sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Retorno da Lenda (Old Henry)

De: Potsi Ponciroli. Com Tim Blake Nelson, Gavin Lewis, Stephen Dorff e Scott Haze. Faroeste, EUA, 2021, 99 minutos.

O gênero faroeste pode até não existir mais nos moldes que consagrariam diretores como John Ford ou astros como John Wayne. O que não significa que não exista uma ou outra obra na atualidade, que cumpra bem o seu papel - e este é o caso do recém-lançado para aluguel em streaming Retorno da Lenda (Old Henry). Aqui temos um filme do estilo por excelência, a começar por seu protagonista Henry McCarthy, vivido por Tim Blake Nelson. Sujeito taciturno e resiliente, ele toca uma propriedade em Oklahoma ao lado do filho, o destemido Wyatt (Gavin Lewis), que não suporta a lida no campo e não vê a hora de abandonar aquele projeto de vida. Num dia de rotina de trabalho, a dupla avista no alto do morro um cavalo que cambaleia solitário. O animal está selado, há manchas de sangue em seu pelo. Ao sair pra investigar o entorno, Henry descobre um homem gravemente ferido. Perto dele há também uma pistola. E um saco de dinheiro.

Henry recolhe tudo: homem ferido, pistola, saco de dinheiro. Esconde qualquer pista do local e retorna para casa. Não faz ideia do que se trata aquilo tudo. Mas é possível ler a preocupação em seu olhar. Tanto que exige do filho o máximo de cautela como um todo. Aliás, esse é o tipo de coisa que irrita o jovem Wyatt. Seu pai parece ser tão superprotetor, que sequer lhe deixa segurar uma pistola. Muito menos manuseá-la. Há um claro desconforto no comportamento misterioso de Henry - e a interpretação de Blake Nelson, que parece ter nascido pro papel (especialmente após o hilário segmento inicial de A Balada de Buster Scruggs, dos Irmãos Coen), contribui para que se instale um senso de tensão permanente. Claramente há segredos do passado que o homem se esforça para que não venham à tona. Traumas, talvez. Que não parecem dialogar com a tentativa de levar uma vida simples como agricultor no Sul dos Estados Unidos.

 


E tudo piora quando o home ferido - seu nome é Curry (Scott Haze) - desperta. E se apresenta como um xerife que atua nas redondezas. A relação dos dois é inicialmente truncada. Henry ajuda a retirar a bala que está alojada no peito de Curry (uma sequência intensa, visual). Tendo nesse contexto uma oportunidade para aproximação, para saber mais, para investigar. A confiança entre os homens aos poucos vai se estabelecendo, especialmente quando ele revela ser um dos únicos sobreviventes de um confronto com um grupo de perigosos bandidos, no passado. Não demora para que um trio com cara de "poucos amigos" chegue até a propriedade, perguntando por Curry. O líder, um certo Ketchum (Stephen Dorff) garante também ser xerife na região, alegando o fato de Curry ser um fora da lei que está sendo procurado por crimes diversos. É uma negociação difícil e, bem, a gente sabe que esse tipo de encontro, num filme de faroeste, não costuma terminar bem.

Claro que a "diversão" aqui está em tentar identificar quem está falando a verdade e quem está mentindo nesse jogo. Curry é de fato um xerife? Ou é alguém que mente apenas para se aproximar de Henry na intenção de levar algum tipo de vantagem? E o estilo impetuoso e meio desatinado de Wyatt não pode colocar todos ali em risco? E quais as reais intenções de Ketchum e sua gangue? Alternando momentos mais silenciosos e reflexivos - com belas paisagens -, com outros mais movimentados, com direito à tiroteios à moda clássica, o diretor Potsy Ponciroli constroi Retorno da Lenda como uma espécie de tributo justamente a essas figuras clássicas e arquetípicas que contribuíram para a formação do oeste americano - fossem eles pistoleiros, criadores de gado, xerifes ou outros integrantes desse imaginário. Os conceitos de mocinho e bandido são burlados nesse contexto, que decorre ainda de ótimas surpresas do roteiro e das excelentes e ambíguas caracterizações. Não é uma experiência inesquecível ou vibrante ao extremo. Mas trata-se de um bom passatempo. Que, de quebra ainda foge um pouquinho do óbvio.

Nota: 7,5


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pitaquinho Musical - Planet Hemp (JARDINEIROS)

"A arte de combate é o lugar onde eu melhor escrevo e mais gosto de escrever". (Marcelo D2)

Sim, acreditem: a mistura de evangelistão, fetiche armamentista e agropop que compõe o bolsonarismo é tão bizarra que este foi um dos motivos para que o Planet Hemp saísse de um hiato de vinte e dois anos sem lançar um novo trabalho. Era tudo mato quando Marcelo D2 entregou ao mundo o agora distante A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) e, ouvindo as canções do recém-chegado JARDINEIROS, é praticamente impossível não pensar no mal-estar completo de nossa nação, que funciona como pano de fundo para versos potentes que jogam luz a todo o absurdo atual. "A gente achou que nunca mais iríamos fazer um disco, porque estávamos satisfeitos com nossas obras, até o Brasil nos obrigar a sair desse lugar de conforto. É necessário para o público e é necessário para gente", comentou Marcelo D2 em entrevista para o portal O Dia.



Nesse sentido não deixa de ser interessante notar como a banda ressurge com todo o vigor - com o se tivesse muito a dizer (e ela tem). Aliás, diferente de outros grupos de rock que marcaram os anos 90, D2 e companhia seguem fiéis ao que acreditam, não se dobrando a ideologias difusas que flertam com o fascismo (e vocês sabem muito bem de quem estamos falando). Porrada atrás de porrada, o Planet Hemp entrega do começo com DISTOPIA - que tem participação do rapper Criolo - à sinuosa ONDA FORTE uma série de músicas marcadas pelo forte caráter político, sem medo de enfiar o dedo na ferida. Um bom exemplo disso está na visceral TACA FOGO ("Vivem em seus condomínios, malditos minions fazendo arminha com a mão / Tem coisa mais cafona, rico roubando em nome de Deus cristão?"). Mais claro, impossível. E, como não poderia deixar de ser, o tema favorito da banda não fica de fora, vide a ondulante faixa-título.

Nota: 9,0


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Pitaquinho Musical - Taylor Swift (Midnights)

Midnights. O título do décimo disco de Taylor Swift pode ter pego o fã da era 1989 (2014) meio desprevenido. Especialmente para quem esperava um álbum mais movimentado depois do passeio onírico e plácido proposto nos anteriores folklore / evermore (2020). Só que a artista parece ter retornado pra pista no modo barzinho. Estilo fim de noite, discreta. Sem agitação. Sem grandes arroubos imersos em lantejoulas coloridas. Peguemos, por exemplo, a excepcional Question...?, a sétima faixa do trabalho. Há uma verborragia de quem prefere a conversa do que a dança. De quem já bebeu alguns goles e já tá no "brilho". E que fica ali divagando sobre se "Alguém já te beijou em uma sala lotada? / Com cada um de seus amigos tirando sarro de você? Mas quinze segundos depois eles estavam batendo palmas também?". É uma coisa que soa ao mesmo tempo juvenil e adulta, inexperiente e madura. E nessas horas, nós, como ouvintes, já estamos batendo palmas também.

