quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Tesouros Cinéfilos - Filhos da Esperança (Children Of Men)

De: Alfonso Cuarón. Com Clive Owen, Juliane Moore, Clare-Hope Ashitey e Michael Caine. Drama / Ação / Ficção científica. EUA / Reino Unido, 2006, 109 minutos.

No cenário pós-apocalíptico apresentado na ótima ficção científica Filhos da Esperança (Children Of Men) as mulheres não conseguem mais engravidar. O por quê? Ninguém sabe. Os pesquisadores especulam sem sucesso. Poluição? Aquecimento global? Algum tipo de vírus? Ou o excesso do uso de agrotóxicos? Difícil adivinhar, mas o caso é que no cinzento mundo de 2027 a pessoa mais jovem do planeta é um jovem argentino de 18 anos, quatro meses e alguns dias que, por se recusar a atender os "fãs", acaba assassinado no começo da película. Imagens do Baby Diego (como era conhecido) são reprisadas em todos os canais e a humanidade convive com o medo crescente de assistir a sua própria extinção. A sensação de caos é ampliada por uma espécie de permanente "crise de refugiados" - talvez fruto de algum tipo de guerra ou de escassez de recursos. Uma bomba explode em um bar da cidade e o burocrata Theodore (Clive Owen) escapa da morte por pouco. É só o começo.

Após um encontro com o amigo e cartunista aposentado Jasper (Michael Caine ótimo, em estilo riponga), Theo é procurado (ou sequestrado) por sua ex-esposa Julian (Juliane Moore), uma ativista social que solicita que o homem lhe ajude com os documentos de uma refugiada. Há segredos relacionados ao passado envolvendo os dois e a oferta de uma quantia de dinheiro fará com que ele aceite a "missão". Após ser atacado por um "falso" bando de nacionalistas (na verdade o ataque é perpetrado por revolucionários chamados de Peixes), o protagonista descobrirá que a refugiada, de nome Kee (Clare-Hope Ashitey), está grávida de oito meses. A gravidez certamente despertará a atenção de muita gente - Estado, forças armadas, grupos extremistas - e caberá a Theo a tarefa de auxiliar a jovem a chegar ao Tomorrow (embarcação de nome sugestivo), que lhe conduzirá em direção aos Açores, onde pesquisadores trabalham no chamado "Projeto Humano", que busca a cura para a infertilidade. Ufa!



Sim, há bastante informação o tempo todo nessa pequena obra-prima moderna do diretor Alfonso Cuarón que, somente pelo fato de fazer a crítica à forma como utilizamos a tecnologia e os nossos recursos - e sobre como, consequentemente, poderemos acabar com o mundo em que vivemos por causa disso -, já mereceria todo o crédito. Mas Filhos da Esperança também é uma verdadeira obra de arte do ponto de vista técnico. Com o uso quase ostensivo de uma câmera subjetiva e com a adoção de longos planos sequência - aquele dentro de um carro é inacreditável de tão bem feito - o diretor parece nos colocar DENTRO da ação. Já a fotografia (cortesia de Emmanuel Lubezki) adota uma paleta de cores permanentemente acinzentada, capaz de denunciar o estado de espírito de praticamente todos aqueles que vemos em tela (aliás, vocês já perceberam como nos filmes de ficção científica as metrópoles geralmente são frias e acinzentadas?). Já a inesquecível trilha sonora é cheia de peças modernas e caóticas de artistas como Aphex Twin e Radiohead.

Ao equilibrar momentos mais contemplativos com outros em que há grandes doses de ação, Cuarón também cria uma dinâmica bastante particular para a sua película - que trafega com graça por momentos mais descontraídos (como aquele em que é contada uma piada envolvendo cegonhas) com outros, envolvendo mortes, tiros e explosão. E se o componente social quase salta da tela (a questão dos imigrantes ilegais não poderia ser mais atual), a obra também se firma como uma espécie de inesperada elegia religiosa em certa altura do filme - em uma das tantas belas sequências. Indicado ao Oscar nas categorias Roteiro Adaptado (do livro homônimo de P. D. James), Fotografia e Edição nas premiações de 2007, a película ainda brinca ao utilizar a destruição das artes e a iconoclastia como uma metáfora perfeita para uma sociedade que olha com descaso para a cultura e para a educação (que o diga o Michelângelo "perneta", um representativo Guernica, de Picasso, ou a inesperada aparição da capa do disco Animals, do Pink Floyd, que nada mais é do que a referência ao clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell). Simplesmente arrebatador.


