segunda-feira, 29 de abril de 2024

Cinema - La Chimera

De: Alice Rohrwacher. Com Josh O'Connor, Isabella Rossellini, Carol Duarte e Lou Roy-Lecollinet. Drama / Comédia, Itália / França / Suíça, 2023, 131 minutos.

"Você estava sonhando?". Quem acompanha o trabalho da diretora Alice Rohrwacher sabe de sua habilidade na hora de juntar dramas cotidianos com um tipo de fantasia de pegada quase felliniana. Foi assim com longas como As Maravilhas (2014) e Feliz Como Lazzaro (2018) e até com curtas, como no premiado Le Pupille (2022). No recente La Chimera, que está em cartaz nas salas do País, o expediente se repete. Aliás, quem se deter a ler apenas a sinopse disponível em sites de cinema - "um grupo de arqueólogos confronta o mercado negro de artefatos históricos" -, talvez tenha uma noção muito pequena a respeito da experiência. Afinal, aqui temos um filme divertido, provocador, cheio de pessoas complexas e com comportamentos ambíguos - no caso um grupo de ladrões que violam túmulos em um busca de objetos de valor que possam ser contrabandeados no mercado negro. E tudo com uma pegada meio política de contestação, de iconoclastia e de quebra do status quo e que passa longe da banalidade da síntese.

O protagonista da obra é um certo Arthur (Josh O'Connor), um inglês que está justamente retornando para a Itália, após ter passado uma temporada na prisão. Apesar da acalorada recepção de seus parceiros de pilhagens na Itália rural - a ambientação parece ser meio oitentista, o que é reforçado pela fotografia em tons pasteis, e pelos figurinos antiquados (e, eventualmente, exagerados, como nos instantes mais festivos) -, Arthur não parece estar no melhor do seu humor. Principalmente porque ele sente a falta de sua bela Beniamina (Yile Vianello), a ex-namorada cujo paradeiro ninguém sabe muito bem direito. Ainda que sua melhor amiga Flora (Isabella Rossellini), uma bem feitora que é como uma mentora em uma casa cheia de mulheres, garanta que ela vá voltar. Pra piorar, a jovem ainda surge nos sonhos do sujeito, sempre em cenários ensolarados, oníricos, idílicos - o que também reforça o apelo ao realismo fantástico, que é bem típico na filmografia de Rohrwacher.


 

É claro que aqui e ali o espectador mais ligado vai conseguir reconhecer as alegorias que nos conduzem por entre túmulos violados e a busca por objetos e outros elementos que façam a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas em linhas gerais há muito mais para além da metáfora - especialmente pelo carisma quase infinito desse grupo de foras da lei, que são capazes das mais excêntricas estratégias para conseguir consolidar um novo espaço de escavação. Nas horas vagas, talvez pra chamar menos atenção para a sua atividade central, o coletivo ainda funciona como um agrupamento teatral, que leva apresentações de música e dança pelas ruas da Toscana - e nessa hora é meio difícil não reconhecer os signos da obra de Federico Fellini, especialmente A Estrada da Vida (1954), A Doce Vida (1960) e Amarcord (1973), com seus personagens atormentados, que encontram alívio no bom humor mundano acima de tudo e no caráter circense que une os acontecimentos.

É nesse cenário que surgem, por exemplo, a fotógrafa Mélodie (Lou Roy-Lecollinet), que se une ao grupo com algum tipo de interesse que não fica claro, e empregada de Flora, Italia (a brasileira Carol Duarte), que parece não estar a par dos segredos de Arthur, e que mantém seus dois filhos na casa da patroa em segredo. Com uma beleza geral comovente - seja nos ângulos de câmera curiosos, nos planos abertos e nos cenários bucólicos, interioranos - a diretora entrega aqui uma experiência completa de arte, alegre mas cáustica, fragmentada mas coesa. Em alguns momentos os objetivos podem ser tornar intrigantes - como na sequência em que Mélodie simplesmente quebra a quarta parede para realizar um discurso feminista ou na divertidíssima cena em que o grupo encontra um trovador que entoa uma canção que resume à perfeição o comportamento daquele bando de desajustados. Há um clima de conto de fadas no todo, em meio a músicas folclóricas, nostalgia enevoada e mágica no cotidiano. Está no dicionário: quimera pode ser uma esperança de algo difícil de alcançar, uma utopia. Só que, aqui, como cinema, ela é plenamente alcançada.

Nota: 9,0


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