 


Um disco qualquer da Taylor, a crítica, os fãs, o mundo todo já sabe: é algo meio imprevisível. Pra onde vai? Ou onde vem? Nos tempos modernos não há single, não há uma pista. Em muitos casos há apenas uma data. E a expectativa lá no alto. Ainda assim, ali no íntimo, a gente sabe que a matéria-prima não vai mudar muito em meio à emanações pop resplandecentes, acenos à música oitentista e ao alt country e também ao R&B da década seguinte. Num caldeirão de referências que se mistura , mas que apara as arestas, que tira a fumaça em excesso, que faz o polimento como um grande coador em que se vão bagaços, sementes e tudo o mais. A meia-noite da cantora é a do basicão bem feito. Longe da dramaticidade do passado - basta lembrar do histrionismo divertido de uma Blank Space por exemplo -, mas com personalidade, intensidade e vigor. Mesclando um leve experimentalismo com a solidez suave do pop grudento. Como comprova a magnética Snow on the Beach, feita em parceria com a Lana Del Rey. Mas tem mais, bem mais. É só dar o play.

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - Argentina, 1985

De: Santiago Mitre. Com Ricardo Darín, Juan Pedro Lanzani, Norman Briski e Alejandra Flechner. Drama, Argentina, 2022, 142 minutos.

"Senhores juízes: nunca mais." É marcante a frase dita pelo promotor Júlio César Strassera, em um dos instantes mais comoventes de Argentina, 1985 - obra que representará os nossos hermanos no próximo Oscar e que está disponível na plataforma da Amazon Prime. Encarregado do julgamento contra a junta militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, Strassera (vivido por Ricardo Darín com a habitual competência) concluía naquele instante a leitura do documento histórico que denunciava publicamente nove comandantes militares que governaram o País durante o chamado Processo de Reorganização Nacional (nome mais "pomposo" pra Ditadura). Cinco seriam condenados. Dois a prisão perpétua. Algo histórico, já que desde os Julgamentos em Nuremberg, que perpetraram assassinatos em massa de civis pelos nazistas, não acontecia algo parecido. Aliás, em muitos países que conhecemos muito bem, esse tipo de deliberação não ocorreu até hoje - muitos, inclusive, foram anistiados. Ou seguem impunes. São homenageados, até, por proeminentes parlamentares. Há, ao cabo, quem goste de regimes militares. Deseje seu retorno. A esses recomendo não assistir à obra do diretor Santiago Mitre.

Muito bem costurado, o filme ocorre em um período de cinco meses, entre 1984 e 1985, após a eleição de Raul Alfonsín, que reestabelece a democracia no País. O que não apaga as feridas do período, com milhares de desaparecidos tidos como subversivos (ou contrários ao regime), que teriam sua liberdade privada por agentes do Estado. Aliás, coletivos que defendem os direitos humanos como o das Mães da Praça de Maio e o Serviço Paz e Justiça estimam que 30 mil pessoas podem ter desaparecido à época, sendo milhares delas torturadas. Tentar, de alguma forma, apaziguar a dor causada às famílias argentinas por esse golpe será o esforço de Strassera - ainda que ele esteja alguns anos atrasado nesse intento. Que monta uma equipe de jovens advogados, entre eles Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani), que se empenharão em juntar provas que possam estruturar as denúncias de forma contundente. Com o mínimo possível de margem de erro, uma vez que estamos falando de acusações a militares - e, basta pensar no Brasil de Bolsonaro, pra termos uma ideia da força e da influência que têm esses grupos.



A desculpa para a captura de supostos revolucionários/rebeldes? Conter o avanço do comunismo - sim, sempre ele e já naquela época ele -, durante o governo de Isabelita Perón, o que dissolveria o congresso, desmantelaria o País economicamente, e violaria um sem fim de direitos humanos. E por todo esse contexto não deixa de ser emocionante acompanhar a jornada vivida pelo personagem de Darín - inicialmente desconfiado e até com medo das reações e pressões externas ao caso (que poderiam vir do próprio Estado, dos militares e de outros lobistas do entorno) -, que busca força de onde quase não tem, sempre amparado por sua amorosa esposa Silvia Strassera (Alejandra Flechner) e pelos filhos, especialmente o caçula Javier (Santiago Estevarena), na busca por pistas, informações e documentos que possam fortalecer a ação da promotoria. É uma experiência que, de alguma forma, requer um pouco de paciência do espectador. Mas que compensa pela sensibilidade, pelo senso de humor inusitado e pelo respeito às vítimas, que têm no filme um verdadeiro tributo as suas memórias.

Em linhas gerais não há espaço para grandes invencionices no roteiro, que se alterna entre sequências impactantes de tribunal, do trabalho dos advogados e das permanentes ameaças que sofre a família do protagonista (com ligações de desconhecidos e cartas com promessas de morte ou assassinato de familiares). Naquele estilo que normalmente costuma operar a fatia mais miliciana das forças armadas. Normalmente desumana, sem nenhuma empatia - exatamente como ocorre nos doloridos momentos em que familiares descrevem com detalhes bastante "gráficos" as sessões de tortura. Sequestros, prisões arbitrárias, mortes, ocultação de cadáveres, censura aos meios de comunicação, impedimento de ações sindicais, proibição de greves, dissolução de partidos políticos e outras tantas atrocidades. Não foram poucas as ilegalidades que, sadicamente, os militares adotavam. Aliás, à época, o general Saint-Jean sarcasticamente chegou a advertir: “Primeiro, mataremos todos os subversivos. Em seguida, os seus colaboradores. Depois, os seus simpatizantes. Depois, aqueles que permanecerem indiferentes. Por último, mataremos os indecisos.” Assim, uma obra como essa não tem muito como ser avaliada tecnicamente, ainda que seja caprichada, bem editada, com excelente trilha sonora e riquíssimo desenho de produção (a reconstrução do período é fenomenal). Aqui, o mérito maior está na ousadia em jogar luz sobre um assunto que nunca deve ser esquecido. E que, bizarramente, muitas pessoas sonham em reviver.

Nota: 9,0



segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Wet Sand

De: Elene Naveriani. Com Bebe Sesitashvili, Megi Kobaladze e Gia Agumava. Drama, Geórgia / Suiça, 2021, 115 minutos.