Curta Um Curta - O Dia em Que Dorival Encarou o Guarda

Anos antes de se consagrar por obras como O Homem Que Copiava (2003) e Meu Tio Matou Um Cara (2004), o diretor gaúcho Jorge Furtado lançaria essa verdadeira pérola dos curta-metragens gaúchos. À época de seu lançamento - no caso o ano de 1986 -, O Dia em Que Dorival Encarou o Guarda funcionava como uma verdadeira expiação para os "anos de chumbo" que, no Brasil da abertura, recém ficavam para trás. Na trama, o preso Dorival quer apenas tomar um banho e, para tentar alcançar seu objetivo, desafia o soldado, o cabo, o sargento e o tenente responsáveis pela prisão. A dura luta do protagonista na busca de seu objetivo, não sem sofrer com o racismo institucionalizado, nos permite pensar nesta como uma metáfora perfeita para aqueles que não se calaram (e foram até mesmo torturados), durante o Regime Militar. Não é por acaso que, mais de 30 anos depois, essa pequena joia permanece mais do que atual - especialmente em uma época em que convivemos com aberrações políticas como Jair Bolsonaro, que parece legitimar o discurso de ódio, o preconceito e a intolerância, com seu comportamento beligerante.



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Picanha.doc - Jogo de Cena

De: Eduardo Coutinho. Com Andréa Beltrão, Marília Pêra, Fernanda Torres e Lana Guelero. Documentário, Brasil, 2007, 105 minutos.

Um dos maiores cineastas brasileiros da história, o documentarista Eduardo Coutinho costumava dizer que "não haveria impulso maior para o ser humano do que ser reconhecido e escutado" - e pode-se dizer que esta sentença moveu grande parte das obras-primas que produziu, de Edifício Master (2002) e As Canções (2011). E foi tomando por base essa premissa que Coutinho lançou em 2007 o clássico moderno Jogo de Cena. Em sua estrutura o filme parece simples: começa com a imagem de um classificado de jornal que convida mulheres maiores de 18 anos residentes no Rio de Janeiro, para contar histórias em um teste para um documentário. Mulheres comuns, simples, cheias de segredos, angústias, anseios, lamentos. Pessoas que têm saudades, arrependimentos, vontades. Pessoas que riem e choram, que pensam antes de falar. Ou não. Que cantam. Que esquecem. Pessoas como eu e você. Imperfeitas, complexas, improváveis.

Mas a beleza do filme de Coutinho não está apenas em ouvir atentamente as histórias - que podem ser a narrativa de uma rapper lésbica que luta para se ajustar em uma sociedade preconceituosa, de uma jovem mãe que ama a sua recém-nascida filha mas que tem a consciência de certa perda da "liberdade" representada pela maternidade ou da mulher abandonada pelo marido e traumatizada em assuntos relacionados ao sexo: está também em burlar os limites entre realidade e ficção, veracidade e fantasia. Na tela também surgem atrizes reconhecidas do cinema e do teatro nacional - como Fernanda Torres, Andréa Beltrão e Marília Pêra - que interpretarão as mesmas memórias narradas pelas mulheres que protagonizam o filme. As mesmas histórias com outras visões, outras reações, outras expressões. Verdade e, talvez, mentira se cruzando o tempo e nos movimentando como parte desse processo de construção capaz de gerar dúvidas o tempo todo.



No cenário apenas um teatro vazio que permite ver algumas cadeiras também vazias. A câmera em close capta detalhes dos rostos das entrevistadas. Reações imprevistas. Riso seguido de choro. O medo de seu relato soar excessivamente trágico - e perder um filho e tentar reencontrar forças pra viver certamente o é. E quem não tem as suas histórias? Com uma câmera tão franca, Coutinho nos faz perceber que as atrizes, na ânsia de repetir aquelas mesmas histórias tão reais que, para elas, não passam de ficção, se atrapalham. Se confundem. Passam a ter medos e incertezas a respeito de seu ofício. E assim também se desnudam. Se desnudam da mesma forma que a mãe que sonha em se reaproximar da filha ou da filha que se arrepende de ter brigado com o pai que morreria. Em uma obra como Jogo de Cena há espaço sim para a encenação, mas também para a vida real confrontada, na cara limpa, sem maquiagens ou trucagens de interpretação.

Em uma votação realizada por membros da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), em 2016, considerou Jogo de Cena o segundo Melhor Documentário Brasileiro da história - atrás apenas de Cabra Marcado Para Morrer (1984) também de Eduardo Coutinho. É muito provável que a sua "brincadeira" prazerosa capaz de modificar a lógica, de repetir eventos e de misturar sentidos tenha sentido determinante para esta escolha. Aliás, talvez não seja por acaso o fato de o crítico francês Jean-Claude Bernardet ter considerado a obra um "abalo sísmico de sete graus na Escala Richter". Sem abuso de recursos, sem explosões mirabolantes, sem uma trama excessivamente exagerada ou cheia de reviravoltas, Coutinho mostra que o poder do cinema está inevitavelmente nas boas histórias. Floreadas ou não, enfeitadas ou não. E que cada um de nós tem uma delas. Basta ligar a câmera para que possamos contá-las. E é dessa forma que a magia se faz.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Grandes Filmes Nacionais - Central do Brasil

De: Walter Salles. Com Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira, Marília Pêra, Othon Bastos e Matheus Nachtergaele. Drama, França / Brasil, 1998, 105 minutos.

