridades, podem sim representar apenas uma coincidência - afinal, na maior parte do tempo nada que nos chame muito a atenção acontece.


No entanto foi no momento final, com Echoes e a viagem literal e lisérgica proporcionada por Kubrick em seu 2001, que houve o melhor momento da noite, com a canção elevando ainda mais os sentimentos das imagens evocadas na tela - quem assistiu a Interestelar (de Christopher Nolan, 2014) verá de onde saiu a referencia de seu terço final - e é assombroso pensar que aqueles efeitos todos foram filmados durante a década de 70. Não à toa, conta-se que à época pessoas reuniam-se para assistir 2001 sob efeito de LSD para embarcar na viagem de Kubrick - e não é de se duvidar que o Pink Floyd tenha realizado o mesmo feito para compor esta maravilhosa canção.


Ademais, resta-nos parabenizar a iniciativa da Univates em trazer mais um grande espetáculo para a nossa região. Que venham muitos mais!