Existe um livro de Zygmunt Bauman chamado Comunidade, que até não é tão badalado quanto outros, mas que cabe direitinho em uma análise do ótimo filme Wet Sand - um dos recentes lançamentos da plataforma Mubi. Na citada obra, o escritor teoriza sobre a sensação agradável e de pertencimento que costuma ocorrer na vida em comunidade. Pensar nesses espaços é fazer associações imediatas com paisagens aconchegantes que nos deixem seguros de ameaças que estejam à espreita lá "fora". No exterior daquele núcleo. É quase como um paraíso perdido, uma espécie de utopia. Só que, para Bauman, é justamente esse senso de coletividade, de amparo, que, paradoxalmente, faz com que percamos o direito de sermos nós mesmos. Seguros, mas privados da liberdade - dois valores preciosos, que não se conciliam de todo. E essa tensão, ao cabo, dificilmente será desfeita.

Pense, por exemplo, naquela vilazinha de interior fechada, conservadora - que vive em sua bolha de festividades no salão paroquial e jogos de bocha na bodega local. A vida flui com tranquilidade em meio àquela teia de vínculos afetivos pouco dispersos e, nas aparências, extremamente solidários. O que pode quebrar essa rede de homogeneidade cultural, política, religiosa? Bom, evidentemente o diferente. Que, aqui e ali, pode se ver segregado. Seja por qual motivo for. Toleramos bem o multiculturalismo? Talvez. Desde que ele não aconteça aqui. Nas nossas barbas. No cemitério junto à Igreja. No clube de mães local. Wet Sand se passa em um pequeno vilarejo junto ao Mar Negro, na Georgia. Um local aparentemente tranquilo em que seus moradores, de forma cordial, jogam jogos de tabuleiro no alpendre do bar, enquanto tomam cervejas e se ocupam de mesquinharias quaisquer.

Só que a calmaria é quebrada quando Eliko - sujeito reservado que é conhecido pelos locais apenas pela alcunha de "o estranho" - tira a própria vida. É nesse contexto que surge a jovem Moe (a ótima Bebe Sesitashvili), neta do falecido, que chega de Tbilisi para auxiliar na organização do funeral. Misteriosa e taciturna, Moe circula aqui e ali pela orla da praia da localidade, passando a compreender de forma mais clara os motivos da resistência dos moradores em relação ao seu avô. "É aquele que caminhava de um jeito meio fresco", lembra às gargalhadas um dos moradores, entre um e outro gole de cerveja. Não demora para que a jovem perceba que Eliko era motivo de vergonha para todos. Solitário, pouco se expunha. Aparentemente gay, não tinha o direito de se expressar livremente nessa comunidade fechada, reacionária, preconceituosa, intolerante.

E as coisas não melhoram quando Moe percebe que talvez seu avô tenha tirado sua vida justamente por ter de conviver com o ódio diário, sendo ao mesmo tempo rejeitado e alvo de mentiras. A diferença? Apenas um "defeito". "Um homem que não era 'família'" brada outro operário que trabalha no local. Ao fazer amizade com a jovem nativa Fleshka (Megi Kobaladze), Moe se aproximará de verdades ainda mais inquietantes e que envolvem um outro morador do local, o carismático Amnon (interpretado de forma comovente por Gia Agumava). O que nos ensinará essa experiência? Que só muda o País quando o assunto é o "cidadão de bem" e o pânico moral. A luta pela verdade, ao cabo, tem um alto custo. Mas o resultado, que liberta os espaços mais fechados para além do conformismo, pode valer a pena. É um trabalho de formiguinha, tijolinho por tijolinho. Ninguém aprendeu a odiar o diferente por acaso. E ainda estamos em tempo de aceitar e respeitar todo o tido de identidade. Bem como suas histórias, existências, sentimentos. Há um pouco de idealismo nisso tudo? Há. Mas dá pra ter esperança. Como comprova a poética sequência final.

Nota: 8,5

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Tesouros Cinéfilos - Vidas em Jogo (The Game)

De: David Fincher. Com Michael Douglas, Deborah Kara Unger e Sean Penn. Drama / Suspense, EUA, 1997, 128 minutos.

Lançado entre Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995) e Clube da Luta (1999), Vidas em Jogo (The Game) pode até ser considerada uma obra menor na filmografia do diretor David Fincher. O que não significa que ela deve ser ignorada. Aliás, muito pelo contrário: revisitando o filme, percebi que ele ainda rende bastante, com seu roteiro intrigante, cheio de surpresas e de reviravoltas. E que, ao cabo, ainda faz refletir um tantinho sobre o vazio de uma vida que é pautada apenas por conquistas financeiras ou ambições que envolvem o trabalho. Na trama, o protagonista, o milionário Nicholas Van Orton (Michael Douglas) é um sujeito solitário, que sente um imenso vazio no dia em que completa aniversário de 48 anos - a despeito das acaloradas reuniões sobre mercado de ações, novos investimentos, clientes em potencial e até demissões necessárias. O momento mais interessante do seu dia? Se atirar no sofá de posse de um copo de conhaque, assistindo um noticiário genérico e especulativo ao estilo da Fox News.

Pra sair do marasmo, o seu irmão Conrad (Sean Penn) o convida para jantar. Recém-saído de algum tipo de rehab, ele presenteia Nicholas com uma espécie de cartão de uma corporação que parece lhe dar acesso a algum tipo de novo divertimento - algo no limite entre um jogo de realidade virtual e uma experiência imersiva, que é ofertada por uma empresa chamada Serviços de Recreação do Consumidor. Inicialmente relutante, Nicholas aceita a ideia - especialmente por se sentir atormentado pelo fato de ter sido justamente aos 48 anos, que seu pai tirou a própria vida, em circunstâncias mal explicadas. Sua única "amiga", sua ex-mulher, lhe telefona de forma protocolar, quase à meia-noite para felicitá-lo. Mas ela já está em um novo casamento, a espera do segundo filho. Perturbado pelo isolamento, o homem decide ir atrás da empresa em questão. E, bom, temos o nosso filme.

 

Sem concessões na hora de burlar os limites entre o real e o imaginário, a narrativa conduz Nicholas e uma espiral de acontecimentos: desconhecidos que, aparentemente, querem lhe assassinar, segredos sendo revelados, agressões. Um homem que sofre um ataque em plena rua. Perseguições. Em certa altura, desnorteado, o protagonista acorda em um cemitério isolado no México. Quem está por trás de tudo isso? Ele está no jogo? Ter fornecido uma série de dados e informações pessoais para a empresa que oferece os serviços foi uma boa? Sendo um rico banqueiro ele não despertaria outros interesses? Tudo piora quando Conrad aparece meio que, do nada, garantindo que a coisa toda desandou: que tudo não passava de fachada e que todos ali estão em perigo. E, mais do que isso, suas finanças estão comprometidas. E a presença da misteriosa garçonete Christine (Deborah Kara Unger) não parece ajudar muito. De que lado desse "jogo" ela está?