Lançado há 20 anos, Central do Brasil segue até hoje sendo um dos filmes mais importantes da retomada do cinema brasileiro, que iniciou em meados dos anos 90. Não apenas pelo sem fim de premiações que recebeu - foi consagrado o Melhor Filme em Língua Estrangeira no Globo de Ouro e foi Urso de Ouro no Festival de Berlim, só pra citar dois exemplos -, mas também pelo retrato desalentador e urgente de um povo que se esconde nos áridos rincões do Nordeste e/ou que convive com a pobreza dos grandes centros urbanos. E, ainda que o contexto seja de desesperança durante as quase duas horas de projeção, pode-se dizer que a obra máxima do diretor Walter Salles (que mais tarde filmaria Diários de Motocicleta) também é uma emocionante película sobre a amizade. E também sobre o poder transformador de nossas atitudes, capazes de modificar a vida daqueles que nos rodeiam para sempre.

Na trama somos apresentados a Dora (Fernanda Montenegro), professora aposentada (e bastante rabugenta) que complementa a sua renda escrevendo cartas para analfabetos na estação ferroviária que dá nome ao filme e que fica no Rio de Janeiro. Sem muita paciência com os seus clientes, Dora muitas vezes sequer envia as cartas que escreve, destinando-as ao lixo ou a uma gaveta (que dificilmente será revisitada). Em meio a sua rotina surge uma mulher de nome Ana (Sôia Lira) que,  acompanhada do filho Josué (Vinícius de Oliveira), tem a intenção de escrever uma carta para o ex-marido que reside no Nordeste, já que o filho sonha em conhecê-lo. Só que no momento em que está saindo da estação, Ana se distrai e é atropelada por um ônibus, deixando o menino no local. É nesse momento que, aos trancos e barrancos e, bastante a contragosto, Dora se aproximará do menino para tentar ajudá-lo a encontrar o pai.



Evidentemente que a tarefa não será fácil. Quando decidem rumar para o sertão nordestino, a nova (e improvável) dupla não tem sequer a certeza de que encontrará o endereço deixado por Ana. Com pouco dinheiro, dependerão da ajuda de outras pessoas - como no caso do caminhoneiro César (Othon Bastos) que, inicialmente amistoso, abandonará a dupla pela estrada quando perceber que a escritora está se apaixonando por ele. Nesse sentido, a película é cheia de idas e vindas e pequenas decepções (e reviravoltas) que ampliarão a sensação de isolamento e o sofrimento daqueles que assistimos. Mas como numa espécie de movimento inverso, quanto mais aprofundada e difícil se torna a viagem da dupla pelas vastas e áridas planícies do Nordeste - num verdadeiro road movie tupiniquim -, maior será a nossa empatia com eles. E não é por acaso que cada pequena conquista será celebrada, nem que esta seja uma maior aproximação entre Dora e Josué, conforme os dias avancem. Ou mesmo o indicativo de que a casa que procuram possa estar próxima.

Com interpretações assombrosamente naturalistas - não é por acaso que Fernanda Montenegro recebeu o Urso de Prata na categoria Melhor Atriz no Festival de Berlim e foi indicada ao Oscar na mesma categoria - a obra-prima ainda conta com uma série de personagens secundários interessantes, como no caso da melhor amiga de Dora, Irene (Marília Pêra) e o possível irmão de Josué, Isaías (Matheus Nachtergaele). E se a primeira servirá como um inesperado alívio cômico, o segundo inevitavelmente emocionará conforme as verdades vierem a tona. Com uma fotografia acinzentada no primeiro terço e empalidecida (e amarelada) do meio para o fim - cortesia do diretor de Fotografia Walter Carvalho -, a obra ainda utilizará o recurso, bem como a sua inesquecível trilha sonora que mescla piano e cordas, assinada por Antônio Pinto e Jaques Morelenbaum, como forma de evidenciar o estado de espírito daqueles que assistimos.


E se o componente social quase salta a tela - nunca é demais lembrar que o filme se passa durante a gestão FHC, período em que a inflação e a pobreza extrema atingiu números estratosféricos no País -, há também espaço para a crítica ao reacionarismo nauseante (cortesia do personagem Otávio Augusto, policial que não hesitará em assassinar um trombadinha por este ter furtado um pequeno aparelho de som de uma das bancas da Central). E, nesse sentido, a obra é inteligente ao mostrar a natureza sombria desse integrante da "família de bem" que, não surpreende, tem ligação com o tráfico de menores. Em um período em que, as vésperas das eleições, o País naufraga em uma de suas maiores crises - fruto de um Golpe que faz com que o trabalhador se fragilize e fique vulnerável socialmente - um filme como Central do Brasil permanece mais do que atual, em sua alegoria absurdamente tocante da esperança por dias melhores. Algo que nem a derrota para A Vida é Bela (1998), no Oscar do ano seguinte, apaga.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Cine Baú - No Calor da Noite (In The Heat Of The Night)

De: Norman Jewison. Com Sidney Poitier, Rod Steiger, Warren Oates e Lee Grant. Suspense / Policial, EUA, 1967, 109 minutos.

