De: Tran Anh Hung. Com Lu Man San, Thi Loc Truong, Gerard Neth e Thi Hai. Drama / Romance, Vietnã / França, 1993, 104 minutos.
Vamos combinar que é difícil analisar o tocante O Cheiro do Papaia Verde (Mùi Đu Đủ Xanh), sem levar em conta o aspecto sensorial da obra. Ao cabo, trata-se de um filme pequeno, que parte de um fiapo de história - aliás, como é bastante comum no cinema asiático -, mas que faz o espectador mergulhar em uma ambientação de cores vivas, de cenários bucólicos, de barulhos (mas de silêncios) e até de sabores e de cheiros que parecem saltar da tela. Assim como ocorre no cinema contemplativo de Apichatpong Weerasethakul, temos uma experiência com a sua própria fluidez de tempo. Entre um take e outro, com o uso de travellings, de planos sequência, de gruas e de câmeras próximas ao chão - que emulam o cinema de Yasujiro Osu -, temos uma natureza abundante que abraça os habitantes da vila vietnatima em que se passa a história. Sim, é um filme sobre contrastes sociais, infidelidade, memória, papel da mulher na sociedade, trabalho e tradições, mas é também uma produção naturalista e poética, profunda mas sutil.
O cenário ficcional é um pequeno vilarejo da Saigon do início dos anos 50, portanto um pouco antes da Guerra do Vietnã - ainda que ronde o espaço os toques de recolher e uma certa tensão do ambiente no contexto de outra guerra, a da Indochina. É nesse local que Mui (Lu Man San), uma criança de dez anos, chega para trabalhar como serviçal de uma família rica, mas que enfrenta um período de decadência financeira (as vendas já não estão das melhores e há ainda os episódios de infidelidade do patriarca, que, não bastasse dar suas escapadas, ainda leva a grana do comércio de tecidos). Curiosa e observadora sobre o mundo, Mui atua em trabalhos domésticos gerais, especialmente os que envolvem a preparação de legumes e a elaboração dos pratos da cozinha oriental - em especial aquele feito com o mamão que ainda não está maduro. Aliás, a alegoria sobre uma fruta que ainda verde surge como uma metáfora para a própria Mui, que desbrava os cantos daquela habitação, sendo mais ou menos adotada por aquela família - a matriarca (Thi Loc Truong) perdeu uma filha e parece ver nela uma forma de suprir a ausência.
Ao mesmo tempo, a protagonista se aproxima dos outros integrantes da família - especialmente o filho mais novo (de três), Tin (Gerard Neth) que costuma atormentá-la com seu comportamento imaturo, perturbador e até ressentido pelas seguidas ausências do pai (Ngoc Trun Tran). Já no andar de cima, a avó (Thi Hai) é uma senhora inválida, viúva, que raramente deixa o quarto que habita. Mui circula pelos ambientes, atende pedidos, encontra vizinhos e amigos, enquanto acompanha a derrocada dos patrões. O que envolverá uma tragédia futura e um salto temporal em que ela surgirá adulta, agora trabalhando como serviçal na casa de um amigo do filho mais velho da família, de nome Khuyen (Hoa Hoi Vuong) - um pianista casado com uma mulher aparentemente fútil, que ele não ama tanto assim. E, bom, a gente mais ou menos imagina o que vai acontecer, em meio a memórias, lembranças - carinhosas ou não - de um ambiente ingênuo, mas de aprendizado e que nos apresenta um País poucas vezes visto em produções que chegam ao Ocidente.
Aliás, esse foi o primeiro filme do diretor Tran Anh Hung, do recente O Sabor da Vida (2023), que, não apenas lhe apresentou para o mundo, como lhe deu notoriedade, com indicações a premiações (entre elas o Oscar) e vitórias no Festival de Cannes (na categoria Câmera de Ouro). Em um momento em que suspenses policiais e comédias mais escrachadas movimentavam a Hollywood dos anos 90, o realizador foi na contramão ao estacionar sua câmera como um meio de mostrar a vida regular, cotidiana do povo vietnatima - seus amores e sonhos, seu comércio, suas famílias, filhos, avós, fazendo uma espécie de contraponto à modernidade. "Eu queria mostrar a humanidade dessas pessoas, que ainda não havia sido vista no cinema", comentou Hung em entrevistas de divulgação, citando ainda que a obra também nascia de imagens que tinha da própria minha mãe, do frescor e da beleza de seus gestos. O resultado é uma experiência extremamente bem coreografada entre arabescos e balaústres, que se mesclam com folhagens verdíssimas, cantos de grilos, formigas e sapos despreocupados, percussões inesperadas, instrumentos de cordas e um todo estimulante, que burla os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Tudo executado de forma inebriante, vívida e bastante fluída.
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