Em alguma medida esse é mais um daqueles exemplares com o DNA da segunda metade dos anos 90 - contexto em que uma série de filmes com grandes plot twists foram lançados, sempre com aquela fotografia azul acinzentada de cidade grande, levemente saturada, que se soma a uma edição dinâmica, em que vale prestar atenção aos mínimos detalhes na tentativa de montar o quebra-cabeças corretamente. Outro ponto de destaque é a ótima - e minimalista - trilha sonora de Howard Shore, que contribui de forma genuína para o senso de tensão um tanto claustrofóbico que evoca da tela. Claro que em uma obra do tipo uma boa dose de suspensão da descrença cai bem - especialmente diante de um outro exagero ou contradição do roteiro. Mas quem mergulhar de cabeça na narrativa encontrará aqui uma experiência tensa, levemente cômica e que parece nos fazer lembrar o tempo todo de que, em meio a situações limite, de nada vai adiantar estar calçando um par de sapatos que custa mil dólares. Tá lá na Amazon Prime. Vale conferir.


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Pitaquinho Musical - Djonga (O Dono do Lugar)

Habituado a lançar seus discos sempre em março, o rapper mineiro Djonga alterou essa lógica já estabelecida com o recente O Dono do Mundo, recém-lançado nas plataformas. Sexto álbum do artista, o projeto se apresenta com a potência habitual, alternando instantes políticos e de discussões sociais com outros que celebram as conquistas do povo preto - algo que, em muitos casos, pode ser percebido em uma mesma música, como no caso da essencial Até Sua Alma, que tem participação especial da dupla Tasha e Tracie (E pra quem já valeu trocado pra escravista branco / Tá bom receber uma milha pra postar um arroba / Rede social que eu gosto é o app do banco / E eu que atravessei a rua, lembrei qual povo que rouba / Sola do sapato nada gasta e isso me basta / No lugar das ferida no calcanhar). Ou mesmo das imperdíveis Contatin, A Cor Púrpura e Em Quase Tudo.


A propósito das participações especiais, são diversas no trabalho, estando entre eles Vulgo FK, Sarah Guedes e Oruam, além de colaboradores de longa data, como os produtores Rapaz de Dread e Coyote Beatz. "É uma reflexão sobre contra quem estamos lutando, pelo que e se temos força pra isso. Essa representação já começa pela capa, uma referência a Don Quixote, de Miguel de Cervantes, que é uma grande alegoria sobre isso. Essa loucura, idealismo, confusão. Acredito que isso diga muito sobre as letras do disco e sobre meu atual momento", comentou o rapper no material de divulgação. Recheado por reflexões cotidianas sobre masculinidade, LGBTfobia e religião, a obra possui produção refinada, funcionando ainda como veículo de luta contra o racismo estrutural. Que, diga-se de passagem, permanece como uma chaga em nossa sociedade, vide o episódio com o Seu Jorge, em Porto Alegre.

Nota: 8,0


Cine Baú - Trama Diabólica (Sleuth)

De: Joseph L. Mankiewicz. Com Laurence Olivier e Michael Caine. Comédia / Suspense, Reino Unido / EUA, 1972, 138 minutos.

Um dos filmes mais pitorescos lançados nos anos 70. Assim pode ser resumida Trama Diabólica (Sleuth), última obra lançada pelo diretor Joseph L. Mankiewicz - de A Malvada (1950). Cômica e corrosiva a experiência é cheia de reviravoltas, apostando no cinismo dos diálogos e nas interações com o único cenário como elementos que dão força à narrativa. Na trama temos apenas dois personagens. E um casarão ao mesmo tempo suntuoso e decadente. Nessa residência mora o consagrado escritor de histórias policiais Andrew Wyke (Laurence Olivier) - sujeito de hábitos excêntricos, condição que é reforçada pela curiosa decoração da casa (repleta de bonecos, de engenhocas e de jogos aleatórios de tabuleiro, o que forma um ambiente tão colorido quanto "poluído"). No outro extremo está o modesto cabeleireiro Milo Tindle (Michael Caine), que é convidado pelo primeiro para uma visita.

Ocorre que ambos têm algo em comum: a paixão pela mesma mulher. Ou será que não? Andrew é casado e descobre que sua esposa está tendo um caso com Milo. Sem cerimônias, o anfitrião revela já estar a par da traição. E propõe ao seu convidado uma espécie de "jogo" em que ambos sairão ganhando. Ocorre que Andrew está cansado da vida doméstica - e do matrimônio. E de ter de atender as extravagâncias e caprichos de sua mulher. Já Milo está na fase da paixão, mas ao mesmo tempo teme não estar a altura dos gostos sofisticados dela. Dessa forma, o marido propõe ao amante que este roube suas joias, vendendo-as após para um receptador de confiança (o que lhe garantirá uma boa cifra para iniciar a nova vida). Já o marido não sofreria prejuízo, uma vez que as joias estão no seguro. Não parece haver nenhuma chance de as coisas darem errado, né? É, mais ou menos.


Ao cabo, o grande problema estará no jogo de gato e rato perpetrado por ambos que tentarão, a todo custo, ludibriar um ao outro. Para o espectador é um roteiro interessante de se acompanhar pela imprevisibilidade. Até certa altura acreditamos que as coisas estão indo por um caminho e, quando vê, somos surpreendidos com uma mudança repentina de direção. Utilizando os objetos cênicos e o desenho de produção como um todo em seu favor, Mankiewicz cria as circunstâncias ideais para uma trama que assombra pelos contrastes - com seus marujos sorridentes e máscaras coloridas de palhaços -, mas que diverte com seus diálogos debochados, quase anárquicos. Instantes como os que Milo tanta "invadir" a casa fantasiado de palhaço, por exemplo, são histriônicos e caóticos, gerando um senso de ridículo que vai no limite da teatralidade.

Ao mesmo tempo, sequências mais tensas, como aquelas em que Andrew revela o plano por trás do plano também ajudam a manter um senso de suspense que surge inesperado em meio ao ambiente espectral e onírico do casarão. Tudo parece no limite do fantasioso, como bem poderia ser um dos livros do anfitrião. O que faz com que permaneça uma certa dúvida sobre o que estamos acompanhando. Tentando adivinhar ainda qual será a próxima maluquice. Com ótimas interpretações - que receberam indicações ao Oscar na categoria Ator -, o filme foi lembrado ainda entre os indicados para Direção, distinção que Mankiewicz receberia anteriormente por Quem É o Infiel? (1949) e pelo já citado A Malvada (1950). Meio esquecido nas listas de clássicos, Trama Diabólica foi lembrado no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. E, no ano que completa 50 anos de seu lançamento, vale ser (re)lembrado.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - A Chiara

De: Jonas Carpignano. Com Swamy Rotolo, Claudio Rotolo, Grecia Rotolo e Giorgia Rotolo. Drama, França / Itália, 2021, 122 minutos. 