Filmes que abordam a temática do preconceito racial dificilmente se tornam datados, já que os avanços relacionados ao assunto ainda são poucos em um mundo que (ainda) precisa conviver com aberrações políticas como Donald Trump e Jair Bolsonaro - que, com seus comportamentos anacrônicos, ultrapassados e conservadores, parecem lamentavelmente "legitimar" o discurso de ódio às minorias. E se nos dias de hoje o respeito à igualdade entre os povos ainda parece uma utopia a ser alcançada, nos anos 60, época do lançamento do inesquecível clássico No Calor da Noite (In The Heat Of The Night), a situação era ainda mais grave. Nesse sentido, é louvável o esforço do versátil diretor Norman Jewison (Agnes de Deus) em transformar a sua película não apenas em um ótimo suspense policial, mas também em um verdadeiro documento de um período em que os americanos conviviam com o segregacionismo.

O filme começa com o industriário Philip Colbert (Lee Grant) sendo encontro morto, em plena rua, pelo policial Sam Wood (Warren Oates). Na tentativa de achar o culpado, Sam acaba conduzindo à delegacia um certo Virgil Tibbs (Sidney Poitier), simplesmente pelo fato de Virgil ser um homem negro, bem vestido, que está de posse de uma razoável quantidade de dinheiro e que aguarda na estação rodoviária que fica próxima ao local em que ocorreu o crime. Não demorará para que Sam e o seu superior - no caso xerife Bill Gillespie (Rod Steiger) - percebam estar diante de um grande equívoco, já que Virgil não apenas não é o assassino, como ainda é um detetive da polícia da Filadélfia, que estava no Sul dos Estados Unidos para visitar familiares. Especialista da área de homicídios, Virgil recebe ordens de seu superior para que ajude no caso - o que desagradará policiais, comunidade, famílias de bem e bolsominions americanos, que tentarão de todas as formas boicotar o trabalho do sujeito.



Será na conturbada relação entre Gillespie e Tibbs que residirá a força da película, que faturou a premiação máxima no Oscar de 1968 - deixando para trás outras produção estrelada por Poitier, no caso Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967). O xerife local não admite que um negro trabalhe com ele ou que lhe dê ordens. Ao mesmo tempo, é inegável a admiração com que ele encara o seu parceiro de investigação que, com inteligência e perícia, vai fechando o cerco e descartando suspeitos que, presos, poderiam servir apenas como "bodes expiatórios". Ainda assim, a obra jamais alivia no preconceito, escancarando o ódio boçal que brancos sentiam (alguns ainda sentem) na convivência com negros - e não é por acaso que, em certa altura, um dos principais suspeitos do crime lembra os tempos em que "mandaria fuzilar" um sujeito tão "indolente" quanto Virgil. Uma das tantas perseguições que o jovem sofrerá na interiorana e retrógrada Sparta durante a sua estada.

Com ótima montagem - do editor Hal Ashby que, mais tarde, se tornaria um importante diretor - o filme ainda engendra uma ótima sequência de eventos que surpreendem, mantendo o espectador até os últimos minutos sem saber quem é o verdadeiro culpado pelo assassinato (não por acaso, o roteirista Stirling Silliphant também faturou o Oscar). Com cenas até hoje inesquecíveis e violentas - como aquela em que Bill "salva" Virgil do ódio de quatro rapazes na estação ferroviária - a obra ainda tem trilha sonora inesquecível (cortesia de Quincy Jones) e música tema de Ray Charles daquelas para ouvir no repeat por horas. Já as interpretações são um verdadeiro show. Poitier, com seu semblante naturalista é capaz de transmitir MUITO apenas com o olhar e com gestos sutis. Já Steiger foi agraciado com o Oscar, talvez motivado pelo arco dramático redentor pelo qual o seu personagem passa (provavelmente um sonho secreto quase fantasioso do americano médio). No final das contas, em meio a alguns avanços, o fato é que No Calor da Noite, 75º colocado na lista de 100 melhores da história lançada pelo American Film Institute em 2007, se mantém dolorosamente atual.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Cinema - Você Nunca Esteve Realmente Aqui (You Were Never Really Here)

De: Lynne Ramsey. Com Joaquim Phoenix, Ekaterina Samsonov, Alex Manette e Alessandro Nivola. Suspense / Drama, EUA / Reino Unido / França, 2018, 90 minutos.

Interessante notar como Você Nunca Esteve Realmente Aqui (You Were Never Really Here) não é apenas um belo exemplar de gênero - no caso um drama de temática forte, com boas doses de suspense - mas também um excelente exercício de estilo. O filme da diretora Lynne Ramsey (de Precisamos Falar Sobre o Kevin) já começa com uma série de imagens em close  - de mãos, de objetos sendo manipulados e limpos e que, inicialmente, apenas despertarão a nossa curiosidade. Uma trilha sonora cheia de notas caóticas, difusas (cortesia de Jonny Greenwood, do Radiohead). Um flashback esmaecido em que uma criança parece sofrer com algum tipo de violência - talvez de um algum parente opressor. Todo esse preâmbulo servirá para que se instale uma sensação de desconforto, quase uma espécie de claustrofobia por aquilo que ainda não sabemos, que não conhecemos, mas que, aos poucos, a cada nova sequência homeopaticamente descortinada, se tornará mais claro.

Muito menos interessado em escancarar gratuitamente em nossas caras a violência que parece o tempo todo estar nas entrelinhas, o roteiro opta, assim, por uma visão mais oblíqua - e nem por isso menos intensa - das ações do protagonista Joe (Joaquin Phoenix, em mais uma de suas impressionantes caracterizações). Joe é um veterano de guerra que, no submundo, se ocupa de resgatar adolescentes mantidas em cativeiros como escravas sexuais. Um "trabalho" duro, dificilmente satisfatório, que faz com que Joe trafegue pela cidade como uma espécie de fantasma passivo que convive com os seus demônios - e também com os de outras pessoas. Em certo dia, ele é solicitado para resgatar a filha de um senador que, de acordo com uma mensagem de texto, estaria presa em um bordel. A ação da errado quando o congressista se suicida e Joe se dá conta de que há algo a mais por trás desse simples "resgate".



Sim, há segredos envolvendo o passado de algumas das personagens que farão com que Joe seja confundido com um dos raptores, sendo a única saída possível a de fazer justiça com as próprias mãos. A trama é intrincada e desperta dúvidas a respeito da natureza das ações daqueles que vemos em cena. Joe teria sofrido uma emboscada? A rede de pedofilia envolveria pessoas próximas das famílias das vítimas? Qual o papel da polícia em meio a isso tudo? Enquanto tenta se livrar de qualquer tipo de acusação, Joe trafega furtivamente pela cidade deixando um rastro de sangue por onde passa. Sim, haverá perdas pelo caminho e ninguém estará livre da violência quando esta bater a porta, mas com o firme propósito de resgatar Nina (Ekaterina Samsonov) do que "quer que seja", Joe seguirá em sua dura jornada.

Como já está se tornando quase uma convenção nas interpretações de Phoenix, ele transforma Joe em uma figura ambígua que é, na mesma medida, um assassino e um justiceiro. E mesmo que a sua personalidade complexa não se sobressaia por seus atos - quase sempre contidos - o olhar triste e eventualmente "perdido" de quem convive com feridas que dificilmente serão curadas, transformam a personagem em alguém que parece sempre no limite. E se a composição de Phoenix é formidável por isso, também não ficam atrás a fotografia (quase sempre amarelada, quente, sufocante) e o desenho de produção que, de quebra, ainda faz uma brincadeira criativa com a cor verde (que, no fim das contas, sempre estará relacionada a esperança). Com ótima trilha sonora - a escolha de Angel Baby do grupo Rosie and The Originals para os momentos mais tensos, não poderia ser mais incômoda - a película ainda deixa o final em aberto, especialmente após reconhecer o fato de que, tanto o anti-herói Joe quanto a sua agora protegida Nina têm mais em comum do que imaginam.

Nota: 8,3

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Cine Baú - No Silêncio da Noite (In a Lonely Place)

De: Nicholas Ray. Com Humphrey Bogart, Gloria Grahame, Martha Stewart e Frank Lovejoy. Suspense / Drama, EUA, 1950, 93 minutos.

Ainda que o diretor Nicholas Ray tenha se consagrado com o lançamento de Juventude Transviada (1955), é possível afirmar que o caminho para a construção do clássico da contracultura foi pavimentado com uma série de "pequenos grandes filmes", como é o caso do suspense No Silêncio da Noite (In a Lonely Place). Película com ares hitchcokianos - sentimento amplificado pela ocorrência de uma morte e de um protagonista cheio de ambiguidades que pode, ou não, ser o culpado - o filme conta a história do roteirista Dixon Steele (Humphrey Bogart), sujejto reconhecidamente intempestivo e de pavio curto que, em seu meio, não tem paciência sequer para ler um livro que, futuramente, poderá ser adaptado. Essa condição é um complicador para a sua carreira - e para  e o relacionamento com diretores e astros de Hollywood -, que está em declínio.

A oportunidade para uma volta por cima surge com a oferta de roteirizar um livro de sucesso, o que Dixon fará a contragosto, contando com o auxílio da garçonete Mildred Atkinson (Martha Stewart), que irá atá a casa do sujeito para contar a história com as suas palavras. Após uma noite breve de conversa e de encenação de diálogos, Martha sai da casa de Dixon, pega um táxi e... amanhece morta, estrangulada e jogada de dentro do carro em uma vala. O problema é que, dado o temperamento difícil do protagonista - que de quebra ainda tem um histórico de passagens pela polícia por brigas e por agressões a mulheres -, ele se tornará um dos principais suspeitos do crime, já que foi uma das últimas pessoas vistas por Mildred. A sua sorte será a existência de um inesperado álibi: a vizinha Laurel Gray (Gloria Grahame), que garantirá a polícia que Steele não está envolvido com o caso. Será?