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS]

Ficou mais ou menos conhecida, em 2010, a história de Maria Concetta Cacciola que, aparentemente, decidiu que beber uma garrafa de ácido concentrado era algo menos pior do que se submeter a tortuosa convivência com seus pais e seu irmão - uma família com laços com a Ndranghetta, a máfia da Calábria, na Itália. Forçada a se casar aos 13 anos e grávida aos 15, Concetta não queria permanecer em uma vida de crimes como tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. O que colocaria em risco esse tipo de poderosa dinastia. Impossibilitada de escapar, uma vez que apenas parentes podem ser "doutrinados" na Ndranghetta, a mulher, à época com 31 anos, preferiu tirar a própria vida. O rígido código de conduta lhe impedia de ser livre para escolher um parceiro de vida ou um trabalho que não envolvesse alianças espúrias. A vida ficara bloqueada. Apartada. Dedicada exclusivamente à família e a lealdade a esta.

Em linhas gerais este é um assunto diferente e que é muito bem desenvolvido no ótimo A Chiara - filme do diretor Jonas Carpignano que está disponível no Mubi. Vencedora do Prêmio Quinzena dos Diretores de Cannes, a obra nos coloca em uma Itália contemporânea, local em que a jovem personagem Chiara (Swamy Rotolo), de apenas 15 anos, perceberá, de forma gradual, que talvez a sua família não seja exatamente o que parece. O ponto de partida da trama é o aniversário de dezoito anos de sua irmã mais velha, Giulia (Grecia Rotolo). O clima é animado, festivo, os brindes são comoventes. O único que não parece muito à vontade para celebrar é o patriarca Claudio (Claudio Rotolo). Há algo em seu olhar tímido, em seu silêncio persistente que parece evidenciar de que há algo errado. Já na madrugada, após os convidados irem embora, um tumulto se inicia na casa. Chiara assiste pelas frestas, seu pai fugindo de algo - literalmente pulando o muro dos fundos de casa. Ele some. Sem dar notícias. Um carro simplesmente explode nas redondezas. O caos invade um universo até então lúdico, juvenil.


Sem compreender direito o que aconteceu e insatisfeita com as respostas evasivas dadas pela própria mãe (Giorgia Rotolo), Chiara empreenderá uma jornada pessoal em busca de pistas não apenas do paradeiro do pai, mas dos motivos pelos quais ele está fugindo (já que, até aquela altura, ela sequer imagina quais são os negócios dele). Além de uma passagem secreta que leva a um compartimento subterrâneo na própria casa, a jovem se deparará com outras figuras misteriosas da região, cada qual com seus segredos. Juntando um fragmento aqui e outro acolá, Chiara tentará equilibrar uma existência de adolescente que parece apenas esmaecer - das conversinhas bobas no celular, passando pelo cigarro escondido da mãe e pelas briguinhas com colegas -, para adentrar em um universo adulto até demais. Como, afinal, abandonar tudo o que ela acreditou até então para fazer essa intersecção em uma nova vida? Isso é possível? E se não, qual seria o caminho? O mesmo de Concetta?

Tenso, o filme evidencia o pânico que emerge do entorno, conforme Chiara assiste o seu carinhoso e onipresente pai ser desconstruído. E talvez não seja por acaso que, em um dos sonhos recorrentes e perturbadores que a adolescente tem, ela se depare com uma espécie de buraco aberto na própria sala de casa, como que dando espaço para uma nova dimensão. A vidinha de colégio vai. Os comentários e sussurros pelas costas aumentam. Uma família de criminosos emerge. E Chiara lida com tudo isso com seu olhar firme, fruto de uma caracterização competente de Swamy Rotolo. Aliás, quem leu atentamente a resenha percebeu: todos os integrantes da família tem o mesmo sobrenome porque eles são, verdadeiramente, parentes. A intenção do diretor foi a de conferir ainda mais realismo à narrativa. O resultado é incômodo, intimista, naturalista e evocativo. E histórias como as de Concetta serviram para que, inclusive, as leis da Itália fossem alteradas, com os "filhos da máfia" tendo como opção permanecer sob custódia do Estado, em locais secretos. Uma medida dura mas que busca minimizar os efeitos trágicos de uma vida obrigatória no crime.

Nota: 8,5

Fonte: Jornal Extra


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Cine Baú - Aguirre, A Cólera dos Deuses (Aguirre, Der Zorn Gottes)

De: Werner Herzog. Com Klaus Kinski, Alejandro Repullés, Ruy Guerra, Del Negro e Peter Berling. Drama, / História, Alemanha / México / Peru, 1972, 100 minutos.

Um Aguirre completamente alucinado, solitário em uma jangada que flutua à deriva no Amazonas, e que é povoada apenas por cadáveres e dezenas de macacos barulhentos. Tão clássica quanto hipnótica, tão absurda quanto desesperada, a sequência final do clássico Aguirre, A Cólera dos Deuses (Aguirre, Der Zorn Gottes) talvez seja uma das mais inesquecíveis da história do cinema. E uma das que melhor resume a viagem ególatra, obsessiva e suicida que é perpetrada por Don Lope de Aguirre (Klaus Kinski), protagonista da obra dirigida por Werner Herzog. Supostamente narrada a partir do diário do monge espanhol Gaspar de Carvajal (Del Negro), a trama volta no tempo, mais precisamente para a virada do ano 1560/61, época em que o conquistador Pizarro (Alejandro Repullés) era um dos encarregados de avançar pelas florestas da América do Sul, na intenção de obter mais ouro, mais território, mais tudo.

Aliás, escravizar os índios era parte do método adotado pelos conquistadores, tanto que na abertura do filme já nos deparamos com um comboio em que dezenas de prisioneiros incas marcham ao lado de seus algozes, evoluindo em meio a caminhos estreitos, lamacentos e de selva densa. Impedido de prosseguir por conta das dificuldades naturais - e pela escassez de suprimentos -, Pizarro escolhe Dom Pedro de Úrsua (Ruy Guerra) como o comandante de uma expedição com quatro jangadas que se lançarão rio abaixo na tentativa de reconhecer o território. Além de Ursúa, estará na viagem o nobre Don Fernando de Guzmán (Peter Berling), que representa a Casa Real da Espanha e o próprio Carvajal, responsável por levar a palavra de Deus à tripulação. Além de Aguirre, sua filha, e outros nobres ou nem tanto. E, bom, não é preciso ser nenhum expert pra saber que a coisa vai desandar.