Esse sentimento de "será que foi ele o criminoso?" será, inadvertidamente, uma das maiores diversões da película - algo parecido com o que sentimos ao assistir obras-primas como Suspeita (1941), do já citado Alfred Hitchcock. Após defender Dixon, Laurel se aproximará do vizinho, se tornando seu amante. Mas o comportamento imprevisível e violento do sujeito fará com que ela tenha dúvidas o tempo todo a respeito de sua inocência. E, para o espectador, assistir à personagem de Bogart (em inesquecível caracterização) explodindo de forma brutal e descontrolada após uma briga de trânsito, ou mesmo agredindo o seu empresário por não estar de acordo com uma "escolha" durante a produção do futuro filme, também deixará a pulga atrás da orelha. Sentimento que será amplificado na inesquecível cena em que Dixon, o investigador Nicolai (Frank Lovejoy) e a sua esposa Sylvia (Jeff Donell) reconstituem o crime, bem como os detalhes de como este pode ter acontecido.

[SPOILER ALERT] Mais do que saber se Dixon é ou não o culpado, um dos grandes trunfos da obra está na nossa percepção em relação aquilo que ele poderia ter sido, se as circunstâncias do roteiro não seguissem da forma como ocorrem. Em tempos em que ainda assistimos tão estarrecidos a casos revoltantes de agressões à mulheres - e isso que a Lei Maria da Penha está completando 10 anos - um filme como No Silêncio da Noite deveria se tornar filmografia básica para a compreensão de que, diante de qualquer tipo de violência ou de ameaça - física, psicológica ou moral - uma mulher SEMPRE deve procurar ajuda. Dixon não é o assassino, mas assim como o ex-namorado de Mildred, que é o verdadeiro criminoso, ele se comporta como um assassino potencial. No fim das contas, a cena e Laurel indo embora do apartamento de Dixie após uma ligação telefônica reveladora, será, definitivamente, o melhor desfecho possível para uma obra de grande impacto - e que mantém atual até os dias de hoje.


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Lado B Classe A - Spiritualized (Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space)

Difícil definir o sentimento que nos invade a cada audição do superclássico Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space dos ingleses do Spiritualized mas, de forma geral, ele poderia ser resumido como uma possível entrada em uma igreja renascentista localizada no espaço sideral - por efeito de drogas ou não. Nada é óbvio na coleção de canções que arranja os 70 minutos do trabalho, que é permeado por uma série de emanações etéreas que, agregadas a uma psicodelia multicolorida, subversiva e juvenil, transforma o disco em um dos mais fascinantes lançados não apenas em 1997, mas naquela década (pra não dizer do milênio). E isso que 1997 foi o ano de Ok Computer, do Radiohead e de Urban Hymns, do The Verve, isso só pra citar dois discos importantes daquele ano. E tão roqueiros, heterogêneos, ambíguos e multifacetados quanto este.

O álbum já abre com a música-título - espécie de tour de force alienígena, amplificado por efeitos eletrônicos oníricos, que não faria feio na trilha sonora de algum filme de ficção científica dirigido por Terrence Mallick (bom, a canção faz parte do filme Vanilla Sky, façamos justiça). Nela, o vocal sussurrado e inviolavelmente discreto demais de Pierce esbanja sentimento ao afirmar que "tudo o que quer na vida é um pouco de amor, para se libertar da dor". Parece óbvio, parece simples e talvez até seja. Mas poucas vezes as dores passionais, o sentimento de isolamento, a ansiedade generalizada e o caos interior foram tão bem traduzidos. Come Together é um rockão setentista com direito a vocalzinho gospel no final - cortesia do London Gospel Choir que, ao lado de uma dúzia de músicos convidados integra o time responsável por dar vida ao trabalho. Já I Think I'm In Love - que finaliza a trinca inicial de canções - equilibra bem o ar interiorano de baladinha rock country de filme alternativo, com um piano, baixo e sopros bem pontuados e uma letra lisérgica sobre a paixão que alucina em meio a uma tarde de calor pestilento. Parece literatura beat em forma de música.



Até a insuperável Cop Shoot Cop - canção desalentadora que encerra o trabalho e que versa sobre um mundo individualista em que o que importa é viver a qualquer custo - o disco alternará caos e placidez, desordem e tranquilidade. All Of My Thoughts, por exemplo, começa como uma canção de ninar extraterrestre em que a voz lânguida e propositalmente "preguiçosa" do vocalista conduz os versos, que explodirão em uma balbúrdia trovejante e jazzística. É o exagero e a economia convivendo em harmonia e sendo fundamentais para o bem da canção. Stay With Me emula aquilo que o Blur tanto tentou fazer no final dos anos 90 - uma balada de amor sincero sobre querer estar perto a todo o custo (e que faz com que o ouvinte se identifique de imediato). Já Electricity, com aquele clima de boate flamejante talvez seja aquilo que mais poderia se aproximar de um hit - com direito a refrão (e guitarras) grudentas. Home Of The Brave, The Individual, Broken Heart e No God Only Religion, mantém a "régua" em alta (e também o clima ora místico, ora espacial, ora alucinógeno e SEMPRE muito provocativo e roqueiro). E há ainda Cool Waves, disparada a melhor faixa do disco.