O caos já começa quando uma das jangadas fica presa a uma espécie de redemoinho - com os integrantes amanhecendo mortos após um ataque dos índios. Para as demais jangadas a missão de reconhecimento também será trágica, com as dificuldades naturais tornando tudo mais complicado. E como desgraça pouca é bobagem, lá pelas tantas, Aguirre resolve fazer um motim contra Ursúa, tomando o comando da expedição. Flechas que surgem de todos os lados, balsas que afundam, animais que morrem. Doença, alucinação, paranoia. Um a um os integrantes da expedição vão padecendo. Enquanto Aguirre mantém o seu perturbador sonho de constituir um reino incestuoso com sua própria filha. Sendo incapaz de perceber o naufrágio - metafórico, alegórico - desse ideal. Cada vez mais delirante, o protagonista começa a ter alucinações. O que não o impedirá de parar a sua busca obsessiva, ambiciosa e violenta.

E são tantas as histórias de bastidores que dão conta das dificuldades de filmagem, que Herzog chegou a fazer um documentário, chamado Meu Melhor Inimigo (1999), sobre a sua relação conturbada com Kinski. E um dos melhores relatos, no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, dá conta de, quase ao final das gravações, Herzog ter impedido Kinski de ir embora do set, ameaçando atirar nele. Isso mesmo, ATIRAR! Em condições adversas, em locações remotas do Peru, a experiência mítica, onírica, nauseante, parece saltar da tela. As dificuldades são palpáveis. O sofrimento parece real. Um crítico alemão chegou a falar que a obra lembrava "uma pintura em movimento, inundada de cor e violência física" - o que é descrito n'O Livro do Cinema, da Globo Livros. Tudo isso parece ampliar o esplendor de uma obra que, de quebra, ainda analisa o absurdo da paranoia e da ambição humanas - o que é reforçado pela intepretação magnética e febril de Kinski. 


Pitaquinho Musical - Alvvays (Blue Rev)

Vamos combinar: não tem como não se apaixonar por uma banda que fala da dor de uma separação por meio de versos, como "À noite eu atendo ligações de operadores de telemarketing / Na esperança de ouvir seu sotaque". E a real é que esse senso meio autodepreciativo, de quem vai lá e se humilha até onde dá, é algo que faz com que o ouvinte do Alvvays se identifique facilmente. Em seu terceiro registro, chamado Blue Rev, o grupo canadense repete o combo do pop primaveril, aliado a vocais levemente enfumaçados e ao clima de inferninho lo-fi de fim de madrugada para entregar uma nova coleção de canções honestas, sinceras até demais, sempre embaladas pelo vocal agridoce da cantora Molly Rankin. Em Tile By Tile, a música do verso citado acima, ela conclui a estrofe dizendo que entregou seu cartão de crédito para o atendente que está do outro lado da linha - o tipo de distorção existencial meio torta, quase cínica, que dialoga com as melodias espontâneas do trabalho.




Em linhas gerais esse é daqueles trabalhos nada complexos, mas que ao mesmo tempo trafegam no limite entre o indie e o power pop. Aqui e ali o perfume juvenil retorna, seja na onipresença de um sujeito que é tão conectado às redes sociais que não deixa nada sem resposta (Very Online Guy), passando pela jovem que tenta recolher os cacos de um término (After the Earthquake) e que "chora em cima de um milkshake" enquanto dirige, até chegar a metafórica Bored in Bristol sobre uma espera por algo que parece nunca acontecer. Nesse sentido, as paisagens propostas pelo Alvvays soam cotidianas, como que extraídas de um livro adolescente, em que uma prosaica farmácia será o local inesperado de um encontro com a irmã do ex. Maduro, cheio de personalidade e tão bom quanto o anterior, Antissocialites - nosso quarto colocado na lista de Melhores de 2017 -, o caso é que Blue Rev é o Alvvays em sua melhor forma.

Nota: 8,5



terça-feira, 11 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Paris, 13º Distrito (Les Olympiades)

De: Jacques Audiard. Com Lucie Zhang, Makita Samba, Noémie Merlant e Jehnny Beth. Drama, Franla, 2021, 105 minutos.

Somos seres complexos. Cheios de camadas, de surpresas. De imprecisões. Agimos sem pensar. Pensamos sem agir. E, de alguma forma, Paris, 13º Distrito (Les Olympiades) nada mais é do que uma grande coleção de instantes sobre pessoas que, assim como nós, parecem estar em busca da felicidade em meio a um universo de incertezas. Pense sobre a última vez que você se apaixonou. Ou quando se percebeu arrebatado pelo amor. Como fazer dar certo? Quais os passos corretos? Devo verbalizar logo o que sinto? Aguardar? No mundo tudo é tão corrido, tão urgente, tão tecnológico, tão pueril. Hoje as oportunidades parecem infinitas. As ofertas surgem por todos os lados. Pessoas, experiências, objetos. De que forma se conectar efetivamente a algo? Aliás, é preciso se conectar? Às vezes não parecemos apenas um coletivo batendo cabeça em meio a fiapos de felicidade que surgem de tempos em tempos nesse mar de insatisfações que parece ser a existência?

Ok, talvez o novo filme do diretor Jacques Audiard, inspirado nos quadrinhos do cartunista Adrian Tomine, nem seja tão profundo assim - por mais que ele tenha nos deixado meio mal acostumados com as experiências vigorosas de O Profeta (2009) e Ferrugem e Osso (2012). Mas o caso é que aqui me parece meio impossível não divagar sobre essa espécie de caos cotidiano que nos move. Tudo parece ordenado? Só parece. Quando Camille Germain (Makita Samba) chega a casa de Émilie Wong (Lucie Zhang) interessado no quarto para alugar que a jovem oferece, a gente percebe que há um equívoco no diálogo entre eles: "eu esperava que viesse uma mulher", explica Émilie. "Sim, eu me chamo Camille, mas sou um homem" retruca o professor universitário. O que era pra ser um grande nada se converte de forma meio inesperada em uma relação que vai para além das negociações entre proprietário e locador. Não demora para que ambos, morando juntos, terminem na cama. Émilie se apaixona. Camille não parece interessado em compromisso.

E a forma como Audiard evidencia esse descompasso entre o casal não poderia ser mais realista: durante o sexo, a jovem que trabalha como operadora de telemarketing olha Camille nos olhos para dizer afirmar que ele está se apaixonando por ela. Mas é o contrário. E a dor de ser rejeitada naquilo que poderia ser uma relação das mais agradáveis - e saudáveis - se torna um grande baque para Émilie. Que descontará a sua raiva - se é que dá pra chamar de raiva - em um comportamento displicente no trabalho, que lhe levará à demissão, e a sessões de sexo com desconhecidos aleatórios que ela conhece em noitadas ou em aplicativos de relacionamentos. A fila anda rápido. Tudo é urgente. Camille, um tanto desiludido com a carreira acadêmica começa a trabalhar como corretor de imóveis. Local em que conhecerá Nora Ligier (Noémie Merlant), que tenta apagar de seu passado um episódio traumático na Universidade - local em que colegas de classe a confundiram com uma cam girl.

Trabalhando juntos, ambos se aproximarão, em meio a traumas revelados, sonhos quebrados, desvios de rota. A vida é meio assim, não muito previsível. A gente vai pra lá e poderia ter ido pra cá. Em certa altura, Nora resolve ir atrás de Amber Sweet (Jehnny Beth), a cam girl. Uma nova amizade se estabelece. A cumplicidade se amplia. Tudo conduzido de uma forma afetuosa, repleta de instantes transformadores, alegres, reflexivos, até oníricos. Em uma sequência, por exemplo, Émilie parece flutuar no ar, no dia seguinte a uma sessão de sexo intensa, cheia de paixão e de romance. Quem nunca? A fotografia em preto e branco confere elegância para as temáticas apresentadas pelo roteiro, ainda que reforce certa frieza da contemporaneidade. No centro, o amor - ou a falta de. E a permanente busca. Que pode estar onde menos esperamos. A vida é assim. Machuca. Especialmente pra quem é jovem. Mas ali adiante, posso garantir, já estaremos novamente entorpecidos.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Novidades em Sreaming - Trem-Bala (Bullet Train)

De: David Leitch. Com Brad Pitt, Aaron Taylor-Johnson, Michael Shannon, Brian Tyree Henry, Joey King e Logan Lerman. Ação / Comédia, EUA, 2022, 126 minutos.

Li algumas resenhas por aí garantindo que Trem-Bala (Bullet Train) é "muito bom para aquilo que se propõe". É sério mesmo? Bom, mas então é preciso admitir que o cinema de ação metido a engraçadinho anda nivelado muito por baixo por que, vamos combinar, que filmezinho bem qualquer nota. Aliás, pra mim não pode existir nada mais irritante no meio do que esse movimento Tarantino wannabe que, ao cabo, só vai gerar vergonha alheia. Existe uma sequência ainda no começo da obra de David Leitch que, de alguma forma, exemplifica esse ideal meio mofado que, pode ser, tinha graça nos anos 90. Nela, a dupla Limão (Brian Tyree Henry) e Tangerina (Aaron Taylor-Johnson) - sim, é a era da infantilização dos apelidos - explica como eles assassinaram 16 (ou 17) pessoas em meio a uma missão que visava a resgatar o filho de um certo chefão do crime, cujo codinome é Morte Branca (Michael Shannon).

Talvez não houvesse nada de mais nisso, mas ambos ficam longos minutos divagando sobre se foram 16 ou 17 mortes, até que abre um flashback bizarro que busca recordar todas elas - numa espetacularização tão rasa da violência, que beira o constrangimento (sensação ampliada pela desnecessária quebra da quarta parede em que os "números" vão sendo somados). Sim, a despeito dos apelidos patéticos, Limão e Tangerina querem provar pro público o quão durões eles são. Aliás, um mal de absolutamente TODOS os personagens masculinos, que são tão mal desenhados, que parecem apenas um agrupamento de sujeitos tolos, de personalidade idêntica entre si. E talvez isso possa explicar, ao menos em partes, a predileção de Leitch em elaborar tantas sequências em câmera lenta, com edição frenética, em que algum dos "viris" (sim, entre aspas) protagonistas, aparece em primeiro plano, com cara de mau. Todo mundo é muito mau, todo mundo tem cara de mau. Uau, que inovador.



O incômodo prossegue na completa desorganização do roteiro de Zak Olkewicz e, confesso que se sentir meio perdido num filme de ação que não parece fazer nenhum tipo de tributo à inteligência nunca é uma coisa boa. Que bandido é qual mesmo? Qual o objetivo desse? E daquele? Alguém é o real vilão? Todos? A maçaroca do texto é tão rocambolesca, que faz os piores filmes do Guy Ritchie - Como Revolver (2005) ou Rock'n Rolla: A Grande Roubada (2008) parecerem pequenas obras-primas. Outra mania desse tipo de projeto que em mim dá um efeito contrário - ou apenas ranço mesmo - é a da participação especial. Eu, na real, estou pouco me importando se vai aparecer o Ryan Reynolds, ou a Sandra Bullock ou o Chaning Tatum lá no meio. Who cares? Não muda nada na narrativa. Não significa nada diferente pra história. E só irrita. "Uau, vamos colocar uma mulher empoderada aqui pra fazer fita com as feministas", deve ter pensando alguém durante o desenvolvimento do projeto. Um desperdício para a talentosa Joey King, que brilha muito mais na ótima série The Act.

Ah, sobre o filme em si, um bando de matadores de aluguel / caçadores de recompensas em uma viagem interminável em um trem-bala de Tóquio a Kyoto, cada qual com a sua missão. Protagonista, Brad Pitt é o tal Joaninha - sim, os apelidos tolinhos -, que precisa recuperar uma maleta cheia de dinheiro, o que ele faz em três minutos. Desencadeando uma enxurrada de eventos que servem somente pra uma ou outra gracinha com cheiro de naftalina, que decorrem de um texto completamente sem carisma. Sem charme algum. Lá pelas tantas até frase de autoajuda é dita - algo como "se você não decidir seu destino, o seu destino decide por você" (e eu peço perdão se não lembro se era exatamente assim, porque a essa altura do campeonato eu já estava torcendo pro suplício terminar). Pra não dizer que é um completo desastre, algumas sequências espalhadas de ação são boas (a das mortes no casamento é ótima). Mas é só. Tudo parece plastificado. Encaixotado em um padrãozinho. De cores saturadas. De figurinos nerd / kitsch que não dizem nada. De referências à cultura pop incel que agrada marmanjo na casa dos 30. É quase difícil não se irritar em meio a tanta estupidez. Passe longe.

Nota: 3,0


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Vortex

De: Gaspar Noé. Com Dario Argento, Françoise Lebrun e Alex Lutz. Drama, Argentina / França, 2021, 142 minutos.

Sinceramente, esse filme deveria vir com algum tipo de alerta de gatilho, já que, Vortex, que estreou recentemente na plataforma Mubi, é daquelas obras que desgraça a cabeça do espectador. Em uma narrativa sobre demência e senilidade na velhice, o diretor Gaspar Noé - de Irreversível (2002), Love (2015) e Clímax (2018) - reduz um tanto da velocidade e do maximalismo dos projetos anteriores para apostar em uma experiência dolorosamente contemplativa, mas que jamais deixa de lado a inquietação, o incômodo. E, aqui, não são necessários nem cinco minutos para que sejamos tragados para a ambientação claustrofóbica de um pequeno apartamento onde moram um intelectual (Dario Argento) que escreve um novo livro que mistura sonhos com cinema e sua esposa (Françoise Lebrun), uma psiquiatra que começa a dar sinais de estar em algum estágio de Alzheimer intermediário.