Não bastasse ser um disco absolutamente inesquecível e importante do ponto de vista musical, Ladies and Gentlemen ainda se diferenciava por trabalhar com um conceito que apresentava a arte visual do registro como se este fosse uma bula - com indicações para o consumo de, no máximo, duas vezes ao dia (o que será muito difícil para quem ingressar pelas curvas surpreendentes e atmosféricas do álbum). Absolutamente viciante, o registro nos fará extrapolar a bula. Nos fará ter uma overdose que a persistência dos sintomas não será capaz de aplacar. O disco era apenas o terceiro do Spiritualized, que lançaria mais quatro trabalhos mais tarde - Let It Come Down (2001), Amazing Grace (2003), Songs In A&E (2008) e Sweet Heart Sweet Light (2012). Todos com qualidade superior. Todos com aquele clima espiritualizado, de variações roqueiras e de reflexões pautadas pelo caos interior. Mas nenhum deles como Ladies and Gentlemen. Pouco vendido na época - até mesmo esquisito para alguns - o trabalho se mantém até hoje como um dos pontos altos do mercado fonográfico dos anos 90. Recebeu uma rara nota 10 do Pitchfork. Foi disco do ano no New Musical Express. Aparece na lista de 1001 discos para ouvir antes de morrer naquele livro. E segue intocável nos corações dos fãs mais ardorosos - que já aguardam com as mãos para o céu (como se tocados por uma espécie elegíaca de deus musical) pelo novo disco da banda, de nome And Nothing Hurt, que chega às "lojas" no próximo dia 07 de setembro.



sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Picanha em Série - Tábula Rasa (Tabula Rasa)

De: Jonas Govaerts e Kaat Beels. Com Veerle Baetens, Jeroen Percival, Gene Bervoets e Stijn Van Opstal. Suspense policial / Terror, Bélgica, 2017, 450 minutos.

Quem gosta de séries de mistério, com boas doses de suspense policial e com algumas (ótimas) reviravoltas não pode deixar de assistir a belga Tábula Rasa (Tabula Rasa). Tão discutido por filósofos das mais variadas correntes - de Aristóteles a John Locke -, o conceito de tábula rasa pode ser definido como "folha de papel em branco" (para Locke nascíamos sem conhecimento algum, sendo todo o processo do saber, aprendido através das experiências). Divagações a parte, de alguma forma, é possível afirmar que, metaforicamente, este é o caso da protagonista Mie (Veerle Baetens). Presa em um hospital psiquiátrico onde recebe tratamento para um caso de amnésia que faz com que ela não se lembre de eventos recentes, Mie, uma artista de renome no passado, é investigada por um certo inspetor Wolkers (Gene Bervoets), já que ela teria sido a última pessoa vista com Thomas De Geest (Jeroen Percival), um empregado de um centro de reciclagem.

Mie não se lembra de nada, mas precisa buscar de qualquer forma em sua memória por alguma pista que possa levar a solução do caso. Só que "buscar na memória" significa reconstruir um passado sombrio que envolve ainda um grave acidente automobilístico, que pode estar diretamente relacionado ao problema psiquiátrico. Parece "rocambolesco" e eventualmente complexo, mas a série é absolutamente didática e inegavelmente fácil de se compreender. Com idas e vindas no tempo, a trama retorna para três meses antes do desaparecimento de De Geest para mostrar a chegada de Mie, do marido Benoit (Stijn Van Opstal) e da filha Romy (Cécile Enthoven) a uma casa - aquele clichê da nova morada para curar feridas ainda abertas. Só que a presença de um misterioso guarda florestal em redor da casa, somado a uma série de eventos que flertam levemente com o sobrenatural, adicionarão um forte componente claustrofóbico a trama - reforçado pelo clima sufocante de cada cômodo -, levando a protagonista a duvidar da "realidade" em que vive.



A cada ida e vinda no tempo - as tramas correm paralelamente -, novas revelações vão sendo feitas, cabendo ao espectador montar o quebra-cabeças capaz de solucionar o caso (e as anotações feitas por Mie, com caneta esferográfica, também contribuirão nesse sentido). Com belíssimo desenho de produção, Tábula Rasa se utiliza ainda de uma série de elementos visuais para, metaforicamente, sugerir o sentimento que rege a busca da protagonista. Nesse sentido, a produção se torna quase como se fosse um devaneio delirante e fantasioso - e não são poucas as vezes em que Mie acorda de algum sonho surrealista e cheio de sentidos. Se a areia vermelha que escapa de seu alcance e insiste em aparecer pode representar as memórias que lhe fogem como o tempo em forma de areia se esvai em uma ampulheta, o uso quase ostensivo de roupas vermelhas por Romy pode significar muito mais do que uma mera escolha estilística por parte dos figurinistas.

Já os atores estão soberbos, com um sem fim de personagens secundários que merecem destaque - caso do piromaníaco Vronsky (Peter Van Den Begin) e da mãe da protagonista Rita (Hilde Van Mieghem) que, surpreendentemente, garante alguns alívios cômicos para a trama (especialmente por sua excêntrica relação com Mozes, o enfermeiro do marido). Há ainda uma misteriosa psiquiatra que responde pelo sobrenome de Mommaerts (Natali Broods) e que pode ser a chave para que o caso seja solucionado. Com apenas nove episódios de cerca de 50 minutos cada um, Tábula Rasa é uma série bem construída, rica em elementos e que provoca sustos nunca de maneira óbvia - e certamente será impossível qualquer espectador não ficar com os cabelos em pé, ao ouvir o equipamento eletrônico de uma porta pedindo, repetidamente, para que esta seja fechada.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Disco da Semana - Carne Doce (Tônus)

Aviso aos navegantes: o novo disco dos goianos do Carne Doce - intitulado Tônus - não é daqueles para escutar de forma desatenta enquanto realiza atividades domésticas ou descompromissadamente entre uma tarefa e outra no trabalho. Definitivamente não! O registro requer, pelo menos, um bom sistema de som ou, na ausência destes, um razoável fone de ouvidos para que, somente assim, se consiga perceber todas as nuances do registro. De espírito intimista, o terceiro trabalho - que dá sequência ao inaugural registro homônimo (2014) e ao inesquecível (e figurinha fácil entre os melhores do ano) Princesa (2016)- é rico em detalhes, em encaixes bem pensados, em curvas etéreas e nunca óbvias e em versos sussurrados que parecem se grudar a porção instrumental. É portanto um trabalho amplo e maduro que, sugere-se, não seja ouvido de forma displicente.

Por meio de entrevistas dadas a imprensa, a própria banda admite que, se comparado ao disco anterior, o novo trabalho olha mais "para dentro do que para fora", extraindo uma parte do compromisso político/ideológico/social - ainda que, jamais ignorando-o. "Não sou exatamente uma artista militante", afirmou a vocalista e compositora Salma Jô, em entrevista a Revista Isto É. "Parece paradoxal, mas acho que consigo emocionar mais quando olho para dentro, já que assim as pessoas se identificam", reforçou. Ainda assim, mesmo que num espectro menos amplo se comparado ao trabalho anterior - e a canções que viraram hinos feministas, como Falo e Cetapensâno - a banda, completada por João Victor Santana (guitarras e sintetizadores), Macloys Aquino (guitarra), Ricardo Machado (bateria) e Aderson Maia (baixo), segue erguendo bandeiras, como a autoexplicativa Golpista (que fecha o registro), deixa claro.



Mesmo "menos feminista" se comparado ao trabalho anterior, o disco parece manter a pegada do empoderamento (ô palavrinha que a gente não consegue um sinônimo decente) e da discussão sobre importância do respeito a igualdade entre gêneros, por meio de letras que falam de forma natural sobre a identidade feminina e sobre a sexualidade da mulher. Isto fica claro em letras como a de Amor Distrai (Durin) (E não apaga a luz / E nem fecha a porta / E vamo descobrir o que me excita / O que te excita / O que fazer pra ser mais foda), Tônus (Um corpo jovem / Aquele tônus / Aquele brilho / Um corpo pronto pro verão / É ofensivo ao coração) e Irmãs (Dos diários que eu roubei pra ler / Pra aprender as femininas invenções / Pra feminina ser como você / Blush nas bochechas e na zona T / Homem se cata pelo estômago / E se devora pelas beiradas). Aliás, a própria capa do disco, um trabalho visual estilizado feito de forma caseira, traz um tanto dessa ideia.

Com uma sonoridade capaz de nos fazer lembrar de coletivos nacionais como Boogarins e Terno Rei em uma mistura com estrangeiras como The War On Drugs, os goianos parecem a cada dia mais confiantes no que diz respeito a personalidade da banda, bem como os caminhos a serem seguidos - e apreendidos pelo público. Eventualmente melancólico, invariavelmente provocativo e de essência extremamente poética, o registro parece trafegar num limite entre a música alternativa mais íntima (com batidas, guitarras e sintetizadores econômicos) - como em Besta e Brincadeira -, com outros mais expansivos - como na já citada Tônus. "Esse é um sentimento que também reflete a nossa postura de não jogar com sentimentos óbvios, imediatos", analisa Aquino. Definitivamente, pra que tudo isso seja percebido da melhor maneira, somente sem distrações, com plena atenção aquilo que se faz - mais ou menos como o sexo, direto, cru e sem firulas sugerido pelo grupo em suas letras.

Nota: 8,3