Nesse contexto de degradação física e intelectual, ambos os idosos, na casa dos 80 anos, zanzam pelo ambiente, cada qual envolvido com pequenas efemérides - fazer o café, recolher o lixo, ir na farmácia, tentar escrever. Ocupada por um grande volume de livros, de pôsteres de filmes e de outros produtos culturais - o que evidencia a intelectualidade que agora parece apenas perecer em algum ponto da mente (numa metáfora desalentadora, por sinal) - a habitação em que os dois protagonistas coexistem é apenas triste. Como se fosse um purgatório, um espaço de longa espera, o apartamento é o cenário silencioso de quem apenas aguarda o fim. O ocaso da existência. O escritor se esforça para teclar sofregamente na máquina de escrever. Logo se exaure. A mulher se perde pelo bairro, deixando o sujeito aflito. O filho de ambos, Stéphane (Alex Lutz), um viciado (e traficante) que tem seus próprios demônios, pouco ajuda. Até tenta à sua maneira. Mas não consegue.


E lá pelas tantas eu me senti tão mal vendo o filme, que eu apenas queria que aquele sofrimento terminasse de uma vez - o que me fez perceber que esse é maior elogio ao filme de Noé. É no choque de realidade que está o mérito. Diferentemente de obras anteriores, aqui não há descidas caleidoscópicas, frenéticas e espiraladas a algum inferno conceitual ou alegórico e que serve para denunciar (ou escancarar) algum tipo de desvio moral, de preconceitos ou de comportamento repulsivo. Estamos apenas diante da vida. E da morte. E de como tudo parece tão inútil em muitos casos. O personagem de Argento se propõe a escrever um livro: mas qual o propósito disso? Qual a lógica? Com um problema cardíaco ocorrido meses antes, o homem e sua mulher divagam a partir da sentença de Edgar Allan Poe, que afirma que "a vida não passa de um sonho dentro de um sonho".

Hábil no que diz respeito ao aparato técnico, o filme aposta em uma trucagem que, se não chega a ser novidade, contribui para reforçar o senso de isolamento daquele confinamento meio forçado - estando cada qual dos atores enquadrados como se estivessem "encaixotados" lado a lado. Com ecos de Amor (2012), de Michael Haneke, e Meu Pai (2020) de Florian Zeller, a obra é costurada por instantes que apenas reforçam o tom quase insuportável da narrativa (e ver a personagem de Lebrun caminhando sem sentido dentro da casa, é daquelas em que dá vontade de dizer "chega" em algum momento). Discutindo luto, memória, cicatrizes do tempo, simbologia da morte e outros temas, o filme avança para a complexidade da busca de soluções práticas (que possam ser minimamente afetuosas) para casos do tipo. Poucas vezes vi um tipo de realidade sobre o tema tão bem evidenciada. Tão nua, tão crua. Em meio a tanta vulnerabilidade, quase dá medo de envelhecer. E esse "truque" realista funciona direitinho.

Nota: 8,5


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Operação Cerveja (The Greatest Beer Run Ever)

De: Peter Farrelly. Com Zac Efron, Russel Crowe, Bill Murray e Ruby Ashbourne Serkis. Comédia / Drama / Guerra, EUA, 2022, 126 minutos.

Uma ideia estúpida que serve como pano de fundo para denunciar a estupidez da guerra. Mais ou menos assim pode ser resumida a divertida e melancólica experiência com Operação Cerveja (The Greatest Beer Run Ever) - nova obra de Peter Farrelly, que venceu o Oscar de Melhor Filme em 2019, com o divisivo Green Book: O Guia (2018). Na trama retornamos para a Nova York do ano de 1967, no auge da Guerra do Vietnã. É nesse contexto de debate sobre a (falta de) eficiência da política anticomunismo - sempre ela - do presidente norte-americano Lyndon B. Johnson, que o ex-fuzileiro naval Chickie Donohue (Zac Efron) tem uma ideia estapafúrdia: e se, como forma de dar algum suporte aos amigos que foram recrutados para o front de batalha, ele fosse até o Vietnã para levar umas latas de sua cerveja norte-americana preferida? 

Sim, o que começa como um desatino patriota típico daquele "doidinho de bairro" logo toma forma após o pai de Chickie, de alguma maneira, incentivá-lo. Ele, afinal, não aguenta mais a vida fácil do jovem que se ocupa de bebedeiras homéricas em suas férias, acordando após o meio-dia para... novas bebedeiras homéricas. No bar local, operado pelo Coronel (Bill Murray, em especialíssima participação), as cervejadas servem para aplacar as dores a respeito das frequentes notícias de mortes de amigos e conhecidos que não param de chegar do Vietnã. Um amigo próximo de Chickie, que combatia no País asiático, é morto - o aviso vem de Christine (Ruby Ashbourne Serkis) que, junto a um grupo de pacifistas, participa de protestos contrários ao conflito. O que para Chickie, Coronel e os demais frequentadores do bar se constitui em uma afronta aos herois, que morrem servindo à nação.

E, particularmente, aqui está um dos pontos que mais gostei na obra de Farrelly. Sim, porque por mais caricata que possa ser a figura do jovem xucro, tolo, que é incapaz de analisar as questões políticas, sociais e culturais de seu País com um pouco mais de profundidade, o fato é que sujeitos como Chickie existem aos montes por aí. Que são contra a ciência, contra a imprensa, contra a educação. Basta pensar, por exemplo, na sequência em que o protagonista flagra sua irmã em meio a uma manifestação que cobra do governo Johnson alguma explicação sobre o fato de estarem sendo enviados milhares de jovens para a morte praticamente certa, em uma batalha completamente sem sentido. Ele vai até ela e briga com os pacifistas que, de acordo com a sua impressão enviesada, estariam desonrando a memória dos mortos (sendo que um protesto do tipo serve justamente para o contrário). Eles não estão defendendo a América contra os "vermelhos"?

A tolice de Chickie retornará em outros momentos, como naquele que envolve a chegada ao Vietnã, onde ele argumenta com um grupo de jornalistas que eles só trazem "más notícias" para os americanos no que diz respeito à guerra - e nada que pudesse elevar à moral do povo. Para quem se alimenta de teorias conspiratórias, de pânicos moral e comunista, da xenofobia e do medo, se deparar com a verdade pode ser algo complicado. E é justamente isso, como vocês bem podem supor, que ocorrerá com Chickie nos arredores de Saigon: o que inicia, ao cabo, como uma peregrinação cercada de um clima quase festivo, com o determinado protagonista encontrando alguns de seus amigos em quarteis generais e em outros espaços do front, aos poucos dará lugar a um choque de realidade que o fará revisar suas convicções. Mais ou menos o que acontece com o personagem de Viggo Mortensen em Green Book. Sim, pode parecer bobinho ou excessivamente estereotipado. Mas quem abraçar a insensatez do ato em si com alguma dose de suspensão da descrença, se deparará com uma obra que entretém ao misturar sensibilidade cômica, aventura e história freestyle. E ainda com um fiapo de otimismo. Nos tempos duros em que vivemos, pode ser uma boa.

Nota: 8,0